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domingo, 17 de julho de 2011

H.P.Lovecraft-O Caso de Charles Dexter Ward-Conto Terror


                                  “O Caso de Charles Dexter Ward”
Por: H.P. Lovecraft
                                                 Fonte: “O Caso de Charles Dexter Ward”. Ed. L&PM.
                                                   Capítulo um
                                          Um resultado e um prólogo
                                                          1
      E   UM   HOSPITAL   particular   para   doentes   mentais,   nas   proximidades   de   Providence,   em
DRhode           Island,   desapareceu     há  pouco     tempo    uma    pessoa   extraordinariamente       singular.
Chamava-se Charles Dexter Ward e fora internado com grande relutância do pai, o qual, pesaroso,
vira sua aberração transformar-se de mera excentricidade numa lúgubre obsessão que implicava a
possibilidade de tendências assassinas e uma mudança peculiar de sua estrutura mental. Os médicos
confessam-se      bastante   desconcertados      com   seu  caso,   pois   apresenta   singularidades     de  caráter
fisiológico geral e, ao mesmo tempo, psicológico.
         Em primeiro lugar, o paciente parecia estranhamente mais velho do que atestavam seus vinte
e seis anos. É verdade que uma perturbação mental faz uma pessoa envelhecer depressa, mas o rosto
desse   jovem   assumira   uma   aparência   grácil   que  só   os   muito   idosos   normalmente   adquirem.   Em
segundo lugar, seus processos orgânicos mostravam uma certa estranheza de proporções que não
encontrava paralelo na experiência médica. A respiração e o funcionamento cardíaco tinham uma
desconcertante falta de simetria, a voz sumira, a ponto de lhe ser impossível emitir qualquer som
mais alto do que um sussurro, a digestão era incrivelmente prolongada e reduzida ao mínimo, e as
reações   nervosas   aos   estímulos   comuns   não   tinham qualquer relação com tudo o que, normal ou
patológico, fora antes registrado no passado. A pele era morbidamente fria e a estrutura celular do
tecido parecia exageradamente áspera e frouxa. Até uma marca de nascença, grande e cor de oliva
sobre   o   quadril   direito,   havia   desaparecido   e,   ao   mesmo   tempo,   formara-se   sobre   seu   peito   uma
verruga muito peculiar, uma mancha enegrecida, da qual não havia sinal antes. Em geral, todos os
médicos      concordam     que   em    Ward    os  processos     metabólicos     estavam   retardados     num    grau
inusitado.
         Do ponto de vista psicológico, Charles Ward era singular. Sua loucura não tinha nenhuma
afinidade com qualquer caso já registrado, inclusive nos tratados mais recentes e abrangentes, e se
combinava a uma energia mental que o tornaria um gênio ou um líder não tivesse degenerado em
formas   estranhas   e   grotescas.   O   doutor   Willett,   o   médico   da   família   Ward,   afirma   que   toda   a
capacidade      mental   do  paciente,   a  julgar  por   sua  reação   às  questões   externas    à  esfera  de  sua
insanidade,     em   realidade   aumentara     desde   que  adoecera.    Ward,    em   verdade,   sempre    fora  um
estudioso e um apreciador de antiguidades; mas mesmo suas obras anteriores mais brilhantes não
mostravam o prodigioso domínio e a profundidade revelados durante os exames a que os psiquiatras
o submeteram. Em realidade, foi difícil conseguir sua internação legal no hospital, tão poderosa e
lúcida    parecia   a  mente   do   jovem,   e  somente    as  provas    apresentadas    por   outras  pessoas    e  a
quantidade      de  lacunas    anormais     em   seu   cabedal    de  informações,     em    contraposição     à  sua
inteligência, permitiram que ele fosse por fim internado. Na época de seu desaparecimento era um
ávido leitor e um conversador tão grande quanto sua fraca voz lhe permitia, e observadores agudos,
incapazes de prever sua fuga, prognosticavam que ele não demoraria muito a obter a autorização
para sair do hospital.
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         Somente      o  doutor   Willett,   que   trouxera    ao  mundo     Charles    Ward    e  acompanhara      o
desenvolvimento de seu corpo e espírito, parecia alarmado com a idéia de sua futura liberdade. Ele
tivera uma terrível experiência e fizera uma terrível descoberta que não ousava revelar aos colegas
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céticos.   Em   realidade,   Willett   guarda   para   si   um   pequeno   mistério   em   seu   envolvimento   com   o
caso. Ele foi a última pessoa a ver o paciente antes da fuga e saiu daquela derradeira entrevista num
estado   de   horror   misturado   a   alívio   lembrado   por   muitos   ao   ser   conhecida   a   fuga   de   Ward,   três
horas mais tarde. A fuga em si é um dos mistérios não solucionados do hospital do doutor Waite.
Uma janela aberta sobre uma abrupta queda de vinte metros não a explicaria; contudo, após aquela
conversa com Willett, o jovem inegavelmente desaparecera. O próprio Willett não tem explicações
satisfatórias para oferecer, embora estranhamente seu espírito pareça mais aliviado do que antes da
fuga.   Muitos,   em   realidade,   acham   que   ele   gostaria   de   dizer   mais   coisas   se   acreditasse   que   um
número   considerável   de   pessoas   lhe   daria   crédito.   Encontrara  Ward   em   seu   quarto,   mas,   pouco
depois que o médico saíra, os atendentes bateram em vão à porta. Ao abri-la, constataram que   o
paciente não estava lá e só encontraram a janela  aberta através da qual uma brisa gélida de abril
trouxe para dentro uma nuvem de fino pó cinza-azulado que quase os sufocou. É verdade que os
cães uivaram algumas vezes antes, mas isto foi enquanto Willett ainda estava presente; os animais
não   pegaram  nada   e   em  seguida   se   acalmaram.   O pai   de   Ward   foi   informado   imediatamente   por
telefone, contudo pareceu mais entristecido do que surpreso. Quando o doutor Waite foi visitá-lo
pessoalmente,       o   doutor    Willett    já  havia    conversado      com    ele   e  ambos      negaram     qualquer
conhecimento ou cumplicidade na fuga. Só foi possível obter algumas indicações de poucos amigos
íntimos de Willet e de Ward pai, e mesmo estas eram extremamente fantásticas para que se lhes
pudesse dar crédito. O único fato concreto é que até o momento não foi descoberto nenhum vestígio
do louco desaparecido.
         Charles   Ward   amava   as   coisas   antigas   desde  a   infância   e   indubitavelmente   adquirira   essa
predileção   por   causa   da   antiguidade   da   cidade   em   que   vivia   e   pelas   relíquias   do   passado   que
enchiam cada canto da velha mansão dos pais em Prospect Street, no cume da colina. Com o passar
dos anos, sua paixão pelas coisas antigas aumentava de forma que história, genealogia e o estudo da
arquitetura,     do   mobiliário    e  da   arte  colonial   acabaram      por   ocupar    totalmente     sua   esfera   de
interesses. É importante lembrar estas predileções ao analisar sua loucura, pois muito embora não
constituam       absolutamente       seu   cerne,   desempenham         um    papel    proeminente      em    sua    forma
superficial.   As   lacunas   de   informação   detectadas  pêlos   psiquiatras   estavam   todas   relacionadas   a
assuntos   modernos   e   invariavelmente   eram  contrabalançadas   por   um  correspondente   e   excessivo,
embora   exteriormente   disfarçado,   conhecimento   de  assuntos   do   passado,   revelado   porém   por   um
hábil interrogatório: de modo que se poderia imaginar que o paciente literalmente se transferira para
uma   época   anterior   por   alguma   obscura   espécie  de   auto-hipnose.   O   estranho   era   que   Ward   não
parecia   mais   interessado   pelas  coisas   antigas   que   conhecia   tão   bem.   Aparentemente,   perdera   o
apreço     por   elas  por   causa   da   mera   familiaridade,     e  todos   os   seus  esforços    recentes    estavam
obviamente voltados para o domínio dos fatos comuns do mundo moderno que se haviam apagado
de    maneira    tão  completa     e  inequívoca     de   seu  cérebro.    E   ele  se  esforçava    para   esconder     tal
aniquilação,      mas   era   claro   para   quem    o   observava     que   todo   o   seu   programa     de   leituras   e
conversações era determinado por um frenético desejo de sorver os conhecimentos de sua própria
vida e da formação cultural e prática comum do século XX que ele deveria possuir pelo fato de ter
nascido em 1902 e de ter sido educado nas escolas do nosso tempo. Os psiquiatras perguntam-se
agora, tendo em vista a destruição total de seu cabedal de informações, como o paciente fugitivo
conseguira fazer frente ao complexo mundo dos nossos dias; e a opinião comum é que estaria se
escondendo numa função humilde e discreta até que seu cabedal de informações modernas pudesse
voltar ao nível normal.
         O   início   da   loucura   de   Ward   constitui   matéria   de   debate   entre   os   psiquiatras.   O   doutor
Lyman,   a   eminente   autoridade   de   Boston,   situa-o   entre   1919   e   1920,   o   último   ano   que   o   rapaz
cursara na Escola Moses Brown, quando subitamente se desviou do estudo do passado para o do
oculto e recusou preparar-se para a universidade, alegando que tinha pesquisas pessoais muito mais
importantes a realizar. Com certeza, isto foi uma decorrência da alteração dos hábitos de Ward na
época, principalmente de sua busca contínua, nos registros da cidade e entre antigos cemitérios, de
certa sepultura aberta em 1771: o túmulo de um ancestral chamado Joseph Curwen, do qual alegara
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ter   encontrado   certos   papéis   atrás   dos   lambris   de   uma   casa   muito   antiga   de   Olney   Court,   em
Stampers Hill, em que notoriamente Curwen havia vivido.
         É inegável que no inverno de 1919-20 houve uma grande mudança em Ward; de fato, ele
parou de repente suas atividades de antiquário, empreendendo uma investigação profunda no campo
do ocultismo em seu país e no exterior, alternando-a apenas à busca estranhamente obstinada do
túmulo do seu antepassado.
         O doutor Willett, contudo, discorda substancialmente dessa opinião, baseando seu parecer
no prolongado conhecimento íntimo do paciente e em algumas pesquisas e descobertas assustadoras
feitas a seu respeito. Essas pesquisas e descobertas deixaram nele uma marca tão profunda que ao
falar nelas sua voz treme e treme-lhe a mão ao escrever sobre elas. Willett admite que a mudança
ocorrida   em   1919-20   parece   marcar   o   início   de   uma   decadência   progressiva   que   culminou   na
horrível, triste e misteriosa alienação mental de 1928, mas acredita, baseado na observação pessoal,
que    é  preciso    fazer  uma    distinção    mais   nítida.  Reconhecendo        que   o  rapaz   sempre    teve   um
temperamento pouco equilibrado e propenso a uma suscetibilidade e a um entusiasmo excessivos
em suas reações aos fenômenos que o cercavam, ele se recusa a admitir que as primeiras mudanças
marcam   a   passagem   da   razão   à   loucura;   ao   contrário,   prefere   acreditar   na   própria   afirmação   de
Ward,     de   que  descobrira     ou  redescobrira     algo  cujo   efeito  sobre    o  pensamento      humano     seria
provavelmente maravilhoso e profundo.
         A loucura verdadeira, ele tem certeza disso, apareceu com uma mudança posterior, depois
do descobrimento do retrato e dos velhos papéis de Curwen; após uma viagem a estranhos lugares
no exterior, após recitar certas terríveis invocações em estranhas e secretas circunstâncias; depois de
obter    claramente     certas  respostas     a  essas   invocações     e  de   redigir   urna   carta  em    condições
angustiantes e inexplicáveis; depois da onda de vampirismo e dos infaustos boatos em Pawtuxet; e
depois que a memória do paciente começou a excluir as imagens contemporâneas ao mesmo tempo
em que sua voz falhava e seu aspecto físico ia sofrendo a sutil modificação que tantas pessoas mais
tarde notaram.
         Somente nessa época, salienta Willett com grande agudeza, o clima de pesadelo passou a ser
inquestionavelmente   associado   a   Ward   e   o   médico,   estremecendo   de   pavor,   está   seguro   de   que
existem   provas   bastante   concretas   corroborando   a   afirmação   do   rapaz   quanto   à   sua   descoberta
crucial. Em primeiro lugar, dois trabalhadores muito inteligentes viram os velhos papéis de Joseph
Curwen   quando   ele   os   descobriu.   Em   segundo,   o   rapaz   uma   vez   lhe   mostrou   tais   papéis   e   uma
página do diário de Curwen, e cada um dos documentos tinha toda a aparência de autenticidade. O
buraco onde Ward afirmou tê-los encontrado é uma realidade visível e Willett tivera oportunidade
de vê-los pela última vez e de modo bastante convincente num local em que ninguém acreditaria ou
cuja existência talvez jamais seria provada. Depois havia os mistérios e as coincidências das outras
cartas   de   Orne   e   Hutchinson   e   o   problema   da   caligrafia   de   Curwen   e   daquilo   que   os   detetives
trouxeram à luz a respeito do doutor Allen; essas coisas e a terrível mensagem em cursivo medieval
encontrada no bolso de Willett quando recuperou a consciência após sua experiência chocante.
         E mais conclusivos do que tudo são os dois horrendos resultados obtidos pelo médico com
certas    fórmulas    durante   suas   investigações     finais;  resultados   que   praticamente     comprovaram   a
autenticidade dos papéis e de suas monstruosas implicações, ao mesmo tempo em que os tais papéis
foram subtraídos para sempre do conhecimento humano.
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         É preciso considerar os primeiros anos da vida de Charles Ward como algo que pertence ao
passado     e  às  antiguidades     que   ele   amava    tão   ardentemente.     No    outono    de  1918,    com    uma
considerável   manifestação   de   entusiasmo   pelo   adestramento   militar   da   época,   ele   ingressara   no
primeiro     ano   da  Escola    Moses    Brown,    que   fica  bem   próxima      de  sua   casa.   O  antigo   edifício
principal, erguido em 1819, sempre agradara seu gosto pelas coisas antigas; e o amplo parque no
qual   se   localiza   a   Academia   atraía   sua   predileção   pela   paisagem.   Suas   atividades   sociais   eram
poucas   e   passava   grande   parte   de   seu   tempo   em  casa,   em   caminhadas   sem   destino,   nas   aulas   e
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deveres e na busca de dados arqueológicos e genealógicos na Prefeitura, na Assembléia Estadual, na
Biblioteca   Pública,   na   Sociedade   Científica,   na  Sociedade   Histórica,   nas   bibliotecas   John   Carter
Brown   e   John   Hay   da   Brown   University   e   na   Biblioteca   Shepley,   recentemente   inaugurada   em
Benefit Street. Ainda é possível retratá-lo como era naquele tempo: alto, magro, loiro, olhos atentos
e   ligeiramente   curvo,   trajado   de   maneira   um   tanto   negligente.   A   impressão   predominante   era   de
inócua falta de jeito mais que de encanto pessoal.
         Suas   caminhadas   eram   sempre   aventuras   pelo   mundo   do   passado,   durante   as   quais   ele
tentava   recapturar   as   miríades   de   relíquias   de   uma   fascinante   cidade   antiga,   um   retrato   vivo   e
coerente de outros séculos. Sua casa era uma grande mansão georgiana no topo da colina bastante
íngreme que se ergue a leste do rio, e das janelas posteriores ele olhava atordoado a multidão de
pináculos, cúpulas, telhados e topos de arranha-céus da cidade baixa até as colinas em tons violeta
nos campos distantes, ao fundo. Aqui ele nascera  e do belo pórtico clássico na fachada de tijolos
entre as duas janelas salientes a babá o conduzia para o primeiro passeio de carrinho; em frente à
pequena casa branca da fazenda de duzentos anos, que há muito a cidade absorvera, em direção às
imponentes escolas ao longo da rua suntuosa, cujas antigas mansões quadradas de tijolos e casas
menores de madeira de pórticos estreitos com pesadas colunas dóricas pareciam sonhar, sólidas e
exclusivas em meio aos seus generosos parques e jardins.
         Havia sido conduzido também ao longo da sonolenta Congdon Street, um patamar abaixo na
colina íngreme e com todas as suas casas a leste sobre altos terraços. As pequenas casas de madeira
em   geral   eram   mais   antigas   aqui,   pois   ao   crescer  a   cidade   fora   subindo   por   esta   colina.   Nesses
passeios ele absorvera um pouco da cor de uma pitoresca aldeia colonial. A babá costumava parar e
sentar-se   nos   bancos   de   Prospect   Terrace   para  conversar   com   os   guardas;   e   uma   das   primeiras
lembranças   da   criança   era   o   imenso   mar   de   nebulosos   telhados,   cúpulas,   campanários   e   colinas
distantes a ocidente, que vira numa tarde de inverno daquele grande terraço com balaustrada, violeta
e   místico   contra   um   pôr-de-sol   apocalíptico,   de  febris   tons   vermelhos,   ouro,   púrpura   e   curiosos
verdes.   A   imensa   cúpula   de   mármore   da   Assembléia   destacava-se   com   sua   maciça   silhueta,   a
estátua   do   topo   aureolada   fantasticamente   por   um   rasgo   na   camada   de   nuvens   matizadas   que
barravam o céu chamejante.
         Quando ele cresceu, começaram suas famosas caminhadas; primeiro com a babá, arrastada
com   impaciência,   e   depois   sozinho   em   sonhadora  meditação.   Ele   se   aventurava   cada   vez   mais
longe, descendo a colina quase perpendicular, alcançando os planos mais antigos e pitorescos da
cidade     velha.   Hesitava     cautelosamente       descendo     a   vertical   Jenckes     Street   com    seus   muros
posteriores   e   frontões   coloniais  até   a   esquina   da   sombria   Benefit   Street,   onde   se   erguiam   dois
portões antigos com colunas jônicas; ao seu lado, um telhado pré-histórico com mansarda, as ruínas
de   um   primitivo   quintal   de   fazenda   e   a   imensa   casa   do   juiz   Durfee,   com   vestígios   do   fausto
georgiano. Isto aqui estava se tornando um cortiço, mas os olmos titânicos espalhavam uma sombra
restauradora sobre o lugar e o menino costumava dirigir-se para o sul — pelas longas fileiras de
casas da época pré-revolucionária com suas grandes chaminés centrais e portais clássicos. Do lado
oriental, elas se erguiam sobre porões com dois lances de degraus de pedra ladeados por balaústres
de ferro, e o jovem Charles as imaginava como eram quando a rua era nova e saltos vermelhos e
perucas adornavam os frontões pintados cujos sinais de deterioração já se tornavam tão visíveis.
         A oeste, a colina despencava quase tão verticalmente como acima, até a velha "Town Street"
que   os   fundadores   haviam   projetado   à   beira   do   rio   em   1636.   Aqui   estendiam-se   inúmeras   vielas
com casas amontoadas, apoiadas umas às outras, antiqüíssimas; embora fascinado, demorou muito
até   ousar   palmilhar   sua   arcaica verticalidade,   temeroso   de   que  não   passassem  de   um   sonho   ou   o
introduzissem   a   terrores   desconhecidos.   Achava  muito   menos   ameaçador   prosseguir   por   Benefit
Street em frente às grades de ferro que cercavam o escondido cemitério da Igreja St. John e a parte
posterior   de   Colony   House,   de   1761,   e   a   massa    da   Golden   Ball   Inn,   reduzida   a   ruínas,   onde
Washington se hospedara. Em Meeting Street — chamada sucessivamente Gaol Lane e King Street
em outras épocas — ele costumava olhar para cima, em direção ao oriente, e contemplar os lances
curvos     de  degraus     com    os  quais   a  estrada   subia  a   encosta,    e  depois    para   baixo,   a  ocidente,
vislumbrando o antigo edifício colonial de tijolos da escola, que sorri do outro lado da rua sob a
                                                             4
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antiga tabuleta com a Cabeça de Shakespeare, onde o Providence Gazette and Country-Journal era
impresso antes da Revolução. Vinha então a bela Primeira Igreja Batista de 1775, faustosa, com seu
incomparável campanário de Gibbs, e ao seu redor os telhados georgianos e as cúpulas como que
suspensos no ar. Aqui e para o sul o bairro se tornava mais bonito, desabrochando finalmente num
maravilhoso grupo de mansões primitivas. Mas as vetustas vielas ainda conduziam ladeira abaixo a
oeste, espectrais no arcaísmo de suas inúmeras cúspides, mergulhando numa orgia de decadência
iridescente     onde   o   antigo   porto   de  odores    repulsivos    lembra    os  gloriosos    tempos    das   índias
Orientais entre sordidez e vícios poliglotas, desembarcadouros podres, velaria indistinta e nomes de
ruas sobreviventes como Packet, Bullion, Gold, Silver, Coin, Doubloon, Sovereign, Guilder, Dollar,
Dime e Cent.
         Às vezes, à medida que ia crescendo e se tornava mais afoito, o jovem Ward se aventurava
lá   em    baixo    naquele    turbilhão    de  casas   trôpegas,    bandeiras     de  janelas    quebradas,     degraus
arrebentado, balaustradas retorcidas, rostos trigueiros e odores indefiníveis; virando de South Main
para South Water, vasculhando as docas onde os vapores ainda atracavam na baía e voltando em
direção ao norte para este terraço inferior, passando pêlos armazéns de tetos muito inclinados de
 1816 e a ampla praça na Great Bridge, aqui o edifício do Mercado de 1773 ainda se ergue firme
sobre seus antigos arcos. Naquela praça ele costumava parar para contemplar a fantástica beleza da
cidade   velha   sobre   o   penhasco   oriental,   coberta   de  cúspides   georgianas   e   coroada   pela   imensa   e
nova   cúpula   da   Christian   Science,   assim   como      Londres   é   coroada   pela   cúpula   de   São   Paulo.
Agradava-lhe extremamente chegar a este local no fim da tarde, quando os raios inclinados do sol
inundam de ouro o edifício do mercado e os antigos telhados e campanários na colina e mergulham
em   sua   magia   os   desembarcadouros   sonolentos   onde   os   navios   de   Providence,   procedentes   das
índias, costumavam fundear. Após uma longa contemplação sentia o atordoamento de sua paixão de
poeta   por   aquela   paisagem,   e   então   escalava   a   encosta   em   direção   à   sua   casa,   no   crepúsculo,
passando pela antiga igreja branca, subindo pelas ruas íngremes onde brilhos amarelos começavam
a surgir nas janelas de pequenas vidraças e através das bandeiras das portas, lá no alto, sobre lances
duplos de escadas com curiosas balaustradas de ferro trabalhado.
         Em outras épocas, e nos últimos anos, ele costumava procurar contrastes vivos; realizando
parte da caminhada pêlos bairros coloniais em ruínas a noroeste de sua casa, onde a colina desce
abruptamente até a elevação inferior de Stampers Hill com seu gueto e o bairro negro apertando-se
ao redor da praça da qual a diligência de Boston costumava partir antes da Revolução, e a outra
parte na graciosa região meridional das ruas George, Benevolent, Power e Williams, onde a velha
encosta   guarda   intocadas   as   belas   propriedades   e trechos   de   jardins   cercados   por   muros   e   vielas
íngremes   e   verdes,   nas   quais   perduram   inúmeras   e   fragrantes   memórias.   Estas   perambulações,
juntamente   com   os   estudos   diligentes   que   as   acompanhavam,   com   certeza   são   responsáveis   pela
quantidade de conhecimentos sobre arqueologia que no fim povoavam o mundo moderno na mente
de Charles Ward e mostram o terreno espiritual sobre o qual caíram, naquele inverno fatal de 1919-
20, as sementes brotadas daquela estranha e terrível fruição.
         O doutor Willett está certo de que, até aquele malfadado inverno em que ocorreu a primeira
mudança,   a   paixão   de   Charles   Ward   pela   arqueologia   não   tinha   qualquer   sinal   de   morbidez.   Os
cemitérios   não   tinham   para   ele   nenhuma   atração   particular   além   de   seu   exotismo   e   seu   valor
histórico,   e   ele   estava   totalmente   isento   de  tudo   que   se   assemelhasse   a   violência   ou   instintos
selvagens. Foi então que, numa progressão insidiosa, pareceu desenvolver uma curiosa seqüela de
um     dos   seus   triunfos   genealógicos     do   ano   anterior,   quando    descobrira    entre   seus   ancestrais
maternos um indivíduo que teve vida muito longa, chamado Joseph Curwen, que para lá se mudara
vindo     de  Salem    em   março    de   1692   e  em   torno  do    qual   sussurra   vá-se   uma   série   de  boatos
extremamente peculiares e inquietantes.
         O tataravô de Ward, Welcome Potter, casara-se em 1785 com certa "Ann Tillinghast, filha
de Eliza, filha do capitão James Tillinghast", de cuja paternidade a família não preservara qualquer
vestígio. No final de 1918, examinando um volume de registros manuscritos originais da cidade, o
jovem   genealogista   encontrou   um   assentamento         descrevendo   uma   mudança  legal   de   nome,   pelo
qual uma senhora Eliza Curwen, viúva de Joseph Curwen, retomava, juntamente com a filha Ann,
                                                            5
----------------------- Page 6-----------------------de   sete   anos   de   idade,   o   nome   de   solteira   Tillinghast;   alegando   "que   o   nome   de   seu   marido   se
tornara opróbrio público em razão do que se soubera após seu falecimento; confirmando um antigo
boato, que não deveria ser levado em conta por uma esposa leal enquanto não se comprovasse que
estava acima de qualquer dúvida". Este assentamento veio à luz pela separação acidental de duas
folhas cuidadosamente coladas uma à outra para parecerem uma só após uma trabalhosa verificação
dos números das páginas.
         Ficou imediatamente claro para Charles Ward que havia de fato descoberto um tetravô até
então desconhecido. A descoberta o emocionou duplamente porque já havia ouvido vagas histórias
e observado alusões esparsas relacionadas a essa pessoa sobre a qual restavam tão poucos registros
publicamente disponíveis, além  daqueles só conhecidos nos tempos modernos, que quase parecia
existir uma conspiração para apagá-la da memória. A descoberta, além disso, era de uma natureza
tão singular e excitante que não se poderia deixar de pensar no que os escrivães coloniais estavam
tão   ansiosos    por  ocultar   e  esquecer,   ou  suspeitar   que   a  passagem     fora  suprimida    por  razões
totalmente válidas.
         Antes   disso,   Ward   contentara-se   em   deixar   adormecida   sua   fascinação   pelo   velho   Joseph
Curwen; mas ao descobrir seu parentesco com esse personagem sobre o qual se preferia silenciar,
passou   a   perseguir   da   maneira   mais   sistemática   possível   tudo   o   que   podia  achar   a   seu   respeito.
Nessa agitada busca, ele acabou alcançando um sucesso superior às suas expectativas mais ousadas,
pois velhas cartas, diários e pilhas de livros de memórias não publicadas encontrados nas águas-
furtadas cheias de teias de aranhas de Providence e de outros lugares continham muitas passagens
esclarecedoras que seus autores não haviam achado necessário destruir. Uma informação acidental
surgiu até mesmo num lugar tão distante como Nova Iorque, onde uma correspondência da época
colonial de Rhode Island estava guardada no Museu de Francês' Tavern. A coisa realmente crucial,
entretanto, e o que na opinião do doutor Willett constituiu a causa definida da desgraça de Ward, foi
o material encontrado em agosto de 1919 atrás dos lambris de madeira da casa semidestruída de
Olney Court. Foi aquilo, sem sombra de dúvida, que escancarou as visões negras cujo fim era mais
profundo do que o inferno.
