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domingo, 17 de julho de 2011

A Bruxa de Abril e Outros Contos - Ray Bradbury

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A Bruxa de Abril e Outros Contos
Por:Ray Bradbury



A Bruxa de Abril


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No ar, sobre vales, sob as estrelas, acima de um rio, de uma lagoa, de uma estrada,
Cecy voava. Invisível como os primeiros ventos da primavera, fresca como o hálito do trevo
brotando de campos crepusculares, ela voava. Planava em pombas tão macias quanto
arminho branco, parava em árvores e vivia nas flores, banhando-se em pétalas quando a
brisa soprava. Montava num sapo verde-claro, frio como menta, à beira de uma poça
brilhante. Trotava num cão de pêlo áspero e latia para ouvir o eco vindo dos flancos de
celeiros distantes. Morava na relva nova de abril, em líquidos claros e doces que emergiam
da terra almiscarada.
"É a primavera", pensou Cecy. "Esta noite, quero estar em todos os seres vivos do
mundo."
Ora ela habitava grilos graciosos em caminhos salpicados de poças de alcatrão, ora
ouriçava-se no orvalho de um portão de ferro. Sua mente, que se adaptava com rapidez,
fluía invisível nos ventos de Illinois naquela noite de sua vida em que ela tinha apenas
dezessete anos.
— Quero me apaixonar — disse ela. Lançou esse comentário durante o jantar.
Seus pais arregalaram os olhos e empertigaram-se na cadeira.
— Paciência — foi o conselho deles. — Lembre-se de que é extraordinária. Toda a
nossa família é estranha e extraordinária. Não podemos nos misturar ou nos casar com
pessoas comuns. Perderíamos nossos poderes mágicos se o fizéssemos. Você não gostaria
de perder sua habilidade de "viajar" por meio da mágica, não é? Então, tenha cuidado.
Tenha cuidado!
Mas, em seu quarto, Cecy aplicara perfume ao colo, espreguiçando-se, trêmula e
apreensiva, em sua cama de dossel, enquanto uma lua cor de leite erguia-se sobre o campo
de Illinois, fazendo os rios virarem creme e as estradas, platina.
— Sim — suspirou. — Descendo de uma família estranha. Dormimos de dia e voamos
à noite como pipas negras ao vento. Se quisermos, podemos dormir em toupeiras no
inverno, dentro da terra quente. Posso viver em qualquer coisa que quiser — um
pedregulho, um açafrão ou um louva-a-deus. Posso abandonar meu corpo ossudo e sem
graça e enviar minha mente bem longe, em busca de aventuras. Agora!
O vento a arrebatou para planícies e prados.
Viu as quentes luzes primaveris dos chalés e fazendas brilhando com as cores do
crepúsculo.
"Se eu mesma não posso apaixonar-me, porque sou sem atrativos e esquisita, então
vou apaixonar-se por intermédio de outra pessoa", pensou.
Naquela noite, do lado de fora de uma casa de fazenda, uma garota de cabelos negros,
com não mais de dezenove anos, extraía água de um poço de pedra. Ela cantava.
Cecy caiu — uma folha verde — no poço. Aninhada no musgo macio, fitou a
escuridão fresca que havia acima. Então, fundiu-se a numa ameba trêmula e invisível.
Depois, em uma gotícula de água. Por fim, dentro de uma caneca fria, sentiu-se chegar aos
lábios quentes da moça. Houve um som noturno e delicado de gole.
Cecy olhou através dos olhos da moça. Entrou na cabeça escura e fitou pelos olhos
brilhantes as mãos que puxavam a corda áspera. Escutou o mundo da jovem com os ouvidos
em concha. Sorveu um universo específico através daquelas narinas delicadas, sentiu aquele
coração especial bater e bater. Sentiu aquela língua estranha mover-se com a cantoria.
"Ela sabe que estou aqui?", pensou Cecy. A garota abriu a boca, espantada. Mirou a
escuridão dos prados.
— Quem está aí? Não houve resposta.
— Apenas o vento — sussurrou Cecy.
— Apenas o vento. — A garota riu consigo mesma, mas estremeceu.
Era um bom corpo o daquela moça. Continha ossos do mais fino marfim, ocultos e
bem fornidos de carnes. O cérebro era como rosa-chá pendurada na escuridão, e havia vinho
de sidra na boca. Os lábios mantinham-se firmes sobre os dentes muito brancos, as
sobrancelhas arqueavam harmoniosamente diante do mundo, e o cabelo caía suavemente
sobre o pescoço lácteo. Os poros formavam uma malha pequena e cerrada. O nariz
empinou-se para a lua, e as faces brilharam como minúsculas fogueiras. O corpo deslocavase
numa sutil oscilação de um movimento para outro; parecia sempre estar cantando para si
próprio. Estar nesse corpo, nessa cabeça, era como se aquecer à lareira, viver no ronronar de
um gato adormecido, mover-se nas águas tépidas de um regato que avança à noite para o
mar.
"Vou gostar daqui", refletiu Cecy.
— O quê? — perguntou a moça, como se tivesse ouvido uma voz.
— Qual é seu nome? — indagou Cecy com cuidado.
— Ann Leary. — A garota contorceu-se. — Agora, por que devo dizer isso em voz
alta?
— Ann, Ann — sussurrou Cecy. — Ann, você vai se apaixonar.
Como numa resposta a essa afirmativa, um grande bramido brotou da estrada, um
estrépito e um zumbido de rodas no cascalho. Um homem alto dirigia uma carroça,
mantendo as rédeas elevadas com seus braços monstruosos, o sorriso a cintilar ao longe.
— Ann!
— É você, Tom?
— Quem mais? — Pulando da carroça, ele amarrou as rédeas à cerca.
— Não quero falar com você! — Ann deu-lhe as costas, derramando água do balde.
— Não! — Cecy gritou.
Ann quedou paralisada. Olhou as colinas e as primeiras estrelas da primavera. Fixou
os olhos no homem chamado Tom. Cecy a fez derrubar o balde. — Veja o que você fez!
Tom correu até ela.
— Veja o que me fez fazer.
Ele enxugou os sapatos dela com um lenço, rindo.
— Vá embora! — Ela chutou-lhe as mãos, mas ele riu mais uma vez, e, fitando-o de
milhas de distância, Cecy avistou a curvatura de sua cabeça, o tamanho de seu crânio, a
protuberância de seu nariz, o brilho de seus olhos, o perímetro de seus ombros e a força
poderosa de suas mãos, enquanto ele fazia movimentos delicados com o lenço. Espiando do
sótão secreto da adorável cabeça de Ann, Cecy puxou um fio acobreado, oculto, de
ventríloquo, e a boca subitamente abriu-se:
— Obrigada!
— Oh, então você tem educação? — O odor de couro que emanava de suas mãos e o
cheiro de cavalo que brotava de sua roupa penetravam nas narinas delicadas, e Cecy, muito,
muito distante, além de campinas noturnas e campos floridos, agitou-se em sua cama como
se fosse por obra de um sonho.
— Para você, não! — bradou Ann.
— Quieta, fale com gentileza — ordenou Cecy. Ela moveu os dedos de
Ann na direção da cabeça de Tom. Ann recolheu-os rapidamente.
— Estou ficando louca!
— Está sim. — Ele assentiu com a cabeça, sorrindo mas surpreso. —
Então, queria me tocar?
— Não sei. Ah, vou embora! — Suas bochechas fulgiam como carvão em
brasa.
— Por que não vai? Não a estou segurando. — Tom levantou-se. —
Mudou de idéia? Vai ao baile comigo esta noite? É especial. Depois conto por
quê.
— Não — respondeu Ann.
— Sim! — gritou Cecy. — Eu nunca dancei. Quero dançar. Nunca usei
um vestido longo, todo farfalhante. Eu quero isso. Quero dançar a noite toda.
Nunca soube o que é estar numa mulher, dançando; papai e mamãe nunca
permitiriam. Já conheci, de uma forma ou de outra, cães, gatos, gafanhotos,
folhas, tudo o mais que há no mundo, mas nunca uma mulher na primavera,
nunca em uma noite como esta. Oh, por favor... nós temos de ir ao baile!
Ela espalhou seus pensamentos como os dedos da mão dentro de uma
luva nova.
— Sim — assentiu Ann Leary. — Eu aceito. Não sei por quê, mas irei ao
baile com você esta noite, Tom.
— Para dentro agora, rápido! — Cecy ordenou. — Precisa banhar-se,
falar com seus pais, passar o vestido a ferro em seu quarto!
— Mãe — disse Ann —, mudei de idéia!
~
Enquanto a carroça galopava estrada afora, os quartos da casa da fazenda
acenderam-se para a vida: a água fervia para o banho, o fogão a lenha aquecia o
ferro para o vestido, a mãe corria com uma fileira de alfinetes na boca.
— O que deu em você, Ann? Você não gosta de Tom!
"Mas é primavera!", pensou Cecy.
— É primavera — Ann respondeu.
"E uma ótima noite para dançar", pensou Cecy.
— ... para dançar — murmurou Ann Leary.
Depois, estava na banheira com o sabão borbulhando em seus ombros
brancos e luzidios, com pequenos ninhos de sabão embaixo dos braços e a
carne de seus seios cálidos balançando em suas mãos. Cecy o tempo todo lhe
movia a boca, sustentava-lhe o sorriso, levava adiante as ações. Não devia
haver nenhuma pausa, nenhuma hesitação, ou toda a pantomima ficaria
arruinada! Ann Leary precisava ser mantida em movimento, fazendo coisas,
agindo, lavando aqui, ensaboando acolá, agora para fora da banheira! Esfreguese
com uma toalha! Agora, perfume e talco!
— Você! — Ann flagrou-se no espelho, toda branca e rosada como lírios
e cravos. — Quem é você esta noite?
— Sou uma garota de dezessete anos. — Cecy mirava de seus olhos
violeta. — Você não pode me ver. Sabe que estou aqui?
Ann Leary meneou a cabeça.
— Aluguei meu corpo a uma bruxa de abril, com toda certeza.
— Chegou perto, muito perto! — Cecy riu. — Agora, vista-se.
O luxo de sentir boas roupas mover-se por um corpo amplo! E então um
"alô" vindo de fora.
— Ann, Tom está de volta!
— Diga-lhe para esperar. — Ann sentou-se, de repente. — Diga-lhe que
não vou ao baile.
— O quê? — disse a mãe, à porta.
A atenção de Cecy voltou bruscamente. Fora uma distração fatal, um
momento fatal em que saiu do corpo de Ann por um instante apenas. Ela ouvira
o ruído longínquo dos cascos do cavalo e da carroça perambulando pelos
campos primaveris banhados pelo luar. Por um segundo, pensou, vou
encontrar-me com Tom e sentar-me em sua cabeça, para ver como é ser um
homem de vinte e dois anos numa noite como esta. E assim ela correu
rapidamente pelos urzais, mas agora, como um pássaro para a gaiola, adejou de
volta, farfalhejando e saracoteando para lá e para cá na cabeça de Ann Leary.
— Ann!
— Diga para ele ir embora!
— Ann! — Cecy acomodou-se e esparramou seus pensamentos.
Mas Ann tinha a frase na ponta da língua: — Não, não, eu o odeio!
"Eu não deveria ter saído — nem mesmo por um instante." Com muita
suavidade, Cecy despejou a mente nas mãos da moça, no coração, na cabeça.
"Levante-se", pensou.
Ann ergueu-se.
"Ponha seu casaco!"
Ann vestiu o casaco.
"Agora, marche!"
"Não!", pensou Ann Leary.
"Marche!"
— Ann — disse a mãe —, não deixe Tom esperando nem mais um
minuto. Vá encontrar-se com ele e pare com essa bobagem. O que deu em
você?
— Nada, mãe. Boa noite. Voltaremos tarde. Ann e Cecy correram juntas
para a noite primaveril.
~
Uma sala repleta de pombos bailando graciosamente, eriçando suas penas
plácidas e arrastadas, uma sala cheia de pavões, uma sala abarrotada de olhares
e luzes iridescentes. E bem no centro, girando, girando, Ann Leary dançava.
— Oh, a noite está ótima — disse Cecy.
— Oh, a noite está ótima — repetiu Ann.
— Você está estranha — observou Tom.
A música os arrastou em rodopios de lusco-fusco, em rios musicais; eles
flutuavam, balançavam, mergulhavam, subiam para tomar ar, arquejavam,
agarravam-se um ao outro como afogados e tornavam a girar, em movimentos
de leque, em sussurros e suspiros, ao compasso de A bela Ohio.
Cecy cantarolou baixinho. Os lábios de Ann entreabriram-se e a música
saiu.
— Sim, sou estranha — corrigiu Cecy.
— Você não é mais a mesma — disse Tom.
— Não, não esta noite.
— Não é a Ann Leary que conheci.
