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terça-feira, 12 de julho de 2011

H.P.Lovecraft-A Armadilha-Conto



                                                  “A Armadilha” 
Por: H.P. Lovecraft e Henry S. Whitehead 

                                                                        Tradução: Mário Jorge Lailla Vargas

                                                   A ARMADILHA

           uma quinta-feira matinal de dezembro tudo começou com aquele movimento errático que
N pensei   ter   visto   em   meu   antigo   espelho   de   Copenhague.   Algo   me   pareceu   se   mexer   e
           refletir no vidro. Entretanto eu estava só em meu quarto. Parei e olhei atentamente. Mas,
achando que o efeito seria pura ilusão, continuei penteando o cabelo.
    Descobri o antigo espelho coberto de pó e teia de aranha num anexo dum edifício da assembléia
legislativa   estadual   abandonado   no   território   nortista   escassamente   povoado   de   Santa   Cruz   e   o
trouxera de Ilhas Virgens a Estados Unidos. O admirável vidro estava escurecido por duzentos anos
de exposição a um clima tropical e o gracioso ornamento, ao longo do topo da armação dourada,
estava   rachado.   Destaquei   os   pedaços   fixados   atrás  na   armação   antes   de   os   guardar   com   meus
outros pertences.
    Agora, vários anos depois, eu passava metade do tempo como convidado e metade como tutor na
escola particular de meu velho amigo Browne, numa ventosa encosta de Coneticute. Tinha a minha
disposição      uma    das  alas   abandonadas,      que   era   utilizada   como    dormitório.     Meus    aposentos
consistiam em dois quartos e um pequeno vestíbulo. O velho espelho, alojado com cuidado entre
colchões, foi o primeiro de meus pertences a ser desempacotado quando cheguei. O coloquei em
lugar de honra, em cima dum velho painel de pau-rosa que pertencera a minha bisavó.
    A   porta   de   meu   quarto   era   exatamente   oposta   à   da   sala   de   estar,   separadas   por   um   vestíbulo.
Percebi   que   olhando   em   meu   espelho   da   cômoda   eu   podia   ver   o   espelho   maior   através   das   duas
entradas,   onde   se   refletia   um   assintótico   corredor.   Nessa   manhã   de   quinta-feira   tive   a   curiosa
impressão   dum   movimento   embaixo   do   corredor   normalmente   vazio,   mas,   como   eu   disse,   logo
descartei tal impressão.
    Quando   cheguei   à   sala   de   jantar   achei   todo   mundo   reclamando   de   resfriado   e   soube   que   o
sistema de aquecimento da escola estava temporariamente desligado. Sendo especialmente sensível
a baixa temperatura, isso me causava um sofrimento agudo. Decidi não encarar a gélida sala de aula
nesse   dia.   Conseqüentemente   convidei   minha   classe   a   ir   até   minha   sala   de   estar   pruma   sessão
informal em minha lareira. Sugestão recebida entusiasticamente.
    Depois da sessão um dos meninos, Roberto Grandison, perguntou se poderia permanecer se não
tivesse   compromisso   pro   segundo   período   matutino.   Eu   lhe   disse   que   ficasse,   e   bem-vindo.   Se
sentou numa cadeira confortável diante da lareira e começou a estudar.
   Não muito depois Roberto passou a uma cadeira um pouco mais distante da chama recém ateada.
Essa   mudança   o   deixou   diretamente   oposto   ao   velho   espelho.   De   minha   própria   cadeira,   noutra
parte   do   quarto,   notei   como   começou   a   olhar   fixamente   o   vidro   escuro,   embaçado   e,   desejando
saber o que tanto o interessava, me lembrei de minha própria experiência naquela manhã. Ao passar
muito tempo contemplando um franzir de cenho marcou sua fronte.
    Afinal lhe perguntei, tranqüilamente, o que chamara sua atenção. Lentamente, e ainda ostentando
a pasma carranca, pensou e respondeu cautelosamente:
   ─ É a ondulação no vidro ou tudo o que isso representa, senhor Canevin. Notei que tudo parece
vir dum certo ponto. Olhes: Te mostrarei o que quero dizer.
    O menino saltou a cima, foi ao espelho e colocou seu dedo num ponto próximo ao canto inferior
esquerdo.
   ─ É bem aqui, senhor. ─ Explicou. Virou pra me olhar e manteve o dedo no local escolhido.
    O ato de se virar a mim pode ter feito apertar mais seu dedo contra o vidro. De repente retirou a
mão como se com algum esforço e soltou um débil murmúrio de asco: Ai! Então olhou o vidro com
evidente mistificação.

                                                            1

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    ─ O que aconteceu? ─ Perguntei me levantando e me aproximando.
    ─ Por que... isto... ─ Parecia embaraçado. ─ Isto... eu... senti... Realmente, como algo puxando
meu dedo. Parece... hummm... perfeitamente tolo, senhor, mas era uma sensação muito peculiar.
    Roberto tinha um vocabulário incomum pra seus quinze anos.
    Me aproximei e mandei me mostrar o local exato que apontara.
    ─ Pensarás que eu sou muito tolo, senhor ─ disse corando ─, mas daqui não pude ter certeza. Da
cadeira parecia bem claro.
    Agora,   muito   interessado,   me   sentei   na   cadeira   que  Roberto   ocupara   e   olhado   o   local   que
selecionou   no   espelho.   Imediatamente   algo   saltou   ante   meus   olhos.   Percebi   que   daquele   exato
ângulo     todas   as  ondulações     no   antigo   espelho    pareciam    convergir    como     um   feixe   de  cabos
estendidos em rede e colhido no meio por uma mão.
    Se   levantando   e   cruzando   o   olhar   ao   espelho   já   não pude   ver   a   curiosa   mancha.   Só   de   certos
ângulos era visível. Olhado diretamente aquela porção do espelho nem mesmo tinha reflexo normal:
Não pude ver minha face nele. Obviamente eu tinha um quebra-cabeça secundário nas mãos.
    Então o gongo escolar soou e o fascinado Roberto Grandison saiu apressadamente, me deixando
só com meu pequeno e estranho problema ótico. Abri as cortinas das janelas, andei no corredor e
procurei a mancha no reflexo do espelho da cômoda. A localizei prontamente. Olhei atentamente e
pensei ter descoberto novamente algo do movimento. Estirei o pescoço e, afinal, num certo ângulo
de visão, a coisa novamente saltou ante meus olhos.
    O vago movimento era agora positivo e definido. Parecia um movimento torcional ou giratório.
Como um efêmero mas intenso ciclone ou tromba d’água ou uma precipitação de folhas de outono
rodopiando   num   remoinho   de   vento   ao   longo   dum   gramado   nivelado.   Era,   como   o   da   terra,   um
movimento duplo, rotação e translação, como se as ondulações se vertessem eternamente a algum
ponto dentro do vidro. Fascinado e ainda percebendo que a coisa deveria ser uma ilusão ótica, tive
uma inequívoca sensação de sucção e pensei na tímida explicação de Roberto:
    ─ Eu sentia como se a coisa sugasse meu dedo.
    Repentinamente um leve arrepio percorreu minha coluna vertebral de cima a baixo. Tudo isso
valia   a   pena   investigar.  E   quando   me   veio   a   idéia   de   investigar   me   lembrei   da   expressão   de
frustração de Roberto Grandison quando o   gongo o chamou de volta   à classe. Me lembrei como
olhara atrás sobre o ombro ao sair obedientemente do corredor e decidi que deveria ser incluído em
qualquer análise que eu fizesse desse pequeno mistério.
    Mas eventos inesperados relacionados ao mesmo Roberto me fizeram logo esquecer o espelho
durante algum tempo. Passei toda aquela tarde fora e não voltei à escola até as 5:15h, hora duma
assembléia geral na qual a presença dos meninos era compulsória. Faltei a esse compromisso com a
idéia   de   levar   Roberto   a   uma   sessão   com   o   espelho   e  fiquei   surpreso   e   aflito   ao   ver   que   estava
ausente, algo muito incomum e irresponsável em seu caso. Naquela noite Browne me disse que o
menino   desaparecera   de   fato.   Uma   procura   em   seu   quarto,   no   ginásio,   e   em   todos   os   lugares
habituais foi infrutífera. Entretanto todo seu pertence, inclusive sua roupa de sair, estavam no lugar
costumeiro.
    Não fora encontrado no gelo ou com qualquer grupo excursionista que saíra naquela tarde. Todas
as chamadas telefônicas aos fornecedores da escola na vizinhança foram vãs. Realmente: Não fora
visto desde a última aula, às 2:15h, quando subiu a escada rumo a seu quarto no alojamento número
3.
    Então foi dado como desaparecido, o que abalou todo o colégio. Browne, como diretor, teve de
suportar todo o peso. E tal ocorrência inédita em sua séria e muito organizada instituição o deixou
bem   confuso.   Estava   ciente   de   que   Roberto   não   voltara   à   casa   dele,   na   Pensilvânia   ocidental,   e
nenhuma equipe de busca de meninos e mestres achou algum rastro dele na zona rural nevada ao
redor da escola. Portanto longe demais pra ser visto. Simplesmente tinha desaparecido.
    Os pais de Roberto chegaram na tarde do segundo dia depois do desaparecimento. Suportaram a
dor com discrição, mas é claro que estavam abalados com esse desastre inesperado. Browne parecia
dez anos mais velho por isso, mas absolutamente nada se poderia fazer. No quarto dia o caso ficou,