                                                      Capítulo dois
                                                 Antecedente e horror
                                                              1
         Joseph Curwen, segundo revelaram as vagas lendas ouvidas ou descobertas por Ward, era
um indivíduo extremamente assombroso, enigmático, sombriamente horrível. Ele fugira de Salem
para Providence — o abrigo universal dos excêntricos, dos homens livres e dos dissidentes — no
início do grande pânico da bruxaria, temendo ser acusado por causa de seus hábitos solitários e de
suas   curiosas   experiências   químicas   e   alquimistas.   Era   um   homem   de   aspecto   insignificante,   de
cerca de trinta anos de idade; logo foi considerado digno de se tornar um cidadão de Providence;
adquiriu então um lote para habitação ao norte daquele de Gregory Dexter, aproximadamente no
início de Olney Court. Sua casa foi construída em Stampers Hill a oeste de Town Street, na parte
que mais tarde se chamaria Olney Court, e em  1761a substituiu por outra maior, no mesmo local,
que ainda está de pé.
         A primeira coisa estranha em Joseph Curwen era o fato de que ele não parecia mais velho do
que era na época de sua chegada. Ingressou no negócio dos transportes marítimos, adquiriu alguns
desembarcadouros   nas   proximidades   de   Mile-End  Cove,   ajudou   a   reconstruir   a   Great   Bridge   em
1713 e a Igreja Congregacional sobre a colina; mas sempre conservava o aspecto indefinível de um
homem      não   muito   acima    dos  trinta  ou  trinta e   cinco   anos.  Com     o  passar  das   décadas,   esta
característica    singular   começou    a   despertar   grande    atenção,   mas   Curwen     sempre    a  explicava
dizendo que descendia de antepassados vigorosos e levava uma vida simples que não o desgastava.
De    que   maneira    tal  simplicidade  poderia     se  conciliar  com    as  inexplicáveis    idas  e  vindas   do
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comerciante e com estranhos brilhos em suas janelas a todas as horas da noite não era muito claro
para as gentes da cidade, que estavam propensas a atribuir outras razões à sua perene juventude e
longevidade. A maioria acreditava que isto teria muito a ver com incessantes misturas e cocção de
substâncias químicas. Diziam os boatos que ele mandava vir estranhas substâncias de Londres e das
índias em seus navios ou as adquiria em Newport, Boston e Nova Iorque, e quando o velho doutor
Jabez Bowen chegou de Rehoboth e abriu sua loja de boticário do outro lado da Great Bridge com o
Unicórnio   e   o   Almofariz   na   tabuleta   sobre   a   porta,   houve   intermináveis   falatórios   a   respeito   das
drogas, ácidos e metais que o taciturno recluso continuamente comprava ou encomendava. Supondo
que   Curwen   possuísse   uma   assombrosa   e   secreta  habilidade   de   médico,   muitos   que   sofriam   de
várias doenças recorriam a ele, mas embora parecesse encorajar sua convicção, ainda que de modo
cauteloso,   e   sempre   lhes   desse   poções   de   cores  estranhas   para   atendê-los,   observava-se   que   as
coisas    que    ele  ministrava     aos   outros   raramente     eram    eficazes.   Finalmente,      quando     mais   de
cinqüenta anos haviam se passado desde a chegada do forasteiro, sem produzir uma mudança de
mais de cinco anos em seu rosto e físico, as pessoas começaram a murmurar de maneira ainda mais
insistente e atender quase totalmente ao desejo de isolamento que ele sempre manifestara.
         Cartas   pessoais   e   diários   da   época   revelam também   uma   profusão   de   outras   razões   pelas
quais   Joseph   Curwen   era   olhado   com   estranheza,   temido   e,   no   fim,   evitado   como   a   peste.   Sua
paixão   pêlos   cemitérios,   nos   quais   era   visto   a   todas   as   horas   e   com   qualquer   tempo,   era   notória,
embora   ninguém   tivesse   presenciado   qualquer   ato   de  sua   parte   que   pudesse   de   fato   ser   definido
como vampiresco. Ele possuía uma fazenda na Pawtuxet Road, na qual costumava morar durante o
verão e para a qual frequentemente podia ser visto dirigir-se a cavalo nas horas mais estranhas do
dia e da noite. Aqui, seus únicos empregados, trabalhadores braçais e guardas, eram dois taciturnos
índios   da   tribo   Narragansett:   o   marido   mudo   e  com   curiosas   cicatrizes,   e   a   mulher   com   uma
expressão   extremamente   repulsiva,   talvez   devido   a   uma   mistura   com   sangue   negro.   Num   anexo
dessa    casa   ficava    o  laboratório   onde     era  realizada    a  maior    parte  das   experiências     químicas.
Carregadores   e   carroceiros   que   entregavam  garrafas,   sacos   ou   caixas   nas   portas   traseiras   da   casa
bisbilhotavam e trocavam relatos sobre os fantásticos frascos, crisóis, alambiques e fornalhas que
viam no quarto baixo cheio de prateleiras, e profetizavam em sussurros que o calado "quimista" —
querendo   dizer   "alquimista"   —   não   demoraria   a   descobrir   a   Pedra   Filosofal.   Os   vizinhos   mais
próximos à sua fazenda — os Fenners, distantes um quarto de milha — tinham coisas ainda mais
fantásticas para contar a respeito de certos sons que, afirmavam, vinham da casa de Curwen à noite.
Eram gritos, diziam, e uivos prolongados, e eles não gostavam da grande quantidade de gado que
invadia   os   pastos,   porque   essa  quantidade   não   era   necessária   para   suprir   um   velho   solitário   e
pouquíssimos empregados com carne, leite e lã. A identidade do gado parecia mudar de semana a
semana quando novos rebanhos eram comprados dos fazendeiros de Kingstown. E depois também
havia algo extremamente detestável com relação a um grande edifício de pedra, pouco distante da
casa, com estreitas fendas em lugar das janelas.
         Os desocupados da Great Bridge tinham muito para comentar sobre a casa de Curwen na
cidade, em Olney Street; não tanto a casa nova, bonita, construída em 1761, quando o homem devia
ter aproximadamente um século, mas a primeira, baixa, o telhado com água-furtada, sem janelas,
revestida     de  tábuas,    cujo   madeiramento       ele  tomou     a  peculiar    precaução     de  queimar     após    a
demolição. Aqui havia menos mistério, é verdade, mas as horas nas quais as luzes eram vistas, o ar
furtivo dos dois forasteiros morenos que constituíam a única criadagem masculina, os horríveis e
indistintos murmúrios da governanta francesa incrivelmente velha, a grande quantidade de comida
que   era   vista   entrar   por   uma   porta   atrás  da   qual   viviam   apenas   quatro   pessoas   e   a  qualidade  de
certas   vozes   ouvidas   frequentemente   em   conversais  abafadas   em   horas   totalmente   inadequadas,
tudo isto combinava com o que se sabia da fazenda Pawtuxet para conferir ao lugar uma péssima
fama.
         Mesmo   nos   círculos   mais   seletos   a   residência   de   Curwen   não   deixava   de   ser   comentada;
pois, à medida que o recém-chegado se introduzira na igreja e no ambiente dos negócios da cidade,
travara naturalmente conhecimento com pessoas da melhor espécie, cuja companhia e conversação
estava bastante apto a apreciar. Sabia-se que nascera de boa família, porque os Curwens de Salem
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não precisavam de apresentação na Nova Inglaterra. Soube-se que Joseph Curwen viajara muito na
juventude, que vivera um tempo na Inglaterra e  fizera pelo menos duas viagens ao Oriente; e sua
conversação, quando se dignava usá-la, era a de um inglês instruído e culto. Mas, por alguma razão,
Curwen   não   se   importava   com   a   sociedade.   Embora   em   realidade   ele   jamais   recebesse   mal   um
visitante, sempre erguia um muro de reserva tão grande que poucos conseguiam dizer-lhe alguma
coisa que não soasse tola.
         Em  seu   comportamento   parecia   haver   sempre   à  espreita   uma   certa   arrogância   enigmática,
sardônica, como se, tendo convivido entre estrangeiros e homens mais poderosos, tivesse concluído
que todos os seres humanos eram obtusos. Quando o doutor Checkley, famoso por sua sabedoria,
chegou de Boston em 1738 para se tomar o reitor da King's Church, não deixou de visitar alguém a
cujo respeito tanto ouvira falar; mas saiu pouco depois por ter percebido algo sinistro nas conversas
de   seu   anfitrião.   Charles   Ward   disse   a   seu   pai,   quando   discutiam   sobre   Curwen   numa   noite   de
inverno, que daria tudo para saber o que o misterioso velho teria dito ao brilhante clérigo, mas todos
os diários concordam quanto à relutância do doutor Checkley em repetir algo daquilo que ouvira. O
bom   homem   ficara   terrivelmente   chocado   e   jamais   conseguira   lembrar   de   Joseph   Curwen   sem
perder, de maneira evidente, a jovial cortesia que o tomara famoso.
      No entanto, mais definida era a razão pela qual outro homem de refinamento e berço evitava o
arrogante   ermitão.   Em   1746,   o   senhor   John   Merritt,   um   idoso   cavalheiro   inglês,   com   tendências
literárias e científicas, chegou de Newport à cidade que já a superava rapidamente em prestígio e
construiu uma bela casa de campo no Neck, no que ê hoje o coração da zona residencial. Ele vivia
com considerável estilo e conforto, era proprietário da primeira carruagem e de criados de libré da
cidade,   orgulhando-se   grandemente   de   seu   telescópio,   microscópio   e   de   sua   seleta   biblioteca   de
livros   ingleses   e   latinos.   Ouvindo   falar   de   Curwen  como   o   proprietário   da   melhor   biblioteca   de
Providence, o senhor Merritt lhe fez logo uma visita e foi recebido de modo mais cordial do que
muitos outros visitantes da casa haviam sido. Sua admiração pelas amplas estantes do anfitrião, as
quais,    ao  lado   dos   clássicos   gregos,    latinos  e  ingleses    exibiam    uma    notável   bateria   de  obras
filosóficas,     matemáticas     e  científicas,   incluindo     Paracelsus,    Agrícola,    Van    Helmont,     Sylvius,
Glauber, Boyle, Boerhaave, Becher e Stahl, levou Curwen a sugerir uma visita à casa da fazenda e
ao   laboratório   para   onde   jamais   havia   convidado  quem   quer   que   fosse   antes;   e   os   dois   partiram
imediatamente na carruagem do senhor Merritt.
      O senhor Merritt sempre confessou não ter visto nada de realmente horrível na casa da fazenda,
mas     afirmou    que    os  títulos   dos   livros  da   biblioteca    especial   sobre    assuntos    taumatúrgicos,
alquimistas e teológicos que Curwen mantinha numa sala da frente, foram suficientes para inspirar-
lhe uma aversão duradoura. Entretanto, foi talvez a expressão do rosto do proprietário ao exibi-los
que contribuiu em grande parte para esse preconceito. Essa bizarra coleção, além de uma miríade de
obras     comuns     que   o  senhor    Merritt   não   se  sentiu   excessivamente       alarmado     em   lhe   invejar,
abrangiam quase todos os cabalistas, demonólogos e mágicos conhecidos, e era um reservatório de
tesouros do saber nos duvidosos reinos da alquimia e astrologia. Hermes Trismegisto na edição de
Mesnard,  a  Turba   Philosopharum, o Líber Investigatianis  de   Geber; e  A  Chave  da  Sabedoria  de
Artephous; estavam todos lá, com o cabalístico Zohar, a série Albertus Magnus de Peter Jamm, Ars
Magna et Ultima  de Raymond Lully na edição de Zetzner, Thesaurus Chemicus de Roger Bacon,
Clavis Alchimiae de Fludd, De Lapide Philosophico de Tritêmio, um ao lado do outro. Os judeus e
árabes   medievais   estavam  representados   em  profusão   e   o   senhor   Merritt   ficou   pálido   quando,  ao
retirar da estante um lindo volume com o título vistoso de Qanoon- é- Islam, descobriu tratar-se em
verdade do proibido Necronomicon do louco árabe Abdul Alhazred, a cujo respeito ouvira sussurrar
coisas     monstruosas,     alguns    anos  antes,    após   a   descoberta    de   ritos  abomináveis      na   estranha
aldeiazinha de pescadores de Kingsport, na Província de Massachusetts-Bay.
      Mas, curiosamente, o digno cavalheiro confessou-se perturbado de modo mais indefinível por
um detalhe insignificante. Sobre a imensa mesa de mogno jazia virado para baixo um exemplar de
Borellus,   gasto   pelo   uso,   trazendo   muitas   notas   misteriosas   escritas   à   mão por   Curwen   ao   pé   da
página e entre as linhas. O livro estava aberto mais ou menos no meio e um parágrafo exibia riscos
tão grossos e trêmulos debaixo das linhas em místico gótico antigo que o visitante não resistiu à
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tentação de examiná-las atentamente. Ele não soube dizer se foi a natureza do trecho sublinhado ou
a forma febril dos traços com que estava marcado, mas algo nessa combinação o impressionou de
um modo muito profundo e peculiar. Lembrou-o até o fim da vida e o transcreveu de memória em seu
diário.   Uma   vez   tentou   recitá-lo   ao   seu   amigo,  doutor   Checkley,   até   notar   quão   profundamente
aquilo perturbava o polido vigário. O trecho dizia:
      "Os    sais  essenciais  dos  animais    podem    ser  preparados   e  preservados    de  modo    que  um    homem
engenhoso pode ter toda a Arca de Noé em seu próprio escritório e fazer surgir a bela forma de um animal
das cinzas deste a seu bel-prazer; e, pelo mesmo método, dos sais essenciais do pó humano, sem criminosa
necromancia, um filósofo pode fazer reviver a forma de qualquer ancestral falecido das cinzas em que seu
corpo se tomou".
      Era,   contudo,     perto   das   docas,    ao  longo    da   parte   meridional     de  Town     Street,   que   se
murmuravam as piores coisas a respeito de Joseph Curwen. Os marujos são gente supersticiosa e os
calejados   lobos-do-mar   que   constituíam   a   tripulação   das   inúmeras   corvetas   que   traficavam   com
rum, escravos e melado, dos esbeltos navios corsários e dos grandes brigues dos Browns, Crawfords
e Tillinghasts, todos faziam sinais estranhos e furtivos de esconjuro quando viam a figura magra e
enganadoramente jovem, com os cabelos amarelecidos, ligeiramente curva, entrando nos armazéns
Curwen em Doubloon Street ou conversando com capitães e comissários de bordo sobre os longos
molhes aos quais atracavam incessantemente os navios de Curwen. Os próprios capitães e caixeiros
de   Curwen   o   odiavam   e   temiam   e   todos   os   seus   marinheiros   eram   mestiços,   um   rebotalho   da
Martinica,   Santo   Eustáquio,   Havana   ou   Port   Royal.   De   certo   modo,   era   a   freqüência   com  a   qual
esses marujos eram substituídos que inspirava o aspecto mais concreto e mais agudo do medo que o
velho suscitava. Ocorria que uma tripulação tinha licença para ir à cidade e alguns de seus membros
eram encarregados de levar alguma encomenda; terminada a licença, quando a tripulação voltava a
se   reunir,   quase   certamente   um   ou   outro   homem  estaria   faltando.   Muitos   não   podiam   deixar   de
observar   que   diversas   das   encomendas   diziam   respeito   à   fazenda   de   Pawtuxet   Road   e   que   eram
poucos   os   marinheiros   que   haviam   sido   vistos   voltar   daquele   local.   Assim,   com   o   tempo,   ficou
extremamente difícil para Curwen manter aquela malta estranhamente sortida. Quase sempre muitos
desertavam   tão   logo   ouviam   os   boatos   nos   molhes   de   Providence   e   sua   substituição   nas   índias
Ocidentais tornou-se um problema cada vez maior para o comerciante.
      Em     1760,   Joseph    Curwen      era  praticamente      um  proscrito,    suspeito   de    vagos    horrores    e
demoníacas   alianças   que   pareciam   mais   ameaçadoras   pelo   fato   de   não   poderem   ser   definidas,
compreendidas ou mesmo comprovadas. A última gota foi talvez o caso dos soldados desaparecidos
em   1758,   pois   em   março   e   abril   daquele   ano   dois   regimentos   reais   a   caminho   da   Nova   França
aquartelaram-se   em   Providence   e   inexplicavelmente   registrou-se   um   número   de   deserções   muito
superior   à   média.   Os   boatos   insistiam   na   freqüência   com   a   qual   Curwen   costumava   ser   visto
conversando com os estrangeiros de casaca vermelha; como vários deles começaram a desaparecer,
as   pessoas   pensaram   em   episódios   semelhantes  ocorridos   com   seus   próprios   marujos.   Ninguém
pode dizer o que teria acontecido se os regimentos não tivessem recebido ordem de prosseguir.
      Enquanto isso, os negócios do comerciante prosperavam em terra. Ele praticamente detinha o
monopólio do comércio da cidade em salitre, pimenta preta e canela, e ultrapassava qualquer outra
empresa   de   navegação,   com   exceção   dos   Browns,  na   importação   de   produtos   de   latão,   índigo,
algodão, lã, sal, cordas, ferro, papel e artigos ingleses de todo gênero. Comerciantes como James
Green,      no   estabelecimento       com    a   tabuleta    do  Elefante      em    Cheapside,      os   Russells,    do
estabelecimento   Águia   Dourada,   do   outro   lado  da   Great   Bridge,   ou   Clark   e   Nightingale,   de   A
Frigideira   e   o   Peixe,   perto   da   Nova   Casa   de   Café,   dependiam   quase   totalmente   dele   para   seus
estoques; e seus negócios com os destiladores locais, os fabricantes de laticínios, os criadores de
cavalos Narragansett e os fabricantes de velas de Newport tomavam-no um dos mais importantes
exportadores da Colônia.
      Embora   fosse   posto   no   ostracismo,   não   lhe   faltava   certo   espírito   cívico.   Quando   a   Colony
House foi destruída por um incêndio, ele contribuiu generosamente para as loterias graças às quais a
nova casa de tijolos, que ainda existe na antiga Main Street, pôde ser construída em 1761. Naquele
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mesmo ano, ele contribuiu ainda para a reconstrução da Great Bridge depois do furacão de outubro.
Adquiriu muitos livros para a biblioteca pública para substituir os que haviam sido consumidos no
incêndio da Colony House e fez vultosa contribuição para a loteria que permitiu pavimentar com
grandes pedras redondas e uma calçada central ou "passeio" a enlameada Market Parade e a Town
Street, cheias de sulcos profundos. Por volta dessa época, também, construiu a nova casa, simples
porém      excelente,    cujo   portão   constitui   uma    obra-prima      de  entalhes    em   madeira.     Quando     os
partidários   de   Whitefield   romperam   com   a   igreja   do   doutor   Cotton,   sobre   a   colina,   em   1743,   e
fundaram a igreja Deacon Snow, do outro lado da Great Bridge, Curwen fora com eles, embora seu
zelo   e   freqüência   logo   diminuíssem.   Agora,   entretanto,   mais   uma  vez   dava   mostras   de   devoção,
como para dissipar as sombras que o haviam atirado no isolamento e que em breve, se não fossem
prontamente detidas, começariam a arruinar o sucesso dos seus negócios.
      A    vista  desse   homem   estranho,   pálido,      que  no   aspecto   mal   tocava   a   meia-idade,   embora
certamente não contasse menos de um século, tentando finalmente emergir de uma nuvem de medo
e   abominação,   demasiado   vaga   para   ser   definida   ou   analisada,   era   uma   coisa   ao   mesmo   tempo
patética, dramática e desprezível. Tal é, entretanto, o poder da riqueza e dos gestos exteriores que,
na   verdade,   a   visível   aversão   a   seu   respeito  diminuiu   um   pouco;   principalmente   depois   que   os
repentinos      desaparecimentos       dos   seus   marinheiros     cessaram     abruptamente.      Do    mesmo     modo,
começou   talvez   a   usar   de   extremo   cuidado   e   sigilo   em   suas   expedições   aos   cemitérios,   porque
nunca   mais   foi   apanhado   nessas   peregrinações,   ao   passo   que   diminuíam   proporcionalmente   os
comentários   sobre   os   sons   e   manobras   misteriosas   em   sua   fazenda   de   Pawtuxet.   O   volume   do
consumo de alimentos e a substituição do gado continuaram anormalmente elevados; mas jamais
até   os   tempos    modernos,     quando     Charles    Ward    examinou      uma   pilha   de  contas    e  f  aturas  na
Biblioteca Shepley, ocorreu a alguém — salvo talvez a um jovem angustiado — fazer tenebrosas
comparações entre o grande número de negros da Guiné que ele importara até 1766 e a quantidade
perturbadoramente         pequena     daqueles     para   os  quais    ele   podia    apresentar    notas    de  venda     a
comerciantes       de  escravos     da  Great   Bridge   ou    aos  plantadores     de  Narragansett      Country.    Com
certeza,   a   astúcia   e   engenhosidade   desse   detestado   personagem   eram   misteriosamente   profundas
quando se convenceu da necessidade de utilizá-las.
      Mas é claro que o efeito dessa tardia regeneração foi necessariamente leve. Curwen continuava
a ser evitado e detestado, como, em realidade, o simples fato de mostrar constantemente um aspecto
jovem numa idade avançada bastaria para justificar; e ele percebia que seu sucesso provavelmente
acabaria sendo prejudicado por isso. Seus estudos e experiências elaboradas, quaisquer que fossem,
exigiam      aparentemente      uma    vultosa    renda    para   serem    realizados;    e  como    uma    mudança      de
ambiente o privaria da posição que alcançara com seus negócios, não seria vantajoso para ele, a essa
altura,   começar   de   novo   num   lugar   diferente.   O   bom   senso   exigia   que   ele   melhorasse   de   algum
modo   suas   relações   com   os   cidadãos   de   Providence,   de   modo   que   sua   presença   deixasse   de   ser
motivo de conversas a meia voz, de evidentes desculpas de serviços a fazer em outro lugar e de uma
atmosfera geral de embaraço e mal-estar. Seus empregados, reduzidos agora a um rebotalho inepto
e   indigente   que   ninguém  mais   contrataria,   davam-lhe   muitas   preocupações; e só conservava seus
capitães   e   imediatos   pela   astúcia,   tentando   ganhar   algum   tipo   de   ascendência   sobre   eles   —   uma
hipoteca, uma nota promissória ou uma informação muito útil para seu bem-estar. Em muitos casos,
os autores dos diários registraram com certo espanto, Curwen mostrava quase o poder de um bruxo
desenterrando segredos de família para utilizá-los de modo questionável. Nos últimos cinco anos de
sua vida, parecia que só uma conversa direta com os defuntos poderia fornecer as informações que
ele exibia com tanta facilidade.
      Mais ou menos nessa época, o astuto estudioso encontrou um último desesperado expediente
para reconquistar sua posição na comunidade. Até então um completo ermitão, resolveu contrair um
vantajoso      matrimônio,     tomando     como     esposa    alguma   dama     cuja   posição    indiscutível    tornasse
impossível   qualquer   forma   de   ostracismo   contra   seu   lar.   Talvez   ele   também   tivesse   razões   mais
profundas para desejar uma aliança, razões tão alheias à esfera cósmica conhecida que somente os
papéis   encontrados   um   século   e   meio   após   sua   morte   alguém   suspeitaria   delas;   mas   jamais   será
possível   saber   algo   seguro   a   esse   respeito.   Naturalmente,   ele   tinha   consciência   do   horror   e   da
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indignação   com   os   quais   um   cortejamento   de   sua   parte   seria   recebido,   portanto,   procurou   uma
candidata provável sobre cujos pais ele pudesse exercer uma pressão adequada. Descobriu que não
era fácil encontrar tais candidatas, pois ele tinha exigências muito particulares em matéria de beleza,
habilidades e posição social. Finalmente, sua pesquisa se restringiu à casa de um dos seus melhores
e   antigos   capitães,   um   viúvo   de berço   e   reputação   sem   mácula   chamado   Dutie   Tillinghast,   cuja
única filha Eliza parecia dotada de todas as virtudes concebíveis, salvo a perspectiva de se tomar
uma   herdeira.   O   capitão  Tillinghast   era   totalmente   dominado   por   Curwen   e   consentiu,   após   uma
tempestuosa entrevista em sua casa ornada por uma cúpula na colina de Power's Lane, em sancionar
a aliança blasfema.
      Eliza Tillinghast tinha naquela época dezoito anos de idade e havia sido educada do modo mais
digno que as condições limitadas de seu pai permitiam. Freqüentada a escola Stephen Jackson, em
frente    à  Court    House    Parade,    e  havia   sido  diligentemente      instruída   pela   mãe,   antes   que   esta
morresse de varíola, em 1757, em todas as artes e refinamentos da vida doméstica. Um mostruário
de seus trabalhos, realizado em 1753, aos nove anos de idade, ainda pode ser visto nos salões da
Sociedade Histórica de Rhode Island. Após a morte da mãe, ela passara a dirigir a casa, auxiliada
apenas por uma velha negra. A discussão com o pai sobre a proposta de casamento de Curwen deve
ter   sido   bastante   penosa,   mas   não   existe   qualquer   registro   dela.   Certo   é   que   seu   noivado   com   o
jovem Ezra Weeden, imediato do paquete  Enterprise  de Crawford, foi devidamente desfeito e sua
união com Joseph Curwen realizada no dia 7 de março de 1763, na Igreja Batista, na presença de
uma das mais distintas assembléias de que a cidade podia se vangloriar; a cerimônia foi celebrada
pelo   mais   jovem   dos   Winsons,   Samuel.   O  Gazette mencionou   o   evento   muito   brevemente   e   na
maioria   das   cópias   remanescentes   a   nota   em   questão   parece   ter   sido   cortada   ou   rasgada.   Ward
descobriu uma única cópia intacta, após muitas buscas, nos arquivos de um famoso colecionador
particular, observando com deleite a total inexpressão da polida linguagem:
      "Na tarde da última segunda-feira, o senhor Joseph Curwen, dessa Cidade, Comerciante, casou-se com
a senhorita Eliza Tillinghast, filha do capitão Dutie   Tillinghast, uma jovem que soma real   merecimento   a
uma bela Pessoa, para honrar o Estado conjugal e perpetuar sua Felicidade".