— Não, de modo nenhum, nenhum — sussurrou Cecy a quilômetros de
distância. — Não, de modo nenhum, nenhum — disseram os lábios que se
moviam.
— Tenho uma sensação muito engraçada — Tom confessou.
— Sobre o quê?
— Sobre você. — Dançando, ele afastou-a de si e fitou-lhe o rosto
resplandecente, à procura de algo. — Seus olhos — disse —, sou incapaz de
compreendê-los.
— Pode enxergar-me? — perguntou Cecy.
— Parte de você está aqui, Ann, e parte não está. — Tom, com a feição
preocupada, girou-a com cuidado.
— Sim.
— Por que veio comigo?
— Não queria vir — Ann respondeu.
— Por quê, então?
— Algo me forçou.
— O quê?
— Não sei. — A voz de Ann soou ligeiramente histérica.
— Ora, ora, quietinha — murmurou Cecy. — Cale-se, é isso. Vamos
girar, girar.
Impelidos pela música, que os movia e os fazia rodopiar, eles
sussurraram, subiram e desceram, farfalhando a roupa pelo salão escuro.
— Mas você acabou vindo ao baile — observou Tom.
— Sim — disse Cecy.
— Por aqui. — Ele conduziu-a gentilmente por uma porta aberta e, em
silêncio, levou-a para longe do salão, da música e das pessoas.
Subiram na carroça, sentando-se lado a lado.
— Ann — ele começou, tomando-lhe as mãos, trêmulo. — Ann. — Mas
o modo como ele pronunciara o nome era como se não fosse o nome dela. Tom
manteve o olhar fixo em seu rosto lívido até Ann abrir os olhos. — Eu gostava
de você, sabe disso — ele disse.
— Sim.
— Mas você sempre foi caprichosa e eu não queria machucar-me.
— Melhor assim, nós somos muito jovens — Ann observou.
— Não, eu quis dizer, sinto muito — corrigiu Cecy.
— O que quer dizer? — Tom soltou as mãos de Ann e endireitou-se.
A noite estava quente e o aroma da terra tremeluziu ao redor deles, bem
onde estavam sentados; as árvores frescas sopravam uma folha contra a outra,
num ruge-ruge oscilante.
— Não sei — confessou Ann.
— Oh, mas eu sei — disse Cecy. — Você é alto e é o homem mais bonito
do mundo. A noite está agradável; esta será uma noite da qual sempre me
lembrarei, estando com você. — Ela avançou a estranha mão fria para
reencontrar a mão relutante de Tom e trazê-la de volta, a fim de aquecê-la e
segurá-la com firmeza.
— Mas — protestou Tom, piscando —, esta noite você está aqui, está aí.
Um minuto dum jeito, no seguinte de outro. Queria trazê-la ao baile hoje por
conta dos velhos tempos. Não tive nenhuma outra intenção quando a convidei
pela primeira vez. E depois, quando estávamos ao lado do poço, soube que algo
havia mudado, mudado de verdade, em você. Você estava diferente. Há algo
novo e delicado, algo... — ele lutou para encontrar as palavras. — Não sei, não
posso dizer. O modo como olhava. Algo em sua voz. Não sei se continuo
apaixonado por você.
— Não — disse Cecy. — Por mim, por mim.
— Tenho medo de apaixonar-me por você — ele prosseguiu. — E
machucar-me novamente.
— É possível — Ann concordou.
"Não, não, eu o amaria de todo o coração!", pensou Cecy. "Ann, diga isso
a ele, diga por mim. Diga que eu o amaria de todo o coração."
Ann não disse nada.
Tom aproximou-se sem fazer ruído e, com a mão erguida, segurou o
queixo da moça.
— Eu vou embora. Tenho um trabalho a centenas de quilômetros daqui.
Você ficará com saudades?
— Sim — responderam Ann e Cecy.
— Posso dar um beijo de despedida então?
— Sim — assentiu Cecy antes de qualquer outra pessoa falar.
Ele colou seus lábios na boca estranha. Deitou-lhe um beijo e estremeceu.
Ann estava sentada como uma estátua branca.
— Ann! — gritou Cecy. — Mova os braços, enlace-o!
Ela estava sentada como uma boneca de madeira esculpida, à luz da lua.
Mais uma vez ele beijou-lhe os lábios.
— Eu o amo — sussurrou Cecy. — Estou aqui, sou eu quem você viu nos
olhos dela, sou eu, e eu o amo mesmo se ela nunca o amar.
Ele afastou-se; parecia um homem que acabara de correr um longo
percurso. Sentou-se a seu lado.
— Não sei o que está acontecendo. Por um momento ali...
— Sim? — indagou Cecy.
— Por um momento pensei... — Ele tampou os olhos com as mãos. —
Não importa. Posso levá-la para casa agora?
— Por favor — disse Ann Leary.
Ele incitou o cavalo, bateu as rédeas com cansaço e partiu com a carroça.
Andaram no ruge-ruge, estalido e sacolejo da carroça enluarada bem cedo na
noite de primavera — apenas onze horas —, observando os prados brilhantes e
os amenos campos de trevo deslizarem ao lado.
Cecy, olhando os campos e pradarias, pensou, valeria a pena, sim, arriscar
tudo para ficar para sempre com ele. Ela ouviu mais uma vez, debilmente, as
vozes de seus pais: "Tome cuidado. Você não gostaria de perder seus poderes
mágicos, gostaria... casando-se com um mero mortal? Tome cuidado. Não iria
querer isso".
"Sim, sim", refletiu Cecy, "até disso eu abriria mão, aqui e agora, se ele
ficasse comigo. Assim, não precisaria perambular pelas noites de primavera,
não precisaria viver em pássaros, cães, gatos e raposas. Só teria de estar com
ele. Apenas ele, apenas ele." A estrada zunia abaixo.
— Tom — disse Ann, por fim.
— O quê? — Ele mirava friamente a estrada, o cavalo, as árvores, o céu e
as estrelas.
— Se algum dia, nos anos que se seguirem, em qualquer ocasião, vier a
Mellin Town, Illinois, a alguns quilômetros daqui, você me faria um favor?
— Talvez.
— Faria o favor de parar e visitar uma amiga por mim? — Ann Leary
disse a última frase de uma forma hesitante e confusa.
— Porquê?
— Ela é uma boa amiga. Eu lhe contei sobre você. Vou dar-lhe o
endereço, espere um pouco. — Quando a carroça parou na fazenda, ela pegou
um lápis e um papel de sua pequena bolsa e escreveu ao luar, apoiando a folha
no joelho. — Aqui está. Consegue ler?
Ele deu uma olhada no papel e fez que sim, espantado, com a cabeça.
— Cecy Elliott, Rua Willow 12, Mellin Town, Illinois — ele leu.
— Vai visitá-la um dia? — Ann perguntou.
— Um dia.
— Promete?
— Que isso tem a ver com você? — ele gritou, feroz. — Que pretende
com esses nomes e papéis?
— Ele amassou o papel numa bola apertada e meteu-o no casaco.
— Oh, por favor, prometa! — Cecy implorou.
— ... prometa... — disse Ann.
— Está bem, está bem, agora me deixe em paz!
— Tom vociferou.
"Estou cansada", pensou Cecy. "Não posso mais ficar. Tenho de voltar
para casa. Estou enfraquecendo. Só tenho o poder de ficar algumas horas assim
por noite, viajando, viajando. Mas antes de ir..."
— ... antes de ir — repetiu Ann. Ela beijou Tom nos lábios.
— Sou eu quem o está beijando — declarou Cecy. Tom afastou-a e fitou
Ann Leary, olhando bem dentro dela. Ele não disse nada, mas seu rosto
lentamente, muito lentamente, começou a relaxar; as rugas desvaneceram-se, a
contração da boca abrandou-se e ele mais uma vez fixou a face enluarada que
segurava bem diante de si.
Então, ele a ajudou a descer da carroça e, sem ao menos lhe dar boa-noite,
num instante havia desaparecido na estrada.
Cecy saiu do corpo de Ann Leary, que, chorando como se tivesse sido
libertada da prisão, correu até sua casa pelo caminho alumiado pela lua e bateu
a porta.
Cecy permaneceu apenas mais um pouquinho. Pelos olhos de um grilo,
viu o mundo noturno da primavera. Pelos olhos de um sapo, sentou-se por um
momento solitário à beira do charco. Pelos olhos de uma ave de rapina
empoleirada em um olmo gigante, assombrado pelo luar, viu as luzes
apagarem-se nas duas casas rurais; uma aqui, outra a quase dois quilômetros.
Ela pensou em si e em sua família, em seu estranho poder e no fato de que
nenhum de seus familiares poderia casar-se com ninguém neste vasto mundo
que existe além das colinas.
—Tom? — A mente enfraquecida voou no pássaro noturno por baixo das
árvores e sobre campos profundos de mostarda selvagem. — Ainda está com o
papel, Tom? Virá visitar-me um dia, um ano desses, em alguma ocasião? Será
capaz de me reconhecer? Olhará meu rosto e conseguirá lembrar-se do local
onde me viu pela última vez, sabendo que me ama como eu o amo, de todo o
meu coração, para todo o sempre?
Ela parou no ar refrescante da noite, a um milhão de quilômetros das
cidades e das pessoas, acima das fazendas e continentes e rios e colinas.
— Tom? — repetiu, docemente.
Tom dormia. Era tarde da noite; suas roupas estavam penduradas em
cadeiras ou cuidadosamente dobradas na extremidade da cama. E, em uma mão
silenciosa, cuidadosamente jogada para o alto, sobre o travesseiro branco, ao
lado de sua cabeça, estava um pequeno pedaço de papel com algo escrito.
Muito devagar, uma fração de centímetro por vez, seus dedos fechavam-se e o
seguravam com firmeza. E ele nem se mexeu, nem mesmo percebeu quando
um melro, sutilmente, maravilhosamente, veio bater de leve por um momento
contra os claros cristais enluarados da vidraça e, então, estremecendo sem
alvoroço, parou e voou na direção do leste, sobre a terra adormecida.




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A Sirena de Nevoeiro

Bem longe, na água fria, distante do continente, todas as noites
esperávamos a chegada da neblina, até ela vir, e políamos o maquinário de
latão e acendíamos a lanterna de nevoeiro no alto da torre de pedra. Como dois
pássaros no céu cinzento, McDunn e eu enviávamos o sinal luminoso,
vermelho, depois branco, então vermelho novamente, para salvaguardar os
navios solitários. E se não vissem nossa luz, havia sempre nossa voz, o grito
fabuloso e profundo da Sirena de Nevoeiro, que sacudia os farrapos nevoentos,
assustava as gaivotas, que voavam dali como baralhos de cartas dispersas, e
fazia as ondas subir e espumar.
- E uma vida solitária, mas acostumei-me a ela agora, e você? — indagou
McDunn.
— Também — respondi. — Você é um bom camarada, graças a Deus.
— Bem, é sua vez de ir ao continente amanhã — ele disse, sorrindo —,
para dançar com as mulheres e beber gim.
— Em que você pensa, McDunn, quando o deixo aqui sozinho?
— Nos mistérios do mar. — McDunn acendeu o cachimbo. Eram sete e
quinze de uma noite fria de novembro. O aquecedor estava ligado, a luz
alternava o facho em duzentas direções e a Sirena de Nevoeiro buzinava na
garganta alta da torre. A cidade mais próxima ficava a cento e cinqüenta
quilômetros pela costa, apenas uma estrada que seguia solitária pelos campos
desolados até o mar, quase nenhum automóvel, e uma tirada de três
quilômetros pela água gelada até nosso penhasco, em torno do qual singravam
os raros navios.
— Os mistérios do mar — repetiu McDunn, absorto. — Sabe que o
oceano é o maior de todos os flocos de neve? Rola e incha em milhares de
formas e cores, sem que haja duas iguais. Estranho. Uma noite, anos atrás,
quando estava aqui sozinho, vi todos os peixes do mar subirem à superfície lá
adiante. Algo os fez nadar até aqui. Deitaram-se trêmulos na baía, um pouco
como se observassem a lanterna da torre tingir-lhes de vermelho, branco,
vermelho, branco, de modo que pude distinguir seus olhinhos engraçados.
Havia esfriado. Eram como uma grande cauda de pavão, abanando-se ali até a
meia-noite. Então, sem fazer nenhum ruído, nadaram para longe; o milhão de
peixes havia desaparecido. Fiquei imaginando, sabe, que, de certo modo, eles
atravessaram todos esses quilômetros como se se dirigissem a um culto.
Estranho. Mas penso em como o farol lhes parece, erguendo-se vinte metros
acima da água, a luz divina cintilando para eles e a torre pronunciando-se com
uma voz tonitruante. Eles nunca mais voltaram esses peixes, mas não acha que
por alguns momentos eles acreditaram estar diante da Presença Divina?