                                                           2

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na    opinião   da   escola,   como    um    mistério    insolúvel.   Senhor     e  senhora    Grandison     regressaram
relutantemente e na manhã seguinte começaram os dez dias de férias natalinas.
    Os meninos e mestres partiram com qualquer coisa menos o habitual espírito de feriado. Browne
e sua esposa permaneceram, junto com os criados, como meus únicos co-habitantes no grande lugar
que sem os mestres e meninos, realmente, parecia uma concha oca.
    Naquela      tarde  me    sentei   diante   de   minha    lareira   pensando     na   desaparição     de   Roberto     e
desenvolvi todo tipo de teoria fantástica pra solucionar o caso. No crepúsculo tive uma enxaqueca e,
conseqüentemente,          jantei  frugalmente.      Então,    após    um    animado     passeio     na   vizinhança     da
concentração de prédios, voltei a minha sala de visita ficando novamente pensativo.
    Um pouco depois das dez despertei em minha poltrona, duro e frio, dum cochilo durante o qual
eu   tinha   sido   jogado   fora.   Estava   fisicamente   abatido,   contudo   mentalmente   desperto   por   uma
sensação peculiar de expectativa e possível esperança. É claro que tinha a ver com o problema que
estava   me   desafiando.   Porque   eu   tinha   caído   no   cochilo   distraidamente   com   uma   idéia   curiosa   e
persistente:     A  estranha    idéia   de  que   um    vago   e  dificilmente     reconhecível     Roberto    Grandison
tentava, desesperadamente, se comunicar comigo. Fui à cama com uma intuitiva e forte convicção:
Dalguma maneira eu estava seguro de que o jovem Roberto Grandison ainda estava vivo.
    Que eu seja receptivo a tais coisas não parecerá estranho a quem conhece minha longa estada em
Índias   Ocidentais   e   meu   íntimo   contato   ali   com   eventos   inexplicados.   Não   se   estranhará   que   eu
tenha   dormido   com   um   desejo   urgente   de   estabelecer  algum   tipo   de   comunicação   mental   com   o
menino desaparecido. Até mesmo os cientistas mais prosaicos, como Freud, Jung e Adler, afirmam
que    a  mente    subconsciente      está  aberta   a  impressões    externas     durante    o  sono.   Entretanto     tais
impressões raramente são levadas em conta no estado desperto.
    Indo   um   passo   a   diante   e   concebendo   a   existência   de  forças   telepáticas,   então   tais   forças   têm
forte poder sobre a mente dormente. Portanto, se eu quisesse receber uma mensagem explícita de
Roberto seria durante um estágio de sono profundo.  Claro que eu poderia perder a mensagem ao
despertar mas minha aptidão em reter tais coisas foi refinada por variados tipos de disciplina mental
recolhidos em ignotos recantos do globo.
    Devo ter caído em sono instantaneamente. Da vivacidade de meus sonhos e ausência de intervalo
alerta julgo que meu sono era muito profundo. Eram 6:45h quando despertei e ainda retive certas
impressões que sabia terem vindo do mundo de psiquismo onírico. Estranhamente minha mente se
encheu   com   a   visão   de   Roberto   Grandison   transformado   num   menino   dum   escuro   azul   citrino.
Roberto,   desesperadamente,   tentava   se   comunicar   comigo   por   meio   da   fala   com   uma   dificuldade
quase insuperável. Uma curiosa parede de isolamento espacial parecia se levantar entre ele e mim,
uma parede misteriosa, invisível que nos confundiu completamente.
    Eu tinha visto Roberto como se a pouca distância. Mas, estranhamente, parecia estar bem a meu
lado   ao   mesmo   tempo.   Era   maior   e   menor   que   na   vida  real.   Seu   tamanho,   aparente,   variando
diretamente,      em    vez   de  inversamente,      à  distância    quando     chegou    e   se  retirou   no   curso   de
conversação. Quer dizer, cresceu em vez de diminuir em relação a minha vista quando avançava ou
retrocedia, e vice-versa. Como se tivessem sido completamente invertidas as leis de perspectiva em
seu    caso.   Seu   aspecto   estava    embaçado      e  incerto,  como     se  faltasse  silhueta   bem    definida    ou
permanente   e   a   anomalia   de   sua   coloração   e   de   sua   vestimenta   me   confundiram   totalmente   no
princípio.
    Nalgum   ponto   em   meu   sonho   o   esforço   vocal   de   Roberto   finalmente   se   cristalizou   em   fala
audível, embora uma fala de espessura anormal e estagnada. Durante um instante não pude entender
algo   que   disse.   Até   mesmo   no   atormentado   sonho   meu  cérebro   procurava   uma   pista   donde   ele
estava, o que quis contar e por que sua expressão vocal era tão desajeitada e ininteligível. Então,
pouco   a   pouco,   comecei   a   distinguir   palavras   e   frases.   As   primeiras   já   bastaram   pra   lançar   meu
estado onírico na excitação mais selvagem e estabelecer certa conexão mental que eu não deixara
adquirir forma consciente por causa da absoluta inverossimilhança do que previamente implicava.
    Não   sei   quanto   tempo   escutei   essas   palavras   no   intervalo   de   meu   sono   profundo   mas   horas
devem ter passado enquanto, estranhamente, o remoto narrador lidava com sua história. De lá foi
me revelado uma tal circunstância como não posso querer que outros acreditem sem uma evidência