      A correspondência Durfee-Arnold, descoberta por Charles Ward pouco depois de sua primeira
suposta crise de loucura na coleção particular de Melville F. Peters, de George Street, referente a
este   período   e   a   outro   um   pouco  anterior,   lança   viva   luz   sobre  o   ultraje   perpetrado   contra   o
sentimento público por essa união disparatada. A influência social dos Tillinghasts, entretanto, não
podia ser negada; e mais uma vez Joseph Curwen viu sua casa freqüentada por pessoas que de outra
forma ele jamais poderia induzir a transpor-lhe os umbrais. Jamais, porém, ele foi completamente
aceito,    e  sua   esposa    sofria   socialmente     pela   forçada    união;   mas,    em   todo   caso,   reduzira-se
significativamente a possibilidade de maior ostracismo. No tratamento para com a esposa o estranho
noivo   maravilhava   a   ela   e   à   comunidade   mostrando   uma   delicadeza   e   consideração   extremas.   A
nova casa em Olney Court agora estava livre de manifestações perturbadoras e embora Curwen se
ausentasse   muitas   vezes   para   ir  à   fazenda   Pawtuxet,   que   sua   esposa   jamais   visitou,   parecia   um
cidadão normal mais do que em qualquer outro momento de seus longos anos de residência. Apenas
uma   pessoa   conservava   uma   aberta   inimizade   com  ele,   o   jovem  oficial   da  marinha   cujo   noivado
com     Eliza   Tillinghast    havia   sido   tão  abruptamente   rompido.        Ezra   Weeden     jurara   vingança     e,
embora de temperamento em geral pacífico e calmo, tinha agora um propósito pertinaz, inspirado
pelo ódio, que não pressagiava nada de bom para o marido e usurpador.
      No dia 7 de maio de 1765 nasceu Ann, a única filha de Curwen, e foi batizada pelo reverendo
John Graves da King's Church, da qual marido e mulher haviam-se tomado membros-pouco depois
do    casamento     a  fim   de   chegar   a  um    compromisso      entre    suas   respectivas    filiações   às  igrejas
Congregacional e Batista. O registro desse nascimento, bem como o do casamento dois anos antes,
foi apagado da maioria das cópias da igreja e dos anais da cidade onde deveria constar, e Charles
Ward o localizou com a maior dificuldade depois que a descoberta da mudança do nome da viúva
lhe   revelara   seu   próprio   parentesco,   fazendo   despontar   o   interesse   febril   que   culminara   com   sua
loucura.     Em    realidade,    a  anotação     do   nascimento      foi  encontrada,     curiosamente,      através    da
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correspondência   com   os   herdeiros   do   legalista   doutor   Graves,   que   levara  consigo   uma   cópia   dos
registros quando deixara seu cargo de pastor ao eclodir a Revolução. Ward tentara essa fonte porque
sabia que sua trisavó, Ann Tillinghast Potter, havia pertencido à Igreja Episcopal.
      Pouco depois do nascimento da filha, acontecimento ao que parece por ele recebido com um
entusiasmo   enormemente   contrastante   com   sua   frieza   habitual,   Curwen   resolveu   posar   para   um
retrato.   Este   foi   pintado   por   um   escocês   de  grande   talento   chamado   Cosmo   Alexander,   então
residente em Newport e posteriormente famoso por ter sido o primeiro professor de Gilbert Stuart.
O retrato teria sido executado sobre um painel da parede da biblioteca da casa de Olney Court, mas
nenhum   dos   dois   velhos   diários   que   o   mencionam   fornecia   qualquer   indicação   de   seu   paradeiro
final.   Nesse   período,   o   excêntrico   estudioso   mostrava   sinais   de   abstração   incomum   e   passava   a
maior parte do tempo na fazenda de Pawtuxet Road. Segundo diziam, ele parecia viver num estado
de excitação ou ansiedade reprimidas, como se aguardasse algo fenomenal ou estivesse prestes a
fazer    alguma    estranha    descoberta.     A  química     ou a   alquimia    pareciam     desempenhar       um   papel
significativo a esse respeito, porque levou da casa para a fazenda o maior número de livros sobre o
assunto.
      Sua afetação de interesse cívico não diminuiu e ele não perdia a oportunidade de ajudar líderes
como Stephen Hopkins, Joseph Brown e Benjamin West em seus esforços visando elevar o nível
cultural   da   cidade,   na   época   bastante   inferior   ao   de   Newport   no   patrocínio   das   belas-artes.   Ele
ajudara   Daniel   Jenckes   a   abrir  sua   livraria   em   1763,   tornando-se  a   partir   de   então   seu   melhor
cliente. Estendeu sua ajuda também à Gazette, que lutava com dificuldades e saía todas as quartas-
feiras   na   oficina   sob   a   tabuleta   da   Cabeça   de   Shakespeare.   No   campo   da   política,   ele   apoiava
fervorosamente        o  governador     Hopkins     contra   o  partido   de   Ward,    cuja   maior   força   estava   em
Newport, e seu discurso realmente eloqüente em Hacher's Hall, em 1765, contra o estabelecimento
de North Providence como cidade autônoma com um voto a favor de Ward na Assembléia Geral,
contribuiu mais do que qualquer outra coisa para acabar com o preconceito contra ele próprio. Mas
Erza Weeden, que o mantinha sob uma vigilância cerrada, escarnecia de toda essa atividade exterior
e afiançava que não passava de uma fachada para algum tipo de tráfico inominável com os mais
negros abismos do Tártaro. O jovem, determinado a se vingar começou um estudo sistemático do
homem e de seus atos sempre que se encontrava no porto; passava horas à noite pêlos cais com um
pequeno barco a remos de prontidão quando via luzes nos armazéns de Curwen e seguia a pequena
embarcação que — vez por outra — se afastava ou chegava furtivamente na baía. Também vigiava
tanto quanto possível a fazenda Pawtuxet e uma vez foi gravemente mordido pêlos cachorros que o
velho casal de índios soltara em cima dele.
                                                               2
      Em 1766 verificou-se a mudança final em Joseph Curwen. Ocorreu repentinamente e obteve
ampla notoriedade entre os curiosos cidadãos, pois o ar de suspense e expectativa caiu como uma
capa   velha,   dando   imediatamente   o   lugar   a   uma       mal   disfarçada   exaltação   de   perfeito   triunfo.
Curwen   parecia   ter   dificuldades   em   frear   o   impulso   de   fazer   arengas   públicas   sobre   aquilo   que
havia descoberto, aprendido ou feito; mas aparentemente a necessidade de sigilo era maior do que o
desejo     de  compartilhar     seu   regozijo,   pois   jamais   ofereceu    qualquer     explicação.    Foi   após   essa
transição,   ocorrida   ao   que   parece   no   início   de   julho,   que   o   sinistro   sábio   começou   a   espantar   as
pessoas   com   a   posse   de   informações   que   somente  seus   ancestrais,   há   muito   falecidos,   poderiam
fornecer.
      Mas as febris atividades secretas de Curwen não cessaram absolutamente com essa mudança.
Ao   contrário,   tenderam   a   aumentar;   de   modo   que   uma   parte   cada   vez   maior   de   seus   negócios
marítimos   passou   a   ser   gerida   pêlos   capitães   que   agora   prendia   a   si   pêlos   laços   do   medo,   tão
poderosos quanto haviam sido os do temor da bancarrota. Abandonara de todo o tráfico de escravos,
alegando que seus lucros caíam continuamente. Passava todos os momentos disponíveis na fazenda
Pawtuxet; entretanto, de vez em quando surgiam boatos sobre sua presença em lugares que, embora
de    fato  não   estivessem     próximos     de   cemitérios,   de    modo    tal  localizavam-se      em   relação    aos
                                                            12
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cemitérios   que   as   pessoas   atentas   se   perguntavam   se   os   hábitos   do   velho   comerciante   haviam
realmente      mudado.      Embora     seus   períodos     de  espionagem       fossem     necessariamente       breves    e
intermitentes   por   conta   de   suas   viagens   marítimas,   Ezra   Weeden   conservava   uma   persistência
vingativa   que   a   maioria   das   pessoas   práticas   da   cidade   e   do   campo   não   possuía   e   mantinha   os
negócios de Curwen sob uma vigilância a que jamais haviam sido submetidas antes.
      Muitas     das   curiosas    manobras      dos   barcos    do   estranho     comerciante      eram    consideradas
corriqueiras,     levando     em    conta   os   tempos     conturbados,     quando     todos    os  colonos     pareciam
determinados   a   resistir   às   disposições   da   Lei   do   Açúcar   que   obstaculizavam   um   tráfico   vultoso.
Contrabando e evasão eram a regra na baía de Narragansett e os desembarques noturnos de cargas
ilícitas   eram   constantes   e   notórios.   Mas   Weeden, noite   após   noite,   seguia   as   barcas   ou   pequenas
chalupas que saíam furtivamente dos armazéns de Curwen nas docas de Town Street e logo teve a
certeza de que não eram apenas os navios armados de Sua Majestade que o sinistro covarde estava
ansioso   por   evitar.   Antes   da   mudança   de   1766   esses   barcos   continham   na   maior   parte   negros
acorrentados,   que   eram   transportados   através   da  baía   e   desembarcados  num   ponto   indefinido   da
costa, um pouco ao norte de Pawtuxet; em seguida, eram levados sobre as rochas e pêlos campos
até a fazenda Curwen, onde eram trancafiados num enorme edifício de pedra que tinha apenas altas
e estreitas fendas como janelas. No entanto, depois daquela mudança, todo o programa foi alterado.
A    importação     de   escravos    cessou    imediatamente       e  por   algum    tempo     Curwen     abandonou      as
travessias noturnas. Então, aproximadamente na primavera de 1767, um novo método foi adotado.
Mais uma vez as barcas eram vistas partir das silenciosas e negras docas, e agora desciam pela baía,
chegando   provavelmente   até   Nanquit   Point,   onde   encontravam   estranhos   navios   de   considerável
tamanho e de aparências as mais variadas cuja  carga recebiam. Os marinheiros de Curwen então
desembarcavam essa carga no local costumeiro na costa e a transportavam por terra até a fazenda,
onde era guardada no mesmo misterioso edifício de pedra no qual anteriormente eram colocados os
negros.   A   carga   consistia   quase   exclusivamente   em caixas e caixotes, grande   parte   dos   quais   era
oblonga e pesada e se assemelhava de modo perturbador a caixões de defunto.
      Weeden sempre vigiava a fazenda com incansável assiduidade, visitando-a todas as noites por
longos períodos e raramente deixava passar uma semana sem fazer uma visita, salvo quando a seve
que cobria o chão poderia revelar suas pegadas. Mesmo então ele chegava o mais perto possível
pela   estrada   ou   caminhando   sobre  o   gelo   do   rio   próximo,   para  observar   as   marcas   que   outros
poderiam   ter   deixado.   Como   seus   períodos   de   vigilância   eram   interrompidos   pelas   obrigações
náuticas, ele contratou um companheiro de taberna, chamado Eleazer Smith, para que continuasse
vigiando   durante   sua   ausência;   os  dois   poderiam   espalhar   boatos   fantásticos.   Só   não   faziam   isto
porque   sabiam   que   essa   publicidade   chamaria   a   atenção   de   quem  vigiavam,   tornando   impossível
qualquer     progresso.     Ao   contrário,   pretendiam      saber   algo  definitivo    antes   de  agir.  O   que   eles
descobriram deve ter sido realmente assustador, pois Charles Ward comentou muitas vezes com os
pais seu pesar por Weeden, no fim, ter queimado seus apontamentos. Tudo o que se pode dizer a
respeito de suas descobertas é o que Eleazer Smith anotou apressadamente em um diário não muito
coerente e que outros, em diários e cartas, repetiram timidamente a partir das declarações que os
dois no fim fizeram, segundo as quais a fazenda não passava da fachada de uma vasta e revoltante
ameaça,   de   um   alcance   e   profundidade   demasiado   grandes   e   tangíveis   para   uma   compreensão
menos que nebulosa.
      Conclui-se que Weeden e Smith logo se convenceram de que debaixo da fazenda existia uma
imensa   rede   de   túneis   e   catacumbas,   habitados   por  um   número   bastante   significativo   de   pessoas
além do velho índio e sua mulher. A casa era uma antiga ruína dos meados do século XVII, com o
teto pontudo, uma enorme chaminé e janelas de rótula, sendo que o laboratório se localizava numa
ala acrescentada na face norte, cujo telhado chegava quase até o chão . Era um edifício isolado, no
entanto, a julgar pelas diferentes vozes ouvidas nas horas mais estranhas em seu interior, e devia ser
acessível   por   meio   de   passagens   subterrâneas   secretas.   Essas   vozes,   antes   de   1766,   eram   meros
resmungos       e  sussurros    de   negros,    gritos   frenéticos    juntamente     com    curiosas    declamações      e
invocações.   Após   esta   data,   porém,   alcançaram   uma   gama   terrível   e   muito   singular,   percorrendo
toda   a   escala   desde   sussurros   de   obtusa   aquiescência   até   explosões   de   fúria   selvagem,   ruídos   de
                                                            13
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conversas   e   choramingos   de   súplica,   arquejamentos   ansiosos   e   gritos   de   protesto.   Pareciam   ser
línguas     diferentes,   todas    conhecidas     de   Curwen,    cujos    ásperos    acentos    eram    frequentemente
ouvidos num tom de resposta, reprovação ou ameaça.
      Às   vezes   parecia   que   várias   pessoas   deviam   estar   na   casa:   Curwen,   alguns   prisioneiros   e   os
seus guardas. Havia vozes de uma natureza tal que nem Weeden nem Smith jamais haviam ouvido
antes não obstante seus vastos conhecimentos de portos estrangeiros e muitas que aparentemente
poderiam   atribuir   a   essa   ou   aquela   nacionalidade.  A   natureza   das   conversas   parecia   sempre   unta
espécie   de   interrogatório,   como   se   Curwen   estivesse   arrancando   algum   tipo   de   informação   de
prisioneiros aterrorizados ou rebeldes.
      Weeden anotara em seu caderno muitos trechos de conversas ouvidas furtivamente, porque o
inglês,   o   francês   e   o   espanhol,   línguas   que   ele   conhecia,   eram   frequentemente   empregados;   mas
nenhum   se   salvou.   No   entanto,   ele  dizia   que,   à   parte   alguns   diálogos  macabros   referentes   aos
antigos negócios das famílias de Providence, a maioria das perguntas e respostas que ele conseguiu
entender eram históricas ou científicas, às vezes relacionadas a lugares épocas muito remotos. Certa
ocasião, por exemplo, um personagem ora enfurecido, ora calado, foi interrogado em francês sobre
o massacre do Príncipe Negro em Limoges, em  1370, como se houvesse alguma razão oculta que
ele devesse conhecer. Curwen perguntou ao prisioneiro — se é que se tratava de um prisioneiro —
se a ordem de matar havia sido dada por ter sido encontrada a Marca do Bode sobre o altar na antiga
cripta   romana   debaixo   da   catedral,   ou   se   o  Homem   Negro   da   Congregação   das   Bruxas   da   Alta
Viena havia falado as Três Palavras. Não conseguindo obter respostas, o inquisidor aparentemente
recorrera   a   meios   extremos,   pois   se   ouviu   um   grito   agudo   e   terrível   seguido   pelo   silêncio,   por
murmúrios e um baque surdo.
      Nenhum desses colóquios jamais foi testemunhado por alguém, porque as janelas eram sempre
protegidas      por   pesadas     cortinas.   Certa    vez,    contudo,    durante     uma    conversa     numa     língua
desconhecida,       foi   vista   uma    sombra     sobre    a  cortina    que   assustou     extremamente       Weeden,
lembrando-lhe uma marionete vista numa representação no outono de 1764, em Hatcher's Hall. Um
sujeito de Germantown, Pensilvânia, montara um engenhoso espetáculo mecânico anunciado como
"Vista da Famosa Cidade de Jerusalém, na qual são representados Jerusalém, o Templo de Salomão,
seu Trono Real, as Torres famosas e ás Colinas,  bem  como   os   padecimentos   do   Nosso   Salvador
desde o Jardim de Getsemani até a Cruz sobre o Monte Gólgota; Peça Artística que os curiosos não
podem deixar de ver". Nessa ocasião o ouvinte, que se aproximara sorrateiramente à janela da sala
da frente de onde saía a conversa, teve um sobressalto que acordou o velho casal de índios, os quais
soltaram os cachorros em cima dele. Depois disso não se ouviram mais conversas na casa e Weeden
e Smith concluíram que Curwen havia transferido seu campo de ação para locais subterrâneos.
      Que estes existissem de verdade, parecia bastante evidente por muitos indícios. Gritos fracos e
gemidos   saíam   indiscutivelmente   vez   por   outra   do   que   parecia   ser   solo   compacto   em   lugares
distantes de qualquer construção; enquanto se escondia no matagal na ribanceira do rio, atrás, onde
o morro despencava abruptamente até o vale do Pawtuxet, encontrou uma porta de carvalho com
umbrais e verga de pesada alvenaria, obviamente a entrada de uma caverna no interior do morro.
Quando   ou   como   essas   catacumbas   poderiam   ter   sido  construídas,   Weeden   era   incapaz   de   dizer;
mas frequentemente salientou como seria fácil para turmas de trabalhadores chegar sem ser vistas
até   o   local   pelo   rio.   Joseph   Curwen,   realmente,   usava   das   maneiras   mais   variadas   seus   marujos
mestiços. Durante as pesadas chuvas da primavera de 1769, os dois espiões vigiaram atentamente a
íngreme margem do rio para ver se alguns dos segredos subterrâneos seriam trazidos à luz e foram
recompensados pelo aparecimento de uma profusão de ossos humanos e animais em pontos em que
profundas   valas   haviam   sido   escavadas   na   ribanceira.   Naturalmente,   poderia   haver   explicações
plausíveis   para   estas   coisas   na   área   de   uma   fazenda   de   gado   e   numa   localidade   em   que   eram
comuns antigos cemitérios índios, mas Weeden e Smith tiraram suas próprias conclusões.
     Foi   em   janeiro   de   1770,   enquanto   Weeden   e   Smith   ainda   estavam   debatendo   em   vão   o   que
pensar ou fazer a respeito de todo o desconcertante negócio, que ocorrei: o incidente do Fortaleza.
Exasperada pelo incêndio da corveta Liberty, do serviço aduaneiro, em Newport, no verão anterior,
a   frota   da   aduana,   sob   o   comando   do   almirante   Wallace,   reforçara   a   vigilância   das   embarcações
                                                            14
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estrangeiras; e nessa ocasião a escuna armada Cygnet, de Sua Majestade, comandada pelo capitão
Harry   Leshe,   capturou,   uma   manhã   muito   cedo,   após   uma   breve   perseguição,   a   chata   espanhola
Fortaleza,  de   Barcelona,   comandada   pelo   capitão   Manuel   Arruda,   procedente,   de   acordo   com   o
diário   de   bordo,   do   Grande   Cairo,   Egito,   com   destino   a   Providence.   Vasculhado   sob   suspeita   de
contrabando, o navio revelou o fato espantoso de que sua carga consistia exclusivamente de múmias
egípcias, consignadas a "Marujo A.B.C.", que viria retirar suas mercadorias numa barca ao largo de
Nanquit   Point   e   cuja   identidade   o  capitão   Arruda   estava   obrigado,   por   razões   de   honra,   a   não
revelar. O Tribunal do Vice-Almirantado de Newport, sem saber o que fazer, pois se de um lado a
natureza   da   carga   não   poderia   ser   considerada   contrabando,   do   outro,   o   sigilo   da   mercadoria   era
ilegal,   adotou   uma   solução   de   compromisso   por   recomendação   do   coletor   Robinson,   liberando   o
navio     mas   proibindo-o     de   ancorar    em   qualquer    porto    nas   águas   de   Rhode     Island.  Surgiram
posteriormente   boatos   de   que   teria   sido   visto   no   porto   de   Boston,   embora   nunca   tivesse   entrado
abertamente no porto bostoniano.
      Este incidente extraordinário não podia deixar de ser muito comentado em Providence e foram
poucos   os   que   duvidaram   da   existência   de   alguma   relação   entre   a  carga   de   múmias   e   o   sinistro
Joseph Curwen. Como seus estudos exóticos e suas curiosas importações de natureza química eram
de   conhecimento   público   e   sua   predileção   por   cemitérios   uma   suspeita   geral,   não   era   necessária
muita imaginação para atribuir-lhe os esquisitos itens importados que evidentemente não poderiam
se   destinar   a   nenhuma   outra   pessoa   da   cidade.   Como   se   estivesse   consciente   dessa   convicção
natural, Curwen tomou o cuidado de falar casualmente, em várias ocasiões, do valor químico dos
bálsamos   encontrados   nas   múmias,   pensando   talvez   que   assim   poderia   fazer   com   que   a   coisa
parecesse   menos   anormal,   sem   contudo   admitir   sua   participação.   Weeden   e   Smith,   é  claro,   não
tinham qualquer dúvida quanto à importância do fato, e aventavam as mais tresloucadas teorias a
respeito de Curwen e de suas monstruosas atividades.
     Na primavera seguinte, como na do ano anterior, caíram fortes chuvas e os espiões vasculharam
cuidadosamente a margem do rio atrás da fazenda de Curwen. Grandes trechos foram levados pelas
águas e uma certa quantidade de ossos ficou descoberta, mas nem sombra de qualquer câmara ou
cova subterrânea. No entanto, alguns rumores se espalharam na aldeia de Pawtuxet, cerca de uma
milha rio abaixo, onde o rio despenca por quedas d  água sobre um terraço de pedra até chegar à
plácida enseada protegida. Lá, onde velhos e esquisitos sobrados subiam morro acima desde a ponte
rústica   e   barcos   de   pesca   ficavam   ancorados   em   seus   cais   sonolentos,   correram   vagos   boatos   de
coisas que flutuavam rio abaixo e podiam ser vistas por um instante ao passar pela queda d'agua. E
verdade que o Pawtuxet é um rio extenso que vai serpeando por muitas regiões povoadas onde os
cemitérios   são   numerosos,  e  que   as   chuvas   da   primavera   haviam   sido   muito   pesadas,   mas   os
pescadores perto da ponte não gostaram do olhar desvairado de uma das coisas ao precipitar na água
tranqüila lá em baixo, ou do modo como outra gritou, embora seu estado fosse bastante diferente
daquele   dos   objetos   que   normalmente   gritam.   Esse   boato   fez   Smith   correr   —   pois   Weeden   se
encontrava no mar naquele momento — para a margem do rio atrás da fazenda, onde seguramente
existiriam os sinais de uma enorme caverna. No entanto, não havia indício algum de uma passagem
para o interior da margem escarpada, pois a minúscula avalanche havia deixado para trás uma sólida
parede de terra misturada com os arbustos do topo. Smith tentou até fazer uma escavação a título
experimental,   mas   foi   dissuadido   pelo   insucesso  —   ou   talvez   pelo   temor   do   possível   sucesso.   É
interessante     especular     sobre   aquilo    que   o   persistente    e  vingativo    Weeden      teria  feito   se  se
encontrasse em terra na ocasião.
                                                               3
     No outono de 1770, Weeden decidiu que era chegado o momento de falar aos outros sobre suas
descobertas,      pois   ele  tinha   uma    grande    quantidade     de   fatos   para   relacionar    e  uma    segunda
testemunha ocular para refutar a possível acusação de que o ciúme e o desejo de vingança haviam
estimulado       sua   imaginação.      Como     seu    primeiro    confidente     ele   escolheu     o   capitão   James
Mathewson,        do  Enterprise,    que    de  um    lado   o  conhecia     o  bastante   para   não   duvidar    de   sua
                                                            15
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veracidade, e do outro era suficientemente influente na cidade para ser ouvido, por sua vez, com
respeito. O colóquio realizou-se num quarto em cima da Taberna  de Sabin, perto das docas, com
Smith     presente    para   corroborar     praticamente     todas   as  afirmações.     Percebia-se     que  o   capitão
Mathewson estava terrivelmente  impressionado. Como quase todo mundo na cidade, ele também
alimentava suas próprias obscuras suspeitas a respeito de Joseph Curwen; por isso bastou apenas
essa   confirmação   e   um   número   maior   de   dados  para   convencê-lo   completamente.   No   final   da
conferência, ele tinha um ar muito grave e recomendou rigoroso silêncio aos dois jovens. Disse que
transmitiria   a   informação   separadamente   a   uns   dez   dos  cidadãos   mais   instruídos   e   destacados   de
Providence, indagando suas opiniões e seguindo qualquer conselho que eles pudessem oferecer. O
sigilo   provavelmente   seria   aconselhável   em   todo   caso,   pois   não   se   tratava  de   um   assunto   que   as
autoridades policiais ou os milicianos da cidade pudessem resolver, e, acima de tudo, a multidão
excitável deveria ser mantida na ignorância, para que nesses tempos, por si já conturbados, não se
repetisse o pânico assustador ocorrido em Salem, menos de meio século antes, que trouxera Curwen
para Providence.
      As   pessoas   que   convinha   informar   da   situação  seriam,   achava   ele,   o   doutor   Benjamin   West,
cujo trabalho sobre a tardia morte de Vênus revelara um estudioso e agudo pensador; o reverendo
James Manning, diretor do College, que acabara de mudar-se de Warren e estava temporariamente
hospedado no novo edifício da escola em King Street, aguardando a conclusão de sua construção
sobre   a   colina   acima   de   Presbyterian   Lane;   o   ex-governador   Stephen   Hopkins,   que   havia   sido
membro da Sociedade Filosófica de Newport e era um homem do mais amplo discernimento; John
Cárter,     editor   do   Gazette;     os    quatro    irmãos    Brown,      John,    Joseph,    Nicholas     e   Moses,
reconhecidamente os magnatas locais, sendo que Joseph era um cientista amador de algum talento;
o   velho   doutor   Jabez   Bowen,   cuja   erudição   era   considerável   e   tinha   bastante   conhecimento   em
primeira   mão   das   estranhas   aquisições   de   Curwen;   e   o   capitão   Abraham   Whipple,   um   pirata   de
audácia     e  energia    fenomenais,     com    quem     se  poderia    contar   para   chefiar   qualquer     operação
necessária. Caso se mostrassem favoráveis, esses homens poderiam se unir para uma deliberação
conjunta e a eles caberia a responsabilidade de decidir se deveriam ou não informar o governador da
Colônia, Joseph Wanton, de Newport, antes de agir.