Eu estremeci. Deitei os olhos no longo gramado cinzento do mar, que se
estendia até o nada, até lugar nenhum.
— Ah, o mar está cheio de histórias. — McDunn tragava nervosamente
seu cachimbo, a piscadelas. Estivera nervoso o dia todo, sem explicar-me o
porquê. — A despeito de todas as nossas máquinas e dos chamados
submarinos, ele continuará aqui milhares de séculos antes de fincarmos o pé no
verdadeiro solo das terras afundadas, nos reinos de contos de fadas que há por
lá, e no genuíno terror. Pense nisso, lá embaixo ainda estão no ano trezentos
mil antes de Cristo. Enquanto desfilávamos com trombetas, decepando países e
cabeças uns aos outros, eles viveram no fundo do oceano, a vinte quilômetros
de profundidade, congelados num tempo tão velho quanto a cauda de um
cometa.
— Sim, é um mundo antigo.
— Venha. Tenho algo especial que estive guardando para contar-lhe.
Subimos os oitenta degraus, conversando sem pressa. No alto, McDunn
apagou as luzes do quarto, para que não houvesse reflexo na chapa de vidro. O
grande olho da lanterna sibilava, girando com facilidade em seu bocal
engraxado. A Sirena apitava sem cessar, uma vez a cada quinze segundos.
— Soa como um animal, não acha? — McDunn fez que sim para si
mesmo. — Um grande animal solitário chorando durante a noite. Instalado
aqui, na borda de dez bilhões de anos, conclamando o Abismo: "Estou aqui,
estou aqui, estou aqui". E o Abismo realmente responde. Já faz três meses que
você veio para cá, Johnny, de modo que é melhor que eu o previna. Nesta
época do ano — ele segredou, examinando a escuridão e a névoa —, há algo
que vem visitar o farol.
— O cardume de peixes, como você disse?
— Não, é outra coisa. Demorei para contar-lhe porque temia que me
achasse tolo. Mas esta noite é a última que vou postergar, pois, se no ano
passado marquei corretamente meu calendário, é hoje que acontecerá. Não
entrarei em detalhes, você terá de ver com os próprios olhos. Apenas sente-se
aqui. Se quiser, amanhã, poderá arrumar sua mochila, tomar a lancha para o
continente, pegar o carro que deixou estacionado ali, no cais encardido do cabo,
e voltar para alguma cidadezinha do interior, onde poderá deixar as luzes
acesas dia e noite. Não o questionarei nem o culparei. Há três anos vem
acontecendo e esta é a única vez que tenho companhia para verificar o
fenômeno. Apenas aguarde e observe.
Meia hora se passou, durante a qual trocamos apenas alguns sussurros.
Quando cansamos de esperar, McDunn começou a descrever suas idéias para
mim. Ele tinha algumas teorias pessoais sobre a Sirena de Nevoeiro.
— Um dia, muitos anos atrás, um homem caminhou pela costa fria e
encoberta e parou para ouvir o som do oceano. Ele disse: "Precisamos de uma
voz para lançar seu chamado pelo oceano, para avisar os navios; eu construirei
uma. Fabricarei uma voz única para fazer frente a todo tempo e toda neblina
que jamais existiu; farei uma voz que será como uma cama vazia ao lado da
gente a noite inteira, como uma casa vazia quando abrimos a porta; como as
árvores no outono, sem nenhuma folhagem. Um som como o de aves migrando
para o sul, gritando, um som como o do vento de novembro e do mar batendo
na costa dura e gélida. Criarei um som tão solitário, que não haverá quem não o
ouça com um soluço vindo do fundo da alma. A todos que o ouvirem nas
cidades distantes, as lareiras parecerão mais quentes e o aconchego do lar lhes
parecerá ainda mais convidativo. Eu farei um som e um aparato que se chamará
Sirena de Nevoeiro, e qualquer pessoa que a ouvir conhecerá a tristeza da
eternidade e a brevidade da vida.
A Sirena de Nevoeiro gemeu.
— Inventei essa história — explicou McDunn em voz baixa — para tentar
explicar por que essa coisa continua voltando ao farol todos os anos. A Sirena a
convoca, creio, e ela vem...
— Mas... — interrompi.
— Psiu! — exclamou McDunn. — Lá está! — apontou com a cabeça para
as profundezas.
Havia algo que nadava na direção da torre do farol.
A noite estava fria, como eu dissera; a torre alta estava fria, o clarão ia e
vinha, e a Sirena chamava e chamava através da bruma esfiapada. Não
conseguíamos enxergar muito longe e não conseguíamos ver com clareza, mas
lá estava o mar profundo movendo-se em torno da terra noturna, plano e calmo,
da cor de lama cinzenta. Ali estávamos nós dois sozinhos na torre alta, e lá,
bem distante de início, ocorreu um encrespamento, seguido de uma onda, uma
sublevação, um borbulhar, um pouco de espuma. Da superfície do gélido
oceano ergueu-se uma cabeça, uma cabeça grande, de coloração escura, os
olhos imensos, e depois um pescoço. E então — não um corpo —, e sim mais e
mais pescoço! A cabeça elevou-se doze metros inteiros acima da água,
sustentada por um pescoço negro, esguio e belo. Só depois é que o corpo, como
uma pequena ilha de coral preto, conchas e lagostins, surgiu pingando dos
subterrâneos. Houve um meneio de cauda. Ao todo, da cabeça à ponta do rabo,
estimei que o monstro tivesse de vinte e sete a trinta metros de altura.
Não sei o que disse. Eu disse alguma coisa.
— Agüente firme, rapaz, firme — sussurrou McDunn.
— Isso é inacreditável! — protestei.
— Não, Johnny, nós é que somos inacreditáveis. Isso continua
exatamente igual ao que era, dez milhões de anos atrás. Não se alterou. Fomos
nós e a terra que mudamos, nós nos tornamos inacreditáveis. Nós!
O monstro nadou lentamente e com grande majestade tenebrosa nas águas
geladas, ao longe. A névoa o descobria e o encobria, momentaneamente
obliterando-lhe a forma. Um de seus olhos refletiu nosso imenso facho,
vermelho, branco, vermelho, branco, como um disco erguido no alto e
enviando uma mensagem num código primevo. Mantinha-se silencioso como a
bruma que o envolvia.
— E uma espécie de dinossauro! — Eu me agachei segurando no
corrimão.
— Sim, faz parte da tribo.
— Mas eles foram extintos!
— Não, apenas se ocultaram nas profundezas. Fundo, bem fundo, no mais
fundo dos Abismos. Que tal essa palavra, Johnny, não é uma palavra
verdadeira, que resume tudo: o Abismo? Toda a frieza, escuridão e profundeza
do mundo ocultam-se numa palavra como essa.
— Que faremos?
— Faremos? Temos nosso emprego, não podemos ir embora. Além disso,
é mais seguro aqui do que em qualquer barco tentando atingir a costa. Essa
coisa é maior do que um destróier e quase tão veloz.
— Mas aqui, por que vem para cá?
No momento seguinte, obtive minha resposta.
A Sirena de Nevoeiro apitou.
E o monstro respondeu.
Um lamento atravessou um milhão de anos de água e névoa. Um lamento
tão angustiado e solitário que fez estremecer minha cabeça e meu corpo. O
monstro gemia para a torre. A Sirena soou. O monstro rugiu. A Sirena
retumbou. O monstro abriu sua bocarra recoberta de dentes, e o som que ele
emitiu foi o som da própria Sirena. Desgarrado, vasto e distante. O som do
isolamento, um mar invisível, uma noite escura, separação. Esse era o som.
— Agora — sussurrou McDunn —, já sabe por que ele vem aqui?
Eu assenti.
— Todo o ano, Johnny, esse pobre monstro, que vive muito distante no
oceano, milhares de quilômetros daqui, quem sabe a trinta quilômetros de
profundidade, espera o momento propício; essa criatura que talvez tenha um
milhão de anos. Pense nisso, esperando um milhão de anos; você conseguiria
esperar tanto tempo? Talvez seja o último de sua espécie. Acredito nisso. De
qualquer modo, os homens do continente vêm aqui e constróem este farol,
cinco anos atrás. Imagine. Instalam a Sirena e a fazem soar repetidas vezes, na
direção do local onde você mergulhou no sono profundo e nas lembranças
marítimas de um mundo onde havia milhares iguais a você, mas agora você
está só, completamente só num mundo que não foi feito para você, um mundo
que o obriga a esconder-se.
— Mas o som da Sirena de Nevoeiro vem e vai, vem e vai — prosseguiu
ele —, e você se mexe no solo lamacento do Abismo, e seus olhos se abrem
como as lentes de câmeras de sessenta centímetros, e você se move,
lentamente, lentamente, pois tem todo o oceano a pesar-lhe sobre os ombros.
Mas a Sirena atravessa milhares de quilômetros de água, débil e familiar, e a
fornalha de seu estômago se atiça, e você começa a erguer-se, lentamente,
lentamente. Você se alimenta de grandes lagos de bacalhau e carpa, de rios de
águas-vivas, e eleva-se devagar durante os meses de outono: em setembro,
quando a neblina começa; em outubro, quando há mais névoa e a Sirena
continua a chamá-lo; e então, no final de novembro, depois de obter a correta
pressurização de seu corpo, dia a dia, alguns centímetros por hora, você
consegue chegar próximo à superfície e ainda está vivo. Você precisa seguir
devagar; se emergisse de uma vez, explodiria. Assim, são necessários três
meses para a emersão, e então alguns dias adicionais para nadar pelas águas
frias até o farol. E lá está você, à noite, o maior de todos os monstros da
criação. E aqui está o farol a chamá-lo, com um longo pescoço igual ao seu,
despontando bem alto de dentro da água, e um corpo como o seu, e, mais
importante de tudo, uma voz idêntica à sua. Você entende agora, Johnny,
entende?
A Sirena de Nevoeiro buzinou.
O monstro respondeu.
Eu vi tudo, sabia de tudo — milhões de anos esperando sozinho, por
alguém que regressaria, mas nunca regressava. Milhões de anos de isolamento
no fundo do oceano, a insanidade do tempo que existe ali, enquanto os céus
livravam-se das aves reptilianas, os pântanos secavam em terras continentais,
as preguiças-gigantes e os tigres dente-de-sabre terminavam seus dias e
afundavam em poços de alcatrão, e os homens corriam como formigas brancas
nas colinas.
A Sirena soou.
— No ano passado — confidenciou McDunn —, a criatura nadou em
torno do penhasco a noite inteira. Não chegava muito perto. Diria que estava
perplexa. Talvez temerosa. E um pouco zangada por ter percorrido todo este
caminho. Mas, no dia seguinte, inesperadamente, a bruma dissipou-se e o sol
despontou fresco, o céu azul como o de uma pintura. O monstro fugiu do calor
e do silêncio e não voltou mais. Suponho que tenha ficado ruminando sobre o
assunto durante este ano, examinando-o de todos os ângulos possíveis.
O monstro estava a apenas cem metros de distância agora, trocando
bramidos com a Sirena. Quando as luzes os atingiam, os olhos da criatura eram
como fogo e gelo, fogo e gelo.
— Eis uma lição de vida para você — afirmou McDunn. — Alguém
esperando por alguém que nunca volta para casa. Alguém que ama alguma
coisa mais do que qualquer coisa é capaz de amá-lo. E, depois de um tempo,
você quer destruir o que quer que essa coisa seja, de modo que não o machuque
mais.
O monstro correu para o farol. A Sirena plangeu.
— Vamos ver o que acontece — propôs McDunn.
Ele desligou a Sirena de Nevoeiro.
O minuto de silêncio que se seguiu foi tão intenso que podíamos ouvir
nossos corações bater na área envidraçada da torre, podíamos ouvir os lentos
giros engraxados da lanterna.
O monstro parou, paralisado. Seus grandes olhos de lanterna piscaram. A
bocarra abriu-se. Ele emitiu uma espécie de ronco, como o de um vulcão. Virou
a cabeça de um lado para outro, como se à procura dos sons que agora
minguavam na bruma. Ele espiou o farol. Roncou novamente. Então, seus
olhos incendiaram-se. Ele empertigou-se, espalhando água, e nadou a toda a
velocidade até a torre, os olhos cheios de tormento ressentido.
— McDunn! — gritei. — Ligue a Sirena.
McDunn atrapalhou-se com o interruptor. Mas, mesmo quando ele a
ligou, o monstro não parou de erguer-se. Vislumbrei suas patas gigantescas, as
escamas cintilando em teias entre as projeções parecidas com dedos, que
investiram contra a torre. O imenso olho do lado direito de sua cabeça
atormentada brilhou diante de mim como um caldeirão onde eu poderia cair,
gritando. A torre tremeu. A Sirena gemeu; o monstro gemeu. Ele agarrou a
torre e com os dentes golpeou o vidro, que se espatifou ao nosso redor.