                                                             3

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mais cabal. Contudo eu estava bem preparado a aceitar isso como verdade, tanto no sonho como
após   o   despertar,   por   causa   de   meus   contatos   anteriores   com   coisas   misteriosas.   Obviamente   o
menino      estava   me   olhando    no   rosto,  se  movendo      num    sono   receptivo,   quando     logo   sufocou.
Durante algum tempo o pude compreender, então iluminou sua expressão e deu sinais de gratidão e
esperança.
    Toda tentativa de entender a mensagem de Roberto, como essa que martelava em meus ouvidos
após um súbito despertar no frio, conduziu esta narrativa a um ponto onde tenho de escolher minhas
palavras com o maior cuidado. Tudo em questão é tão difícil de gravar que tendemos a nos debater
sem solução. Eu disse que a revelação estabeleceu em minha mente certa conexão que a razão não
me deixou formular conscientemente antes. Essa conexão, já não hesito afirmar, tem a ver com o
velho   espelho   de   Copenhague   cuja   impressão   de   movimento   tinha   me   impressionado   tanto   na
manhã      da  desaparição,     e  de  cujos   contornos     ondulatórios     e  sucção    aparente   exerceram      uma
inquietante fascinação em mim e Roberto.
    Entretanto,    minha   consciência   exterior   tinha   rejeitado     o  que   minha   intuição    gostaria   de   ter
implicado antes. Não poderia rejeitar aquela espantosa concepção durante mais tempo. O que era
agora fantasia no conto de Alice1 me veio como uma realidade séria e imediata. Aquele olhar vítreo

possuía uma sucção maligna, realmente anormal. E o locutor lutando em meu sonho esclarecendo
até   que   ponto   violou   todos   os   anteriores   conhecimentos   de   experiência   humana   e   todas   as   leis
ancestrais     de  nossas   três  dimensões     normais.    Era   mais   que   um    espelho,   era  um    portão,   uma
armadilha, um vínculo com intervalos espaciais não significativos aos habitantes de nosso universo
visível,   e   só   realizável   em   termos   da   mais   complexa  matemática   não-euclidiana.   E,   de   modo   um
pouco ultrajante, Roberto Grandison tinha se escamoteado de nosso conhecimento no vidro e ficara
lá emparedado, esperando ser libertado.
    É significativo que ao despertar não abriguei dúvida genuína da realidade da revelação. O que
realmente captei da conversação com um Roberto transdimensional, em lugar de evocar o episódio
inteiro de minha meditação sobre sua desaparição e sobre as velhas ilusões do espelho, era quase
certo pra minha natureza mais íntima como qualquer certeza instintiva reconhecida como válida.
    A história que assim me foi descortinada tinha caráter inacreditavelmente estranho. Como ficara
bem claro na manhã de sua desaparição, Roberto ficou intensamente fascinado pelo antigo espelho.
Durante todo o período   letivo tinha em mente voltar a minha sala de visita e examinar o objeto.
Quando chegou, no fim do dia letivo, um pouco depois de 2:20h, eu estava na cidade. Percebendo
minha ausência e sabendo que eu não notaria, entrou em minha sala de visita e foi direto ao espelho,
se   postando     diante   dele  e  estudando     o  lugar   onde,   como    notáramos,     as  ondulações     pareciam
convergir.
    Repentinamente foi tomado por um desejo de colocar a mão nesse centro ondulatório.
    Quase   relutando,   contra   seu   bom-senso,   agiu   assim. Ao   estabelecer   contato   sentira   a   estranha
sucção,   quase   dolorosa,   que   o   desconcertara   naquela  manhã.   Imediatamente,   sem   aviso   mas   com
um violento puxão que parecia torcer e rasgar todo osso e músculo e inchar, espremer e cortar todo
nervo, foi abruptamente sugado.
    Chegando   ali   a   torturante   tensão   nervosa   em   todo   seu   organismo   se   manifestou   de   repente.
Sentia, disse, como se há pouco tivesse nascido. Um sentimento que se tornava evidente toda vez
que   tentava   fazer   algo:   Caminhar,   se   inclinar,   virar   a   cabeça   ou   falar.   Todo   seu   corpo   parecia
desajustado.
    Essas sensações desapareceram depois dum longo tempo e o corpo de Roberto se tornou um todo
organizado em vez de várias partes conflitantes. De todas as formas de expressão, falar continuou
sendo a mais difícil. Certamente porque é complexa e usa vários órgãos, músculos e tendões. Por
outro lado, os pés de Roberto foram os primeiros elementos a se ajustar à nova condição dentro do
vidro.