      A missão do capitão Mathewson teve um sucesso superior às suas expectativas pois embora
uma ou duas das pessoas de confiança a quem fez suas revelações se mostrassem céticas devido ao
possível aspecto fantástico da história de Weeden, não houve nenhuma que não achasse necessário
empreender uma ação secreta e coordenada. Estava claro que Curwen constituía uma vaga ameaça
potencial para o bem-estar da cidade e da Colônia e devia ser eliminado a todo custo. No final de
dezembro   de   1770,   um   grupo   de   eminentes   cidadãos   reuniu-se   na   casa   de   Stephen   Hopkins   e
debateu   várias   medidas   a   serem  tomadas.   As   anotações  de   Weeden,   que   ele   entregara   ao  capitão
Mathewson,        foram    lidas  cuidadosamente        e  ele  e   Smith    foram    convidados     a   apresentar    seu
testemunho   em   certos   detalhes.   Algo   muito   próximo   do   medo   apoderou-se   de   toda   a   assembléia
antes que a reunião se concluísse, embora ao medo se misturasse uma inflexível determinação que
as   rudes   e   retumbantes   blasfêmias   do   capitão  Whipple   expressavam   do   modo   melhor.   Eles   não
notificariam   o   governador,   porque  parecia   necessária   uma   conduta   mais   do   que   legal.   Com   os
poderes   ocultos   de   alcance   desconhecido   de   que   aparentemente   dispunha,   Curwen   não   era   um
homem       a  quem    se  pudesse    pedir   que   deixasse    a cidade     sem   riscos.  Represálias     inomináveis
poderiam   decorrer   e,   mesmo   que   a   sinistra   criatura   concordasse,   a   mudança   não   iria   além   da
transferência de um problema imundo para outro lugar. Eram tempos em que a ilegalidade imperava
e os homens que há anos escarneciam das forças da alfândega real não recusariam medidas mais
duras se o dever os obrigasse a isso. Curwen deveria ser surpreendido em sua fazenda de Pawtuxet
pela   incursão   de   um   grande   destacamento   de   calejados   piratas   e   lhe   seria   oferecida   uma   chance
decisiva de se explicar. Se ficasse comprovado que ele era louco, divertindo-se com estrepitosas e
imaginárias conversações em vozes diferentes, seria convenientemente internado num asilo. Se algo
mais grave viesse à luz e se de  fato os horrores subterrâneos se revelassem reais, ele e todos que
estavam com ele deveriam perecer. A coisa poderia ser feita sem alarde e mesmo a viúva e seu pai
não precisariam ser informados da maneira como aquilo iria acontecer.
                                                            16
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      Enquanto essas sérias medidas estavam sendo discutidas, ocorreu na cidade um incidente tão
terrível e inexplicável que, por algum tempo, não se comentou outra coisa por milhas e milhas ao
redor. No meio de uma noite enluarada de janeiro, quando espessa camada de neve cobria o chão,
ressoou   sobre   o   rio   e   sobre  a   colina   uma   série   chocante   de   gritos   que   atraiu  às   janelas   muitas
cabeças     sonolentas     e  as  pessoas     perto   de  Weybosset       Point   viram    uma    grande    coisa   branca
mergulhar desvairadamente no espaço em frente à Cabeça do Turco. Ouviu-se um latir de cachorros
na   distância,   que   cessou   assim   que   o   clamor   da  cidade   desperta   se   tornou   audível.   Grupos   de
homens com lanternas e mosquetes precipitaram-se para fora para ver o que acontecia, mas suas
buscas foram infrutíferas. Na manhã seguinte, porém, um corpo musculoso, gigantesco, totalmente
nu, foi encontrado sobre os montões de gelo ao redor dos molhes meridionais da Great Bridge, onde
as Longas Docas se estendiam ao lado da destilaria Abbott, e a identidade desse objeto tomou-se
assunto de infindáveis especulações e murmúrios. Não eram tanto os mais jovens quanto os mais
velhos que murmuravam, pois somente nos patriarcas o rosto rígido cujos olhos horrorizados saíam
das órbitas despertava vagas lembranças. Balançando a cabeça, eles trocavam furtivos sussurros de
espanto e medo; pois naqueles traços enrijecidos e horrendos havia uma semelhança tão assombrosa
que   se   tornava   quase   uma   identidade   total   —   e   essa   identidade   era   com   um   homem   que   havia
morrido uns bons cinqüenta anos antes.
      Ezra Weeden estava presente na descoberta e, lembrando o latir da noite anterior, dirigiu-se por
Weybosset Street, do outro lado de Muddy Dock Bridge, de onde o som viera. Tinha uma curiosa
expectativa      e  não    ficou   surpreso    quando,     chegando     ao   fim   da   zona    habitada,    onde    a  rua
desembocava na Pawtuxet Road, deparou com umas curiosas marcas no chão. O gigante nu havia
sido   perseguido   por   cães   e   muitos   homens   de   botas   e   as   marcas   dos   animais   e   seus   donos   no
caminho      de   volta  se   distinguiam     facilmente.    Eles   haviam    desistido    da  perseguição     ao   chegar
demasiado perto da cidade. Weeden sorriu de modo sinistro e, como se se tratasse de um detalhe
insignificante,   seguiu   as   pegadas   até   o   seu   ponto  de   origem.   Era   a   fazenda   Pawtuxet   de   Joseph
Curwen, como ele sabia muito bem; e teria dado qualquer coisa para que o terreno não estivesse
pisoteado de maneira tão confusa. Por outro lado, não ousou se mostrar tão interessado à plena luz
do dia. O doutor Bowen, que Weeden procurou imediatamente com seu relato, fez uma autópsia do
estranho   cadáver   e   descobriu   peculiaridades   que  o   deixaram   absolutamente   aturdido.   O   aparelho
digestivo do homenzarrão parecia nunca ter sido usado, enquanto toda a sua pele tinha uma textura
áspera   e   frouxa   impossível   de  explicar.   Impressionado   com  aquilo  que   os   velhos   murmuravam  a
respeito da semelhança do cadáver com o ferreiro Daniel Green, falecido há muito tempo, e cujo
bisneto   Aaron   Hoppin   era   comissário   de   bordo   aos   serviços   de   Curwen,   Weeden   fez   algumas
perguntas   aparentemente   casuais   até   descobrir  onde   Green   estava   enterrado.   Naquela   noite,   um
grupo de dez homens visitou o antigo Cemitério Norte, do outro lado de Herrenden's Lane, e abriu
um túmulo. Descobriram que estava vazio, precisamente como esperavam.
      Enquanto      isso,   haviam    sido   feitos   acordos    com   os   funcionários      da diligência     a  fim   de
interceptar a correspondência de Joseph Curwen e, pouco antes do incidente com o corpo nu, foi
encontrada   uma   carta   de   um   tal   Jedediah   Orne,  de   Salem,   que   deixou   os   cooperativos   cidadãos
profundamente preocupados. Trechos da missiva, copiados e conservados nos arquivos particulares
da família onde Charles Ward a encontrou, diziam:
      "Alegro-me que o senhor continue no estudo de Antigos Casos com seu método e não penso que melhor
tenha sido feito na casa do senhor Hutchinson, na vila de Salem. Certamente, nada havia senão o mais vivo
horror no que H. evocou daquilo que só pudemos compreender apenas em parte. O que o senhor enviou não
funcionou, ou porque alguma coisa estava faltando, ou porque as palavras que eu pronunciei ou que o senhor
copiou   não   estavam   certas.   Sozinho   fico   sem   saber. Não   possuo   as   artes   químicas   para   imitar   Borellus   e
confesso que fiquei confuso com o VII Livro do Necronomicon  que o senhor recomenda. Mas gostaria que
observasse o que nos foi dito a respeito de quem chamar, pois o senhor tem conhecimento do que o senhor
Mather escreveu nos Marginalia de ______, e pode julgar quão fielmente a   Horrenda Coisa está relatada.
Recomendo-lhe novamente que não evoque ninguém que não possa mandar de volta; com isso quero dizer,
ninguém que por sua vez possa chamar algo contra o senhor, contra o qual seus mais poderosos artifícios não
seriam de uso algum. Chame os menores para que os maiores não desejem responder e sejam mais poderosos
                                                            17
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do que o senhor. Fiquei assustado quando li que o senhor sabe o que Ben Zaristnatmik tem em sua Caixa de
Ébano, pois estou ciente de quem lhe deve ter contado. E novamente peco-lhe que me escreva como Jedediah
e não como Simon. Nessa comunidade um homem pode não -viver por muito tempo e o senhor conhece meu
Plano, pelo qual voltei como meu Filho. Desejaria que me fizesse conhecer o que o Homem Negro aprendeu
com   Sylvanus     Cocidius    na  cripta  debaixo   do  muro   romano     e  ficaria  agradecido   se  me  emprestasse    o
manuscrito de que o senhor fala."
      Outra     carta  não    assinada    de  Filadélfia    provocou     igual   preocupação,      principalmente       pelo
seguinte trecho:
   "Observarei o que o senhor diz com respeito ao envio das contas unicamente por seus navios, mas não
pode saber ao certo quando deverá esperá-las. Quanto ao assunto de que fala, quero apenas mais uma coisa,
mas desejo ter certeza de que o entendo perfeitamente. O senhor me informa que nenhuma parte deve estar
faltando para que se obtenham os melhores efeitos, mas o senhor deve saber quão difícil é ter certeza. Parece
muito perigoso e uma tarefa muito pesada levar toda a caixa, e na cidade (ou seja, na Igreja de São Pedro,
São Paulo, Santa Maria e na Igreja de Cristo) isto não pode ser feito. Mas sei das imperfeições daquele que
foi retirado em outubro passado e quantos espécimes vivos o senhor foi obrigado a empregar antes de chegar
ao   método   certo   no   ano   de   1766;   portanto,   seguirei  suas   orientações   em   todas   as   questões.   Aguardo   com
impaciência seu brigue e indago todos os dias no cais do senhor Biddle".
      Uma terceira carta suspeita estava escrita num língua desconhecida e inclusive num alfabeto
desconhecido.        No   diário   de  Smith     encontrado     por   Charles    Ward,    uma    única   combinação       de
caracteres várias vezes repetida está copiada desajeitadamente e as autoridades da Brown University
declararam tratar-se do alfabeto amárico ou abissínio, embora não compreendessem uma palavra.
Nenhuma   dessas   missivas   jamais   foi   entregue   a  Curwen,   embora   o   desaparecimento   de   Jedediah
Orne, de Salem, relatado pouco depois, demonstrasse que os homens de Providence haviam tomado
medidas secretas. Também a Sociedade Histórica da Pensilvânia possui uma curiosa carta recebida
pelo    doutor    Shippen     referente   à  presença    de   um   personagem       abominável      em   Filadélfia.    Mas
medidas   mais   decisivas   estavam  no  ar   e   é   nas   reuniões   noturnas   e  secretas   de   calejados   marujos
juramentados   e   velhos   e   fiéis   piratas   nos   armazéns   Brown   que   devemos   procurar   os   principais
frutos    das   revelações    de   Weeden.     Lenta    e  firmemente     foi  se   desenvolvendo       o  plano   de   uma
campanha que não deixaria traço dos funestos mistérios de Joseph Curwen.
      Este,   apesar   de   todas   as   precauções,   aparentemente   sentia   que   havia   algo   no   ar,   pois   agora
podia-se perceber seu olhar inusitadamente preocupado. Sua carruagem era vista a todas as horas
pela cidade e na Pawtuxet Road e ele havia abandonado aos poucos o ar de forçada jovialidade com
o   qual   ultimamente   tentara   combater   o   preconceito   da   cidade.   Os   vizinhos   mais   próximos   à   sua
fazenda,   os   Fenners,   uma   noite   notaram   um   grande   feixe   de   luz   projetar-se   no   céu   de   alguma
abertura do telhado daquele misterioso edifício de pedra de altas janelas excessivamente estreitas;
acontecimento   que   de   imediato   comunicaram  a   John   Brown   em   Providence.   O   senhor   Brown
tornara-se   o   chefe   do   seleto   grupo   resolvido   a  eliminar   Curwen   e   informara   os   Fenners   de   que
estava   prestes   a   ser   tomada   alguma   medida.   Achara   isto   necessário,   visto   ser   impossível   que   a
família não testemunhasse a incursão final e justificou seu procedimento afirmando que Curwen era
um     notório     espião    dos   funcionários      da   alfândega     de   Newport,      contra    a   qual   aberta    ou
clandestinamente todo marujo, negociante e fazendeiro de Providence conspirava. Não se sabe ao
certo se os vizinhos que haviam visto tantas coisas estranhas aceitaram a justificativa; em todo caso,
os Fenners estavam propensos a atribuir todo mal a um homem de hábitos tão curiosos. A eles o
senhor Brown confiou a tarefa de observar a casa da fazenda de Curwen e de relatar regularmente
todo fato que lá ocorresse.
                                                                4
         A   probabilidade   de   que   Curwen   estivesse   em   guarda   e   tentando   coisas   inusitadas,   como
sugeria o estranho feixe de luz, por fim precipitou a ação tão cuidadosamente planejada pelo grupo
de homens de bem. Segundo o diário de Smith, uma companhia de cerca de cem homens encontrou-
                                                             18
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se às dez da noite na sexta-feira, 12 de abril de 1771, na sala grande da Taberna de Thurston, ao
Leão Dourado, em Weybosset Point, do outro lado da ponte. Do grupo de vanguarda composto de
homens   proeminentes,   além   do   líder,   John   Brown,   estavam   presentes   o   doutor   Bowen,   com   sua
valise de instrumentos cirúrgicos, o diretor Manning, sem a grande peruca (a maior das Colônias)
pela qual se distinguia, o governador Hopkins,  envolto em seu manto escuro e acompanhado por
seu irmão Eseh, homem do mar incluído no último momento com a permissão dos restantes, John
Cárter,   o   capitão   Mathewson   e   o   capitão   Whipple,   que   chefiaria   o   grupo   invasor.   Esses   chefes
conferenciaram   separadamente   num   cômodo   de   trás,   depois   do   que   o   capitão   Whipple   dirigiu-se
para a sala grande e, fazendo-os jurar fidelidade, deu  aos marujos reunidos as últimas instruções.
Eleazer Smith ficou com os chefes durante a reunião no aposento posterior, aguardando a chegada
de Ezra Weeden, cuja tarefa consistia em vigiar Curwen e informar a saída de sua carruagem rumo
à fazenda.
         Por   volta   de   dez   e   meia   um   ruído   prolongado   e   surdo   foi   ouvido   sobre   a   Great   Bridge,
seguido por aquele de uma carruagem na rua adiante; àquela hora não havia necessidade de esperar
Weeden para saber que o homem condenado se pusera a caminho para sua última noite de iníquas
bruxarias. Um instante mais tarde, enquanto o ruído da carruagem que se afastava soava fracamente
sobre   Muddy   Dock   Bridge,   Weeden   apareceu   e   os   invasores   se   alinharam   silenciosamente   em
ordem militar na rua, tendo aos ombros seus mosquetes, espingardas de caça ou arpões para a caça
às baleias que traziam consigo. Weeden e Smith estavam com o grupo e do pessoal do conselho
estavam presentes para tomar parte da ação o capitão Whipple, o chefe, o capitão Eseh Hopkins,
John Cárter, o diretor Manning, o capitão Mathewson e o doutor Bowen, juntamente com Moses
Brown,   que   apareceu   às   onze   horas,   embora   estivesse   ausente   da   sessão   preliminar   na   taberna.
Todos      esses   cidadãos    e   sua   centena    de   marujos    iniciaram    a   longa   marcha     sem    delongas,
determinados e um tanto apreensivos ao deixar Muddy Dock atrás de si, subindo pelo suave aclive
de   Broad   Street   em   direção   a   Pawtuxet   Road.   Logo   atrás   da   Igreja   de   Elder   Snow,   alguns   deles
viraram-se para lançar um olhar de despedida a Providence que se espalhava debaixo das estrelas do
início   da   primavera.   Torres   e  frontões   erguiam-se   negros   e   bem   delineados,   e   a   brisa   salobra
soprava gentilmente da enseada ao norte da ponte. Vega subia sobre a grande colina, do outro lado
do rio, onde o contorno das árvores era quebrado pela linha dos telhados do edifício inacabado do
College. Ao pé daquela colina e ao longo das estreitas ruelas que trepavam por seus flancos, a velha
cidade   dormia;   Old   Providence,   em   nome   de   cuja  segurança   e   salvação   moral   uma   blasfema   tão
monstruosa e colossal estava prestes a ser eliminada.
         Uma hora e um quarto mais tarde, os invasores chegaram, conforme havia sido previamente
combinado, à casa da fazenda Fenner, onde ouviram o último relato sobre sua futura vítima. Ele
havia chegado à sua fazenda há mais de meia hora, em seguida a estranha luz apontara para o céu,
mas não havia luzes em nenhuma janela visível. Ultimamente era quase sempre assim. E no mesmo
instante em que essa notícia estava sendo dada, outro grande clarão subiu ao sul e o grupo se deu
conta   de   que   de   fato   se   aproximava   do   cenário   de   terríveis   e   monstruosos   prodígios.   O   capitão
Whipple   então   ordenou   à   tropa     que   se   separasse   em   três   grupos;   um   de   vinte   homens   sob   o
comando de Eleazer Smith para atacar do lado da praia e guardar o local de desembarque contra
possíveis reforços para Curwen, até ser convocado por um mensageiro como recurso extremo; um
segundo de vinte homens, sob o comando do capitão Eseh Hopkins, para descer até o vale do rio
atrás da fazenda de Curwen e derrubar com machados ou pólvora a porta de carvalho da margem
íngreme e elevada; e o terceiro, para cercar a casa e os edifícios adjacentes. Um terço desse grupo
seria   conduzido   pelo   capitão   Mathewson   até   o   misterioso   edifício   de   pedra   com   altas   janelas
estreitas, outro terço seguiria o próprio capitão Whipple até a casa principal da fazenda e o restante
formaria um círculo ao redor de todo o grupo de edifícios até ser chamado por um último sinal de
emergência.
         O grupo do rio derrubaria a porta na encosta do morro ao ouvir soar um único apito, com
ordens   de   aguardar   e   capturar  tudo   o   que   emergisse   das   regiões   subterrâneas.   Ao   soarem   dois
apitos, avançaria pela abertura para fazer frente ao inimigo ou se uniria ao restante do contingente
invasor.   O   grupo   postado   no   edifício   de   pedra   obedeceria,   de   modo   análogo,   a   esses   respectivos
                                                            19
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sinais, forçando a entrada ao primeiro e ao segundo descendo por qualquer passagem que viesse a
ser descoberta no terreno para se unir à escaramuça geral ou local que, esperava-se, ocorreria nas
cavernas. Um terceiro sinal, esse de emergência, de três apitos, convocaria a reserva destacada para
a tarefa de vigilância geral, seus vinte homens  se   dividiriam   em  número  igual   e   penetrariam  nas
profundezas   desconhecidas   tanto   pela   casa   da   fazenda   quanto   pelo   edifício   de   pedra.   O   capitão
Whipple   tinha   a   convicção   absoluta   de   que   existiam   catacumbas   e   não   levou   em   consideração
nenhuma alternativa ao fazer seus planos. Ele trazia consigo um apito muito potente e de som muito
agudo e não temia qualquer equívoco ou confusão dos sinais. O último contingente de reserva, no
desembarcadouro, é claro, estava fora do alcance do apito, e exigiria um mensageiro especial se sua
ajuda fosse necessária. Moses Brown e John Cárter foram com o capitão Hopkins para a margem do
rio, enquanto o diretor Manning era destacado com o capitão Mathewson para o edifício de pedra. O
doutor Bowen, com Ezra Weeden, permaneceu no grupo do capitão Whipple que deveria tomar de
assalto a casa da fazenda. O ataque deveria iniciar assim que um mensageiro do capitão Hopkins
alcançasse o capitão Whipple para notificá-lo de que o destacamento do rio estava de prontidão. O
chefe então sopraria urna única vez o apito e os vários destacamentos de vanguarda começariam seu
ataque simultâneo a três pontos. Pouco antes de uma da manhã, os três grupos deixaram a casa da
fazenda Fenner; um para guardar o desembarcadouro , outro rumando para o vale do rio e a porta na
encosta do morro, e o terceiro para dividir-se e cuidar dos edifícios da fazenda Curwen.
         Eleazer   Smith,   que   acompanhara   o   grupo   de   guarda  na   praia,   registra   em   seu   diário   uma
marcha calma e uma longa espera sobre o penhasco da baía, interrompida a certa altura por aquilo
que pareceu o som distante do apito de advertência e de novo por uma mistura abafada e peculiar de
estrondos   e   gritos   e   uma   explosão   que   pareciam  vir   da   mesma   direção.   Mais   tarde,   um   homem
acreditou ter ouvido tiros distantes, e mais tarde ainda o próprio Smith escutou o reboar de palavras
titânicas   e   trove-jantes   ressoando  a   grande   altura.   Foi   pouco   antes   do   amanhecer   que   surgiu   um
único    mensageiro      transtornado     de  olhar   desvairado     e  com   um    odor  horrendo     e  desconhecido
exalando de suas roupas, dizendo que o destacamento dispersasse e voltasse silenciosamente para as
respectivas casas e jamais pensasse ou mencionasse os feitos da noite ou daquele que havia sido
Joseph Curwen. Algo no comportamento do mensageiro revelava uma convicção que suas simples
palavras jamais conseguiriam transmitir, pois embora fosse um marujo conhecido por muitos deles,
havia algo obscuramente perdido ou conquistado em sua alma que o tornaria para sempre diferente
dos outros. O mesmo ocorreu quando, mais tarde, eles encontraram outros velhos companheiros que
haviam   penetrado   naquela   zona   de   horror.   A  maioria   deles   havia   perdido   ou   conquistado   algo
imponderável   e   indescritível.   Haviam   visto,   ouvido   ou   sentido   algo   que   não   era   para   criaturas
humanas e jamais poderiam esquecer. Deles jamais partiu um comentário, pois mesmo para o mais
comum dos instintos mortais existem limites terríveis. E aquele único mensageiro incutiu no grupo
da praia um pavor indizível que quase selou seus lábios. Foram pouquíssimos os boatos espalhados
por qualquer um deles e o diário de Eleazer Smith é o único registro escrito sobrevivente de toda a
expedição que partira do estabelecimento do Leão Dourado sob as estrelas.
         No     entanto,     Charles    Ward      descobriu     outras    vagas     informa     coes    incidentais     na
correspondência   de   Fenner   encontrada   em   Nova  Londres,   onde   sabia   ter   residido   outro   ramo   da
família. Parece que os Fenners, de cuja casa a fazenda condenada era visível à distância, haviam
observado as colunas de incursores pôr-se em marcha e haviam ouvido com muita clareza o raivoso
latido dos cães de Curwen, seguido pelo primeiro som agudo do apito que precipitou o ataque. O
primeiro apito havia sido seguido por outro grande feixe de luz saindo do edifício de pedra, e mais
tarde,   após   o   rápido   ecoar   do   segundo   sinal   ordenando   uma   invasão   geral,   ouviu-se   um   pipocar
atenuado      de  tiros  de   mosquete     e  depois   um  horrível     bramido     que   o  missivista    Luke   Fenner
representara   em   sua   epístola   com   as   letras   "Uaaaahrrrr-R'uaaahrrr".   Esse  grito,   porém,   era   de   tal
natureza que seria impossível traduzi-lo em simples caracteres impressos e o missivista menciona
que   sua   mãe   perdeu   completamente   os   sentidos   àquele   som.   Mais   tarde   foi   repetido,   com  menor
força, seguindo-se outros ruídos mais abafados de tiros, juntamente com urna explosão muito forte
na direção do rio. Cerca de uma hora mais tarde, todos os cães começaram a latir assustadoramente
e ouviram-se vagos sons surdos e prolongados vindos da terra, tão acentuados que os castiçais se
                                                           20
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agitaram sobre a lareira. Foi notado um forte odor de enxofre e o pai de Luke Fenner declarou ter
ouvido o terceiro apito, o de emergência, embora os outros não o tivessem percebido. Novo barulho
surdo de disparos de mosquetes, seguido por um grito menos lancinante, mas mais horrível ainda do
que os precedentes; uma espécie de tosse gutural ou de gorgolejo, desagradavelmente plástica, cuja
semelhança com um grito devia-se talvez mais à sua continuidade e impacto psicológico do que à
sua qualidade acústica.
      Então   a   coisa   chamejante   apareceu   subitamente   num   ponto   em   que   deveria   se   encontrar   a
fazenda   de   Curwen   e   ouviram-se   gritos   de   homens   desesperados   e   apavorados.   Os   mosquetes
faiscaram e crepitaram e a coisa chamejante caiu ao solo. Uma segunda coisa chamejante apareceu
e   distinguiu-se   claramente   um  grito   agudo   de   choro   humano.   Fenner   escreveu   que   conseguiu   até
compreender        algumas     palavras    vomitadas     como     num    delírio:   "Todo-poderoso,       protege    teu
cordeiro!" Então, houve mais tiros e a segunda coisa chamejante caiu. Depois disso fez-se o silêncio
por   cerca   de   três   quartos   de   hora,   no   fim   do qual   o   pequeno   Arthur   Fenner,   irmão   de   Luke,
exclamou que vira "uma névoa vermelha" subindo da fazenda maldita até as estrelas, à distância.
Ninguém,       com   exceção     da  criança,   poderia    provar  isso,   mas    Luke   admite    uma    coincidência
significativa no pânico de um terror quase convulsivo que, no mesmo instante, fez com que os três
gatos que se encontravam na sala arqueassem o dorso e eriçassem o pêlo.
      Cinco minutos mais tarde, começou a soprar um vento gélido e o ar ficou impregnado de um
fedor tão intolerável que somente a forte brisa do mar impediu que fosse percebido pelo grupo da
praia ou por alguma das almas vigilantes na aldeia de Pawtuxet. Esse fedor não se assemelhava a
nada   que   os   Fenners   conhecessem   e   provocou   uma   espécie   de   pavor   avassalador,   amorfo,   muito
pior do que o do túmulo ou do cemitério. Logo em seguida ouviu-se a voz pavorosa que nenhum
infeliz ouvinte jamais poderá esquecer. Ela ribombava do céu como uma condenação e as janelas
tremeram enquanto seus ecos se perdiam. Era profunda e musical; possante como a de um órgão,
mas maligna como os livros Proibidos dos árabes. Homem algum pode saber o que ela dizia, porque
falava   numa   língua   desconhecida,   mas   isto   é   o   que   Luke   Fenner   transcreveu   para   reproduzir   os
demoníacos   sons:   "DEES   MEES   -   JESHET   -   BONEDOSEFEDUVEMA   -   ENTTEMOSS".   Foi
somente      no   ano   de  1919    que   alguém    relacionou    essa   transcrição    tosca   com    algum    tipo  de
conhecimento mortal, mas Charles Ward empalideceu ao reconhecer o que Mirandola denunciara
estremecendo como o mais pavoroso horror das feitiçarias da magia negra.
      Um grito inconfundivelmente humano ou um grito profundo e coral pareceu responder a esse
prodígio maligno que vinha da fazenda de Curwen, em seguida o fedor desconhecido se tornou mais
pesado   ao   acrescentar-se   um   odor   igualmente   intolerável.   Lamentos   distintamente   diferentes   de
gritos irrompiam agora e prolongavam-se em uivos com paroxismos ascendentes e descendentes.
Às vezes eram quase articulados, embora ouvinte algum pudesse captar palavras definidas; a certa
altura, pareciam elevar-se até se tornarem quase risadas diabólicas e histéricas. Depois, um bramido
de definitivo e absoluto terror, e a loucura total arrebentou de dezenas de gargantas humanas; um
bramido   que   soou   forte   e   claro   apesar   da   profundeza   da   qual   deve   ter   jorrado;   após   o   que   a
escuridão   e   o   silêncio   dominaram   todas   as   coisas.   Espirais   de   fumaça   acre   subiram   apagando   as
estrelas, embora não aparecessem chamas e no dia seguinte não se visse nenhum edifício destruído
ou danificado.