McDunn agarrou meu braço: — Para baixo! A torre cambaleou, tremeu e
começou a ceder. A Sirena e o monstro rugiam. Tropeçamos e caímos escada
abaixo: — Rápido!
Alcançamos o solo enquanto a torre curvava-se sobre nós. Atiramo-nos
pela escada até um pequeno porão de pedra. Milhares de golpes soaram à
medida que as rochas choviam sobre o porão. De súbito, a Sirena de Nevoeiro
parou. O monstro arremeteu-se contra a torre. A torre caiu. Ajoelhamo-nos
juntos, McDunn e eu, agarrados um ao outro, enquanto nosso mundo explodia.
Então terminou, e nada mais havia exceto a escuridão e o marulhar do
oceano nas pedras nuas. Isso e um outro som.
— Escute — sussurrou McDunn. — Escute. Aguardamos um momento.
Então, comecei a ouvir. A princípio, o ar sendo puxado como por um imenso
aspirador, depois o lamento, a perplexidade, a solidão do grande monstro,
dobrando-se sobre nós, acima de nós, enquanto o fedor nauseante de seu corpo
enchia o ar, e apenas a espessura de uma pedra nos separava. O monstro
resfolegava e gemia. A torre fora destruída. A luz desaparecera. A coisa que o
chamara através de milhões de anos não existia mais. E o monstro abria sua
bocarra e emitia sons formidáveis. Os gritos da Sirena, vezes sem fim. E os
navios que singravam o mar, sem encontrar a luz, sem enxergar nada, mas, ao
passar ao largo e escutar tarde da noite, devem ter pensado: "Lá está, o som
solitário, a sirena da Baía Deserta. Está tudo bem. Vamos contornar o cabo". E
assim continuou pelo resto da noite.
O sol brilhava quente e amarelo na manhã seguinte, quando a equipe de
resgate veio nos desenterrar de nosso porão soterrado por pedras.
— O farol ruiu, é tudo — afirmou McDunn, com ar grave. — As ondas o
golpearam duramente e a torre não resistiu. — Ele beliscou-me o braço.
Não havia nada para ver. O oceano estava calmo, o céu azul. A única
coisa que restava era um cheiro forte de alga emanando da matéria verde que
cobria as pedras caídas da torre e as rochas do penhasco. Moscas zumbiam. O
oceano limpava o rochedo.
No ano seguinte, construíram um novo farol, mas, dessa vez, eu tinha um
emprego no vilarejo, uma esposa e uma boa casinha quente que lançava um
brilho amarelado nas noites de outono, as portas trancadas, a chaminé soltando
fumaça. Quanto a McDunn, tornou-se o encarregado do novo farol, construído,
segundo suas especificações, de concreto reforçado por aço. "Para qualquer
eventualidade", ele disse.
O novo farol ficou pronto em novembro. Fui sozinho até o píer, tarde da
noite, estacionei o carro e observei as águas cinzentas, escutando o novo som
da Sirena, uma vez, duas, três, quatro vezes por minuto, bem ao longe, por si
só.
O monstro?
Nunca mais voltou.
— Ele foi embora — comentara McDunn. — Voltou para o Abismo.
Aprendeu que não se pode amar nada em demasia neste mundo. Voltou para o
mais fundo dos Abismos para esperar outro milhão de anos. Ah, a pobre
criatura! Sempre esperando ali, enquanto o homem vem e vai neste infeliz
planetinha. Esperando e esperando.
Acomodei-me no carro, a escutar. Não conseguia divisar o farol ou a luz
erguida sobre a Baía Deserta. Apenas podia ouvir a Sirena, a Sirena, a Sirena.
Soava como o chamado do monstro.
Fiquei sentado ali, sem encontrar nada que fosse capaz de dizer.




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A Savana



— George, gostaria que desse uma olhada no quarto de recreação.
— Que há de errado com ele?
— Não sei.
— Bem, então.
— Só queria que desse uma olhada, é tudo, ou que chamasse um
psicólogo para averiguar o quarto.
— O que um psicólogo iria querer com um quarto de recreação?
— Você sabe muito bem o que ele iria querer. — A mulher parou no meio
da cozinha e observou a vibração do fogão, ocupado no preparo do jantar para
quatro.
— É apenas que o quarto está diferente do que era anteriormente.
— Tudo bem, tudo bem, vamos verificar. Eles percorreram o corredor de
sua casa à prova de som, cuja instalação lhes custara trinta mil dólares; esta
casa que os vestia, alimentava, embalava-os para dormir, jogava com eles,
cantava e os tratava com carinho. A aproximação do casal sensibilizou o
interruptor oculto em algum lugar, e as luzes do quarto acenderam-se quando
estavam a dez passos dali. Da mesma forma, atrás deles, no corredor, as luzes
acendiam e apagavam, num suave automatismo, à medida que eles as
ultrapassavam.
— Bem — disse George Hadley. Estavam parados sobre o piso de sapé
do quarto de recreação. O cômodo tinha doze metros de largura por doze de
comprimento e dez de altura; custara-lhes uma quantia equivalente a mais da
metade do que haviam pagado pela casa inteira. — Mas nada é bom demais
para nossos filhos — George comentara.
No quarto, não se ouvia ruído. Estava vazio como uma clareira na floresta
ao sol do meio-dia. As paredes mostravam-se vazias e bidimensionais. Mas,
enquanto George e Lydia Hadley permaneciam de pé no centro do quarto, as
paredes começaram a ronronar e retroceder na distância cristalina, conforme
lhes pareceu, e num instante surgiu uma savana africana em três dimensões: de
todos os lados, em cores reproduzidas até o último pedregulho e pedacinho de
palha. O teto acima deles tornou-se um céu profundo, com um sol quente e
amarelo.
George Hadley sentiu o suor brotar-lhe na fronte.
— Vamos sair do sol — sugeriu. — Está um pouco realista demais. Mas
não vejo nada de errado.
— Espere um pouco, que logo verá — afirmou a mulher.
Nesse momento, o aparelho odorofônico embutido começou a soprar um
vento de aromas nas duas pessoas paradas no centro da savana: o cheiro de
palha quente da estepe dos leões, a fragrância verdejante e fresca de um poço
de água artesiano, o grande odor pungente dos animais, o aroma de pó como se
fosse páprica vermelha no ar. Em seguida, vieram os sons: o patear remoto de
cascos de antílopes sobre a terra relvosa, o farfalhar de abutres. Uma sombra
cruzou o céu. A sombra tremeluziu sobre o rosto suado de George Hadley, que
olhava para cima.
— Criaturas nojentas — ele ouviu a esposa dizer.
— Os abutres.
— Veja, há leões, bem ao longe, naquela direção. Agora estão a caminho
do poço artesiano. Acabaram de comer — Lydia explicou. — Não sei o quê.
— Um animal qualquer. — George Hadley ergueu as mãos para proteger
os olhos semicerrados da luz abrasadora. — Uma zebra ou um filhote de girafa,
talvez.
— Tem certeza? — A mulher parecia peculiarmente tensa.
— Não, é um pouco tarde demais para ter certeza — ele comentou,
zombeteiro. — Não vejo nada lá senão ossos limpos e os abutres aterrissando
para beliscar o que sobrou.
— Ouviu aquele grito? — ela perguntou.
— Não.
— Cerca de um minuto atrás.
— Desculpe, não.
Os leões aproximavam-se. George Hadley mais uma vez sentiu admiração
pelo gênio mecânico que concebera o quarto. Um milagre da eficiência vendido
por um preço absurdamente baixo. Todo lar deveria ter um. Ah, às vezes eles o
assustavam com sua precisão clínica, chocavam-no, davam-lhe calafrios, mas a
maior parte do tempo que diversão não representavam para todos — não só
para os próprios filhos, mas para si mesmo, sempre que sentia vontade de uma
rápida excursão numa terra estrangeira, de uma mudança repentina de cenário.
Bem, era isso!
E lá estavam os leões, a menos de cinco metros, tão reais, tão febril e
assustadoramente reais, que podia sentir-lhes o pêlo áspero na mão e aspirai o
cheiro do revestimento poeirento de sua pele quente. O amarelo dos leões e do
capim do verão deles assomava, diante dos olhos, como o amarelo de uma
refinada tapeçaria francesa, enquanto o som dos pulmões das feras hirsutas
reverberava na silente maré do meio-dia, e o odor da carne brotava de suas
bocas ofegantes e cheias de saliva.
Os leões encararam George e Lydia Hadley com terríveis olhos verdeamarelados.
— Cuidado! — Lydia gritou.
Ela deu um pulo e correu. Instintivamente, George disparou atrás da
mulher. Do lado de fora, no corredor, com a porta fechada, ele ria e ela
chorava, ambos impressionados com a reação um do outro.
— George!
— Lydia! Oh, minha pobre, doce e querida Lydia!
— Eles quase nos pegaram!
— Paredes, Lydia, não se esqueça; paredes de cristal é tudo o que são.
Parecem reais, devo admitir, a África em nossa sala de visitas, mas não passa
de um filme colorido supersensitivo e supercinético, filme mentalmente
gravado atrás de telas de vidro. Nada mais que equipamento odorofônico e
sônico, Lydia. Aqui está meu lenço.
— Estou com medo. — Ela aproximou-se, amparou o corpo nele e chorou
copiosamente. — Você viu? Sentiu? É real demais.
— Ora, Lydia...
— Você precisa impedir Wendy e Peter de ler sobre a África.
— Claro... claro. — Ele procurou animá-la com tapinhas nas costas.
— Promete?
— Claro.
— E tranque o quarto por alguns dias até meus nervos se restabelecerem.
— Você sabe como Peter reage mal a essas coisas. Quando eu o puni, um
mês atrás, trancando o quarto algumas horas apenas, o escândalo que ele fez! E
Wendy também. Este quarto é tudo para eles.
— Precisamos trancá-lo; não tem conversa.
— Está certo. — Relutante, George trancou a porta imensa. — Você tem
trabalhado muito. Precisa descansar.
— Não sei... não sei — disse ela, assoando o nariz e sentando numa
cadeira que imediatamente começou a balançá-la e a confortá-la. —Talvez não
tenha muito a fazer. Talvez tenha tempo demais para pensar. Por que não
fechamos a casa inteira por uns dias e saímos de férias?
— Quer dizer que prefere fritar os ovos para mim?
— Sim. — Ela assentiu com a cabeça.
— E cerzir minhas meias?
— Sim. — Lydia sacudiu freneticamente a cabeça, os olhos marejados.
— E varrer a casa?
— Sim, sim... ah, sim!
— Mas pensei que foi essa a razão pela qual compramos a casa, para que
não precisássemos fazer nada.
— Mas é isso. Sinto como se não pertencesse a este lugar. A casa é
esposa e mãe agora, e babá. Como posso competir com uma savana africana?
Como posso dar um banho nas crianças, esfregando-as bem, com a mesma
eficiência e rapidez de uma banheira-esfregadora automática? Impossível. E
não sou só eu. Você também. Está horrivelmente nervoso nos últimos tempos.
— Acho que estou fumando muito.
— Você também não parece saber como se comportar nesta casa. Você
fuma um pouco todas as manhãs, bebe um pouco todas as tardes e precisa de
um pouco mais de sedativo todas as noites. Também está começando a sentir-se
desnecessário.
— Estou? — Ele interrompeu-se, tentando sondar dentro de si para ver o
que realmente havia ali.
— Ah, George! — Ela olhou para além dele, para a porta do quarto de
recreação. — Esses leões não podem sair, podem?
Ele olhou a porta e viu que tremia, como se algo tivesse pulado contra ela
do outro lado.
— Claro que não — assegurou.
~
Decidiram jantar sozinhos, pois Wendy e Peter estavam numa festa
plástica especial do outro lado da cidade e televisionaram aos pais para dizer
que chegariam tarde e que começassem a comer sem eles. Assim, George
Hadley, confuso, assistia à mesa da sala de jantar extrair pratos quentes de seu
interior mecânico.
— Esquecemos o ketchup — ele advertiu.
— Desculpe — respondeu uma vozinha do interior da mesa, e o ketchup
apareceu.
Quanto ao quarto de recreação, refletiu George Hadley, não faria mal às
crianças ficarem longe dele por algum tempo. O exagero nunca é bom para
ninguém. E tinha ficado bastante claro que as crianças estavam passando tempo
demais na África. Aquele sol. Ainda podia senti-lo no pescoço, como uma pata
quente. E os leões. O cheiro de sangue. Era extraordinário como o quarto
captou as emanações telepáticas da mente das crianças e criou vida para
preencher-lhes o desejo. As crianças pensaram em leões, e lá estavam os leões.