1 Se referindo a Alice através do espelho, de Lewis Carrol.

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    Na manhã matutei o quebra-cabeça. Relacionando tudo que vi e ouvi rejeitei o ceticismo natural
dum homem de bom-senso e concebi planos pra resgatar Roberto de sua incrível prisão. Quando fiz
isso vários pontos então desconcertantes ficaram claros ou, pelo menos, mais lúcidos pra mim.
    Havia, por exemplo, a questão da coloração de Roberto. Sua face e mãos, como indiquei, eram
dum     tipo  de   azul  escuro    esverdeado     esmaecido.     E  posso    acrescentar    que   sua  comum      jaqueta
Norfolque azul tinha passado a um amarelo-limão pálido enquanto sua calça comprida permaneceu
cinza    neutro    como     antes.  Pensando      nisso,   depois    de acordar,     aproveitei    a  circunstância     de
encerramento aliada à inversão de perspectiva que fez Roberto parecer maior se afastando e menor
se   aproximando.   Aqui   também   havia   uma   reversão   física:   Pra   todo   detalhe   de   sua   coloração   na
dimensão desconhecida o exato oposto ou complemento cromático correspondia ao que era em vida
normal.   Em   física   as   cores   complementares   básicas   são   azul   e   amarelo,   vermelho   e   verde.   Esses
pares são opostos e, quando misturados, resultam em cinza. A cor natural de Roberto era uma pele
meio rosada, cujo oposto é o azul citrino que vi. Seu casaco azul tinha ficado amarelo enquanto a
calça comprida cinza permaneceu cinza. Esse ponto posterior me confundiu até que me lembrei que
aquele cinza é uma mistura de opostos. Não há oposto ao cinza, ou melhor, é seu próprio oposto.
    Outro ponto claro era o pertinente à voz estranhamente grossa e abafada de Roberto, bem como
ao geral mau-jeito e sensação de desajuste físico das partes das quais se queixava. Isso, no início,
realmente   era   um   quebra-cabeça.   Entretanto,   depois        de   pensar   bastante,   encontrei   a   pista.   Eis,
novamente,       a  mesma     inversão    de  perspectiva    e  coloração.     Qualquer    um    na  quarta   dimensão,
necessariamente,        seria  invertido    somente     desse    modo:    Mãos     e  pés,   como     também     cores    e
perspectivas, sofrendo mutação simétrica. Seria o mesmo com todos os outros órgãos duplos como
narinas, orelhas e olhos. Assim Roberto teria falado com uma língua invertida, dentes, cordas vocais
e   órgãos   vocais   semelhantes.   De   forma   que   sua   dificuldade   em   expressão   vocal   me   deixou   um
pouco admirado.
    No despontar da manhã meu senso de ampla realidade e louca urgência da situação de revelação
onírica aumentou em vez de diminuir. Cada vez mais eu sentia que algo devia ser feito. Contudo
percebi que eu não poderia buscar conselho ou ajuda. Numa história como a minha uma convicção
baseada no mero sonhar nada poderia me trazer de verossímil, apenas zombar ou suspeitar de meu
estado mental. Realmente, o que eu poderia fazer, amparado ou desamparado, com os poucos dados
operacionais      que   minha    impressão     noturna    fornecera?   Devo,     reconheci    finalmente,    obter   mais
informação antes de pensar num plano pra resgatar Roberto. O que só poderia se passar na condição
receptiva   de   sono   e   que   me   encorajou   a   refletir   sobre   isso.   Como   era   altamente   provável,   meu
contato telepático foi retomado no momento em que novamente caí em sono profundo.
    Passei dormindo aquela tarde, depois dum almoço no meio-dia a qual, por rígido autocontrole,
consegui esconder de   Browne e sua   esposa os tumultuosos pensamentos que me chocaram. Com
dificuldade mantive meus olhos fechados quando uma turva imagem telepática começou a aparecer.
E logo percebi, em minha infinita excitação, que era idêntica à que vira antes. Mais que isso: Era
mais distinto. Quando começou a falar me senti capaz de captar mais palavras.
    Durante     esse   sono   confirmei    a   maioria   das  deduções  matinais.       Entretanto    a   entrevista   fora
misteriosamente   suprimida   antes   de   meu   despertar.   Roberto   parecera   apreensivo   logo   antes   da
comunicação cessar, mas já tinha me dito que em sua estranha prisão tetradimensional as cores e as
propriedades   espaciais   realmente   estavam   invertidas:   Preto   virar   branco,   distância   que   aumenta   a
dimensão aparente, e assim a diante.
    Também   informara   que,   mesmo   em   plena   posse   da   aparência   física   e   sentidos,   as   mais   vitais
propriedades       humanas      pareciam      estranhamente       suspensas.     A    nutrição,    por   exemplo,      era
desnecessária.      Fenômeno       realmente     mais    singular   que   a   onipresente     inversão    de   objetos   e
propriedades.   Subseqüentemente   era   um   racional   e   matematicamente   específico   estado   de   coisas.
Outra   parte   significativa   da   informação   era   que   a   única   saída   do   vidro   ao   mundo   era   o   a   via   de
entrada, mantida permanentemente barrada e hermeticamente fechada, tão remota quanto o egresso
temia que estivesse.
    *Naquela noite recebi outra visita de Roberto. Nem deu tais impressões, recebidas a intervalos
ímpares      enquanto     eu   dormia     sugestionado,      interrompidas      durante    todo    o  período     de   seu

                                                            5

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encarceramento. Seu esforço pra se comunicar era desesperado e, freqüentemente, lamentável. Às
vezes   o   contato   telepático   se   debilitava,   enquanto  noutras   vezes   fadiga,   excitação   ou   medo   de
interrupção dificultava e engrossava sua voz. Posso narrar muito bem uma seqüência contínua de
tudo   aquilo   que   Roberto   me   disse   ao   longo   de   toda   a  série   de   efêmeros   contatos   mentais,   talvez
suprindo     certos   pontos    com    fatos  diretamente     relacionados     após   sua   libertação.   A   informação
telepática   era   fragmentária   e,   freqüentemente,   quase   inarticulada,   mas   a   estudei   repetidas   vezes
durante   os   intervalos   despertos   de   três   intensos dias.   Classificando   e   ponderando,   com   diligência
febril, passei a questionar se o rapaz seria devolvido a nosso mundo.
    A    região   tetradimensional      na  qual   Roberto     estava   não   era,  como     num    romance     de  ficção
científica, um reino desconhecido e infinito de visões estranhas e habitantes fantásticos mas tinha
muito duma projeção de certas partes limitadas de nossa própria esfera terrena dentro duma estranha
e,   geralmente,   inacessível   faceta   ou   vetor   espacial.   Era   um   mundo   curiosamente   fragmentário,
intangível,     e  heterogêneo.      Uma     série   de   cenas   aparentemente       dissociadas     onde    se  fundem
indistintamente       uma    na   outra.   Seus    detalhes   constituintes     tinham    uma    natureza     obviamente
diferente dos dum objeto sugado pelo antigo espelho quando Roberto fora sugado. Essas cenas eram
como sonhos panorâmicos ou imagens caleidoscópicas, miragens das quais o menino realmente não
era uma parte, mas que formavam um tipo de fundo panorâmico ou ambiente etéreo contra o qual
ou entre o qual se movia.
    Não   pôde   tocar   alguma   das   partes   dessas   cenas:   Paredes,   árvores,   mobília,   e   similares.   Se   era
assim porque   eram verdadeiramente imateriais ou porque sempre retrocediam a sua   aproximação
estava singularmente impossibilitado de determinar. Tudo parecia fluido, mutável e irreal. Quando
caminhava   parecia   estar   em   qualquer   superfície   mais   baixa   a   cena   visível   que   poderia   ter   chão,
caminho, gramado verde, ou tal. Mas, em última análise, sempre achava que o contato era ilusão.
Nunca   havia   diferença   na   força   resistente   encontrada   por   seus   pés   e   mãos   quando   se   inclinava
experimentalmente. Não importa o que poderia estar envolvido na aparente mudança da superfície.
Não pôde descrever esse alicerce ou plano limite no qual andava como algo mais definido que uma
pressão virtualmente abstrata equilibrando seu centro gravidade. De precisa sensibilidade tátil nada
tinha   mas,   em   compensação,   parecia   haver   um   tipo   de   força   levitacional   restrita   que   propiciava
transferência   de   altitude.   De   fato   nunca   poderia   escalar   degrau,   contudo   podia   caminhar   subindo
gradualmente.
     A passagem duma cena definida a outra envolvia um tipo de vôo livre numa região sombreada
ou mancha borrada onde os detalhes de cada cena se encaixam curiosamente. Toda perspectiva era
distinguida pela ausência de objetos passageiros e o aparecimento indefinido ou ambíguo de objetos
semi-passageiros como mobília ou detalhes de vegetação. A iluminação de toda a cena era difusa e
desconcertante e, claro, o esquema de cores invertido: Grama vermelha luminosa, céu amarelo com
confusas formas de nuvens negras e cinzas, troncos de árvore brancos e paredes de tijolo verdes,
dava   a   tudo   um   aspecto   incrivelmente   grotesco.   Havia   uma   alternância   entre   dia   e   noite   que   se
manifestava como uma inversão das horas normais de luz e escuridão em qualquer ponto na Terra
onde o espelho estivesse pendurando.
    Essa diversidade, aparentemente irrelevante, das cenas confundiu Roberto até que percebeu que
incluíam apenas os lugares continuamente refletidos durante longos períodos no antigo vidro. Isso
também explicava a estranha ausência de objetos passageiros, os limites geralmente arbitrários de
visão e o fato de que todo o exterior foi emoldurado pelos esboços de portas ou janelas. O vidro,
parece, pode ter servido pra acumular essas cenas intangíveis por longa exposição. Entretanto nunca
poderia   absorver   qualquer   coisa   corpórea,   como   aconteceu   a   Roberto,   exceto   por   um   processo
muito diferente e particular.
    Ao menos pra mim, o aspecto mais incrível do bizarro fenômeno era a escabrosa subversão de
nossas costumeiras leis espaciais envolvidas na relação de várias cenas ilusórias às atuais regiões
terrenas    representadas.     Falei   do  vidro   como     acumulando      as  imagens     dessas   regiões    mas   essa,
realmente,   é   uma   definição   inexata.   Na   verdade   cada   uma   das   cenas   especulares   formava   uma
verdadeira   e   quase   permanente   projeção   tetradimensional   da   região   mundana   correspondente,   de
modo que sempre que Roberto ia a alguma parte de certa cena, como quando ia à imagem de meu