      Perto da madrugada, dois mensageiros apavorados, com cheiros monstruosos e indescritíveis
saturando suas vestimentas, bateram à porta dos Fenners e pediram um barrilete de rum pelo qual
pagaram muito bem. Um deles disse à família que o caso de Joseph Curwen estava encerrado e que
os acontecimentos da noite nunca mais deveriam ser mencionados. Por mais arrogante que a ordem
pudesse parecer, o aspecto daquele que a dava era tal que não provocou nenhum ressentimento e
emprestou-lhe uma terrível autoridade; de modo que somente as furtivas missivas de Luke Fenner,
que ele instou o parente de Connecticut a destruir, restam para contar o que foi visto e ouvido. O
não-atendimento desse parente, graças ao qual as cartas foram salvas apesar de tudo, foi a única
coisa   que   impediu   que   o   assunto   caísse   num   piedoso   esquecimento.   Charles   Ward   tinha   outro
detalhe a acrescentar como resultado de uma cuidadosa investigação sobre as tradições ancestrais
junto aos habitantes de Pawtuxet. O velho Charles Slocum daquela aldeia disse que seu avô soubera
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de   um   curioso   boato   referente   a   um   corpo   carbonizado   e   retorcido,   encontrado   nos   campos   uma
semana depois do anúncio da morte de Joseph Curwen. O que gerou o boato foi a constatação de
que esse corpo, pelo que se podia depreender dos restos queimados e contorcidos, não podia ser
considerado   nem   totalmente   humano   nem   podia  ser   atribuído   a   nenhum   animal   que   o   povo   de
Pawtuxet jamais tivesse visto ou conhecido por leituras.
                                                              5
      Nenhum dos participantes daquela terrível incursão jamais seria induzido a pronunciar palavra
a seu respeito e qualquer fragmento das vagas informações remanescentes vem de pessoas estranhas
ao grupo que realizara o combate final. Há algo aterrador no cuidado com o qual os verdadeiros
invasores destruíram os fragmentos que traziam a menor alusão ao assunto.
     Oito    marinheiros     foram    mortos,    mas   embora     seus  corpos    não   fossem    apresentados,     suas
famílias    se  contentaram      com    a  declaração    de  que   ocorrera    um   choque    com     funcionários    da
alfândega. O mesmo serviu para justificar os numerosos casos de ferimentos, todos eles cuidados e
tratados   pelo   doutor   Jabez   Bowen,   que   acompanhara  o   grupo.   O   mais   difícil   foi   explicar   o   odor
indescritível que impregnava todos os invasores, fato discutido durante semanas. Dos cidadãos no
comando, o capitão Whipple e Moses Brown foram os mais gravemente feridos e algumas cartas de
suas esposas comprovam o espanto provocado por sua reticência e excessivo cuidado em relação
aos   curativos.   Psicologicamente,   cada   um   dos   participantes   mostrou-se   abalado,   amadurecido,   de
certo modo envelhecido, mais moderado. Por sorte, eram todos homens de ação, fortes e simples,
religiosos     ortodoxos,    pois   se   fossem    dotados    de   uma    introspecção     mais    sutil  e  de   maior
complexidade mental teriam se saído muito mal. O diretor Manning ficou mais perturbado do que
todos,   mas   ele   também   venceu   as   mais   negras   trevas   e   sufocou   as   lembranças   na   oração.   Todos
aqueles chefes desempenhariam papéis ativos nos anos seguintes e talvez tenha sido bom que isso
se desse. Pouco mais de doze meses depois, o capitão Whipple liderou a multidão que incendiou o
barco     Gaspee,      das    autoridades      da    alfândega,     e  nesse      ato   audacioso      podemos       per
ceber uma tentativa de apagar perniciosas imagens.
     À   viúva   de   Joseph   Curwen   foi   entregue   um   caixão   de   chumbo   lacrado,   de   feitio   curioso,
obviamente encontrado pronto no local, no qual lhe foi dito encontrar-se o corpo do marido. Foi
explicado que ele havia sido morto num choque com a milícia da alfândega a respeito do qual não
seria conveniente buscar detalhes. Mais do que isso língua alguma nada jamais pronunciou sobre o
fim de Joseph Curwen e Charles Ward dispunha de uma única indicação com a qual construir uma
teoria. Esta indicação era um simples fio — um traço tremido sublinhando um trecho da carta de
Jedediah Orne a Curwen que havia sido confiscada e copiada em parte à mão por Ezra Weeden. A
cópia foi encontrada com um dos descendentes de Smith e a nós cabe decidir se Weeden a deu ao
seu companheiro depois do fim, como um mudo indício da anormalidade que havia ocorrido, ou se,
como é mais provável, Smith a obtivera antes, e ele próprio acrescentara o grifo a partir daquilo que
conseguira extrair de seu amigo por meio de inteligentes conjeturas e hábeis perguntas. O trecho
sublinhado é este:
      "Digo-lhe novamente, não evoque ninguém que não possa mandar de volta; quero dizer ninguém que
por sua vez chame algo contra o senhor e contra o qual seus recursos mais poderosos não possam ter eficácia
alguma.   Busque   os   menores,   para   que   os   maiores   não   desejem   responder   e   tenham   mais   poder   do   que   o
senhor".
      À luz desse trecho e refletindo sobre que aliados inomináveis um homem derrotado pode tentar
convocar em seu mais funesto transe, Charles Ward pode ter se perguntado se algum cidadão de
Providence não teria assassinado Joseph Curwen.
     A    destruição    total  de   toda  lembrança      do  morto    da   vida  e  dos   anais   de  Providence      foi
amplamente corroborada pela influência dos chefes da invasão. De início, eles não pretendiam ser
tão radicais e, por outro lado, a viúva, seu pai e filha foram deixados na ignorância dos fatos reais;
mas o capitão Tillinghast era um homem astuto e logo teve conhecimento de boatos suficientes para
                                                          22
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aguçar seu horror e exigir que sua filha e neta mudassem o nome, queimassem a biblioteca e todos
os papéis restantes e raspassem a inscrição da lápide de ardósia sobre o jazigo de Joseph Curwen.
Ele conhecia bem o capitão Whipple e provavelmente obteve mais indícios daquele rude marinheiro
do que de qualquer outra pessoa sobre o fim do amaldiçoado bruxo.
      A partir daquela época, a eliminação da memória de Curwen se tornou cada vez mais rigorosa,
estendendo-se inclusive, por consenso comum, até os registros da cidade e os arquivos do Gazette.
Só pode ser comparada pelo espírito ao silêncio que envolveu o nome de Oscar Wilde por toda uma
década depois que ele caíra em desgraça e, pela extensão, somente ao destino do pecaminoso rei de
Runagur na história de lorde Dunsany, a respeito do qual os deuses decidiram que não só deveria
cessar de existir como se deveria negar que tivesse existido.
      A senhora Tillinghast, como a viúva passou a ser conhecida a partir de 1772, vendeu a casa de
Olney Court e residiu com o pai em Power's Lane até sua morte, em 1817. A fazenda de Pawtuxet,
evitada     por  todas   as  criaturas,   foi  abandonada,      caindo    em   ruínas   com    o  passar   dos   anos    e
aparentemente   deteriorou-se   com   indizível   rapidez.  Por   volta   de   1780,   só   permaneciam   de   pé   as
paredes de pedra e tijolos e em 1800 estas também haviam se transformado em ruínas disformes.
Ninguém se aventurava a olhar no matagal espesso na margem do rio, atrás do qual poderia existir a
porta   da   encosta   do   morro,   e   jamais   tentou   formar   uma   imagem  definida   dos   fatos   em  meio   aos
quais Joseph Curwen desaparecera junto com os horrores por ele mesmo criados.
      Somente   o   velho   e   robusto   capitão   Whipple   foi   ouvido,   vez   por   outra,   por   pessoas   atentas
murmurar de si para si: "Que aquele____ morresse de sífilis, ele não tinha que rir enquanto gritava.
Era como se o excomungado ____tivesse um trunfo na manga. Por meia coroa eu botaria fogo em
sua____ casa".
                                                       Capítulo três
                                            Uma pesquisa e uma evocação
                                                               1
      Charles   Ward,   como   vimos,   soube   apenas   em   1918   que   descendia   de   Joseph   Curwen.   Não
admira   que   imediatamente   mostrasse   profundo   interesse   por   tudo   o   que   dizia   respeito   ao   antigo
mistério; pois todos os vagos boatos que ouvira a respeito de Curwen agora se tornavam algo vital
para ele, em cujas veias corria o sangue de Curwen. Nenhum estudioso de genealogia dotado de
agudeza   e   imaginação   agiria   de   modo   diferente e  ele   empreendeu   então   uma   ávida   e   sistemática
coleta de informações sobre o antepassado.
      Nas suas primeiras pesquisas não houve a menor  tentativa de sigilo; de modo que mesmo o
doutor Lyman hesita em datar a loucura do jovem em qualquer período anterior ao final de 1919.
Ele   conversava   abertamente   sobre   o   fato   com   a  família   —   embora   a   mãe,   em   particular,   não
estivesse satisfeita em possuir um antepassado como Curwen — e com os funcionários dos vários
museus   e   bibliotecas   por   ele   visitados.   Ao   apelar   para   famílias   de   particulares   em   sua   busca   de
registros   que   supostamente   possuiriam,   ele   não  ocultava   seu   objetivo   e   compartilhava   do   mesmo
ceticismo bem-humorado com o qual eram vistos os relatos dos antigos autores de diários e cartas.
Frequentemente expressava profunda curiosidade por aquilo que de fato ocorrera um século e meio
antes   naquela   casa   de   Pawtuxet,   cujo   local   tentara   em   vão   encontrar,   e   por   aquilo   que   Joseph
Curwen havia sido na realidade.
      Quando   descobriu   o   diário   e   os   arquivos   de   Smith   e   encontrou   a   carta   de   Jedediah   Orne,
decidiu visitar Salem e investigar as primeiras atividades de Curwen bem como suas relações lá na
cidade, o que fez nas férias da Páscoa de 1919. No Instituto Essex, que ele conhecia bem de estadas
anteriores na fascinante e antiga cidade de frontões puritanos em ruínas e aglomeração de telhados
com   mansardas,   comprimindo-se   uns   ao   lado   dos   outros,   foi   gentilmente   recebido   e   lá   descobriu
uma quantidade considerável de informações sobre Curwen. Averiguou que seu ancestral nascera
em Salem-Village, hoje Danvers, a sete milhas da cidade, no dia 18 de fevereiro de 1662-63 e que
                                                           23
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fugira    para   fazer-se   ao   mar   à  idade   de   quinze,   só   aparecendo     nove    anos   mais   tarde,   quando
regressou com a fala, as roupas e as maneiras de um inglês nativo e se estabeleceu na própria cidade
de   Salem.   Na   época,   ele   tinha   poucas   relações com  a   família,   mas   passava   a   maior   parte   do   seu
tempo debruçado sobre os livros curiosos adquiridos na Europa e as estranhas substâncias químicas
que chegavam para ele em navios procedentes da Inglaterra, França e Holanda. Certas viagens dele
para o interior eram objeto de muita curiosidade local e eram associadas, à boca pequena, a vagos
relatos de fogueiras sobre as colinas, à noite.
      Os únicos amigos próximos a Curwen haviam sido um certo Edward Hutchinson, de Salem-
Village, e certo Simon Orne, de Salem. Com estes homens frequentemente era visto pelo parque e
as   visitas   entre   eles   eram   bastante   freqüentes.   Hutchinson   possuía   uma   casa   fora   da   cidade,   na
direção   dos   bosques,   e   as   pessoas   sensíveis   não  gostavam   dela   por   causa   dos   sons   ouvidos   lá   à
noite. Dizia-se que ele recebia estranhos visitantes e as luzes de suas janelas não eram sempre da
mesma cor. O conhecimento que ele demonstrava ter a respeito de pessoas há muito tempo falecidas
e de fatos há muito ocorridos era considerado totalmente blasfemo. Desapareceu aproximadamente
na época em que começou o pânico da bruxaria e nunca mais se ouviu falar nele. Naquele tempo,
Joseph Curwen também partiu, mas logo se soube que se estabelecera em Providence. Orne viveu
em   Salem   até   1720,   quando   o   fato   de   não   mostrar  sinais   visíveis   de   envelhecimento   começou   a
chamar   a   atenção   das   pessoas.   Então   ele   desapareceu,   embora,   trinta   anos   mais   tarde,   seu   sósia,
denominando-se seu filho, aparecesse para reclamar a propriedade. A procedência da reclamação
foi reconhecida com base em documentos lavrados por Simon Orne cuja caligrafia era conhecida, e
Jedediah      Orne   continuou     a   morar    em   Salem   até    1771,   quando     certas   cartas   de   cidadãos    de
Providence   endereçadas   ao   reverendo   Thomas  Barnard   e   a   outros   tiveram   como   resultado   sua
silenciosa mudança para local desconhecido.
      Documentos   sobre   todos   esses   estranhos   fatos        estavam   disponíveis   no   Instituto   Essex,   no
Tribunal e no Cartório Civil e incluíam coisas comuns e inócuas como títulos de terras, escrituras de
venda   de   terras   e   fragmentos   secretos   de   uma  natureza   mais   estimulante.   Havia   quatro   ou   cinco
alusões inequívocas a eles nos registros dos processos de bruxaria: certo Hepzibah Lawson jurou,
no   dia   10   de   julho   de   1692,   no   Tribunal   de   Oyer   e   Terminen   presidido   pelo   juiz   Hathorne,   que
"quarenta   bruxas   e   o   Homem   Negro   foram   vistos reunir-se   nos   bosques   atrás   da   casa   do   senhor
Hutchinson", e certa Amity How declarou, numa sessão de 8 de agosto, perante o juiz Gedney, que
"o   senhor   C.   B.   (George   Burroughs)   naquela   noite   colocou   a   Marca   do   Diabo   em   Bridget   S.,
Jonathan A., Simon O., Deliverance W., Joseph C.,  Susan P., Mehitable C., e Deborah B". Depois,
havia     um   catálogo     da   misteriosa   biblioteca     de   Hutchinson      como     fora   encontrada     após    seu
desaparecimento         e  um   manuscrito      inacabado     em  sua    caligrafia,   numa     linguagem     cifrada    que
ninguém conseguia ler. Ward mandou fazer uma cópia fotostática desse manuscrito e começou a
trabalhar casualmente no código assim que lhe foi entregue. Depois do mês de agosto seguinte, seu
trabalho     no   código    se   tornou    intenso    e  febril   e,  a  partir   daquilo    que   ele   dizia   e  de   seu
comportamento, existem razões para se acreditar que conseguira decifrar o código antes de outubro
ou novembro. Contudo, ele jamais afirmou se conseguira ou não.
      Mas   de   maior   interesse   imediato   era   o   material  de   Orne.   Foi   preciso   pouco   tempo   para   que
Ward provasse, graças à caligrafia, uma coisa que já havia estabelecido a partir do texto da carta
endereçada a Curwen, ou seja, que Simon Orne e seu suposto filho eram a mesma pessoa. Como
Orne   dissera   ao   seu   missivista,   não   era   seguro  viver   por   muito   tempo   em   Salem,   daí   ele   ter
resolvido   se   mudar   por   trinta   anos   para   o   exterior,   só   voltando   para   reclamar   suas   terras   como
representante   de   uma   nova   geração.   Orne   aparentemente   havia   tomado   o   cuidado   de   destruir   a
maior     parte   de   sua   correspondência,       mas    os cidadãos      que   agiram     em   1771    descobriram      e
preservaram algumas cartas e papéis que estimularam sua curiosidade. Havia fórmulas e diagramas
enigmáticos escritos em sua caligrafia e na de outras pessoas, que Ward agora copiou com cuidado
ou fotografou, e uma carta extremamente misteriosa numa caligrafia que o pesquisador reconheceu
por      certos     registros     contidos       no    Cartório      Civil     como       sendo      positivamente        de
Joseph Curwen.
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      Essa carta de Curwen, embora não datada em relação ao ano, não foi evidentemente aquela em
resposta à escrita por Orne e que fora apreendida; por certas evidências Ward a atribuiu a uma data
não muito posterior a 1750. Talvez não seja fora de propósito apresentar seu texto integral, como
amostra   do   estilo   de   alguém   cuja   história   foi   tão   obscura   e   terrível.   Seu  destinatário   é   chamado
 "Simon", mas existe um traço (não foi possível a Ward estabelecer se de autoria de Curwen ou de
Orne) riscando a palavra.
                                                                                                    Providence, 1º de maio
Irmão: —
      Meu honrado e velho amigo, meus devidos respeitos e sinceras saudações àquele que servimos para seu
eterno   poder.   Acabo   de   descobrir   aquilo   que   o   senhor   deve   saber,   referente   ao   funesto   transe   e   ao   que   é
preciso fazer a respeito. Não estou disposto a segui-lo e partir por causa de minha idade, pois Providence não
possui a agudeza do latido na perseguição de coisas in-comuns e em seu julgamento. Estou atarefado com
navios   e   mercadorias   e   não   poderia   fazer   como   o   senhor,   além   do   mais,   debaixo   de   minha   fazenda   em
Pawtuxet está aquilo que o senhor sabe não esperaria que eu voltasse como outra pessoa.
      Mas   eu   estou   disposto   a   enfrentar   tempos   difíceis,  como   lhe   disse,   e   tenho   trabalhado   muito   sobre   a
maneira de reaver o que perdi. Na noite passada, descobri as palavras que evocam YOGGE-SOTHOTHE e
vi pela primeira vez aquele rosto de que fala Ibn Schacabac no _____________. E ELE disse que o III Salmo
no Liber-Damnatus tem a Clavícula. Com o Sol na V casa, Saturno na tríade, desenhe o Pentagrama do Fogo
e pronuncie e nono verso três vezes. Repita esse verso na véspera do dia da Cruz e de Todos os Santos e a
coisa se multiplicará nas esferas exteriores.
      E da semente do velho nascerá Um que olhará para trás embora não saiba o que busca.
      Isto de nada servirá se não houver um herdeiro e se os sais, ou a maneira de fazer os sais, não estiverem
à mão. E nesse caso admito que não tomei as medidas necessárias nem descobri muito. O processo é danado
de difícil de funcionar e utiliza tamanha multiplicidade de espécies que tenho dificuldades em encontrá-las
em quantidade suficiente, não obstante os marinheiros das índias que eu tenho. O povo por aqui é curioso,
mas eu consigo enganá-lo. Os senhores de boa família são piores do que a população, pois possuem mais
informações e as pessoas respeitam mais o que eles dizem. Temo que o pastor e o senhor Merritt tenham
comentado   algo,   mas   até   o   momento   não   há   perigo. As   substâncias   químicas   são   fáceis   de   se   conseguir,
havendo dois bons boticários na cidade, o doutor Bowen e Sam Carew. Estou seguindo o que Borellus diz e
disponho do auxílio do VII Livro de Abdul Al-Hazred. O que eu obtiver, o senhor terá também. E no meio
tempo não deixe de usar as palavras que dei aqui. Elas estão certas, mas se desejar vê-lo, empregue o que
escrevi no pedaço de ___________, que estou enviando nesse pacote. Diga os versos na véspera de cada dia
da Cruz e de Todos os Santos e se sua linhagem não acabar, nos anos por vir aparecerá aquele que olhará
para trás e usará os saís ou a mat éria dos sais que tu lhe deixares. Jó, XIV, 14.
      Alegro-me que o senhor esteja novamente em Salem  e espero poder vê-lo em breve. Tenho um bom
garanhão e estou pensando em comprar uma carruagem, pois já há uma (a do senhor Merritt) em Providence,
embora   as   estradas   sejam   más.   Se   estiver   disposto   a   viajar   não   deixe   de   me   visitar.   De   Boston,   pegue   a
estrada   da   diligência   passando   por   Dedham,   Wrentham   e   Attleborough,   em   todas   estas   cidades   há   boas
tabernas. Hospede-se na do senhor Bolcom, em Wrentham, onde as camas são melhores do que na do senhor
Hatch, mas coma no outro estabelecimento, pois seu cozinheiro é melhor. Vire na direção de Providence na
altura das corredeiras de Patucket e pegue a estrada depois da taberna do senhor Sayles. Minha casa fica em
frente à taberna do senhor Epenetus Olney, saindo de Town Street, a primeira do lado norte de Olney Court.
A distância de Boston Store é cerca de 44 milhas.
      Declaro-me, senhor, seu velho e sincero amigo e criado em Almonsin-Metraton.
                                                                                                                 Josephus C.
Ao Senhor Simon Orne,
William's-Lane, Salem.
      Foi essa carta, estranhamente, que pela primeira vez forneceu a Ward a localização exata da
casa de Curwen em Providence, pois nenhum dos registros encontrados até aquele momento havia
sido totalmente específico. A descoberta era duplamente sensacional porque descrevia como sendo
a   nova   casa   de   Curwen,   construída   em   1761   no   local  da   antiga,   a   construção   semidestruída   que
ainda se encontrava em Olney Court, bastante familiar a Ward em suas perambulações em busca de
antiguidades em Stampers Hill. O lugar de fato ficava a poucas quadras de distância de sua casa, no
                                                              25
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ponto   mais   elevado   da   grande   colina,   e   agora   era   habitada   por   uma     família   de   negros   muito
procurada para serviços ocasionais, como lavagem de roupa, limpeza doméstica e manutenção de
fornalhas. Encontrar na longínqua Salem uma prova tão inesperada da importância desse conhecido
casebre   na   história   de   sua   própria   família   foi  algo   muito   emocionante   para   Ward,   que   resolveu
explorar imediatamente o lugar à sua volta. Os trechos mais misteriosos da carta, que interpretou
como uma forma extravagante de simbolismo, francamente o desafiavam; embora observasse com
um   frêmito   de   curiosidade   que   a   passagem   bíblica   referida   —   Jó,   XIV,   14   —   era   o   conhecido
versículo,   "Se   um   homem   morre,   deverá   viver  novamente?   Todos   os   dias   do   tempo   que   me   foi
destinado eu esperarei, até que venham me soerguer".
                                                               2
      O jovem Ward voltou para casa num estado de agradável excitação e passou o sábado seguinte
num longo e exaustivo estudo da casa de Olney Court. A construção, atualmente em ruínas devido à
idade, jamais havia sido uma mansão; mas era uma modesta casa de madeira de dois andares e uma
água-furtada   do   tipo   colonial   comum   em   Providence,   com   um   teto   pontiagudo,   ampla   chaminé
central,    porta   artisticamente    entalhada    e  bandeira    semicircular     com    raios,  frontão   triangular    e
elegantes colunas dóricas. Sofrera poucas alterações externamente e Ward teve a sensação de estar
olhando algo muito próximo ao sinistro objeto de sua investigação.
      Os atuais moradores negros eram seus conhecidos, e o velho Asa e sua gorda mulher Hannah
mostraram-lhe       muito    gentilmente     o  interior.  Aqui    as  alterações    eram   maiores    do   que   parecia
externamente   e   Ward   observou   com   tristeza   que   uma   boa   metade   das   belas   cornijas   das   lareiras
lavradas   com   motivos   de   volutas   e   umas   e   os   entalhes   em   forma   de   conchas   sobre   os   armários
haviam desaparecido, enquanto a maior parte dos belos lambris de madeira e respectivas molduras
estava arranhada, gasta, arrancada, ou coberta totalmente de papel de parede barato. De modo geral,
a   pesquisa   não   rendeu   a   Ward  muito   mais   do   que   esperava,   mas   pelo   menos   foi   emocionante
encontrar-se entre as paredes ancestrais que haviam hospedado um homem horroroso como Joseph
Curwen. Ele notou com um arrepio que o monograma havia sido cuidadosamente apagado da antiga
aldrava de latão.
      Desde   aquele   momento   até   o   encerramento   do  curso,   Ward   passou   todo   o   tempo   debruçado
sobre a cópia fotostática do código de Hutchinson e acumulando dados sobre Curwen no local. O
código ainda se mostrava renitente, mas ele obteve tantos dados e tantos indícios em outras partes,
que   se   predispôs   a   empreender   uma   viagem   a   Nova   Londres   e   Nova   Iorque,   a   fim   de   consultar
antigas cartas cujas presença estava indicada naqueles lugares. Essa viagem foi muito frutífera, pois
resultou nas cartas de Fenner com sua terrível descrição da incursão à casa de Pawtuxet e as cartas
da correspondência Nightingale-Talbot, nas quais ele ficou sabendo do retrato pintado no painel da
biblioteca de Curwen. A questão do retrato interessou-o de modo particular, pois teria da do tudo
para saber como era exatamente Joseph Curwen; e decidiu realizar uma segunda busca na casa de
Olney   Court   para   ver   se   não   haveria   algum   vestígio   das   feições   antigas   debaixo   das   demãos   da
pintura posterior ou das camadas de papel de parede bolorento.
      A busca foi empreendida no início de agosto e Ward percorreu cuidadosamente as paredes de
cada cômodo cujas dimensões fossem suficientes para ter abrigado a biblioteca do perverso criador.
Dedicou      particular   atenção    aos   amplos    painéis    sobre   as  lareiras   que   ainda   restavam     e  ficou
profundamente emocionado quando, após cerca de uma hora, num largo espaço sobre a lareira de
uma sala espaçosa do andar térreo, teve a certeza de que a superfície trazida à luz ao arrancar várias
camadas de tinta era sensivelmente mais escura do que a pintura de interior comum ou do que a
madeira de baixo deveria ser. Após algumas outras tentativas mais cuidadosas com uma faca fina,
teve a certeza de ter descoberto um retrato a óleo de grandes dimensões. Com a prudência de um
autêntico estudioso, o jovem não arriscou o dano que uma tentativa imediata de descobrir com a
faca a pintura oculta poderia perpetrar, mas simplesmente retirou-se do cenário de sua descoberta a
fim  de   recrutar   a   ajuda  de  um  especialista.  Três dias mais tarde, voltou com um artista de longa
experiência,   o   senhor   Walter   Dwight,   cujo   estúdio   se   encontra   ao   pé   de   College   Hill,   e   aquele
                                                           26
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provecto   restaurador   de   quadros   pôs-se   ao   trabalho   imediatamente,   com   métodos   e   substâncias
químicas adequadas. O velho Asa e a esposa ficaram, é claro, curiosos a respeito de seus estranhos
visitantes e foram adequadamente indenizados por essa invasão de seu lar.
      À medida que o trabalho avançava, dia após  dia, Charles Ward acompanhava com crescente
interesse as linhas e sombras que gradativamente iam-se revelando após um longo esquecimento.
Dwight começara na parte inferior do retrato; por isso, tendo o quadro a proporção de três por um, o
rosto não apareceu por algum tempo. No meio tempo via-se que o sujeito era um homem magro, de
boas   proporções,   com  um  casaco   azul-escuro,   colete  bordado,   calções   de   cetim  preto   e   meias   de
seda   branca,   sentado   numa   cadeira   entalhada   contra   uma   janela   com   desembarcadouros   e   navios
aparecendo ao longe. Quando surgiu a cabeça, observou-se que tinha uma peruca Albemarle bem
arranjada e possuía um rosto fino, calmo, comum, de certo modo familiar a Ward e ao artista. No
entanto, somente no fim o restaurador e seu cliente ficaram espantados diante dos detalhes do rosto
magro,      pálido,    reconhecendo        com    um    certo    horror    a   dramática     brincadeira      pregada     pela
hereditariedade.   Pois   foi   preciso   o   último   banho   de  óleo   e   o   último   toque   da   delicada   raspadeira
para revelar totalmente a expressão que os séculos haviam ocultado e comparar o perplexo Charles
Dexter   Ward,   amante   do   passado,   aos   seus   próprios   traços   vivos   retratados   no   semblante   de   seu
horrível tetravô.