Pensaram em zebras, e lá estavam elas. Sol — sol. Girafas — girafas. Morte e
morte.Esta última. George mastigava sem saborear a carne que a mesa lhe
fatiara. Pensamentos letais. Wendy e Peter eram muito pequenos para terem
pensamentos letais. Mas não, nunca se é jovem demais, realmente. Muito antes
de sabermos o que é a morte, já a desejamos para alguém. Aos dois anos de
idade já baleamos pessoas com revólveres de espoleta.
Mas isso — a longa e tórrida savana africana, a morte horrível nas
mandíbulas de um leão, constantemente repetida.
— Aonde você vai?
Ele não respondeu. Preocupado, deixou as luzes brilharem suavemente
acima de si, extinguindo-se quando se aproximou do quarto de recreação. Ficou
escutando à porta. Um leão rugiu ao longe.
George destrancou a porta e abriu-a. Antes que pudesse dar um passo para
dentro, ouviu um grito longínquo. Então, um novo rugido dos leões, que
rapidamente serenou.
Ele pisou na África. Quantas vezes, no último ano, abrira essa porta e
encontrara o País das Maravilhas, Alice, Aladim e sua lâmpada mágica, Jack
Cabeça-de-Abóbora de Oz, o dr. Doolittle ou a vaca saltando uma lua de
aparência bastante real — todos os deliciosos dispositivos do mundo do faz-deconta?
Quantas vezes vira Pégaso voar no teto celeste ou admirara fontes
rubras de fogos de artifício ou ouvira vozes angelicais cantando? Mas agora,
essa África quente e amarela, esse forno cozinhando assassinatos! Talvez Lydia
tivesse razão. Talvez precisassem de umas férias, afastando-se da fantasia que
se tornara um pouco realista demais para crianças de dez anos de idade. E, se
não havia problema em exercitar a mente com fantasias mirabolantes, o que
dizer quando a mente animada de uma criança prendia-se a um único
padrão... ? Em retrospecto, parecia-lhe que no último mês já ouvira os leões
rugindo e sentira seu cheiro forte, emanando até a porta do escritório. Mas,
como estava ocupado, não prestara atenção.
George Hadley estava sozinho na pastagem africana. Os leões desviaram
a atenção da carne e passaram a observá-lo. A única falha na ilusão era a porta
aberta através da qual podia divisar sua mulher, bem no fim do corredor escuro,
como uma fotografia emoldurada, comendo distraída o seu jantar.
— Vão embora — ele disse aos leões. Eles não se mexeram.
George conhecia perfeitamente o princípio do quarto. Era preciso enviar
os pensamentos. O que quer que pensasse, apareceria.
— Que tenhamos Aladim e sua lâmpada — gritou.
A savana permaneceu; os leões permaneceram.
— Vamos lá, quarto! Eu exijo Aladim! — ordenou.
Nada ocorreu. Os leões resmungaram em suas peles aquecidas.
— Aladim!
Ele voltou para a sala de jantar. — O quarto não está funcionando —
afirmou. — Não reage.
— Ou...
— Ou o quê?
— Ou não pode reagir — sugeriu Lydia —, porque as crianças pensaram
na África, nos leões e nas matanças durante tantos dias que o quarto ficou no
cio.
— Pode ser.
— Ou Peter programou para que funcionasse assim.
— Programou?
— Ele pode ter penetrado o mecanismo e arrumado algo.
— Peter não conhece nada sobre mecanismos.
— Ele é inteligente para um menino de dez anos. O Q.I. dele...
— Mesmo assim...
— Oi, mamãe. Oi, papai. Os Hadleys estavam de volta. Wendy e Peter
chegaram pela porta da frente, as bochechas como balas de hortelã-pimenta,
olhos como duas contas cintilantes de ágata azul, um odor de ozônio nos
macacões por causa da viagem de helicóptero.
— Chegaram bem a tempo para o jantar — disseram os pais.
— Comemos muito sorvete de morango e cachorro-quente — afirmaram
as crianças, de mãos dadas. — Mas podemos sentar e olhar.
— Sim, venham nos contar sobre o quarto de recreação — sugeriu
George Hadley.
O irmão e a irmã piscaram para ele e depois um para o outro: — Quarto
de recreação?
— Contem-nos sobre a África e tudo mais — explicou o pai, com
jovialidade forçada.
— Não entendo — disse Peter.
— Sua mãe e eu acabamos de viajar pela África com vara e carretel;
como Tom Swift1 e seu leão elétrico — prosseguiu o pai.
— Não há África no quarto de recreação.
— Oh, por favor, Peter. Nós já sabemos.
— Não me lembro de nenhuma África — Peter comentou com Wendy. —
E você?
— Não.
_______________
1Tom Swift é herói de uma longa série de aventuras infanto-juvenis. (N. da E.)
— Vá correndo ver e me conte. Ela obedeceu.
— Wendy, volte já para cá — ordenou George Hadley, mas ela já se fora.
As luzes da casa a acompanharam como um bando de pirilampos. Tarde
demais, ele se dera conta de que se esquecera de trancar a porta do quarto, após
a última inspeção.
— Wendy nos contará o que viu — disse Peter.
— Ela não precisa me contar. Eu mesmo vi.
— Tenho certeza de que está enganado, pai.
— Não estou, Peter. Vamos até lá. Mas Wendy estava de volta.
— Não é a África — ela afirmou, ofegante.
— Veremos — disse George Hadley, e eles caminharam juntos pelo
corredor e abriram a porta do quarto.
Havia uma floresta verde e adorável, um rio fantástico, uma montanha
púrpura, vozes agudas cantando, e Rima, encantadora e misteriosa, movendo-se
furtivamente pelas árvores com seus longos cabelos enfeitados por buquês
animados de borboletas, que adejavam multicolores. A savana africana havia
desaparecido. Os leões haviam desaparecido. Apenas Rima estava lá, cantando
uma canção tão bela que dava lágrimas nos olhos2.
George Hadley examinou a mudança de cena.
— Vão já para cama — disse para as crianças. Elas abriram a boca.
— Vocês me ouviram — ele advertiu. Eles dirigiram-se para o closet de
ar, de onde foram sugados pelo vento como folhas marrons, sendo levados por
um tubo até o quarto de dormir. George Hadley andou pela clareira canora e
apanhou um objeto que jazia num canto próximo de onde os leões haviam
estado. Devagar, ele voltou até a mulher.
— O que é? — ela indagou.
— Uma velha carteira minha — ele respondeu. George mostrou-a. Estava
impregnada do cheiro de capim quente e do cheiro de leão. Havia gotículas de
saliva nela, pois fora mastigada, e manchas de sangue de ambos os lados.
Ele fechou a porta do quarto de recreação e a trancou bem trancada.
No meio da noite, ainda estava acordado e sabia que a mulher também
estava.
— Acha que Wendy fez a mudança ? — ela perguntou por fim, no quarto
escuro.
— Sem dúvida.
— Transformou a savana em uma floresta e pôs Rima no lugar nos leões?
— Sim.
— Porquê?
— Não sei. Mas o quarto continuará trancado até que eu descubra.
— Como sua carteira foi parar lá?
— Não sei de nada — ele disse —, exceto que estou começando a ficar
arrependido de termos comprado o quarto para nossos filhos. Se as crianças
forem neuróticas, um quarto como esse...
— Ele foi projetado para ajudá-los a lidar com as neuroses de uma forma
saudável.
_________________
2Referências à obra Mansões verdes, de William Henry Hudson. (N. da E.)
— Começo a ter minhas dúvidas. — Ele fitava o teto.
— Nós demos a eles tudo o que queriam. É esta nossa recompensa:
segredos, desobediência?
— Quem foi que disse: "Crianças são como tapetes, precisam ser
espanadas de vez em quando"? Nunca levantamos a mão para eles. Os dois têm
temperamento difícil, precisamos admitir. Vão e vêm quando querem; tratamnos
como se fôssemos nós os filhos. Eles se acostumaram mal e nós nos
acostumamos mal.
— Estão agindo de modo engraçado desde que os proibiu de pegar o
foguete para Nova York uns meses atrás.
— Eles não têm idade para pegar foguetes sozinhos, eu expliquei.
— Mesmo assim, percebi que, desde então, eles decididamente vêm nos
tratando com frieza.
— Acho que vou chamar David McClean amanhã para dar uma olhada na
África.
— Mas não é a África agora, é o país das Mansões verdes e Rima.
— Tenho a impressão de que logo voltará a ser a África.
Um momento depois, ouviram gritos.
Dois gritos. Pessoas gritando no andar de baixo. E então um rugido de
leões.
Wendy e Peter não estão em seus quartos — disse a mulher.
Ele continuou na cama com o coração aos pulos: — Não — disse. — Eles
invadiram o quarto de recreação.
— Esses gritos... parecem familiares.
— Parecem?
— Sim, horrivelmente.
E embora suas camas fizessem todo o possível, durante mais uma hora os
dois adultos não conseguiram ser embalados até dormir. Um odor de gato
pairava no ar noturno.
— Pai? — disse Peter.
— Sim.
Peter olhava os sapatos. Não encarava mais o pai nem a mãe.
— Você não vai trancar o quarto de recreação para sempre, vai?
— Tudo depende.
— De quê? — devolveu Peter.
— De você e de sua irmã. Se entremear essa África com um pouco de
variedade; a Suécia digamos, por exemplo, ou a Dinamarca ou a China...
— Pensei que tínhamos liberdade para brincar como quiséssemos.
— E têm, dentro de limites aceitáveis.
— Que há de errado com a África, pai?
— Oh, agora você admite que esteve conjurando a África, não é mesmo?
— Eu não queria que trancassem o quarto — retrucou Peter com frieza.
— Jamais.
— Para falar a verdade, estamos cogitando fechar a casa inteira por cerca
de um mês. Viver uma espécie de existência livre, cada um por si.
— Parece medonho! Eu teria de amarrar meus próprios sapatos, em vez
de deixar o enlaçador de calçados fazer isso por mim? Escovar meus próprios
dentes, pentear meu cabelo e dar banho em mim mesmo?
— Seria divertido para variar, não acha?
— Não, seria horrível. Não gostei quando retirou o aparelho pintor de
quadros o mês passado.
— Tirei porque queria que você aprendesse a pintar por conta própria,
filho.
— Eu não quero fazer nada, exceto ver, ouvir e cheirar; que mais há para
fazer?
— Tudo bem, vá brincar na África.
— Vai fechar a casa em breve?
— Ainda estamos refletindo sobre o assunto.
— Pois acho que devem parar de refletir, pai.
— Não recebo ameaças de meu filho!
— Muito bem. — E Peter safou-se para o quarto de recreação.
— Cheguei a tempo? — perguntou David McClean.
— Quer café-da-manhã? — indagou George Hadley.
— Obrigado, já comi. Qual é o problema?
— David, você é psicólogo.
— Assim espero.
— Bem, gostaria que examinasse nosso quarto de recreação. Você o viu
um ano atrás, quando passou por aqui; percebeu lá algo de peculiar, na época?
— Não posso dizer que tenha notado; as violências habituais, uma
tendência para uma ligeira paranóia aqui e ali, costumeiras em crianças, pois
elas sempre se sentem perseguidas pelos pais, mas, ah, nada de importante!
Eles caminhavam pelo corredor.
— Eu tranquei o quarto — explicou o pai —, mas as crianças o invadiram
durante a noite. Eu as deixei ficar, de modo que pudessem criar seus padrões
para você ver.
Ouviram um grito terrível proveniente do quarto de recreação.
— Aí está — disse George Hadley. — Diga-me o que acha.
Entraram sem que as crianças percebessem.
Os gritos arrefeceram. Os leões estavam se alimentando.
— Já para fora, crianças — ordenou George Hadley. — Não, não alterem
a combinação mental. Deixem as paredes como estão. Saiam!
Depois que os pequenos foram embora, os dois homens passaram a espiar
os leões agrupados a distância, devorando com grande satisfação o que quer
que tivessem apanhado.
— Queria saber o que é — afirmou George. — Às vezes, quase consigo
ver. Você acha que, se trouxer binóculos de grande alcance para cá e...
David McClean soltou uma risada seca:
— Sem chance. — Ele virou-se para observar as quatro paredes. — Há
quanto tempo vem ocorrendo?
— Faz pouco mais de um mês.
— Decerto não me parece nada bom.
— Quero fatos, não impressões.
— Meu caro George, psicólogos passam a vida sem ver um fato sequer.
Ocupam-se apenas das aparências; de coisas vagas. E isso não parece bom, eu
lhe digo. Confie em meus palpites e instintos. Tenho olho para as coisas ruins.
E o que temos é muito ruim. Meu conselho para você é que destrua essa droga
de quarto e traga seus filhos para mim todos os dias durante o próximo ano,
para tratamento.
— É tão ruim?