                                                             6

----------------------- Page 7-----------------------



quarto enviando suas mensagens telepáticas, estava de fato naquele lugar, isto é, em terra, entretanto
sob condições espaciais que cortavam toda comunicação sensorial, em qualquer direção, entre ele e
o aspecto tridimensional vigente no local.
    Hipoteticamente falando, o prisioneiro no vidro podia, nalguns momentos, ir a qualquer lugar em
nosso mundo. Qualquer lugar que alguma vez tenha sido refletido na superfície do espelho. Isso,
provavelmente, aplicado até mesmo a lugares onde o espelho nunca fora pendurado seria o bastante
pra produzir uma nítida   cena ilusória. A   região terrena era   representada,   então, por uma zona de
sombra mais informe. Fora das cenas bem definidas havia um desgaste aparentemente ilimitado de
sombra cinza neutra sobre o qual Roberto nunca poderia ter certeza e no qual nunca ousou vaguear
além pra não ficar desesperadamente perdido nos reais e especulares mundos similares.
    Entre os apressados pormenores que Roberto deu havia o fato de não estar solitário na prisão.
Vários outros, todos em traje antigo, estavam lá com ele: Um corpulento cavalheiro de meia-idade
com trança amarrada e calção aveludado que falava inglês fluente com forte sotaque escandinavo,
uma   menina   pequena,   muito   bonita,   com  cabelo   muito  louro   na  forma   dum   lustroso   azul   escuro,
dois negros aparentemente mudos cujas características contrastavam grotescamente com a palidez
de sua pele cromaticamente invertida, três homens jovens, uma mulher jovem, uma criança muito
pequena, quase um bebê e um esquelético ancião dinamarquês de aspecto extremamente distinto e
com uma espécie de intelectualidade meio maligna no semblante.
                                                                                        2
    Esse último indivíduo se chamava Axel Holm, trajando calção justo  de cetim, casaco de borda
brilhante e volumosa e bem assentada peruca cuja idade remonta a mais de dois séculos. Era ilustre
na pequena região como sendo o responsável pela presença deles todos. Era que, versado tanto nas
artes   de   magia   quanto   de   vidraçaria,   tinha   formado  essa   prisão   estranha   dimensional   há   muito
tempo,     na   qual   ele,  seus   escravos    e  esses   a  quem    escolheu     convidar    ou   atrair  até  lá  eram
permanentemente emparedados enquanto o espelho pudesse suportar.
    Holm   nasceu   no   começo   do   século   17   e   teve   muita   competência   e   sucesso   no   comércio   de
soprador   e   moldador   de   vidro   em   Copenhague.         Seu   vidro,   especialmente   na   forma   de   grande
espelho de sala de visita, sempre estava em destaque. Mas a mesma mente pujante que fez dele o
primeiro vidraceiro de Europa serviu pra direcionar seu interesse e ambição além da esfera de mera
habilidade   material.   Estudara   o   mundo   ao   redor   e   se  aborreceu   com   a   limitação   de   capacidade   e
conhecimento        humanos.     Eventualmente       procurou    modos    obscuros     de   superar   essa   limitação    e
ganhou      mais   sucesso    que    o  apropriado     a  qualquer     mortal.   Aspirara    desfrutar    algo   como     a
eternidade, e o espelho era sua ferramenta pra alcançar esse fim. O sério estudo da quarta dimensão
estava longe de começar com Einstein em nossa era e Holm, mais que erudito em todos os métodos
de   sua   época,   sabia   que   uma   entrada   pessoal   naquela   faixa   espacial   escondida   lhe   impediria   de
morrer     na  sensação     física  ordinária.   Uma     investigação     lhe  mostrou     que   a  teoria  da   reflexão
indubitavelmente   modela   a   entrada   principal   a   todas  as   dimensões   além   da   nossa   familiar   tri   e   a
sorte lhe colocou nas mãos um pequeno vidro muito antigo cujas propriedades secretas acreditava
que   pudesse   virar   o   jogo.   Uma   vez  dentro   do   espelho,   de   acordo   com   o   método   que   idealizara,
sentiria aquela vida na sensação de forma e consciência virtualmente pra sempre, contanto que o
espelho fosse preservado indefinidamente de rompimento ou deterioração.
    Holm   fez   um   espelho   magnífico   que   seria   valorizado  e   cuidadosamente   preservado.   E   nisso
agilmente fundiu a estranha relíquia de forma espiralada que adquirira. Tendo preparado seu refúgio
e armadilha assim, começou a planejar seu modo de entrada e condição de aluguel. Teria consigo
serventes e companheiros. E como estréia experimental enviou antes de si ao vidro dois escravos
negros     de  confiança     trazidos   de   Índias   Ocidentais.    Que    sensação     teve   ao  ver   essa   primeira
demonstração concreta de sua teoria só a imaginação pode conceber.
    Indubitavelmente um homem com sua sabedoria percebe a ausência do mundo exterior, embora
transferido além do simples transcorrer de vida dos de dentro, deve significar instantânea dissolução
na   primeira   tentativa   de   voltar   àquele   mundo.   Mas,    salvo   aquele   contratempo   ou   uma   ruptura