      Ward     levou    os  pais   para   ver   a  maravilha     que   havia   descoberto     e  seu   pai  imediatamente
determinou   a   aquisição   do   quadro,   embora   fosse   pintado   sobre   painéis   fixos.   Para   o   rapaz,   a
semelhança era maravilhosa, apesar de aparentar uma idade avançada, e era possível constatar que,
graças a um artificioso ardil do atavismo, os traços físicos de Joseph Curwen haviam encontrado
uma   cópia   perfeita   um   século     e   meio   mais   tarde.   A   semelhança   da   senhora   Ward   com   o   seu
antepassado não era muito acentuada, embora ela lembrasse de parentes que tinham algumas das
características fisionômicas de seu filho e do falecido Curwen. Ela não gostou da descoberta e disse
ao marido que seria melhor que ele queimasse o retrato em vez de levá-lo para casa. Afirmou que
havia   algo   pernicioso   nele,   não   apenas   no   aspecto   intrínseco,   mas   na   própria   semelhança   com
Charles. O senhor Ward, contudo, era um prático e poderoso homem de negócios — um fabricante
de tecidos de algodão com grandes tecelagens em Riverpoint e no vale do Pawtuxet — e não era
pessoa     de   dar  ouvidos     a  escrúpulos     femininos.    O    quadro     o  impressionara      enormemente        pela
semelhança   com   o   filho   e   achou   que   o   rapaz   o   merecia   como   presente.   Não   é   preciso   dizer   que
Charles concordou calorosamente com a idéia; poucos dias mais tarde o senhor Ward localizou o
dono da casa — um sujeito baixo com o aspecto de um roedor e um acento gutural — e conseguiu
todo o painel e a peça sobre a qual ficava o quadro por um preço rapidamente acordado que acabou
com a torrente ameaçadora de untuosos regateios.
      Restava agora retirar o painel e levá-lo para a residência dos Wards, onde foram adotadas todas
as   providências      para   sua   completa     restauração    e instalação      junto   com    uma    lareira  elétrica   de
imitação   na   biblioteca-escritório   de  Charles,  no   terceiro  andar.   A  Charles   foi   deixada   a   tarefa   de
supervisionar       a  remoção     e,  no   dia  28   de   agosto,   ele   acompanhou       dois   técnicos    da   firma   de
decorações Crooker até a casa de Olney Court, onde o painel e toda a peça com o retraio foram
despregados   com   grande   cuidado   e   precisão   e  transportados   no   caminhão   da   empresa.   Restou
descoberto   um   espaço   de   tijolos   deixando   à   mostra   a   parede,   da   chaminé   e   nesta   o   jovem   Ward
observou   um   vão   quadrado,   aproximadamente   da   largura   de   um   pé,   que   devia   ficar   diretamente
atrás   da   cabeça   do   retrato.   Curioso   com   o   que   aquele   vão   poderia   significar   ou   conter,   o   jovem
aproximou-se, olhou em seu interior e descobriu, debaixo das espessas camadas de pó e fuligem,
alguns   papéis   soltos,   amarelados,   um   rústico   e  grosso   caderno   e   alguns   fiapos   bolorentos   que
haviam sido talvez a fita prendendo  o todo. Soprou o grosso do pó e das cinzas  e  pegou  o  livro
olhando      a  inscrição    em   grossas    letras  negras    da  capa.   Estava   escrita    numa     caligrafia   que   ele
aprendera   a   reconhecer   no   Instituto   Essex  e  dizia   que   o   volume   era   o  Diário   e   Notas   de   Jos.
Curwen, Gent., das Plantações de Providence, anteriormente de Salem.
      Emocionado   ao   extremo   com   sua   descoberta,   Ward   mostrou   o   livro   aos   dois   trabalhadores
curiosos   ao   seu   lado.   O   testemunho   destes   quanto   à   natureza   e   autenticidade   da   descoberta   é
absoluto; e o doutor Willett baseia-se neles para estabelecer sua teoria de que o jovem não era louco
                                                             27
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quando   começou   a   exibir   suas   maiores   excentricidades.   Todos   os   outros   papéis   também  estavam
escritos na caligrafia de Curwen e um deles parecia especialmente assombroso, por causa de sua
inscrição:  "Àquele que virá depois, e como elepoderá voltar no tempo e nas esferas".  Outro estava
em código, o mesmo, esperava Ward, de Hutchinson, que até o momento o frustrara. Um terceiro, e
aqui o pesquisador se regozijou, parecia ser a chave do código, enquanto o quarto e quinto eram
endereçados       respectivamente      "ao   Gentilhomem        Edw:    Hutchinson"      e  "Ao  Cavalheiro      Jedediah
Orne",   "ou   Seu   Herdeiro   ou   Herdeiros,   ou   a   quem   os   Represente".   O   sexto   e   último   tinha   a
inscrição:  "Joseph Curwen, sua vida e viagens entre os anos 1678 e 1687: para onde viajou, onde
viveu, quem viu e o que aprendeu".
                                                                3
      Chegamos agora ao momento ao qual a escola mais acadêmica de psiquiatras data a loucura de
Charles Ward. Após a descoberta, o jovem folheara imediatamente as páginas internas do livro e
dos manuscritos e evidentemente viu algo que o impressionou de modo fantástico. Em verdade, ao
mostrar os títulos aos trabalhadores, ele pareceu resguardar o texto com cuidado peculiar e mostrar
um estado de perturbação que mesmo a importância arqueológica e genealógica da descoberta não
justificava. Ao voltar para casa,  ele deu a notícia com um ar quase embaraçado, como se desejasse
transmitir uma idéia de sua suprema importância,  sem contudo exibir a prova. Sequer mostrou os
títulos aos pais, mas simplesmente disse-lhes que havia encontrado alguns documentos escritos na
caligrafia de Joseph Curwen, "a maior parte em código", que teriam de ser estudados com muito
cuidado   para   revelar   seu   significado   verdadeiro.   E   improvável  que   ele   tivesse   mostrado   o   que
mostrou aos trabalhadores não fosse pela curiosidade indisfarçada daqueles. Sem dúvida, pretendia
evitar qualquer demonstração de uma reticência peculiar que aumentaria as discussões em torno do
assunto.
      Naquela   noite,   Charles   Ward   ficou   sentado   em   seu   quarto   lendo   o   livro   e   os   papéis   recém-
descobertos e quando clareou o dia não desistiu. As refeições, conforme seu urgente pedido quando
a mãe foi falar com ele para ver o que estava ocorrendo, foram levadas para o quarto e, à tarde, ele
apareceu muito rapidamente quando os homens foram instalar o retrato de Curwen e o painel da
lareira em seu escritório. Na noite seguinte, dormiu a curtos intervalos, de roupa, enquanto lutava
febrilmente      para   decifrar    o  manuscrito     em   código.     Pela   manhã,     a  mãe    viu   que   ele  estava
trabalhando   na   cópia   fotostática   do   código   de   Hutchinson,   que   várias   vezes   lhe   havia   mostrado
antes;   mas   respondendo   à   sua   interrogação,   ele   disse   que   a   chave   de   Curwen   não   lhe   podia   ser
aplicada.     Naquela     tarde,   abandonou      seu   trabalho   e   observou    fascinado     os  homens      enquanto
terminavam a instalação do quadro com sua estrutura de madeira sobre um tronco de árvore elétrico
engenhosamente realista, colocavam a imitação de lareira e o painel um pouco afastados da parede
norte,   como   se   atrás   existisse   uma   chaminé,   e   encaixavam  nos   lados   lambris   combinando   com   o
quarto.   O   painel   da   frente   com  a   pintura   foi   serrado   e   montado,   deixando   um   espaço   para   um
armário atrás. Assim que os homens se foram, transferiu seu trabalho para o escritório e sentou à
sua frente com um olho no código e outro no retrato, que lhe devolvia o olhar como um espelho que
o envelhecia ou evocava séculos passados. Os pais, lembrando mais tarde seu comportamento nesse
período,     forneceram      interessantes    detalhes    referentes    aos   subterfúgios     por   ele  adotados     para
disfarçar     sua   atividade.   Diante    dos   empregados,      raramente     escondia     algum    papel   que   estava
estudando, pressupondo, com razão, que a intrincada e arcaica caligrafia de Curwen seria demais
para eles. Com os pais, no entanto, era mais circunspecto, e a não ser que o manuscrito em questão
fosse   em   código,   ou   um   amontoado   de   símbolos misteriosos   e   ideogramas   desconhecidos   (como
aquele   intitulado  "Àquele   que   vier   depois, etc."   parecia),   cobria-o   com  um  papel   até   que   a   visita
saísse do quarto. À noite, mantinha os papéis trancados a chave numa antiga papeleira sua, onde
também  os   colocava   sempre   que   saía   do   quarto.   Logo   retomou   horários   e  hábitos   razoavelmente
regulares,   com   a   exceção   de   que   seus   longos   passeios   e   outros   interesses  externos   pareciam   ter
cessado.   A   reabertura   da   escola,   onde   agora   iniciava   o   último   ano,   aparentemente   o   aborreceu   e
afirmou   muitas   vezes   sua   determinação   de   nunca   mais   retomar   o   curso.   Dizia   ter   importantes
                                                            28
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pesquisas   sociais   a   fazer,   que   lhe   abririam   mais   caminhos   para   o   conhecimento   e   as   ciências
humanas do que qualquer universidade de que o mundo podia se vangloriar.
      É   claro   que   só   uma   pessoa   que   sempre   havia  sido   mais   ou   menos   estudiosa,   excêntrica   e
solitária poderia adotar esse comportamento durante muitos dias sem chamar a atenção. No entanto,
Ward era por constituição um estudioso e um ermitão; daí seus pais ficarem menos surpresos do que
magoados com a rígida reclusão e o sigilo que ele adotar a. Ao mesmo tempo, tanto o pai quando a
mãe achavam estranho que ele não lhes mostrasse nenhum fragmento de seu valioso achado, nem
lhes fizesse um relato sobre as informações decifradas. Ele justificava essa reticência atribuindo-a a
um desejo de aguardar até poder   anunciar   algo   pertinente, mas, como as semanas passavam sem
maiores revelações, começou a surgir entre o jovem e a família uma espécie de constrangimento
intensificado   no   caso   da   mãe,   por   sua   manifesta   desaprovação   de   todas   as   pesquisas   referentes   a
Curwen.
      No mês de outubro, Ward começou a visitar novamente as bibliotecas, porém não mais pelo
interesse   arqueológico   dos   primeiros   dias.   Bruxaria   e   magia,   ocultismo   e   demonologia   era   o   que
buscava   agora;   e   quando   as   fontes   de   Providence   se   revelaram   infrutíferas,   tomou   o   trem   para
Boston para haurir da riqueza da biblioteca de Copley Square, da Biblioteca Widener de Harvard ou
da Biblioteca de Pesquisa Zion em Brookline, onde se encontravam certas obras raras sobre temas
bíblicos. Comprou muitos livros  e montou toda uma nova estante em  seu escritório para as obras
recém-adquiridas sobre temas sobrenaturais; durante  as   férias   de   Natal,  fez   uma   série   de   viagens
fora da cidade, inclusive uma para Salem, a fim de consultar alguns registros do Instituto Essex. .
     Aproximadamente em meados de janeiro de 1920, acrescentou-se ao comportamento de Ward
um   ar   de   triunfo   que   ele   não   explicou;   já   não  era   visto   trabalhar   no   código   de   Hutchinson.   Ao
contrário, adotou duas linhas de investigação: a pesquisa química e a análise de registros. Montou
para a primeira um laboratório na mansarda da casa que não era usada e para a segunda vasculhou
todas    as  fontes   de  dados    vitais  de   Providence.   Os    comerciantes      de  drogas    e  de  instrumentos
científicos da cidade, posteriormente interrogados, forneceram listas fantasticamente estranhas, sem
sentido,   das   substâncias   e   instrumentos   por   ele  adquiridos;   mas   os   funcionários   da   Assembléia
Estadual,   da    Prefeitura    e  de  várias   bibliotecas   concordam   quanto       ao  objetivo   definido   de   seu
segundo interesse. Ele procurava intensa e febrilmente o túmulo de Joseph Curwen, de cuja lápide
uma geração mais antiga apagara tão sabiamente o nome.
     Aos poucos, na família Ward foi crescendo a convicção de que algo estava errado. Charles já
tivera manias extravagantes, e mudanças de interesses menores antes, mas este sigilo e a absorção
cada vez maior em estranhas investigações eram contrários inclusive à sua índole. Suas atividades
na escola não passavam de pura simulação; e, embora passasse em todos os exames, era visível que
sua antiga aplicação havia desaparecido. Tinha outros interesses agora e, quando não estava em seu
laboratório     com    uma    vintena    de   livros  antiquados     de   alquimia,    podia    ser  encontrado     lendo
atentamente velhos registros funerários no centro da cidade ou colado aos seus volumes de ciências
ocultas em seu escritório, onde as feições espantosamente semelhantes — pode-se dizer cada vez
mais semelhantes — de Joseph Curwen olhavam-no de modo afável do grande painel sobre a lareira
na parede norte.
      No   fim   de   março,   Ward   acrescentou   à   sua  busca   nos   arquivos   uma   série   de   vampirescas
perambulações pêlos vários cemitérios antigos da cidade. A causa foi revelada mais tarde, quando
se   soube    dos   funcionários     da  Prefeitura    que   ele  provavelmente       havia   encontrado     um    indício
importante.   Sua   investigação   repentinamente   desviara-se   do   túmulo   de   Joseph   Curwen   para   o   de
certo    Naphthali     Field;  e  a  mudança      foi  explicada    quando,     ao  examinar     os   arquivos    por  ele
pesquisados,   os   investigadores   de   fato   encontraram   um   registro   fragmentado   do   sepultamento   de
Curwen que escapara da destruição geral e que dizia que o curioso caixão de chumbo havia sido
enterrado "dez pés ao sul e cinco pés a oeste do túmulo de Naphthali Field no______". A ausência
de um jazigo especificado no registro sobrevivente complicou enormemente a pesquisa e o túmulo
de Naphthali parecia tão indefinível quanto o de Curwen; no entanto, nesse caso não tinha havido
uma eliminação sistemática e seria razoável esperar encontrar a própria pedra tumular mesmo que
seu registro tivesse desaparecido. Daí as perambulações — das quais ficaram excluídos o cemitério
                                                           29
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de   St.   John   (outrora   King's)   e   o   antigo   cemitério   congregacional   no   meio   do   cemitério   de   Swan
Point,   uma   vez   que   outros   dados   haviam   demonstrado   que   o   único   Naphthali  Field   (falecido   em
1729) cujo túmulo poderia estar indicado era batista.
                                                                4
      Foi por volta de maio que o doutor Willett, por solicitação de Ward pai, e baseado em todos os
dados   referentes   a   Curwen   que   a   família   havia   obtido   de   Charles   em   épocas   nas   quais   não   se
preocupava   com   o   sigilo,   teve   uma   conversa   com   o        jovem.    A   entrevista   foi  pouco    valiosa   e
conclusiva,      pois   Willett   sentiu   a  todo   momento     que    Charles    estava    totalmente    dono    de   si  e
consciente   de   assuntos   de   verdadeira   importância;   mas   pelo   menos   obrigou   o   reservado   jovem   a
apresentar      alguma     explicação     racional    de  seu   comportamento        recente.    Com     o  rosto   pálido,
impassível, sem mostrar embaraço, Ward pareceu bastante disposto a discutir suas investigações,
embora não a revelar seu objetivo. Afirmou que os papéis de seu antepassado continham notáveis
segredos   do   saber   científico   de   tempos   primitivos,   na   maior   parte   em      código,   de   um   alcance
comparável apenas às descobertas do frei Bacon e talvez mesmo superior a estas. No entanto, não
tinham qualquer importância, salvo se relacionadas a um corpo de conhecimentos hoje totalmente
ultrapassado;   de   modo   que   sua   apresentação  imediata   a   um   mundo   equipado   unicamente   com   a
ciência     moderna     lhes   tiraria   toda   a  força  e    significado    dramático.     Para    que   pudessem      ser
vividamente       assimilados      pela   história    do   pensamento       humano      deveriam     primeiramente       ser
correlacionadas por alguém familiarizado com o ambiente no qual haviam evoluído e a essa tarefa
de   correlação   Ward   se   dedicava   agora.   Ele   estava  tentando   adquirir   tão   rápido   quanto   possível   o
saber   negligenciado   dos   antigos,  que   um   autêntico   intérprete   dos   dados   sobre   Curwen   deveria
possuir,   e   esperava   fazer   uma   apresentação   completa   do   maior   interesse   para   a   humanidade   e   o
mundo do pensamento em seu devido tempo. Nem mesmo Einstein, declarou, poderia revolucionar
de maneira mais profunda a atual concepção das coisas.
      Quanto     à  sua   pesquisa    nos   cemitérios,    cujo   objetivo    admitiu    abertamente,     sem    contar   os
detalhes   de   seu   progresso,   disse   que   tinha   razões   para   pensar   que   a   pedra   tumular   mutilada   de
Joseph   Curwen   continha   certos   símbolos   mágicos —   esculpidos   segundo   instruções   contidas   em
seu    testamento      e  por    ignorância     poupadas     por    aqueles    que    haviam     apagado     o   nome     —
absolutamente   essenciais   à   solução   final   de   seu   misterioso   sistema   cifrado.   Ele   acreditava   que
Curwen desejara guardar com carinho seu segredo e, conseqüentemente, distribuíra as informações
de    uma   forma    sobremaneira       curiosa.   Quando     o  doutor    Willett   pediu   para   ver   os  documentos
mágicos,   Ward   demonstrou   muita   relutância   e   tentou   esquivar-se   com   evasivas,   como   as   cópias
fotostáticas   do   código   de   Hutchinson   e   as   fórmulas   e   os   diagramas   de   Orne;   mas   finalmente
mostrou-lhe a capa de algumas das verdadeiras descobertas sobre Curwen — o Diário e Notas,  o
código (título em código também) e a mensagem repleta de fórmulas  "Àquele que virá depois"— e
deixou-o dar uma olhada nos papéis escritos em caracteres incompreensíveis.
     Ele   abriu   também   o   diário   numa   página   cuidadosamente   escolhida   por   seu   teor   totalmente
inócuo e permitiu que Willett olhasse o manuscrito de Curwen em inglês. O médico observou com
atenção as letras ininteligíveis e complicadas e a aura do sécuIo XVII que pairava sobre a caligrafia
e o estilo, embora seu escritor sobrevivesse até o século XVIII, e teve imediatamente a certeza de
que o documento era autêntico. O próprio texto era relativamente trivial, e Willett lembrava apenas
um fragmento:
     "Quarta-feira, dia 16 de outubro de 1754. Minha corveta Wahefal saiu hoje de Londres com XX
novos     homens     embarcados      nas   índias,   espanhóis    da   Martinica     e  holandeses     do  Suriname.      Os
holandeses estão propensos a desertar por terem ouvido falar um tanto mal desse empreendimento,
mas farei de modo a induzi-los a ficar. Para o senhor Knight Dexter no Bay and Book 120 peças de
chamalote, 100 peças sortidas de pêlo de camelo, 20 peças de lã azul, 50 peças de calamanta, 300
peças cada de algodão das índias e shendsoy. Para o senhor Green do Elefante, 50 panelas de um
galão, 20 panelas de aquecer, 15 fôrmas de assar, 10 tenazes de defumar. Para o senhor Perrigo, l
conjunto      de  sovelas.    Para   o  senhor    Nightingale,     50   resmas    de   papel   de   primeira.    Recitei   o
                                                            30
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SABBAOTH três vezes na noite passada mas ninguém apareceu. Preciso saber mais do senhor H.
na Transilvânia, embora seja difícil entrar em contato com ele e é muito estranho que ele não possa
me ensinar o uso daquilo que tem usado tão bem nesses cem anos. Simon não escreveu nessas V
semanas, mas espero ter notícias suas em breve".
      Chegando a esse ponto, quando o doutor Willett virou a página, foi rapidamente impedido por
Ward,   que   quase   arrancou   o   livro   de   suas   mãos.  Tudo   o   que   o   médico   conseguiu   ver   na   página
recém-aberta       foram   duas   frases;   mas   estas,  é  estranho,    permaneceram       obstinadamente       em   sua
memória. Diziam: "Pronunciado o verso do Liber-Damnatus em V vésperas do dia da Cruz e IV
vésperas   de   Todos   os   Santos,   espero   que   a   coisa  esteja   se   preparando   fora   das   esferas.   Ele   trará
aquele que está para vir se eu puder ter certeza de que ele existirá e pensará as coisas passadas e
olhará para trás dos anos e para isto deverei ter os sais prontos ou o necessário para fazê-los".
      Willett não viu mais nada, mas de alguma forma essa rápida olhada conferiu um novo e vago
terror   às   feições   pintadas   de   Joseph   Curwen,   que  olhava   afavelmente   de   cima da lareira. Mesmo
depois, ele teve a curiosa fantasia — sua experiência médica, é claro, lhe garantiu não passar de
uma   fantasia   —   de   que   os   olhos   do   retrato   tinham   uma   espécie   de   desejo,   se   não   uma   autêntica
tendência, a seguir Charles Ward enquanto este se deslocava pelo cômodo. Deteve-se antes de sair
para examinar de perto a pintura, assombrado com sua semelhança com Charles e memorizou cada
mínimo detalhe do rosto misterioso e sem cor, inclusive uma pequena cicatriz ou cova na testa lisa
sobre   o   olho   direito.   Cosmo   Alexander,   decidiu,   era   um   pintor   digno  da   Escócia   que   produziu
Raeburn e um mestre digno de seu ilustre pupilo Gilbert Stuart.
      Assegurados pelo médico de que a saúde mental de Charles não estava em perigo, mas que, por
outro lado, o jovem estava envolvido em pesquisas que poderiam se revelar de importância real, os
Wards ficaram mais tolerantes do que de outro modo se riam quando, no mês de junho seguinte, ele
se recusou decididamente a freqüentar a escola. Alegou ter estudos de uma importância muito mais
vital a seguir e anunciou o desejo de ir para o exterior no ano seguinte, a fim de se valer de certas
fontes   de   informações   inexistentes   na   América. O   pai   de   Ward,   embora   recusasse   atender   a   este
desejo   por   considerá-lo   absurdo para   um   rapaz   de   apenas   dezoito   anos,   concordou   a   respeito   da
universidade. Assim, após uma conclusão não muito brilhante do curso na Escola Moses Brown,
seguiu-se para Charles um período de três anos de intensos estudos de ocultismo e pesquisas em
cemitérios.   Ele   passou   a   ser   considerado   um   excêntrico   e   desapareceu   de   vista   dos   familiares   e
amigos ainda mais completamente do que antes; debruçou-se sobre seu trabalho e apenas de vez em
quando viajava para outras cidades a fim de consultar misteriosos registros. Certa vez, foi ao sul
para conversar com um estranho velho mulato que vivia num pântano e a respeito do qual um jornal
escrevera um curioso artigo. Depois, procurou uma pequena aldeia nos montes Adirondack, de onde
haviam   saído   relatos   de   curiosas   cerimônias.   Mas   ainda   seus   pais   lhe   proibiam   a   viagem   tão
desejada ao Velho Mundo.
      Ao   chegar   à   maioridade,   em   abril   de   1923,   e   tendo   herdado   do   avô  materno   uma   pequena
renda, Ward resolveu enfim realizar a viagem à Europa até então negada. Nada comentou a respeito
do itinerário pretendido, salvo que as necessidades de seus estudos o levariam a muitos lugares, mas
prometeu   escrever   aos   pais   um   relato   sincero   e   completo.   Quando   eles   viram   que   não   poderiam
dissuadi-lo, abandonaram toda a oposição e ajudaram-no na medida do possível; de modo que em
junho o jovem embarcava para Liverpool com as bênçãos do pai e da mãe, que o acompanharam até
Boston e acenaram para ele até o navio desaparecer do embarcadouro White Star, em Charlestown.
As cartas logo contaram que chegara são e salvo e que tomara boas acomodações em Great Russell,
em Londres, onde propunha-se a ficar, evitando todos os amigos da família, até esgotar os recursos
do Museu Britânico num determinado assunto. Escrevia pouco sobre sua vida de todos os dias, pois
havia   pouco   a   escrever.   Estudos   e   experimentos   tomavam-lhe   o   tempo   todo   e   mencionava   um
laboratório      que   havia    montado    num     dos    cômodos.     O    fato  de  não     falar  de   peregrinações
arqueológicas       na  antiga   e  fascinante    cidade,  com     seu  atraente   horizonte    de   antigas   cúpulas   e
campanários   e   seu   emaranhado   de   ruas   e   ruelas   cujos   meandros   misteriosos   e   vistas   inesperadas
alternadamente acenam e surpreendem, foi tomado por seus pais como um indício seguro do grau
em que seus novos interesses absorviam sua mente.
                                                            31
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      Em junho de 1924, uma breve mensagem informou que ele partia rumo a Paris, cidade para a
qual havia feito antes duas ou três viagens em busca de material na Bibliotèque Nationale. Nos três
meses seguintes, enviou apenas cartões-postais, dando um endereço na rua St. Jacques e referindo-
se a uma pesquisa especial entre manuscritos raros na biblioteca de um colecionador cujo nome não
mencionou. Evitava fazer amizades e nenhum turista voltou contando tê-lo encontrado. Seguiu-se
então um período de silêncio e em outubro os Wards receberam um cartão de Praga dizendo que
Charles se encontrava naquela antiga cidade com o propósito de consultar um homem muito idoso,
supostamente o último detentor vivo de algumas informações medievais muito curiosas. Dava um
endereço na Neustadt e anunciava que lá permaneceria até janeiro do ano seguinte, quando mandou
vários cartões de Viena falando de sua passagem por aquela cidade a caminho de uma região mais
oriental,   para   a   qual   fora   convidado   por   um   de  seus   correspondentes   e   colegas   de   pesquisas   do
oculto.