— Receio que sim. Originalmente, estes quartos de recreação serviam
para que estudássemos os padrões deixados nas paredes pela mente infantil,
estudássemos a nosso bel-prazer e ajudássemos as crianças. Neste caso, porém,
o quarto tornou-se um canal voltado para... pensamentos destrutivos, em vez de
ajudá-los a libertarem-se deles.
— Não foi capaz de percebê-lo antes?
— Pressenti apenas que você mimava seus filhos mais que a maioria dos
pais. E agora você os decepcionou de certo modo. De que modo?
— Impedi-os de irem para Nova York.
— Que mais?
— Tirei algumas máquinas da casa e ameacei, um mês atrás, trancar o
quarto, se não fizessem o dever de casa. Eu realmente o tranquei por alguns
dias para mostrar que estava falando sério.
— Ah,ah!
— Que essas coisas querem dizer?
— Tudo. Onde antes eles tinham um Papai Noel, agora têm um avarento.
As crianças preferem o Papai Noel. Vocês deixaram que o quarto e a casa os
substituíssem na afeição das crianças. Este quarto é a mãe e o pai deles, muito
mais importante na vida deles do que seus pais de verdade. E agora você vem e
ameaça desligá-lo. Não espanta que haja ódio aqui. Podemos percebê-lo
emanando do céu. Sinta este sol. George, você precisa mudar sua vida. Como
muitos outros, baseou-a em máquinas prestadoras de conforto físico. Ora, você
morreria de fome amanhã se algo desse errado em sua cozinha. Não saberia
como quebrar um ovo. Mesmo assim, desligue tudo. Comece do zero. Vai levar
certo tempo. Mas em um ano conseguirá tornar boas crianças más; aguarde e
verá.
— Mas o choque não será grande demais para as crianças, se eu fechar o
quarto assim abruptamente, para sempre?
— Não quero que eles aprofundem nem um pouco mais esse padrão, é
tudo.
Os leões terminavam seu banquete sangrento.
Os leões estavam de pé, nos limites da clareira, observando os dois
homens.
— Agora sou eu quem estou me sentido perseguido — disse McClean. —
Vamos dar o fora daqui. Nunca gostei muito desses quartos malditos. Deixamme
nervoso.
— Os leões parecem reais, não parecem? — perguntou George Hadley.
— Não supõe que haja algum modo...
— O quê?
— ... de eles tornarem-se reais?
— Não que eu saiba.
— Alguma falha no mecanismo, uma tentativa de modificação ou coisa
do tipo?
— Não. Aproximaram-se da porta.
— Não imagino que o quarto vá gostar de ser desligado — comentou o
pai.
— Nada gosta de morrer... mesmo um quarto.
— Pergunto-me se ele me odeia por desejar desligá-lo.
— A paranóia impera aqui hoje — observou David McClean. — Pode-se
segui-la como a um rastro de animal selvagem. Ora, vejam. — Ele agachou-se
e pegou um lenço ensangüentado. — E seu?
— Não. — O rosto de George Hadley fechou-se.— É da Lydia.
Foram juntos até o quadro de fusíveis e puxaram a chave, que matou o
quarto.
As duas crianças ficaram histéricas. Gritaram, deram cabriolas e jogaram
objetos no chão. Berraram, soluçaram, praguejaram e pularam sobre os móveis.
— Não podem fazer isso com o quarto, não podem!
— Ora, crianças.
Os irmãos atiraram-se em um sofá, choramingando.
— George — Lydia Hadley intercedeu —, ligue o quarto, apenas por uns
momentos. Não pode agir de modo tão abrupto.
— Não.
— Não seja tão cruel.
— Lydia, o quarto está desligado e vai continuar desligado. E toda a casa
desgraçada morre aqui e agora. Quanto mais eu vejo a confusão em que nos
metemos, mais enojado fico. Estivemos à mercê de nosso umbigo eletrônico,
mecânico, por tempo demais. Meu Deus, precisamos de uma lufada de ar
honesto.
Os pais marcharam pela casa desligando os relógios de voz, os fogões, os
aquecedores, os engraxadores de sapatos, os enlaçadores de calçados, os
escovadores, os esfregadores e massageadores de corpo e qualquer máquina em
que pudessem pôr a mão.
A casa parecia cheia de corpos mortos, como um cemitério mecânico. Tão
silenciosa. Não havia mais a energia zumbidora das máquinas aguardando o
funcionamento pelo simples toque de um botão.
— Não deixe que eles façam isso! — gemeu Peter para o teto, como se
falasse com a casa, com o quarto de recreação. — Não deixe que meu pai mate
tudo. —Ele virou-se para George. — Ah, eu odeio você!
— Insultos não o levarão a lugar nenhum.
— Queria que estivessem mortos.
— E estivemos, por um bom tempo. Agora vamos realmente começar a
viver. Em vez de sermos manipulados e massageados, vamos viver.
Wendy ainda chorava e Peter acompanhou-a.
— Só um pouco, só um pouco, só outro pouco no quarto de recreação —
gemeram.
— Ah, George — implorou a mulher —, não vai tirar pedaço.
— Tudo bem, tudo bem, se eles calarem a boca um instante. Um minuto,
ouviram, e então vamos sair daqui para sempre.
— Papai, papai, papai! — cantarolaram as crianças com os rostos úmidos.
— E depois vamos sair de férias. David McClean virá em meia hora para
ajudar-nos a recolher as coisas e levar-nos ao aeroporto. Vou me vestir. Ligue o
quarto de recreação por um minuto, Lydia, apenas um minuto, veja bem.
E os três saíram tagarelando enquanto ele se permitia ser sugado para o
andar de cima pelo tubo de ar. Começou a vestir-se. Um minuto depois, Lydia
apareceu.
— Ficarei feliz quando tivermos saído — ela suspirou.
— Você os deixou no quarto de recreação?
— Também queria me vestir. Ah, essa África horrível. O que vêem nela?
— Bem, em cinco minutos, estaremos a caminho de Iowa. Deus, como foi
que nos metemos nesta casa? O que nos animou a comprar este pesadelo?
— Orgulho, dinheiro, ignorância.
— Acho melhor voltarmos para baixo antes que as crianças voltem a ficar
muito animadas com essas bestas malditas.
Nesse exato momento, ouviram as crianças chamando:
— Pai, mãe, venham aqui rápido... rápido! Eles desceram pelo tubo de ar
e dispararam pelo corredor. As crianças não estavam à vista.
— Wendy?Peter?
Correram para o quarto. A savana estava vazia, com exceção dos leões à
espera, os olhos fixos neles.
— Peter, Wendy? A porta bateu.
— Wendy, Peter!
George Hadley e a mulher viraram-se e correram para a porta.
— Abram a porta! — gritou George Hadley, forçando a maçaneta. —
Ora, eles nos trancaram por fora! Peter! — Ele bateu na porta. — Abram.
George ouviu a voz de Peter do outro lado, encostado à porta.
— Não deixe que eles desliguem o quarto de recreação e a casa — ele
dizia.
O senhor e a senhora George Hadley bateram na porta.
— Não sejam ridículas, crianças. E hora de ir embora. O senhor McClean
estará aqui em um minuto e....
Foi então que eles ouviram os sons.
Os leões estavam dos três lados deles, na grama amarelecida da savana,
caminhando pesadamente na palha seca, rosnando e rugindo.
Os leões.
O senhor Hadley olhou para a mulher e eles viraram e olharam as feras
aproximando-se lentamente, armando o bote, as caudas em riste.
O senhor e a senhora Hadley gritaram.
E, de súbito, perceberam por que aqueles gritos lhes pareceram tão
familiares.
— Aqui estou — anunciou David McClean na soleira do quarto de
recreação. — Olá. — Ele fitou as duas crianças sentadas no centro de uma
clareira larga, fazendo um pequeno piquenique. Atrás deles estava o poço
artesiano e a savana amarela; acima, o sol escaldante. Ele começou a suar.
— Onde estão seus pais?
As crianças olharam para cima e sorriram: — Eles logo estarão aqui.
— Ótimo, precisamos ir. — A distância, o senhor McClean viu os leões
brigando entre si, dilacerando carne com as patas, depois acalmando-se para
comer em silêncio à sombra das árvores.
Ele apertou os olhos e, protegendo a vista com a mão, espiou os leões.
As feras tinham acabado de alimentar-se. Rumavam ao poço para beber.
Uma sombra oscilou sobre a face suarenta do senhor McClean. Muitas
sombras oscilaram. Os abutres desciam do céu abrasador.
— Uma xícara de chá ? — indagou Wendy, quebrando o silêncio.






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O Outro Pé



Quando ouviram a notícia, eles saíram dos restaurantes e lanchonetes e
olharam para o céu. Ergueram suas mãos escuras sobre os olhos brancos,
voltados para o alto. Quedaram boquiabertos. Por milhares de quilômetros,
naquele meio-dia quente, havia cidadezinhas onde os negros postavam-se com
a sombra sob os pés, o olhar pregado nas alturas.
Na cozinha, Hattie Johnson tampou a panela de sopa fumegante, esfregou
os dedos finos numa toalha e caminhou cuidadosamente até o alpendre dos
fundos.
— Venha, mãe! Ei, mãe, venha... Você vai perder.
— Ei, mamãe!
Três menininhos negros dançavam em torno do quintal poeirento, a gritar.
De vez em quando, lançavam um olhar esgazeado para a casa.
— Estou indo — anunciou Hattie, e abriu a porta de tela. — Onde
ouviram esse boato?
— Na casa de Jones, mãe. Disseram que um foguete está chegando, o
primeiro em vinte anos, com um homem branco dentro!
— O que é um homem branco? Nunca vi um.
— Você verá — disse Hattie. — Sim, sem dúvida você verá.
— Conte-nos sobre um deles, mãe. Conte-nos como da outra vez.
Hattie franziu o cenho.
— Bem, faz bastante tempo. Eu era garotinha, sabem. Nos idos de 1965.
Ela aproximou-se e ficou de pé no quintal olhando para o céu claro e azul
de Marte, com as tênues nuvens brancas de Marte, e, ao longe, as colinas de
Marte ardendo no calor. Por fim, disse:
— Bem, antes de tudo, eles têm mãos brancas.
— Mãos brancas! — Os garotos gracejaram, estapeando-se.
— Têm braços brancos.
— Braços brancos! — trombetearam os meninos.
— E rostos brancos.
— Rostos brancos! Mesmo?
— Brancos assim, mamãe ? — O menor dos três jogou poeira na face,
espirrando. — Desse jeito?
— Mais branco — ela afirmou solenemente e voltou-se para o céu mais
uma vez. Pestanejou, nervosa, como se estivesse à procura de uma tempestade
bem no alto e, não a encontrando, tivesse ficado preocupada. — Talvez
devêssemos entrar.
— Ah, mãe! — Eles a fitaram sem acreditar. — Nós temos de ver,
simplesmente temos de ver. Nada vai acontecer, vai?
— Não sei. Tenho um pressentimento, só isso.
— Só queríamos ver a nave e talvez dar um pulo ao aeroporto para
conhecer o branco. Como ele é, hem, mãe?
— Não sei. Não sei mesmo — ela ponderou, balançando a cabeça.
— Conte-nos um pouco mais!
— Bem, os brancos vivem na Terra, de onde nós todos viemos, vinte anos
atrás. Um dia nos levantamos e viemos embora para Marte, onde nos
instalamos, construímos cidades e aqui estamos. Agora somos marcianos, em
vez de pessoas da Terra. E nenhum branco jamais veio para cá durante todo
esse tempo. Essa é a história.
— Por que não vieram, mãe?
— Bem, porque... Logo depois que chegamos, a Terra entrou numa guerra
atômica. Eles explodiram uns aos outros de forma terrível. Esqueceram-se de
nós. Quando terminaram de guerrear, anos depois, não tinham mais foguetes.
Só recentemente conseguiram terminar de construir outros. É por isso que vêm
agora, vinte anos depois, para fazer essa visita. — Ela fixou um olhar apático
nas crianças e, então, começou a andar. — Vocês esperem aqui. Vou até o fim
da rua, até a casa de Elizabeth Brown. Prometem ficar aqui?
— Não queremos, mas ficaremos.
— Combinado, então. — E ela correu para a rua.
Na casa dos Browns, chegou a tempo de ver toda a família acomodada no
carro.
— Olá, Hattie! Venha conosco.
— Aonde vão? — ela perguntou arquejante, aproximando-se.
— Ver o homem branco!
— É isso mesmo — confirmou o senhor Brown, com toda a seriedade.
Ele apontou para os filhos. — Essas crianças nunca viram um, e mesmo eu já
quase me esqueço.
— O que vão fazer com esse branco? — indagou Hattie.
— Fazer? — disseram todos. — Ora... apenas olhar para ele, nada mais.
— Só isso?
— Que mais se pode fazer?
— Não sei — ponderou Hattie. — Só pensei que pudesse haver
problemas.