2 Usado no século 18

                                                            7

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acidental, os internos sempre permaneceriam como eram na hora de entrada. Nunca ficariam velhos
nem precisariam de comida e bebida.
    Pra fazer sua prisão mais tolerável enviou à frente certos livros e materiais de escritório, uma
cadeira   e   mesa   artesanais   mais   robustas   e   outros   acessórios.   Soube   que   as   imagens   que   o   vidro
refletiria ou absorveria seriam intangíveis, mas somente se estenderia a seu redor como um fundo
onírico. Sua própria transição, em 1687, foi uma dura experiência e há de ter sentido um misto de
triunfo e pavor. Se qualquer coisa tivesse saído errado havia a horrível possibilidade de se perder na
escuridão de inconcebíveis dimensões múltiplas.
    Durante mais de cinqüenta anos estivera impossibilitado de fazer qualquer acréscimo à pequena
empresa de si mesmo e escravos, mas, mais tarde, aperfeiçoara seu método telepático de visualizar
pequenas   seções   do   mundo   externo   perto   do   vidro   e   atraindo   certos   indivíduos   nessas   áreas   pela
estranha   entrada   do   espelho.   Assim   Roberto,   querendo   forçar   a   porta,   fora   atraído   adentro.   Tais
visualizações   dependiam   completamente   de   telepatia.   Ninguém   dentro   do   espelho   poderia   ver   o
exterior, o mundo dos homens.
    Era, na verdade, uma vida estranha a que Holm e sua companhia tinham dentro do vidro. Desde
então   o   espelho   ficara   completamente   abandonado,   durante   um   século,   com   sua   face   voltada   à
empoeirada parede de pedra do abrigo onde o achei. Roberto foi o primeiro ser a entrar nesse limbo
após esse intervalo. Sua chegada foi um evento de gala porque trouxe notícia do mundo exterior, o
que deve ter causado grande espanto ao mais pensativo dos de dentro. Ele, na volta, jovem como
era, inevitavelmente sentiu a fantasmagoria de se reunir e falar com pessoas que estavam vivas nos
séculos 17 e 18.
    A   mórbida     monotonia     da   vida  dos   prisioneiros    só  pode    ser  vagamente     conjeturada.     Como
mencionei, sua variedade de extensão espacial era limitada a lugares que tinham sido refletidos no
espelho durante longos períodos. E muitos desses locais se escureceram e ficaram estranhos quando
o clima tropical atacou a superfície. Certos locais eram luminosos e bonitos e nesses a companhia
costumava se juntar. Mas nenhuma cena poderia agradar totalmente, pois todos os objetos visíveis
eram irreais e intangíveis e, freqüentemente, de esboço desconcertantemente indefinido. Quando os
tediosos períodos de escuridão chegavam o costume geral era se deliciar em recordação, reflexão ou
conversação. Cada elemento daquele estranho e patético grupo retivera sua personalidade inalterada
e inalterável, já que fica imune aos efeitos temporais do espaço exterior.
    O   número   de   objetos   inanimados   dentro   do   vidro,   aparte   a   roupa   dos   prisioneiros,   era   muito
pequeno,   sendo   limitados,   em   grande   parte,   aos   acessórios   que   Holm   provera   pra   si.   Os   demais
igualmente sem mobília, desde que sono e fadiga desapareceram junto com outros atributos vitais.
Tais coisas inorgânicas ali presentes pareciam isentas da decadência, assim como os seres vivos. As
mais inferiores formas de vida animal estavam ausentes.
    Roberto deve a maioria da informação a Herr Thiele, o cavalheiro que falava inglês com sotaque
escandinavo. Esse digno dinamarquês me incitava a imaginação e falava muito. Os outros também o
receberam com cortesia   e benevolência. O próprio Holm parecia bem-disposto e tinha lhe falado
sobre vários assuntos, inclusive a porta da armadilha.
    O menino, como me disse depois, era sensato o bastante pra nunca tentar comunicação comigo
quando      Holm    estava   perto.   Duas    vezes,   fazendo    isso,  vira   Holm    aparecer    e  se  interrompeu
imediatamente. Em nenhum momento pude ver o mundo atrás da superfície do espelho. A imagem
de Roberto, que incluía sua forma corporal e o respectivo vestuário era, como a imagem auricular
de sua voz sufocada e como me via, um caso de transmissão puramente telepática. Não envolvia
verdadeira visão interdimensional. Porém, Roberto era um telepata treinado como Holm e poderia
ter transmitido imagens consistentes separadas de sua pessoa adjacente.
    Ao longo desse período   de revelação eu tentava, desesperadamente, achar um jeito de libertar
Roberto. No quarto dia, nono depois da desaparição, achei uma solução. Afinal de conta meu plano
não era tão complexo. Mas não pude antecipar como agiria enquanto temesse a possibilidade dum
deslize   desastroso.   Esse   processo   dependia,   basicamente,   do   fato   de   não   haver   saída   possível   de
dentro     do    vidro.   Se    Holm     e   seus    prisioneiros    estivessem      permanentemente         encerrados
hermeticamente,   então   a   libertação   teria   que   vir   toda   de   fora.   Outras   considerações   incluíram   a