      O   próximo   cartão   era   de   Klausenburg,   na   Transilvânia,   e   falava   dos   progressos   de   Ward   na
perseguição      de  seu   objetivo.   Ia  visitar  um   certo  barão    Ferenczy,    cuja  propriedade     ficava   nas
montanhas   a   leste   de   Rakus,   e   a   correspondência  deveria   ser   endereçada   a   Rakus   aos   cuidados
daquele aristocrata. Outro cartão de Rakus, enviado uma semana mais tarde, dizia que a carruagem
de seu anfitrião havia ido ao seu encontro e que ele estava partindo da aldeia rumo às montanhas,
sendo esta a última mensagem durante um período considerável. Em realidade, não respondeu às
freqüentes   cartas   dos   pais   até   maio,   quando   escreveu   desaconselhando   o   projeto   de   sua   mãe   de
encontrá-lo   em   Londres,   Paris   ou   Roma   no   verão,   quando   os   Wards   pretendiam   viajar   para   a
Europa. Suas pesquisas, ele disse, eram de tal ordem que não podia deixar sua atual morada, e ao
mesmo      tempo    a  localização    do   castelo  do   barão  Ferenczy      não   favorecia   visitas.  Ficava    num
penhasco nas sombrias montanhas cobertas de florestas e a região era tão evitada pêlos habitantes
dos campos que as pessoas normais não se sentiriam à vontade. Além disso, o barão não era uma
pessoa que pudesse agradar a gente de posição e conservadora da Nova Inglaterra. Seu aspecto e
comportamento tinham certas idiossincrasias e sua idade era tão avançada que chegava a inquietar.
Seria melhor, dizia Charles, que seus pais esperassem sua volta a Providence, o que não demoraria a
acontecer.
      No entanto, ele só voltou em maio de 1925, quando, depois de alguns cartões anunciando sua
chegada, o jovem viajante desembarcou do Homeric  sem alardes em Nova Iorque e percorreu as
longas milhas até Providence de ônibus, embebendo-se avidamente da visão das onduladas colinas
verdejantes     dos   fragrantes    pomares     em   flor e   das   brancas   cidadezinhas      com   campanário      do
Connecticut   primaveril;   era   seu   primeiro   contato   em   quase   quatro   anos   com   a   Nova   Inglaterra.
Quando o ônibus atravessou o Pawcatuck e entrou em Rhode Island no ar dourado e irreal de uma
tarde   de   fim   de   primavera,   seu   coração   batia   com   mais   força   e   o   ingresso   em   Providence,   pelas
avenidas      Reservoir    e   Elmwood,      foi  uma    coisa    maravilhosa,     de   tirar  o  fôlego,   apesar    da
profundidade dos conhecimentos proibidos nos quais havia mergulhado. Na praça elevada onde as
ruas Broad, Weybosset e Empire se cruzam, ele viu à sua frente e mais abaixo, no incêndio do pôr-
do-sol, as casas aprazíveis de suas recordações e as cúpulas e campanários da cidade velha; e sua
cabeça rodou numa curiosa vertigem enquanto o veículo descia até o terminal atrás do Baltimore,
descortinando a visão da grande cúpula e do verde da folhagem macia, pontilhada de telhados, da
antiga colina do outro lado do rio e o alto pináculo colonial da Primeira Igreja Batista, pintada de
vermelho   na   mágica   luz   do   crepúsculo   destacando-se   contra   o   fundo   íngreme   de   fresca   verdura
primaveril.
      Velha Providence! Foram este lugar e as forças misteriosas de sua longa e contínua história
que o haviam feito nascer e o haviam atraído para maravilhas e segredos cujas fronteiras nenhum
profeta poderia delimitar. Aqui se encontravam os mistérios, fantásticos ou medonhos, para os quais
todos aqueles anos de viagens e estudos o haviam preparado. Um táxi levou-o rapidamente através
da praça do Correio com a vista rápida do rio, o antigo edifício do Mercado e a ponta da enseada,
subindo pela curva íngreme de Waterman Street até Prospect, onde a vasta cúpula resplandecente e
as colunas jônicas banhadas pelo poente da Igreja da Ciência Cristã acenavam ao norte. E, depois de
oito quadras, as belas mansões antigas que seus olhos de criança haviam conhecido, e as exóticas
                                                           32
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calçadas   de   tijolos   tantas   vezes   percorridas   por   seus   pés   juvenis.   E   finalmente   a   pequena   casa
branca   da   fazenda   que   havia   sido   invadida   à  direita,   à   esquerda   a   clássica   varanda   Adam   e   a
imponente       fachada    com    as  janelas   salientes   do   casarão   de   tijolos  onde    havia   nascido.    Era  o
crepúsculo, e Charles Ward estava de volta.
                                                                5
      Uma corrente da psiquiatria, um pouco menos acadêmica do que a do doutor Lyman, atribui à
viagem de Ward à Europa o início de sua verdadeira loucura. Admitindo que o jovem fosse são ao
partir, ela acredita que sua conduta na volta implica uma mudança desastrosa. Mas o doutor Willett
recusa-se a concordar mesmo com esta afirmação. Algo ocorreu mais tarde, ele insiste, e atribui as
esquisitices   do   jovem   nessa   fase   à  prática   de   rituais   aprendidos   no   exterior   —   coisas   bastante
estranhas, em verdade, mas que absolutamente não implicam aberrações mentais por parte de seu
celebrante. O próprio Ward, embora visivelmente envelhecido e calejado, ainda era normal em suas
reações   gerais   e,  em  várias   conversas   com  Willett,   mostrara   um  equilíbrio   que   nenhum  louco —
mesmo   um   louco   incipiente   —   poderia   fingir   continuamente   por   muito   tempo.   O   que   suscitou   a
idéia de insanidade nesse período foram os sons que provinham a todas as horas do laboratório de
Ward na mansarda, na qual ele permanecia pela maior parte do tempo. Eram recitações, repetições e
tonitroantes declamações em ritmos misteriosos; e embora esses sons fossem sempre na própria voz
de Ward, havia algo na qualidade daquela voz e nas entonações das fórmulas pronunciadas, que não
podia deixar de gelar o sangue de qualquer ouvinte. As pessoas observavam que Nig, o venerando e
adorado   gato   preto   da   casa,   ficava   sobressaltado   e   arqueava   visivelmente   as   costas   quando   se
ouviam certos sons.
      Os odores que ocasionalmente emanavam do laboratório eram do mesmo modo extremamente
estranhos. Ás vezes eram mefíticos, mas mais frequentemente aromáticos, com uma característica
obsedante   e   evanescente   que   parecia   ter   o   poder   de  criar   imagens   fantásticas.   As   pessoas   que   os
aspiravam   tinham   a   tendência   a   vislumbrar   miragens   momentâneas   de   paisagens   enormes,   com
estranhos     montes     ou   avenidas    intermináveis    de    esfinges    e  hipogrifos    estendendo-se      por   uma
distância infinita. Ward não retomou as perambulações de outrora, mas se aplicou diligentemente
aos estranhos livros que trouxera para casa e a investigações igualmente estranhas em seus próprios
aposentos, explicando que as fontes européias haviam ampliado enormemente as possibilidades de
seu    trabalho    e  prometendo      grandes     revelações   nos    próximos      anos.   Seu   aspecto    envelhecido
acentuou   em   grau   espantoso   sua   semelhança   com   o  retrato   de   Curwen   na   biblioteca   e   o   doutor
Willett frequentemente se detinha ao lado deste depois de uma visita, espantando-se com a virtual
identidade   e   refletindo   que   agora  só   restava   a   pequena   cova   sobre   o   olho   direito  do   retrato   para
diferenciar   o   bruxo,   há   muito   tempo   falecido,   do jovem   vivo.   Essas   visitas   de   Willett,   feitas   a
pedido   do   casal   Ward,   eram   curiosas.   Em   nenhum   momento   Ward   repeliu   o   médico,   mas   este
percebia que jamais conseguiria apreender a psicologia íntima do jovem. Frequentemente observava
coisas peculiares à sua volta: pequenas imagens de cera de desenho grotesco sobre as estantes ou as
mesas e os restos semi-apagados de círculos, triângulos e pentagramas traçados com giz ou carvão
no   espaço   livre   no   centro   do   amplo   aposento.   E,   à   noite,   sempre   ressoavam   aqueles   ritmos      e
encantamentos estrondosos, até que se tornou muito difícil manter os empregados ou acabar com os
comentários furtivos sobre a loucura de Charles.
      Em    janeiro    de  1927,    ocorreu    um   incidente    peculiar.   Certa    vez,  por   volta   da  meia-noite,
enquanto Charles entoava um ritual cuja cadência irreal ecoava de modo desagradável pêlos andares
inferiores da casa, de repente soprou uma rajada de vento gélido da baía, e sentiu-se um ligeiro e
inexplicável tremor de terra que todos na vizinhança notaram. Ao mesmo tempo, o gato mostrou
sinais fenomenais de terror, enquanto os cães latiam em até uma milha de distância. Era o prelúdio
de uma violenta tempestade, anormal naquela estação, durante a qual ouviu-se um estalo tão forte
que o senhor e a senhora Ward pensaram que a casa tivesse sido atingida por um raio. Correram
para   cima   para   ver   os   estragos,   mas   Charles   os  atendeu   à   porta   da   mansarda,   pálido,   resoluto   e
sinistro, com uma mistura quase temível de triunfo e seriedade em seu rosto. Assegurou-os de que a
                                                            33
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casa   não   havia   sido   atingida  e  que   a   tempestade   logo   acabaria.   Eles   pararam   e,   ao   olharem   pela
janela, viram que o  rapaz estava certo; os raios iam se distanciando, enquanto as árvores já não se
curvavam   à   estranha   rajada   gélida   que   vinha   do  mar.   O   trovão   foi   abrandando   numa   espécie   de
resmungo   abafado   e   finalmente   cessou.   As   estrelas  apareceram  e   a   marca   do   triunfo   no   rosto   de
Charles Ward cristalizou-se numa expressão bastante singular.
      Durante   dois   meses   ou   mais,   depois   desse   incidente,   Ward   manteve-se   menos   segregado   em
seu laboratório do que de costume. Ele exibia um  curioso   interesse   pelo   tempo   e   fazia   estranhas
perguntas a respeito da época do  degelo da primavera. Uma noite, no fim de março, saiu de casa
após a meia-noite e só voltou perto do amanhecer, quando sua mãe, que estava acordada, ouviu o
ruído de um motor subir pela alameda. Podia-se distinguir palavrões abafados e a senhora Ward,
levantando-se e indo até a janela, viu quatro vultos escuros retirarem uma caixa comprida e pesada
de um caminhão sob a orientação de Charles, carregando-a ao interior da casa pela porta lateral. Ela
ouviu respirações arquejantes e passos pesados sobre as escadas e, finalmente, um baque surdo na
mansarda; depois disso os passos desceram, os quatro homens reapareceram fora da casa e partiram
em seu caminhão.
      No    dia  seguinte,    Charles    retomou     sua   rígida reclusão     na   mansarda,     descendo     as  cortinas
escuras das janelas do laboratório e aparentemente dedicando-se ao trabalho com alguma substância
metálica. Ele não abria a porta para ninguém e recusava peremptoriamente toda a comida que lhe
era oferecida. Perto de meio-dia ou viu-se uma pancada violenta seguida por um grito terrível e uma
queda, mas quando a senhora Ward bateu à porta o filho demorou a responder e, com voz fraca,
disse que não havia acontecido nada. Explicou que o fedor horrendo e indescritível que agora se
espalhava   era   absolutamente   inócuo   e   infelizmente   necessário,   que   o   isolamento   era   o   elemento
essencial   e   que   desceria   atrasado para   o   jantar.   Naquela   tarde,   ao   terminarem   os   estranhos   sons
sibilantes     que   vinham     de  trás da    porta   trancada,   Charles    por   fim   apareceu,    com    um    aspecto
extremamente perturbado e proibindo a quem quer que fosse o ingresso no laboratório, sob qualquer
pretexto. Este, em realidade, seria o começo de um novo período de sigilo; porque a partir de então
nunca mais nenhuma outra pessoa teria a permissão de visitar a misteriosa oficina na água-furtada
ou o quarto de despejo adjacente que ele limpara, mobiliando-o toscamente, e acrescentara, como
dormitório,   ao   seu   domínio   inviolavelmente   privado.   Ali   ele   viveu,   com   os   livros   trazidos   da
biblioteca do andar de baixo, até que adquiriu um bangalô em Pawtuxet e para lá se mudou com
todos os seus pertences científicos.
      À   noite,   Charles   apoderou-se   do   jornal   antes   dos   outros   membros   da   família   e   rasgou   uma
parte,    aparentemente       por  acidente.    Mais    tarde,   o  doutor    Willett,   que   descobriu     a  data   pelas
declarações das várias pessoas da casa, pesquisou uma cópia intacta do jornal na redação do Journal
e descobriu, na parte destruída, o seguinte artigo:
       Violadores Noturnos Surpreendidos no Cemitério Norte
      Robert Hart, guarda-noturno do Cemitério Norte, descobriu esta manhã um grupo de homens com um
caminhão na parte   mais antiga do cemitério, mas aparentemente   assustou-os antes que concluíssem o que
pretendiam.
      A descoberta ocorreu por volta das quatro horas da manhã, quando a atenção de Hart   foi despertada
pelo ruído de um motor do lado de fora do seu abrigo. Ao fazer urna averiguação, viu um caminhão grande
na alameda principal, a muitas varas de distância, mas não conseguiu alcançá-lo porque o barulho dos seus
passos    revelou   sua  presença.   Os   homens    colocaram   apressadamente      uma    grande   caixa  no  caminhão     e
rumaram para a rua antes que pudessem ser detidos; e como nenhum túmulo conhecido foi molestado, Hart
acredita que os homens pretendiam enterrar a própria caixa.
      Os   profanadores   deviam   estar   cavando   há   muito   tempo   antes   de   serem   surpreendidos,   porque   Hart
encontrou uma cova enorme aberta a uma distância considerável da alameda no setor de Armosa Field, onde
a maioria das antigas lápides desapareceu há muito tempo. O buraco, uma cova larga e profunda como um
túmulo, estava vazio; e não coincidia com nenhuma sepultura indicada nos registros do cemitério.
      O sargento Riley, do Segundo Distrito de Polícia, vistoriou o local e opinou que o buraco foi cavado por
contrabandistas   que,   numa   atitude   revoltante   e   engenhosa,   procuravam  um   esconderijo   seguro   para   suas
bebidas num lugar que não seria molestado. Em resposta às perguntas que lhe foram feitas, Hart disse que
achava que o caminhão fugitivo rumara para a Rochambeau Avenue, embora não tivesse certeza disso.
                                                             34
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      Nos dias seguintes, Charles Ward raramente foi visto pela família. Como anexara um cômodo
para dormir ao seu reino na mansarda, isolava-se em seus aposentos, ordenando que a comida fosse
levada até a porta e só a apanhava quando o empregado havia se retirado. O salmodiar de fórmulas
em     tom   monótono       e  a  entoação    de   ritmos    bizarros   ocorria    a  intervalos,    enquanto     em   outros
momentos        ocasionais     ouvintes    poderiam      distinguir    o  tinido    de  vidros,    silvos   de   substâncias
químicas, o ruído de água corrente ou o reboar de chamas de gás. Odores dos mais indescritíveis,
totalmente diferentes de quaisquer outros notados  antes, flutuavam às vezes nas proximidades da
porta; e um ar de tensão era observado no jovem recluso sempre que se aventurava brevemente para
fora, estimulando a especulação mais intensa. Uma vez ele realizou uma saída até o Ateneu para
buscar   um   livro   de   que   precisava,   e   depois   contratou   um   mensageiro   para   buscar   um   volume
totalmente   desconhecido   em   Boston.      situação  não   deixava   pressagiar  nada   de   bom   e   tanto   a
família   quanto   o   doutor   Willett   confessavam-se  totalmente   sem   saber   o   que   fazer   ou   pensar   a
respeito.
                                                                 6
      Então, no dia 15 de abril, deu-se um fato estranho. Embora nada diferente ocorresse em gênero,
houve   com   certeza   uma   diferença   realmente   terrível   em   grau,   e   o   doutor   Willett   de   certa   forma
atribui grande importância à mudança. Era a Sexta-Feira Santa, circunstância muito importante para
os   empregados,   mas   que   outros   menosprezam   por   considerá-la   uma   coincidência   irrelevante.   No
fim   da   tarde,   o   jovem   Ward   começou   a   repetir   certa   fórmula   num   tom   singularmente   elevado,
queimando   ao   mesmo   tempo   alguma   substância   de  cheiro   tão   penetrante   que   seus   vapores   se
expandiram por toda a casa. A fórmula era tão claramente audível no corredor, do outro lado da
porta   trancada,   que   a   senhora   Ward   não   pôde   deixar   de   memorizá-la   enquanto   esperava   e   ouvia
ansiosamente        e  mais    tarde  conseguiu      escrevê-la    a  pedido    do   doutor    Willett.   Os   especialistas
disseram   ao   doutor   Willett   que   seu   equivalente  mais   próximo   podia   ser   encontrado   nos   escritos
místicos   de   "Eliphas   Levi",   aquele   espírito   misterioso   que   se  insinuou   por   uma   fenda   da   porta
proibida e teve um rápido vislumbre das terríveis visões do vazio além. Seu teor era o seguinte:
                                           "Per Adonai Eloim, Adonai Jehova,
                                     Adonai Sabaoth, Metraton Ou Agla Methon,
                                     verbum pythonicum, mysterium salamandrae,
                                         cenventus sylvorum, antra gnomorum,
                                         daemonia Coeli God, Almonsin, Gibor,
                                   Jehosua, Evam, Zariathnatmik, Veni, veni, veni".
      A recitação continuava há duas horas sem alteração ou interrupção quando se desencadeou por
toda   a   vizinhança   um   pandemônio   de   latidos   de   cachorros.   A   dimensão   desses   latidos   pode   ser
julgada   pelo   espaço   que   lhe   foi   dedicado   pêlos   jornais   no   dia   seguinte,   mas   para   as   pessoas   da
residência dos Wards foi sobrepujada pelo odor que instantaneamente se seguiu; um odor horrível,
que   penetrou   em   toda   parte,   jamais   sentido  antes   nem   depois.   Em   meio   a   esse   fluxo   mefítico
apareceu uma luz muito nítida como a do relâmpago, que poderia ofuscar e impressionar não fosse
dia   pleno;   e   então   ouviu-se  a   voz  que   nenhum   ouvinte   jamais   poderá  esquecer   por   causa   de   seu
tonitroante   tom   distante,   sua   incrível   profundidade   e   sua   dissemelhança   sobrenatural   da   voz   de
Charles Ward. Abalou a casa e foi claramente ouvida pelo menos por dois vizinhos, apesar do uivo
dos cães. A senhora Ward, que ouvia desesperada fora da porta trancada do laboratório do filho,
ficou arrepiada ao reconhecer seu sentido diabólico, pois Charles lhe havia contado sua má fama
nos   livros   secretos   e   a   maneira   como   reboara,   segundo   as   cartas   de   Fenner,   sobre   a   casa   de
Pawtuxet   condenada   à   destruição   na   noite   do   extermínio   de   Joseph   Curwen.   Não   havia   como
equivocar-se quanto à frase apavorante, pois Charles a havia descrito de modo muito vivo em outros
tempos, quando conversava com franqueza de suas investigações sobre Curwen. E no entanto era
                                                              35
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apenas     um   fragmento     numa    linguagem     arcaica   e  esquecida:    "DIES  MIES       JESCHET       BOENE
DOESEF DOUVEMA ENITEMAUS".
      Logo     após   esse   reboar   a  luz do    dia  escureceu     momentaneamente,         embora    o   pôr-do-sol
demorasse ainda uma hora, e então seguiu-se uma lufada de outro odor, diferente do primeiro, mas
igualmente desconhecido e intolerável. Charles recitava de novo em tom monótono e sua mãe ouvia
as sílabas que soavam como "Yinash-Yog-Sothoth-he-lglb-fi-throdag" — acabando com um "Yah!"
cuja   força   desvairada   subia   num   crescendo   de  arrebentar   os   tímpanos.   Um   segundo   mais   tarde,
todas    as  lembranças     anteriores    foram   apagadas     pelo  grito   lamentoso    que    irrompeu    com    uma
explosividade       desvairada    e  gradativamente       foi  se  transformando      num   paroxismo       de   risadas
diabólicas e histéricas. A senhora Ward, com aquela mistura de medo e coragem cega própria da
maternidade, aproximou-se e bateu alarmada à porta ocultadora, mas não obteve nenhum sinal de
reconhecimento. Bateu de novo, mas parou impotente quando um segundo grito se levantou, dessa
vez    na  voz   inconfundível     e  familiar   de  seu   filho,  ao  mesmo     tempo    em   que   a  outra   voz   ria
desmedidamente.        Em    seguida,    ela  desmaiou     e  ainda   é  incapaz   de   lembrar   a  causa    precisa   e
imediata. A memória às vezes apaga piedosamente certas lembranças.
      O senhor Ward voltou do trabalho às seis e quinze e, não encontrando a esposa no andar térreo,
foi   informado   pêlos   empregados   apavorados   que  provavelmente   ela   estava   diante   da   porta   de
Charles, da qual vinham sons mais estranhos do que nunca. Subindo de imediato as escadas, viu a
senhora     Ward    estirada   no  chão    do  corredor    fora  do  laboratório    e,  ao  perceber    que  ela  havia
desmaiado, apressou-se a buscar um copo de água de uma jarra numa alcova próxima. Borrifou o
líquido   frio   em   seu   rosto   e   sentiu-se   reanimado   ao  perceber   uma   reação   imediata   da   parte   dela;
observava-a enquanto seus olhos se abriam perplexos quando um calafrio o percorreu e ameaçou
reduzi-lo    ao   mesmo     estado   do   qual ela   estava   se  recobrando.     Pois   o  laboratório   não   era  tão
silencioso como parecia ser, mas emanava os murmúrios de uma conversação tensa e abafada, em
tons   demasiado   baixos   para   que   fosse   possível   compreende-los   e,   contudo,   de   uma   qualidade
profundamente perturbadora para a alma.
      Evidentemente, não era uma novidade que Charles resmungasse fórmulas, mas esse resmungo
era definidamente diferente. Era claramente um diálogo, ou uma imitação de inflexões sugerindo
pergunta e resposta, afirmação e réplica. Uma voz era inconfundivelmente a de Charles, mas a outra
tinha   uma   profundidade   e   um   timbre   profundo   e  cavernoso   que,   apesar   dos   maiores   poderes   de
imitação,     o  jovem    jamais   havia    conseguido     reproduzir.    Tinha   algo   de  medonho,      blasfemo     e
anormal, e não fosse um grito de sua mulher que voltava a si, clareando sua mente e despertando
nele   seu   instinto   de   proteção,   é   muito   provável   que   Theodore   Howland   Ward   não   conseguisse
manter por quase um ano ainda seu velho motivo de orgulho, o fato de jamais ter desmaiado. Pegou
a esposa nos braços e a carregou para baixo antes que ela pudesse perceber as vozes que o haviam
perturbado   de   modo   tão   horrível.  Mesmo   assim,   porém,   não   foi   suficientemente   rápido   para   ele
mesmo deixar de captar algo que fez com que cambaleasse perigosamente com sua carga. Pois o
grito da senhora Ward evidentemente havia sido ouvido por outros além dele e em resposta vieram
de   trás   da   porta   trancada   as   primeiras   palavras   compreensíveis   pronunciadas   naquele   colóquio
camuflado e terrível. Não passavam de uma excitada advertência na voz do próprio Charles, mas de
algum modo suas implicações produziram um terror indescritível no pai que as ouviu. A frase foi
apenas isto: "Sshh! - Escreva."
     O senhor e a senhora Ward debateram longamente o caso após o jantar e o primeiro resolveu
ter uma conversa firme e séria com Charles naquela mesma noite. Não importava quão importante
fosse   o   objetivo,   esse   comportamento   não   seria   mais   permitido;   pois   os   últimos   acontecimentos
ultrapassavam todo limite da razão e constituíam uma ameaça à ordem e ao bem-estar de todos na
casa. O jovem devia de fato estar totalmente fora de si, pois só a loucura completa poderia provocar
gritos tão selvagens e conversações imaginárias em vozes simuladas como naquele dia. Tudo isto
deveria parar ou a senhora Ward adoeceria e se tornaria impossível conservar a criadagem.
     O    senhor    Ward    levantou-se    no   fim   da  refeição   e  começou      a  subir  as  escadas    rumo    ao
laboratório   de   Charles.   No   entanto,  no   terceiro   andar,   ele   parou   ao  ouvir   os   sons   procedentes   da
biblioteca do filho, agora em desuso. Os livros, aparentemente, estavam sendo atirados pela sala e
                                                           36
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os papéis eram amassados de modo frenético, e ao chegar à porta o senhor Ward observou o jovem
no   interior   do   cômodo,   reunindo   excitado   uma   enorme   braçada   de   material   literário   de   todos   os
tamanhos      e  formatos.    O   aspecto    de  Charles    era  muito    tenso   e  conturbado     e  ele  largou    tudo
sobressaltado   ao   som   da   voz   do   pai.   À   sua  ordem   sentou-se   e   por   alguns   momentos   ouviu   as
admoestações que há muito merecia. Não houve cenas. No final do sermão, concordou que o pai
estava   certo   e   que   as   vozes,   resmungos,   fórmulas   cabalísticas   e   odores   químicos   eram   de   fato
incômodos        imperdoáveis.       Concordou      com     métodos      mais    calmos,     embora     insistisse   num
prolongamento de seu extremo isolamento. Grande parte de seu trabalho futuro, disse ele, em todo
caso   consistiria   exclusivamente   em   pesquisa   em   livros   e   poderia   conseguir   um   alojamento   em
algum outro lugar para realizar todos os rituais vocais necessários num outro estágio. Pelo medo e o
desmaio da mãe expressou sua mais profunda contrição e explicou que a conversação ouvida mais
tarde fazia parte de um elaborado simbolismo destinado a criar uma determinada atmosfera mental.
O   emprego   de   abstrusos   termos   químicos   confundiu   um   pouco   o   senhor   Ward,   mas   a   ultima
impressão   ao   despedir-se   do   filho   foi   de   inegável   sanidade   mental   e   equilíbrio,   apesar   de   uma
misteriosa     tensão    da  maior    gravidade.    A   entrevista,   na  realidade,    foi  de  todo   inconclusiva     e,
enquanto   Charles   recolhia   do   chão  sua   braçada   de livros e deixava o quarto, o senhor Ward não
sabia o que fazer com toda essa história. Era tão misteriosa quanto a morte do pobre velho Nig, cujo
corpo enrijecido, os olhos esbugalhados e a boca contorcida pelo medo, havia sido encontrado uma
hora antes no subsolo da casa.
      Levado por um vago instinto de detetive, o confuso genitor  agora fixava com curiosidade as
prateleiras vazias para ver o que seu filho havia levado para a mansarda. A biblioteca do jovem era
classificada de maneira simples e rígida, de modo que bastava uma olhada para saber que livros ou
pelo menos que tipo de livros haviam sido retirados. Nessa ocasião, o senhor Ward ficou espantado
ao verificar que nada que falasse de ocultismo ou arqueologia estava faltando, além daquilo que já
havia sido retirado. Os livros que acabava de retirar eram todos sobre assuntos modernos: história,
tratados   científicos,   geografia,   manuais   de   literatura,   obras   filosóficas   e  alguns   jornais   e   revistas
contemporâneos. Tratava-se de uma mudança muito curiosa no rumo recente das leituras de Charles
Ward e o pai se deteve num crescente turbilhão de perplexidade e na sensação avassaladora de algo
inexplicável. O inexplicável era uma sensação muito aguda e quase dilacerava seu peito enquanto se
esforçava   por   entender   o   que   havia   de   errado   ao   seu   redor.   Alguma   coisa   em   realidade   estava
errada, tanto material quanto espiritualmente. Desde que penetrara nesse aposento sabia que algo
estava errado e finalmente se deu conta do que era.