— Que tipo de problemas?
— Você sabe — disse Hattie com ar vago, embaraçada. — Vocês não vão
linchá-lo?
— Linchá-lo ? — Todos riram. O senhor Brown bateu no joelho. — Ora,
por todos os santos, criança, não. Vamos apertar-lhe a mão. Não vamos,
pessoal?
— Claro, claro!
Outro carro apareceu da direção contrária, e Hattie soltou um grito: —
Willie!—
O que está fazendo longe de casa? Onde estão as crianças? —
vociferou o marido dela, zangado. Lançou aos outros um olhar reprovador. —
Vocês vão lá como um bando de palhaços ver o sujeito que está chegando?
— Parece que é isso mesmo — concordou o senhor Brown, assentindo
sorridente.
— Bem, levem suas armas — retrucou Willie.
— Eu mesmo vou para casa buscar a minha agora, neste instante.
— Willie!
— Entre no carro, Hattie. — Ele abriu a porta com firmeza, encarando a
mulher até ela obedecer. Sem dirigir outra palavra aos vizinhos, saiu em
disparada com o carro pela estrada poeirenta.
— Willie, não vá tão depressa.
— Não tão depressa, hem? Veremos. — Ele observou a estrada rasgar-se
sob as rodas do carro.
— Que direito eles têm de vir para cá agora? Por que não deixam de nos
importunar? Por que não explodiram a si próprios naquele velho mundo e nos
deixaram em paz?
— Willie, esta não é uma maneira cristã de falar.
— Não me sinto nem um pouco cristão — afirmou com ar selvagem,
agarrando o volante. — Sinto-me egoísta. Depois de todos esses anos fazendo o
que fizeram com nossa gente; minha mãe e pai, e sua mãe e pai, está lembrada?
Lembra-se de quando enforcaram meu pai em Knockwood Hill e deram um tiro
em minha mãe? Hem? Ou sua memória é curta como a dos outros?
— Eu me recordo — ela disse.
— Lembra-se do doutor Phillips e do senhor Burton, com suas casas
grandes, do barracão de minha mãe e de meu pai trabalhando quando era
velho? A paga que ele recebeu foi ser enforcado pelo doutor Phillips e pelo
doutor Burton. Bem — prosseguiu Willie —, o sapato está no outro pé agora.
Vamos ver quem terá leis promulgadas contra quem, quem será linchado, quem
andará na parte traseira dos bondes, quem será segregado em espetáculos. É
esperar para ver.
— Ah, Willie, você está falando em encrenca.
— Todos estão falando. Todo mundo pensou neste dia, sem acreditar que
ele chegaria. Imaginavam como seria se acaso o branco viesse para Marte. Mas
o dia é hoje, e não podemos fugir dele.
— Você não permitirá que os brancos vivam aqui?
— Claro que sim. — Ele sorriu, mas era um sorriso largo, perverso, e os
olhos exibiam um brilho enlouquecido. — Eles podem vir para cá, podem viver
e trabalhar aqui; ora, certamente. Tudo o que têm a fazer para merecê-lo é
morar em sua própria seçãozinha das cidades, as favelas; e engraxar-nos os
sapatos, limpar nosso lixo, além de sentar-se na última fileira dos balcões. É
tudo o que pedimos. E uma vez por semana enforcamos um ou dois deles.
Simples.
— Você está sendo desumano. Não gosto disso.
— Terá de se acostumar — ele afirmou. Freou o automóvel diante da casa
e saiu. — Vou apanhar minhas armas e uma corda. Vamos fazer do modo certo.
— Ah, Willie — ela gemeu, permanecendo uns instantes no carro,
enquanto ele subia os degraus correndo e batia a porta da frente.
Hattie não queria, mas o seguiu. Ele vasculhou estrepitosamente o sótão,
praguejando como um desequilibrado até encontrar quatro armas. Ela viu o
metal bruto cintilando no sótão negro, mas não conseguia enxergar o marido,
tão escuro ele estava; apenas ouvia-lhe as imprecações. Por fim, as pernas
compridas de Willie surgiram do sótão numa nuvem de poeira. Ele empilhou
um punhado de cartuchos de latão, assoprou o tambor e foi inserindo os
projéteis nele, em cliques seguidos. Seu rosto estava sisudo, carregado e todo
retorcido com a amargura mordente que o consumia.
— Deixem-nos em paz — continuava resmungando, agitando as mãos
descontroladas. — Por que não nos deixam carregar nosso fardo sozinhos?
— Willie, Willie.
— E você também... você também. — Ele lançou contra ela o mesmo
olhar, e Hattie sentiu que o ódio lhe respingava.
Do lado de fora, as crianças matraqueavam.
— Branco como leite, ela disse. Branco como leite.
— Branco como esta flor velha, vê?
— Branco como pedra, como giz com que se escreve.
Willie precipitou-se para fora de casa.
— Vocês, crianças, venham já para dentro, vou trancá-las aqui. Não quero
que vejam homem branco nenhum, nem que fiquem falando, nem que façam
coisa nenhuma. Vamos, venham.
— Mas, pai...
Ele os empurrou porta adentro. Na garagem, apanhou uma lata de tinta,
um molde e uma longa corda felpuda, com a qual fez um nó de forca, o olhar
fixo no céu enquanto as mãos ocupavam-se da tarefa.
Logo depois estavam no carro, levantando espirais de poeira na estrada,
ao passarem.
— Vá mais devagar, Willie.
— Não é hora para ir mais devagar — retrucou. — E hora de acelerar, e é
o que estou fazendo.
Por toda a estrada, as pessoas olhavam para o céu ou subiam nos carros,
ou andavam em seus automóveis, de dentro dos quais, em alguns casos,
avistavam-se canos de armas feito telescópios observando todas as maldades de
um mundo prestes a ruir.
Ela viu as armas.
— Você andou falando — ela acusou o marido.
— Sim, foi isso que estive fazendo — grunhiu, assentindo com a cabeça.
Contemplava a estrada com ar feroz. — Parei em todas as casas e disse a todos
o que fazer; exortei-os a pegar as armas e a tinta, a trazer cordas e a ficar
preparados para o que desse e viesse. E aqui estamos, o comitê de recepção,
para dar-lhes a chave da cidade. Sim, senhor!
Hattie comprimiu as mãos finas e negras na tentativa de dirimir o terror
que crescia dentro dela. Podia sentir o carro aos trancos disputar o espaço com
outros automóveis. Quando os ultrapassava, podia ouvir vozes gritando, "Ei,
Willie, olhe!"; podia ver mãos brandindo cordas e armas, e bocas sorrindo para
eles em rápida disparada.
— Chegamos — anunciou Willie, freando o carro numa nuvem de poeira
e silêncio. Abriu a porta com um pontapé e, munido com suas armas, desceu e
arrastou-as pelo relvado do aeroporto.
— Pensou bem, Willie?
— É só o que tenho feito nestes vinte anos. Eu tinha dezesseis anos
quando abandonei a Terra, feliz por sair de lá — afirmou. — Não havia nada
ali para mim ou para ninguém como nós. Nunca me arrependi por ter ido
embora. Tivemos paz aqui, foi a primeira vez que pudemos respirar aliviados.
Agora, venha.
Abriu caminho em meio à multidão que veio recepcioná-lo.
— Willie, Willie, o que vamos fazer? — perguntaram.
— Aqui está uma arma — disse. — Aqui outra. E outra. — Ele as
entregava com movimentos bruscos de braço. — Eis uma pistola. E uma
espingarda.
As pessoas estavam tão aglomeradas que semelhavam a um grande e
único corpo escuro, com milhares de braços estendidos para apanhar armas:
— Willie, Willie.
A mulher mantinha-se ereta e silenciosa a seu lado, os lábios franzidos e
firmemente cerrados, os grandes olhos úmidos e trágicos.
— Traga a tinta — ele ordenou. Ela arrastou um galão de tinta amarela
pelo campo, até o local onde, naquele momento, um bonde estacionava. Uma
placa recém-pintada à frente do veículo exibia os dizeres PARA A
ATERRISSAGEM DO HOMEM BRANCO. Mulheres com cestas de
piquenique, homens com chapéus de palha, em mangas de camisa, tagarelavam
ao descerem. Corriam aos tropeços pela pista, pois olhavam para cima. O
bonde quedou imóvel, zunindo e vazio. Willie subiu nele, depositou latas de
tinta no piso, abriu-as, mexeu o conteúdo, testou um pincel, sacou um estêncil e
galgou um assento.
— Ei, você! — O cobrador surgiu por trás, chacoalhando seu portamoedas.
— Que acha que está fazendo? Saia já daqui.
— Logo verá o que estou fazendo. Fique calmo. E Willie começou a
escrever, com auxílio do estêncil, em tinha amarela. Muito orgulhoso de seu
trabalho, pincelou um P, um A, um R e outro A. Quando terminou, o cobrador
apertou os olhos e leu as palavras cintilantes em amarelo: PARA BRANCOS:
BANCOS DE TRÁS. Ele leu de novo. PARA BRANCOS. Piscou. BANCOS
DE TRÁS. O cobrador virou-se para Willie e esboçou um sorriso.
— É do seu agrado? — indagou Willie, descendo do bonde.
O cobrador respondeu: — Sem dúvida, senhor.
De lado de fora, Hattie, de mãos postas sobre o peito, observava os
dizeres.Willie voltou-se para a multidão, que crescia agora, aumentando a cada
automóvel que gemia ao parar, a cada novo bonde procedente da cidade vizinha
que guinchava na curva.
Willie subiu num caixote.
— Vamos formar comissões para pintar todos os bondes na próxima hora.
Voluntários?
Muitas mãos alçaram-se.
— Podem ir. E eles foram.
— Vamos organizar uma comissão para os assentos dos cinemas e
teatros; vocês vão reservar as duas últimas fileiras para os brancos.
Novas mãos.
— Ao trabalho. Eles obedeceram.
Willie olhou em torno, borbulhante de suor, resfolegante com o esforço,
orgulhoso de sua energia, a mão no ombro de sua mulher, que, ao seu lado,
mantinha o olhar desalentado fixo no chão.
— Vamos ver agora... — ele meditou. — Oh, sim. Vamos promulgar
algumas leis esta tarde; proibição de casamento inter-racial.
— Apoiado! — gritaram muitas pessoas.
— Todos os engraxates vão largar o emprego hoje.
— Agora mesmo! — Em toda a cidade, alguns homens, tomados pela
excitação, jogaram ao chão os panos que levavam consigo.
— Precisamos propor uma lei do salário mínimo, ou não?
— Claro!
— Paguemos a esses brancos pelo menos dez centavos a hora.
— Isso mesmo.
O prefeito da cidade interrompeu-o: — Agora, escute bem, Willie
Johnson. Desça já desse caixote!
— Prefeito, ninguém pode me obrigar a fazer isso.
— Você está provocando uma revolta, Willie Johnson.
— Esta é a idéia.
— A mesma coisa que sempre odiou quando era criança. Não é melhor do
que alguns desses brancos contra quem discursa!
— Este é o outro sapato, prefeito, e outro pé — retorquiu Willie, sem nem
olhar para o prefeito, fitando os rostos abaixo dele, alguns deles sorridentes,
outros indecisos, outros ainda espantados, uns poucos relutantes e já se
afastando, cheios de medo.
— Vai se arrepender — vaticinou o prefeito.
— Faremos uma eleição e escolheremos um novo prefeito — declarou
Willie. Correu o olhar pela cidade, onde, para cima e para baixo das ruas,
cartazes recém-pintados eram pendurados: CLIENTELA LIMITADA —
DIREITO REVOGÁVEL DE SERVIR O FREGUÊS A QUALQUER HORA.
Ele abriu um sorriso malicioso e bateu as mãos. Deus! Os bondes estavam
sendo parados, e os assentos pintados de branco nos fundos para sugerir seus
futuros ocupantes. Teatros estavam sendo invadidos e segregados com cordas
por homens que gargalhavam, enquanto suas mulheres permaneciam na calçada
com ar de espanto e as crianças eram empurradas para dentro das casas, para
que se mantivessem afastadas desses tempos difíceis.
— Estamos todos prontos? — conclamou Willie Johnson, a corda na mão
com o nó enlaçado e alinhado.
— Prontos! — bradou metade da multidão. A outra metade murmurou e
moveu-se como figuras de um pesadelo do qual não queriam participar.
— Lá vem ele! — gritou um garotinho.
Cruzando o céu, muito alto e bonito, um foguete ardia num rasto de fogo
alaranjado. A nave descreveu uma volta e baixou, fazendo que todos
quedassem boquiabertos. Em seguida, aterrissou, provocando pequenos focos
de incêndio aqui e acolá; o fogo abrandou, o foguete permaneceu um momento
completamente imóvel. Então, enquanto a multidão silenciosa observava, uma
grande porta no flanco da nave exalou uma lufada de oxigênio, a porta deslizou
para trás e um velho saiu.