                                                            8

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disposição dos outros prisioneiros, se algum sobrevivesse e, especialmente, de Axel Holm. O que
Roberto me contou sobre ele era tudo menos tranqüilizador. Certamente eu não o queria solto em
meu apartamento, livre pra fazer suas maldades no mundo mais uma vez. As mensagens telepáticas
não esclareciam direito o efeito da libertação nos que estavam no vidro há tanto tempo.
    Entretanto havia um último, porém menor, problema no caso de sucesso: O de Roberto voltar à
rotina   escolar   sem   ter   explicado   o   inacreditável.   No   caso   de   fracasso   seria   desaconselhável   ter
testemunha   da   missão   de   libertação   e,   fora   isso,   eu   não   podia   me   referir   aos   verdadeiros   fatos,
mesmo   se   tivesse   êxito.   Até   mesmo   pra   mim   a   realidade   parecia   uma   loucura   sempre   que   eu
ponderava os fatos tão coercitivamente expostos naquela série onírica.
    Quando      refleti  sobre   esses   problemas     até  onde    era  possível,    peguei   uma    grande    lupa   no
laboratório escolar e estudei minuciosamente cada milímetro quadrado daquela espiral central que,
presumivelmente, marcava a dimensão do antigo espelho original usado por Holm. Até mesmo com
essa   ajuda   não    pude   localizar   com   precisão    o  limite   exato   entre  a  antiga   área  e  a   superfície
adicionada   pelo   mago      dinamarquês,   mas,   depois,   um   exaustivo   estudo   definiu   um   limite   oval
conjetural que esbocei com precisão com um lápis azul de ponta macia. Então fiz uma viagem a
Estanforde,   onde   arranjei   uma   pesada   ferramenta   corta-vidro.   Minha   idéia   inicial   era   remover   o
antigo e magicamente potente espelho de sua mais recente posição.
    O próximo passo era achar a melhor hora do dia pra realizar a experiência crucial. Finalmente
escolhi   2:30h   da   manhã,   tanto   por   ser   um   bom   momento   pra   trabalho   ininterrupto   quanto   ser   o
oposto   de   2:30h   da   tarde,   provável   momento   da   entrada   de   Roberto   ao   espelho.   Essa   forma   de
oposição pode não ter sido pertinente mas eu sabia, pelo menos, que a hora escolhida era tão boa
quanto qualquer outra, talvez melhor que a maioria.
    Finalmente   decidi   trabalhar   no   amanhecer   do   décimo  primeiro   dia   após   a   desaparição,   tendo
desenhado todos os tons de minha sala de visita e fechado a porta do corredor. Continuando com
ofegante   cautela a linha   elíptica localizei, tracei  ao redor da seção espiral com minha ferramenta
cortante de aço giratória. O antigo vidro, com meia polegada de espessura, crepitou quebradiço sob
a firme e uniforme pressão. Ao completar o giro cortei ao redor novamente e raspei o cilindro mais
profundamente no vidro.
    Então, cuidadosamente, ergui o pesado espelho pelo pedestal e o apoiei com a face interna contra
a parede, forçando duas das tábuas finas e estreitas pregadas na traseira. Com igual precaução dava
violentas estocadas no espaço ao redor com a pesada manivela de madeira do corta-vidro.
    Na primeira pancadinha o pedaço de vidro contendo a espiral caiu no tapete de Bokhara. Eu não
sabia   o   que   aconteceria,    mas   alguma    coisa   foi  me   animando     e   me   deixou   numa   involuntária
respiração     ofegante.    Então    me   ajoelhei   por   comodidade.      Minha     face   bem    perto   da  abertura
recentemente feita. Ao tomar fôlego minhas narinas inalaram um forte odor de poeira. Um cheiro
incomparável, que nunca senti antes. Então tudo a meu alcance de visão se converteu, de repente,
num cinza fosco antes de minha vista falhar enquanto me sentia dominado por uma força invisível
que me roubou a vitalidade muscular.
    Me lembro de pegar debilmente e sem êxito a extremidade da mais próxima cortina de janela e a
senti rasgando e soltando da parede. Então afundei lentamente no chão com a escuridão do olvido
passando encima de mim.
    Quando      recuperei     a  consciência     estava    estirado   no    tapete   de   Bokhara     com    as   pernas
misteriosamente apoiadas no ar. O quarto estava cheio daquele horrendo e inexplicado cheiro de
poeira. Como meus olhos começaram a captar imagens definidas vi que Roberto Grandison estava
em minha frente. Era ele, totalmente de carne e com coloração normal, que segurava minhas pernas
no alto pra devolver o sangue a minha cabeça como o curso de pronto-socorro da escola lhe tinha
ensinado   a   fazer   com   pessoa   desfalecida.   Num   instante   emudeci   pelo   odor   sufocante   e   por   uma
confusão que logo se fundiu numa sensação de triunfo. Então me senti capaz de me mover e falar
calmamente.
    Tentei elevar uma mão e acenar cumprimentando Roberto.
    ―  Certo,   meu   velho.  ―  Murmurei  ―  Podes   abaixar   minhas   pernas   agora.   Muito   obrigado.
Acertei novamente, acho. Era o cheiro, imagino. Isso me pegou. Abras aquela janela mais distante,

                                                            9

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por favor, a larga, do fundo. Isso é tudo. Obrigado. Não. Deixes a sombra embaixo, do jeito que
estava.
    Lutei    com    meus    pés,   minha    circulação    transtornada     se  ajustando     em   ondas,    e  permaneci
verticalmente suspenso na traseira duma cadeira grande. Eu ainda estava grogue, mas uma lufada de
ar fresco dolorosamente frio da janela me reavivou rapidamente. Me sentei na cadeira grande e vi
Roberto caminhando até mim. Eu disse apressadamente.
    ─ Primeiro me digas, Roberto: Esses outros... Holm. O que aconteceu a eles quando abri a saída?
    Roberto     interrompeu      sua   caminhada      no   quarto    e  me    olhou    com    gravidade.     Então    disse
solenemente.
    ─  Os   vi   diminuir   no   vazio,   senhor   Canevin   E,   com   eles,   tudo.   Nada   mais   há   dentro,   senhor.
Agradeço a Deus e a ti, senhor!
    E   o   jovem   Roberto,   se   rendendo,   afinal,   à   tensão   contínua   que   tinha   agüentado   durante   esses
onze   terríveis   dias,   repentinamente   se   abaixou   como   uma   criancinha   e   começou   a   se   lamentar
histericamente em grandes, sufocados e secos soluços.
                                                                                               3
    O amparei e o recostei suavemente em meu divã, lhe coloquei um poncho , me sentei a seu lado,
o acalmei passando a mão na testa e lhe disse ternamente:
    ─ Leves isso, meu velho.
    A súbita e muito natural histeria do menino passou, tão depressa quanto viera, quando lhe reiterei
meus planos pra sua tranqüila volta à escola. O interesse na situação e a necessidade de esconder a
incrível verdade sob uma explicação racional   extinguiu sua agitação como eu esperava. Então se
levantou     impacientemente,       contou    os  detalhes    de   sua   libertação   e   ouviu  as  instruções    que   eu
planejara.   Parece   que   estivera   na  área   projetada   de   meu   quarto   quando   abri   a   saída   e   emergi
naquele verdadeiro quarto, quase não percebendo que estava fora . Ao ouvir uma queda na sala de
estar se precipitou até lá e me encontrou no tapete num desmaio encantado.
    Devo      mencionar      apenas    brevemente       meu    método      de   restabelecer     Roberto     dum     modo
aparentemente   normal.   Como   o   escamoteei   janela   a   fora   com   um   chapéu   velho   e   suéter   meus,   o
levei até a estrada partindo silenciosamente em meu carro, o ensaiei cuidadosamente numa estória
que   inventei   e   voltei   pra   despertar   Browne   com   as   notícias   da   descoberta   de   Roberto.   Estava,
expliquei, caminhando solitário na tarde da desaparição. Dois homens jovens que, gracejando e ante
os protestos de que não poderia ir a lugar mais distante que Estanforde e voltar, o levaram de volta à
cidade. Saltou do carro durante uma parada de tráfego com a intenção de voltar a pé enquanto o
incitavam   a   voltar   e   foi   atropelado   por   outro   carro   no   instante   em   que   o   tráfego   foi   liberado,
despertando dez dias depois em Greenwich, na casa das pessoas que o atropelaram. Ao saber a data,
acrescentei,   telefonei   à   escola   imediatamente.   Sendo   eu   o   único   que   estava   acordado,   respondi   à
chamada e corri pra o buscar em meu carro, sem parar pra avisar alguém.
    Browne,      que   imediatamente       telefonou     aos   pais   de   Roberto,    aceitou    minha     história   sem
questionar     e  evitou    interrogar   o  menino     por   causa   do   óbvio    esgotamento      subseqüente.     Ficou
combinado       que   deveria    permanecer      na  escola   pra   descansar,    sob   o  hábil   cuidado    da  senhora
Browne, experiente enfermeira formada. Claro que o vi durante o restante das férias de Natal e pude
preencher certas lacunas em sua fragmentária história onírica.
    De vez em quando quase duvidávamos da realidade do que acontecera. Querendo saber se ambos
compartilhamos uma monstruosa ilusão nascida do reluzente hipnotismo do espelho e se o conto do
passeio     e  acidente    não   são,   afinal   de   conta,   a  realidade.    Mas    sempre     que   fizermos     assim
recuperaremos a convicção nalguma formidável e assombrosa memória. Comigo da forma onírica
de Roberto e sua voz grossa e cores invertidas. Com ele de todo o esplendor fantástico de pessoas
antigas    e   cenas  funéreas    que   testemunhara.      E  então  havia   analogia   com      a   lembrança   daquele
detestável odor poeirento. Sabíamos o que significava: A dissolução imediata dos que entraram a
uma dimensão alienígena há mais de um século.