— Um branco, um branco, um branco... — As palavras percorreram a
multidão ansiosa, as crianças cochichando no ouvido umas das outras,
sussurrando, empurrando-se. As palavras deslocavam-se em ondas até onde o
agrupamento dispersava e os bondes estavam estacionados sob o sol ventoso, o
cheiro de tinta exalando de suas janelas abertas. O sussurro arrefeceu e
extinguiu-se.
Ninguém se movia.
O branco era alto e empertigado, mas seu rosto mostrava-se
profundamente fatigado. Não se barbeara naquele dia, e seus olhos eram tão
velhos quanto podiam ser os olhos de um homem sem, contudo, estarem
mortos. Sem cor, exibiam uma patina branca de cegueira, pelas coisas que
haviam testemunhado nos anos anteriores. Era magro como um arbusto no
inverno. Suas mãos tremiam e era obrigado a apoiar-se na entrada da nave,
enquanto observava a multidão.
Ele estendeu a mão e esboçou um meio sorriso, mas logo abaixou a mão.
Ninguém se moveu.
Ele fitou-lhe os rostos, e talvez tenha visto sem ver as armas e cordas, e
talvez tenha aspirado o odor da tinta. Ninguém nunca lhe perguntou. Ele
começou a falar. Iniciou com voz muito baixa e hesitante, esperando não ser
interrompido e, de fato, não foi. Sua voz parecia fatigada, velha e fraca.
— Não importa quem eu sou — ele disse. — Seria apenas um nome para
vocês, de qualquer modo. Também não lhes conheço o nome. Essa é uma etapa
posterior. — Ele interrompeu-se, fechou os olhos por um momento e então
continuou.
— Vinte anos atrás vocês abandonaram a Terra. Isso faz muito, muito
tempo. Parece que foram vinte séculos, pelo muito que aconteceu. Depois que
partiram, a guerra começou. — Ele fez que sim com a cabeça, muito
lentamente. — Sim, a grande guerra. A terceira. Bombardeamos todas as
cidades do mundo. Destruímos Nova York, Londres, Moscou, Paris, Xangai,
Bombaim e Alexandria. Arruinamos todas. E, quando arrasamos as grandes
cidades, dirigimonos para as pequenas, que incineramos com bombas atômicas.
Nesse momento, ele começou a nomear cidades, lugares e ruas. E,
enquanto as designava, um murmúrio elevava-se na audiência.
— Destruímos Natchez... Um murmúrio.
— E Colúmbia, Geórgia.... Outro murmúrio.
— Incendiamos New Orleans.... Um suspiro.
— E Atlanta. Outro suspiro.
— E nada resta de Greenwater, Alabama. Willie Johnson sacudiu a
cabeça e abriu a boca
Hattie percebeu-lhe o gesto, e o sinal de reconheci mento que se instalou
em seus olhos negros.
— Nada restou — disse o velho diante do portal falando devagar. —
Campos de algodão, queimados
— Oh — exclamaram todos.
— Algodoarias bombardeadas.
— Oh.
— E fábricas, radioativas. Tudo radioativo. Todas as estradas, fazendas e
alimentos, radioativos. Tudo. — Ele recitou outros nomes de cidades e
vilarejos.
— Tampa.
— É minha cidade — alguém murmurou.
— Fulton.
— Foi onde nasci — disse outro.
— Memphis.
— Memphis foi incendiada? — Uma indagação indignada.
— Memphis foi bombardeada.
— A Rua Quatro, de Memphis?
— Tudo — confirmou o ancião.
Estavam abalados. Após vinte anos, as lembranças voltavam, num jorro.
As cidades e lugares, árvores e edifícios de tijolos, igrejas e lojas familiares,
tudo vinha à tona para aquele grupo de pessoas. Cada nome instigava a
memória, e não havia nenhum presente sem um pensamento de dias passados.
Todos tinham idade suficiente para recordarem-se, exceto as crianças.
— Laredo.
— Lembro-me de Laredo.
— Nova York.
— Tive uma loja no Harlem.
— O Harlem foi bombardeado.
As palavras funestas. Os lugares familiares, rememorados. O esforço de
imaginar todos esses lugares em ruínas.
Willie Johnson murmurava: — Greenwater, Alabama. Foi onde nasci. Eu
me lembro.
Destruída. Tudo destruído.
O astronauta prosseguiu:
— Assim destruímos e arruinamos tudo, como imbecis que fomos e
imbecis que somos. Matamos milhões. Não creio que haja mais de cinco mil
pessoas no mundo, de todo tipo e espécie. E, a partir dos escombros, coletamos
o metal que nos possibilitou construir este foguete e viemos a Marte este mês, a
fim de suplicar-lhes ajuda.
Ele hesitou, procurando descobrir nos rostos uma indicação do que
poderia encontrar ali, mas não chegou a nenhuma conclusão.
Hattie Johnson sentiu o braço do marido crispar-se, viu seus dedos
apertarem a corda.
— Agimos como tolos — confessou o velho em voz baixa. —
Aniquilamos inteiramente a Terra e a civilização. Não há salvação para
nenhuma das cidades: permanecerão radioativas por um século. A Terra acabou
por completo. Seu domínio findou. Vocês têm foguetes que não tentaram usar,
para retornar à Terra, em vinte anos. Agora eu venho pedir a vocês que os
usem. Venham para a Terra, recolham os sobreviventes e os tragam de volta a
Marte. Ajudem-nos a superar esta época difícil. Fomos estúpidos. Todos nós:
chineses, indianos, russos, britânicos e americanos. Pedimos para sermos
aceitos. Seu solo marciano não foi cultivado por inúmeros séculos; há espaço
para todos; é um bom solo... Vi seus campos lá do alto. Nós viremos e os
lavraremos para vocês. Sim, faremos até mesmo isso. Merecemos o que
quiserem nos impingir, mas não nos deixem para fora. Não podemos forçá-los.
Se quiserem, entrarei na nave, retornarei e não haverá mais discussão. Não os
aborreceremos mais. Mas prometemos vir para cá e trabalhar para vocês.
Faremos tudo o que fizeram para nós: limparemos suas casas, prepararemos sua
comida, lustraremos seus sapatos e nos humilharemos diante de Deus pelo mal
que perpetramos no decorrer dos séculos contra nós mesmos, contra os outros,
contra vocês. Ele havia terminado.
Reinou o mais intenso dos silêncios. Um silêncio que se podia segurar
com as mãos e um silêncio que descera sobre a multidão como a pressão de
uma tempestade distante. Seus braços longos pendiam como pêndulos negros
sob a luz do sol e seus olhos estavam fixos no ancião, que não se movia agora,
apenas aguardava.
Willie Johnson apertava a corda. Os que estavam a seu lado o observavam
para ver como ele reagiria. Sua mulher Hattie esperava, segurando-lhe o braço.
Ela queria alcançar o ódio que havia neles, remexê-lo e escarafunchá-lo
até encontrar uma pequena rachadura, de onde extrairia um pedregulho, pedra
ou tijolo, em seguida um pedaço de parede, pois, uma vez tendo começado, a
edificação cairia estrepitosamente, seria desfeita. Já oscilava agora. Mas onde
estava a pedra fundamental e como chegaria até ela? Como atingir os
circunstantes e dar início ao processo dentro de todos eles, esfacelando-lhes o
ódio?
Em meio ao silêncio espesso, ela voltou-se para Willie. De toda a
situação, só tinha conhecimento dele, de sua vida e do que lhe sucedera. De
repente, Hattie compreendeu que o marido era a pedra fundamental; que, se ele
pudesse ser abrandado, todo o edifício poderia ceder e vir ao chão.
— Senhor... — Ela deu um passo à frente. Nem atinava quais seriam suas
primeiras palavras. A multidão fixava-lhe as costas. Ela podia sentir-lhes o
olhar atento. — Senhor...
O homem virou-se para ela, com um sorriso extenuado.
— Senhor — repetiu ela —, o senhor conhece Knockwood Hill, em
Greenwater, Alabama?
O velho falou por cima do ombro com alguém de dentro da nave. Um
momento depois, um mapa fotográfico lhe foi entregue e o homem o segurou, à
espera.
— Conhece o grande carvalho que há no alto da colina, senhor?
O grande carvalho. O lugar onde o pai de Willie foi baleado e enforcado;
seu corpo encontrado balançando no vento matutino.
— Sim.
— Ainda está lá? — Hattie perguntou.
— Não — respondeu o velho. — Foi bombardeado. Toda a colina se foi,
e o carvalho também. Consegue ver? — Ele apontou a fotografia.
— Deixe-me ver isso — disse Willie, movendo-se bruscamente para a
frente e olhando o mapa.
Hattie pestanejou diante do homem branco, o coração aos pulos.
— Conte-me sobre Greenwater — ela rapidamente propôs.
— Que deseja saber?
— Sobre o doutor Philips. Ainda está vivo? Um momento para que a
informação fosse localizada numa máquina barulhenta que se encontrava no
interior do foguete...
— Morto na guerra.
— E o filho dele?
— Morto.
— E a casa deles?
— Incendiada. Como as outras.
— E quanto àquela outra árvore grande em Knockwood Hill?
— Todas as árvores se foram... Queimadas.
— Aquela árvore também, tem certeza? — inquiriu Willie.
— Sim.
O corpo de Willie de certo modo relaxou.
— E o senhor Burton com sua casa?
— Nenhuma habitação restou, e nenhuma pessoa.
— Conhece o barracão da senhora Johnson, onde minha mãe morava?
O local onde atiraram nela.
— Também se foi. Tudo foi destruído. Eis as fotografias, podem ver por
si mesmos.
As fotos foram distribuídas para serem examinadas e levadas em
consideração. O foguete estava cheio de fotos e de respostas a perguntas.
Qualquer cidade, qualquer edifício, qualquer local.
Willie estava parado, com a corda nas mãos.
Recordava-se da Terra, a Terra verde e a cidade verde onde nascera e fora
criado. Estava pensando agora naquela cidade, despedaçada, arruinada,
bombardeada e reduzida a cinzas, com todos seus pontos de referência, todas as
maldades supostas ou certas pulverizadas, todos os homens duros fulminados,
os estábulos, as ferrarias, as lojas de bricabraques, as lanchonetes, os bares, as
pontes, as árvores dos linchamentos, as colinas cobertas por chumbo grosso, as
estradas, as vacas, as mimosas, sua própria casa também, assim como as
residências de pilares altos ao longo do rio, aquelas capelas funerárias brancas
onde mulheres tão delicadas quanto mariposas esvoaçavam na luz outonal,
distantes, inalcançáveis. Aquelas casas onde homens frios cambaleavam, com
copos de bebida na mão, armas encostadas nos balaústres da varanda, farejando
o ar fresco e cogitando a morte. Extinto, tudo extinto, para nunca mais voltar.
Agora, com certeza, aquela civilização se reduzira a confete e fora jogada a
seus pés. Nada, nada dela restara para ser odiado — nem um cartucho de latão
vazio, nem um cânhamo retorcido, ou uma árvore, ou mesmo uma colina para
odiar. Nada exceto um grupo de alienígenas num foguete, pessoas que poderão
lustrar-lhes os sapatos, andar no fundo dos bondes ou sentar nas últimas fileiras
das sessões noturnas.
— Vocês não precisarão fazer nada isso — disse Willie Johnson.
Sua esposa fitou suas mãos grandes. Os dedos se abriam.
A corda, libertada, caiu e enrolou-se no chão. A multidão correu pelas
ruas da cidade, rasgando os cartazes confeccionados tão às pressas, apagando
os dizeres em amarelo nos bondes e rompendo as cordas que havia nos balcões
dos cinemas. Eles também descarregaram as armas e empilharam as cordas
longe dali.
— Um novo começo para todos — celebrou Hattie, a caminho de casa.
— Sim — assentiu Willie, por fim. — Deus permitiu que
sobrevivêssemos, uns aqui, outros ali. E o que virá em seguida dependerá de
todos nós. A era da estupidez acabou. Não podemos mais ser estúpidos, temos
de ser outra coisa. Percebi isso enquanto ele falava. Soube então que os brancos
estão tão sozinhos como sempre estivemos. Não têm mais um lar agora, assim
como não tivemos durante tanto tempo. Estamos quites. Podemos começar do
zero mais uma vez, do mesmo patamar.
Ele parou o carro, mas continuou sentado, imóvel, enquanto Hattie foi
deixar as crianças sair. Elas correram para o pai.
— Você viu o homem branco? Viu? — elas gritaram.
— Pois é — respondeu Willie, sentado atrás do volante, esfregando o
rosto com dedos vagarosos. — Parece que hoje, pela primeira vez, eu vi o
homem branco... Realmente o vi com toda a clareza.

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