3 Em todos os dicionários rug só consta como tapete, alfombra. Uma busca a imagem no Google mostrou, nesta figura,

Chey in the rug, que é também poncho.

                                                            10

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    Além do mais há duas linhas de evidência, pelo menos, bem mais positivas. Uma das quais vem
de   minhas   pesquisas   nos   anais   dinamarqueses        sobre   o   feiticeiro   Axel   Holm.   Como   indivíduo,
realmente,      deixou    muitos    traços   no  folclore    e  registros   escritos.   E  diligentes    pesquisas    em
bibliotecas   e   conferências   com   dinamarqueses   instruídos   derramaram   muito   mais   luz   em   sua   má
fama. No momento só preciso dizer que o soprador de vidro de Copenhague, nascido em 1612, era
um luciferino notório cujas perseguições e final desaparição foram assunto de espantoso debate há
mais de dois séculos. Tinha ardente desejo de saber todas as coisas e dominar todo limite do gênero
humano.   Pra   tal   finalidade   investigara   profundamente   campos   ocultos   e   proibidos   desde   que   era
criança.
    Era    habitualmente     adepto    duma    confraria   da   temida    bruxaria   e  a  vasta   tradição   da  antiga
mitologia escandinava com o astuto Loki e o amaldiçoado lobo Fenris, era, pra ele, um livro aberto.
Tinha   estranhos   interesses   e   objetivos,   poucos   dos  quais   eram   definitivamente   conhecidos   mas
alguns dos quais foram reconhecidos como intoleravelmente maus. Consta que seus dois ajudantes
negros,   originalmente   escravos   de   Índias   Ocidentais   Dinamarquesas,   ficaram   mudos   após   serem
adquiridos por ele e que os desaparecidos não queriam mais que sua própria desaparição do alcance
de vista da humanidade.
    Chegando o fim duma já longa vida a idéia dum vidro da imortalidade deve ter lhe ocorrido. Que
adquirira um espelho encantado de inconcebível antigüidade era um assunto de cochicho popular.
Supôs-se que o furtara dum colega feiticeiro que lho confiara pra polir.
    Esse espelho, segundo contos populares um troféu tão potente a seu modo como a notória égide
de Minerva ou o martelo de Tor, era um pequeno objeto oval chamado vidro de Loki, feito dalgum
mineral     polido   fundível    e  tendo   propriedades     mágicas     que   incluíam    a  adivinhação     do   futuro
imediato     e  o  poder    de  revelar   os  inimigos    do   dono.  Que     tinha  propriedades     potenciais    mais
profundas realizáveis nas mãos dum mago erudito nenhuma pessoa comum duvidava. Até mesmo
as pessoas educadas davam uma terrível importância aos boatos de que Holm o tentava incorporar a
um vidro maior de imortalidade. Então ocorreu a desaparição do mago, em 1687, e a venda final e
dispersão de seu bem entrou numa crescente névoa de lendário fantástico. Era tudo apenas um conto
ridículo   se   não   se   possuísse   alguma   chave   específica.   Contudo,   me   lembrando   dessas   mensagens
oníricas     e  tendo    a  corroboração      de  Roberto     Grandison     antes   de   mim,    confirmei     todas   as
desnorteantes maravilhas que se desdobraram.
    Mas como eu disse, há outra linha de evidência bem positiva, de caráter muito diferente, a minha
disposição. Dois dias depois de sua libertação, à medida que Roberto melhorava muito em força e
aparência, estava colocando lenha em meu fogo da sala de estar, notei certo desajeitamento em seu
movimento e fui acometido por uma idéia persistente. O chamei até minha escrivaninha e lhe pedi,
de   repente,   que   apanhasse   um   tinteiro.   Me   surpreendi   ao   notar   que,   apesar   da   destreza   vitalícia,
obedeceu inconscientemente com a mão esquerda. Sem o alarmar pedi, então, que desabotoasse o
casaco e me deixasse ouvir o batimento cardíaco. O que achei ao auscultar o tórax, e o que não lhe
contei depois, durante algum tempo, era que seu coração batia no lado direito.
    Entrara ao vidro destro e com cada órgão na posição normal. Agora era canhoto e com os órgãos
invertidos     e  continuaria,    indubitavelmente,       assim   ao   resto  da   vida.   Obviamente,      a  transição
dimensional não foi ilusão. Essa mudança física era tangível e inconfundível. Tinha lá uma saída
natural   do   vidro.   Provavelmente   Roberto   sofreu   uma  re-reversão   completa   e   teria   emergido   em
normalidade perfeita, como realmente o padrão cromático de seu corpo e vestuário emergiram. Mas
na natureza forçada de sua libertação, indubitavelmente, algo saiu errado. De modo que a dimensão
já não tinha chance de se corrigir como as ondas cromáticas.
    Eu   não   tinha   aberto   apenas   a   armadilha   de   Holm.   A   tinha   destruído.   E   na   fase   particular   de
destruição marcada pela fuga de Roberto algumas propriedades reversas tinham se deteriorado. É
significativo que na fuga Roberto não sentira dor comparável à que experimentara entrando. Se a
destruição ainda tivesse sido mais súbita, eu tremia só de pensar nas aberrações cromáticas que o
menino fora forçado a suportar. Posso acrescentar que depois de descobrir a inversão de Roberto
examinei   o   amarrotado   e   descartado   vestuário   que   usara   no   vidro,   e   achei,   como   esperava,   uma
reversão completa de bolso, botão e todos os outros detalhes correspondentes.

                                                           11

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    Neste   momento   o   vidro   de   Loki,   exatamente   como   caiu   em   meu   tapete   de   Bokhara   do   agora
consertado e inofensivo espelho, pesa sobre um maço de papel em minha escrivaninha aqui em São
Tomás,   venerável   capital   de   Índias   Ocidentais   Dinamarquesas,   agora   Ilhas   Virgens   americanas.
                                                                  4
Vários colecionadores do antigo vidro de Sanduíche  o confundiram com uma curiosa peça daquele
primitivo   produto   ianque   mas   imagino   que   meu   peso   de   papel   é   uma   antigüidade   de   extrema
                                     5
sutileza e da mais paleogênea  arte. Até agora não desiludi esses entusiastas.

4 Sanduíche, Massachustes, tradicional produtora de vidro fino.
5 Paleogêneo (ordoviciano): Segundo período da era paleozóica, que se estendeu de 500 milhões a 435 milhões de anos atrás


Fontes:

www.sitelovecraft.com

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