      Na parede norte ainda estava a antiga peça trabalhada de madeira da casa de Olney Court, mas
o   óleo   rachado   e   precariamente   restaurado   do   grande   retrato   de   Curwen   sofrera   um   desastre.   O
tempo e o calor desigual haviam enfim realizado o seu trabalho, e desde a última limpeza da peça o
pior havia acontecido. Com a madeira evidentemente descascada, cada vez mais empenada e por
fim     esmigalhada      com    uma    rapidez    diabolicamente      silenciosa,    o  retrato   de   Joseph    Curwen
renunciara para sempre a vigiar o jovem ao qual se assemelhava de um modo tão estranho e agora
jazia espalhado sobre o solo transformado numa camada de fino pó cinza-azulado.
                                                      Capítulo quatro
                                                   Mutação e Loucura
                                                               1
      Na   semana   que   se   seguiu   àquela   memorável   Sexta-feira   Santa,   Charles   Ward   foi   visto   com
freqüência maior do que de costume e sempre carregando livros entre sua biblioteca e o laboratório
na mansarda. Seus atos eram calmos e racionais, mas ele tinha um olhar furtivo e atormentado que
não   agradava   absolutamente   à   mãe,   e   mostrava   um   apetite   incrivelmente   ávido,   proporcional   às
exigências que dera de fazer ao cozinheiro.
                                                            37
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      O doutor Willett foi informado dos ruídos e acontecimentos daquela sexta-feira e na terça-feira
seguinte teve uma conversa com o jovem na biblioteca onde o quadro já não ficava vigiando. A
entrevista foi, como sempre, inconclusiva; mas Willett ainda está disposto a jurar que o jovem era
são e dono de si naquela ocasião. Fez promessas de uma próxima revelação e falou da necessidade
de   montar   um   laboratório   em   algum   outro   lugar.   A   falta   do   retrato   entristeceu-o   singularmente
pouco,     considerando      seu  primitivo    entusiasmo     pela   peça,   mas   parecia   encontrar    certo   humor
positivo em sua repentina desintegração.
      Aproximadamente   na   segunda   semana,   Charles  começou   a   se   ausentar   da   casa   por   longos
períodos, e um dia, quando a boa e velha negra Hannah veio para ajudar na limpeza da primavera,
ela   mencionou   suas   freqüentes   visitas   à   velha   casa   de   Olney   Court,   aonde   ele   costumava   ir   com
uma grande valise e realizar curiosas buscas no porão. O jovem era muito pródigo com ela e o velho
Asa, mas parecia mais preocupado do que costumava ser, o que muito a entristecia, porque cuidara
dele desde o nascimento.
      Outro relato de suas ações veio de Pawtuxet, onde alguns amigos da família o haviam visto de
longe um número surpreendente de vezes. Ele parecia freqüentar o clube e a garagem dos barcos de
Rhodes-on-the-Pawtuxet   e   subseqüentes   investigações   do   doutor   Willett   naquele   local   revelaram
que   seu   objetivo   era   conseguir   o   acesso   à   margem   do   rio   protegida   por   cercas   ao   longo   da   qual
caminhava em direção ao norte, em geral só reaparecendo muito tempo depois.
      No   fim   de   maio   houve   uma   retomada   momentânea   dos   sons   ritualísticos   no   laboratório   da
mansarda que provocou uma severa reprovação do senhor Ward e uma promessa um tanto distraída
de Charles de que se emendaria. Aconteceu numa manhã e parecia uma continuação da conversa
imaginária      ouvida   naquela    sexta-feira    turbulenta.   O   jovem    estava   discutindo    ou   queixando-se
calorosamente consigo mesmo, pois repentinamente jorrou uma série perfeitamente compreensível
de   gritos   estrepitosos   em   tons   diferenciados   como   perguntas   e   negativas   alternadas,   que   fez   a
senhora     Ward     subir  as  escadas    e  ficar  ouvindo   à   porta.   Não   conseguiu     apreender     senão   um
fragmento cujas únicas palavras nítidas foram "tem de ficar vermelho por três meses", e assim que
ela bateu à porta todos os sons cessaram de chofre. Quando o pai mais tarde inquiriu Charles, este
disse que existiam certos conflitos das esferas da consciência que somente com grande habilidade
poderia evitar, mas que tentaria transferir para outros domínios.
      Por volta de meados de junho, ocorreu um estranho incidente notumo. À noitinha, ouviram-se
alguns ruídos e baques surdos em cima, no laboratório, e o senhor Ward estava pronto a verificar,
mas tudo subitamente se acalmou. À meia-noite, depois que a família se recolheu, o mordomo foi
trancar as portas da frente da casa quando, segundo declarou, Charles surgiu um pouco desajeitado
e   inseguro   ao   pé   das   escadas   com   uma   enorme   mala,   fazendo-lhe   sinal   de   que   desejava   sair.   O
jovem não pronunciou urna única palavra, mas o honrado cidadão de Yorkshire notou rapidamente
os olhos febris e tremeu sem motivo nenhum. Abriu a porta e o jovem Ward saiu, mas pela manhã o
mordomo comunicou à senhora Ward que pretendia se demitir. Ele disse que havia algo temível no
olhar que Charles pousara sobre sua pessoa. Não era a maneira de um jovem cavalheiro olhar um
homem honesto e ele não teria condições de suportar sequer outra noite daquelas. A senhora Ward
concordou com a saída do empregado, mas não deu muita importância à sua afirmação. Era ridículo
imaginar Charles alterado naquela noite, pois por todo o tempo em que ela permanecera acordada
ouvira sons fracos vindo do laboratório em cima; sons como de soluços e passos e um suspiro que
revelava o mais profundo desespero. A senhora Ward acostumara-se a ficar ouvindo à noite, pois os
mistérios de seu filho logo afastavam todas as outras preocupações de sua mente.
      Na   noite   seguinte,   como   numa  outra   quase   três   meses   antes,   Charles   Ward   pegou   o   jornal
muito cedo e acidentalmente perdeu a seção principal. Este fato só foi lembrado mais tarde, quando
o   doutor   Willett   começou   a   analisar   os   detalhes  e   a   procurar   os   elos   que   estavam   faltando.   Na
redação  ao   Journal  ele  encontrou   a   seção   que   Charles   havia   perdido   e   marcou   duas   notas   de
possível importância. Diziam o seguinte:
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      Mais Escavações no Cemitério
      Hoje    pela   manhã,    o  vigia  notumo     do  Cemitério    Norte,   Robert    Hart,  descobriu    que   profanadores
voltaram a atacar na parte antiga do local. O túmulo de Ezra Weeden, nascido em 1740 e falecido em 1824,
segundo a pedra tumular arrancada e selvagemente despedaçada, foi escavado em profundidade e saqueado,
sendo que o trabalho foi evidentemente feito com uma pá roubada do depósito de utensílios adjacente.
      Qualquer que fosse seu conteúdo após mais de um século, tudo havia desaparecido, com exceção de
umas   poucas   lascas   de   madeira   apodrecida.   Não   havia   marcas   de   rodas,   mas   a  polícia   analisou   algumas
pegadas encontradas nas proximidades que indicam botas de uma pessoa refinada.
      Hart   está   propenso   a   relacionar   esse   incidente   com   as   escavações   descobertas   em   março   passado,
quando   um   grupo   de   homens   utilizando   um   caminhão   fugiu   enquanto   realizava   uma   profunda   escavação;
mas o sargento Riley, da Segunda Delegacia, descarta essa teoria e assinala duas diferenças vitais nos dois
casos. Em março, a escavação foi feita num ponto em que reconhecidamente não existia nenhum túmulo;
dessa vez, foi pilhada uma tumba bem definida e cuidada, sendo que todas as evidências mostram tratar-se de
um    objetivo   deliberado    e  uma   perversidade     consciente    expressa-se    na  laje  despedaçada,    a  qual   estava
intacta até o dia anterior.
      Membros da família Weeden, notificados a respeito do acontecimento, expressaram sua surpresa e dor e
mostraram-se totalmente incapazes de pensar em um inimigo que tivesse interesse em violar o túmulo de seu
antepassado Hazard Weeden, morador do número 598 de Angell Street, lembrou de uma lenda da família
segundo a qual Ezra Weeden se envolvera em certas circunstâncias bastante peculiares, nada desonrosas para
sua   pessoa,   pouco   antes   da   Revolução;   mas   ele   ignora  completamente   qualquer   inimizade   ou   mistério   na
época atual. O inspetor Cunningham foi destinado ao caso, e espera descobrir alguns indícios valiosos no
futuro próximo.
      Cães Barulhentos em Providence
      Cidadãos residentes em Pawtuxet foram despertados por volta das três horas da manhã de hoje com um
fenomenal   latido   de   cães   que   parecia   provir   do   rio  ao   norte   de   Rhodes-on-the-Pawtuxet.   O   volume   e   a
qualidade dos latidos eram estranhamente descomunais, segundo a maioria das pessoas que os ouviram; e
Fred Lemdin, vigia noturno em Rhodes, declarou que o ruído se misturava aos gritos de um homem presa de
um terror e uma agonia mortal. Uma forte tempestade de curta duração, que parecia atingir um ponto nas
proximidades   da   margem   do   rio,   pôr   fim   à   alteração.   Odores   estranhos   e   desagradáveis,   provavelmente
procedentes   dos   tanques   de   óleo   ao   longo   da   baía,  estão   sendo   por   todos   relacionados   a   este   incidente   e
podem ter contribuído para excitar os cachorros.
      O aspecto de Charles agora tornara-se muito conturbado e atormentado e todos concordaram
posteriormente   que   nesse   período   ele   talvez   desejasse   prestar   alguma   declaração   ou   fazer   uma
confissão das quais se abstinha por mero terror. O hábito mórbido da mãe de ficar ouvindo à noite
revelou que ele realizava saídas freqüentes, protegido pela escuridão, e a maioria dos psiquiatras
mais   acadêmicos   concorda   atualmente   em   culpá-lo   pêlos   revoltantes   casos   de   vampirismo   que   a
imprensa       relatou   de   modo    tão   sensacionalista     na   época,   mas   cuja   autoria   ainda   não   pôde   ser
concretamente         apontada.      Esses    casos,    tão   recentes    e   comentados       que    dispensam       detalhes,
envolveram        vítimas     de   todas    as  idades    e   tipos   e  aparentemente        concentraram-se        em    duas
localidades distintas: a colina residencial e o North End, perto da residência dos Wards, e os bairros
suburbanos do outro lado da linha Cranston perto de Pawtuxet. Notívagos e pessoas que dormiam
de janelas abertas foram igualmente atacados, e as que sobreviveram para contar a história foram
unânimes em descrever um monstro magro, ágil, que pulava, com olhos de fogo, que cravava seus
dentes na garganta ou no antebraço e se satisfazia sofregamente.
      O   doutor   Willett,   que   se   recusa  a   datar   a   loucura   de   Charles   Ward   até   mesmo   nesta   época,
mostra-se cauteloso ao tentar explicar esses horrores. Ele afirma possuir certas teorias próprias e
limita suas declarações positivas a um tipo peculiar de negação. "Não pretendo", diz ele, "apontar
quem   ou   o   que   acredito   tenha   perpetrado   esses   ataques   e   assassinatos,   mas   declaro   que   Charles
Ward era inocente. Tenho razões para garantir que ele ignorava o gosto do sangue, como de fato seu
contínuo definhamento físico, em função da anemia, e uma crescente palidez comprovam mais do
que   qualquer   argumento   verbal.   Ward   se   envolveu  com   coisas   terríveis,   mas   pagou   por   isto,   ele
jamais foi um monstro ou um vilão. Quanto ao  que está acontecendo agora, nem gosto de pensar.
                                                               39
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Houve uma mudança e quero crer que o velho Charles Ward morreu com ela. Sua alma morreu, de
qualquer maneira, mas o corpo tresloucado que desapareceu do hospital de Waite tinha outra".
      Willett fala com autoridade, pois frequentemente visitava a residência dos Wards para cuidar
da senhora Ward, cujos nervos começavam a ceder por causa da tensão. O hábito de ficar ouvindo
durante a noite gerara alucinações mórbidas que ela confiava com certa hesitação ao médico, o qual
as   levava   na   brincadeira   em   suas   conversas  com   ela,   embora   o   fizessem   meditar   profundamente
quando estava sozinho. Esses delírios sempre diziam respeito aos sons fracos que imaginava ouvir
no laboratório e no quarto de dormir da mansarda, e enfatizavam a ocorrência de suspiros e soluços
abafados   nas   horas   mais   impossíveis.   No   início   de   julho,   Willett   ordenou   que   a   senhora   Ward
passasse uma temporada em Atlantic City por tempo indefinido a fim de se recuperar e recomendou
ao   senhor   Ward   e   ao   tresloucado   e   esquivo   Charles   que   escrevessem   para   ela   somente   cartas
confortadoras. É provavelmente a esta fuga forçada e relutante que ela deve sua vida e sua saúde
mental.
                                                             2
      Não muito tempo depois da viagem da mãe, Charles Ward iniciou as negociações para adquirir
o   bangalô   de   Pawtuxet.   Era   um   edifício   esquálido   e   pequeno   de   madeira,   com   uma   garagem   de
concreto, encarapitado no alto da margem do rio, escassamente habitada, pouco acima de Rhodes,
mas por alguma estranha razão o jovem só queria aquela. Não deu so ssego às corretoras de imóveis
até   que   uma   delas   o   conseguiu   para   ele,   a   um   preço   exorbitante,   de   um   proprietário   um   tanto
relutante.   Assim   que   vagou,   tomou   posse   da   casa   protegido   pela   escuridão,   transportando   num
grande caminhão fechado todos os apetrechos de seu laboratório da mansarda, inclusive os livros,
tanto os de magia quanto os modernos, que tomara emprestado para seus estudos. Mandou que o
caminhão   fosse   carregado   às   primeiras   horas   da  negra   madrugada   e   seu   pai   lembra   apenas   ter
ouvido, em meio ao sono, imprecações abafadas e ruído de passos na noite em que as coisas foram
retiradas.   Depois   disso,   Charles   voltou   a   ocupar  seus   aposentos   no   terceiro   andar   e   nunca   mais
voltou à mansarda.
      Para o bangalô de Pawtuxet Charles transferiu todo o sigilo no qual cercara seus domínios da
mansarda, com a exceção de que agora aparentemente havia duas pessoas que compartilhavam seus
mistérios; um mestiço português de aspecto detestável, da zona do porto de South Main Street, que
exercia   as   funções   de   criado,   e   um   estrangeiro  magro,   com   o   aspecto   de   um   estudioso,   óculos
escuros e barba curta que parecia tingida, provavelmente um colega. Os vizinhos tentaram em vão
manter   alguma   conversação   com   estas   estranhas   pessoas.   O   mulato   Gomes   falava   muito   pouco
inglês    e  o   sujeito  barbudo,     que   dissera   chamar-se      doutor   Allen,    seguia   voluntariamente       seu
exemplo.   O   próprio   Ward   tentou   ser   mais   afável,   mas   só   conseguiu   provocar   a   curiosidade   com
seus   relatos   desconexos   a   respeito   de   pesquisas   químicas.   Logo   começaram   a   circular   estranhas
histórias   referentes   a   luzes   acesas   a   noite   toda,   e   um   pouco   mais   tarde,   depois   que   cessaram,
surgiram   histórias   mais   esquisitas   ainda   sobre   encomendas   descomunais   de   carne   no   açougue   e
gritos, entoações abafadas, recitações rítmicas e berros supostamente provenientes de algum local
subterrâneo      e  profundo      debaixo    da   casa.   E  evidente     que   a  nova    e  estranha    residência    era
profundamente   detestada   pela   honesta   burguesia   da  vizinhança,   e   não   é   de   estranhar   se   foram
levantadas terríveis suspeitas ligando seus habitantes à atual epidemia de ataques vampirescos, em
particular devido ao fato de que o raio de ação parecia agora restringir-se totalmente a Pawtuxet e às
ruas adjacentes de Edgewood.
      Ward passava a maior parte de seu tempo no bangalô, mas ocasionalmente dormia em casa e
ainda era reconhecido como residente na casa do pai. Duas vezes ausentou-se da cidade em viagens
que duraram toda uma semana, cuja destinação ainda não foi descoberta. Foi ficando cada vez mais
pálido e emaciado do que antes e já não mostrava a mesma segurança ao repetir ao doutor Willett
sua velhíssima história a respeito de pesquisas de importância vital e de futuras revelações. Willett
frequentemente        seguia-o    sem   ser   visto  até  a  casa   do   pai,  pois   o  senhor    Ward    estava    muito
preocupado e perplexo e desejava que o filho fosse vigiado na medida do possível, em se tratando
                                                            40
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de um adulto tão misterioso e independente. O médico ainda insiste que o jovem era são de mente
mesmo nessa época e aduz muitas conversações para comprovar essa convicção.
      Por volta de setembro, o vampirismo declinou, mas, em janeiro do ano seguinte, Ward quase se
envolveu em problemas sérios. Havia algum tempo as chegadas e partidas noturnas de caminhões
no bangalô de Pawtuxet eram motivo de comentários e a essa altura um acontecimento imprevisto
revelou a natureza de pelo menos uma das suas cargas. Num local solitário, perto de Hope Valley,
ocorreu   uma   das   freqüentes   e   sórdidas   emboscadas  a   caminhões   por   obra   de   assaltantes   visando
carregamentos de uísque, mas dessa vez os bandidos estavam destinados a levar um enorme choque.
Pois, ao serem abertas, as longas caixas roubadas revelaram um conteúdo extremamente asqueroso,
em realidade tão asqueroso que a coisa não pôde ser abafada entre os membros do submundo.  Os
ladrões enterraram precipitadamente o que haviam descoberto, mas, quando a polícia do estado foi
informada do caso, empreendeu-se uma cuidadosa busca. Um vagabundo preso havia pouco tempo,
em troca da garantia de isenção de acusações adicionais, consentiu por fim em conduzir um grupo
de   milicianos   até   o   local   e   no   esconderijo   improvisado   foi   descoberta   uma   coisa   absolutamente
asquerosa      e  vergonhosa.      Não    ficaria  bem     para  o   senso   de   decoro    nacional    —    ou   mesmo
internacional — se o público viesse a saber o que foi descoberto por aquele grupo horrorizado. Não
havia    dúvidas,    mesmo     para   policiais   sem    muito   preparo;    vários   telegramas    foram    enviados     a
Washington com febril rapidez.
      As caixas eram endereçadas a Charles Ward em seu bangalô de Pawtuxet e agentes estaduais e
federais imediatamente fizeram-lhe uma visita com propósitos enérgicos e sérios. Encontraram-no
pálido e preocupado com seus dois estranhos companheiros e receberam dele o que lhes pareceu
uma explicação válida e provas de inocência. Ele necessitara de certos espécimes anatômicos como
parte de um programa de pesquisa cuja profundidade e autenticidade qualquer um que o conhecesse
na última década poderia comprovar, e encomendara tipo e número exigidos a certas agências que
ele julgara tão legítimas quanto este tipo de coisas poderia ser. Da identidade dos espécimes ele não
sabia absolutamente nada e ficou muito chocado quando os inspetores aludiram às conseqüências
monstruosas   para   o   sentimento   público   e   a   dignidade   nacional   que   o   conhecimento   do   assunto
produziria. Em sua declaração ele foi firmemente apoiado por seu colega barbudo, o doutor Allen,
cuja estranha voz abafada tinha mais convicção mesmo do que o tom nervoso de Charles; de modo
que no fim os agentes não adotaram nenhuma medida, mas cuidadosamente tomaram nota do nome
e   endereço   de   Nova   Iorque   que   Ward   lhes   forneceu   como   base   para   uma   averiguação   que   não
resultou   em   nada.   Apenas   é   justo   acrescentar   que  os   espécimes   foram   rápida   e   silenciosamente
devolvidos aos seus devidos lugares e o grande público jamais saberá de sua sacrílega perturbação.
      No dia 9 de fevereiro de 1928, o doutor Willett recebeu uma carta de Charles Ward que ele
considera de extraordinária importância e a respeito da qual frequentemente discutiu com o doutor
Lyman.   Este   acredita   que   a   carta   contém   provas   positivas   de   um   caso   avançado   de  dementia
praecox;    Willett,   por   outro   lado,   considera-a   a   última   manifestação   perfeitamente   sã   do   infeliz
jovem.   E   chama   atenção   especialmente   para   á       característica   normal   da   caligrafia   que,   embora
mostrando indícios de nervos em frangalhos, é nitidamente a caligrafia do próprio Ward. O texto
integral é o seguinte:
                                                                                                      Prospect St., 100,
                                                                                                       Providence, R.I.,
                                                                                                    8 de março de 1928.
Caro Doutor Willett,
      Acho que finalmente chegou o momento de fazer as revelações que há tanto tempo lhe prometi e pelas
quais o senhor insistiu em tantas ocasiões. A paciência que o senhor mostrou em esperar, e sua confiança em
minha mente e integridade, são coisas que jamais deixarei de apreciar.
      E agora que estou pronto para falar, devo admitir humilhado que jamais alcançarei o triunfo com o qual
tanto   sonhei.   Em   vez   do   triunfo   encontrei   o   terror  e   minha   conversa   com   o   senhor   não   será   o   alarde   da
vitória, mas um apelo de ajuda e conselhos capazes de me salvar e de salvar o mundo de um horror além de
toda a imaginação ou previsão humanas. O senhor lembra do que diziam as cartas de Fenner a respeito do
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grupo que invadiu Pawtuxet. Tudo aquilo precisa ser feito de novo—e depressa. De nós depende muito mais
do que simples palavras poderiam exprimir — toda a civilização, toda lei natural, talvez mesmo o destino do
sistema    solar  e  do  universo.   Eu  trouxe   à  luz  uma   anormalidade    monstruosa,    mas   o  fiz  em  nome    do
conhecimento. Agora, em nome de toda a vida e natureza, o senhor deve ajudar-me a rechaçá-lo de volta às
trevas.
      Deixei aquele lugar em Pawtuxet para sempre e nós devemos extirpar tudo o que nele existe, vivo ou
morto.    Não   voltarei  para  lá  e  o  senhor   não  deve   acreditar  se  ouvir  dizer  que   estou  lá.  Quando    nos
encontrarmos, contarei ao senhor por que digo isto. Voltei para casa definitivamente e gostaria que o senhor
reservasse umas cinco ou seis horas seguidas para ouvir o que tenho a dizer. Precisarei de todo esse tempo —
e acredite em mim quando lhe digo que o senhor nunca teve um dever mais autenticamente profissional do
que este. Minha vida e minha razão são a coisa menos importante nisso tudo.
      Não ouso falar com meu pai, ele não entenderia todo o alcance da questão. Mas eu lhe falei do perigo
que estou correndo e ele contratou quatro detetives de uma agência para vigiar a casa. Não sei até que ponto
poderão ajudar, pois têm contra si forças que nem mesmo o senhor poderia imaginar ou reconhecer. Portanto,
venha logo se quiser me ver vivo e ouvir de que modo poderá ajudar a salvar o cosmos do inferno total.
      Venha quando quiser — não sairei da casa. Não telefone de antemão, pois não é preciso dizer quem ou
o   que   poderá   tentar   interceptá-lo.   E   rezemos   a   todos   os   deuses   existentes  para   que   nada   impeça   esse
encontro.
      Com a maior gravidade e desespero,
                  Charles Dexter Ward
      P.S.: Atire no doutor Allen sem aviso e dissolva seu corpo em ácido. Não o queime.
      O doutor Willett recebeu esta mensagem por volta das dez e meia da manhã e imediatamente
tratou de reservar todo o fim da tarde e a noite para a grave conversa, deixando que se estendesse
noite adentro tanto quanto fosse necessário. Pretendia chegar por volta das quatro da tarde e durante
todo o tempo ficou tão mergulhado em toda espécie de desenfreadas especulações que executou a
maior     parte   de  seu   trabalho    de  forma    totalmente     mecânica.     Embora     a  carta  pudesse     parecer
desvairada a um estranho, Willett tinha testemunhado tantas esquisitices de Charles Ward que não
poderia menosprezá-la como mera loucura. Tinha certeza de que algo muito sutil, antigo e horrível
pairava no ar e a referência ao  doutor Allen era quase compreensível, considerando os boatos em
Pawtuxet a respeito do enigmático colega de Ward. Willett nunca vira o homem, mas ouvira muito
sobre    seu   aspecto    e  comportamento        e  só  podia   ficar   imaginando      que   tipo   de  olhos    aqueles
comentados óculos escuros poderiam ocultar.
      Solicitamente,   às   quatro   horas,   o   doutor   Willett   apresentou-se   à   residência   de   Ward,   mas
constatou, para sua contrariedade, que Charles não cumprira sua determinação de permanecer em
casa. Os guardas lá estavam, mas disseram que o jovem parecia ter perdido em parte sua timidez.
Naquela   manhã   ele   discutira   muito,   em   tom   aparentemente   assustado,   e   protestara   pelo   telefone,
disse   um   dos   detetives,   respondendo   a   uma   voz  desconhecida   com   frases   como   "Estou   muito
cansado e preciso descansar um pouco", "Não posso receber ninguém por um certo tempo, precisa
me     desculpar",    "Por    favor,   adie   as  decisões    até   que   possamos      chegar    a  alguma     forma    de
compromisso", ou "Sinto muito, mas preciso tirar férias prolongadas de tudo; falarei com o senhor
mais    tarde".   Depois,    como     que   ganhando     coragem     com    a  meditação,     escapuliu    de   modo    tão
silencioso que ninguém o viu sair ou sabia que ele havia saído até que voltou perto de uma hora da
manhã e entrou em casa sem uma palavra. Subira as escadas, onde seu medo pareceu ter voltado,
pois ouviram-no gritar alto e aterrorizado ao entrar em sua biblioteca, terminando numa espécie de
arquejo   sufocado.   No   entanto,   quando   o   mordomo  foi   investigar   o   que   estava   acontecendo,   ele
apareceu à porta exibindo uma expressão atrevida e, sem falar, mandou o homem embora com um
gesto    que    o  aterrorizou    de   modo     indescritível.    Depois    evidentemente       ele  fez   alguma     nova
arrumação das estantes, pois ouviu-se um grande fragor, pancadas surdas e rangidos, após o que
reapareceu e saiu imediatamente. Willett perguntou se havia deixado algum recado, mas responder
am-lhe   que   não   havia   nada.   O   mordomo   parecia estranhamente   perturbado com alguma coisa no
aspecto físico de Charles e em seu comportamento e perguntou solícito se havia esperança de cura
para seus nervos abalados.
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      Durante   quase   duas   horas,   o   doutor   Willett   esperou   em   vão   na   biblioteca   de   Charles   Ward,
observando   as   prateleiras   cobertas   de   poeira   com   grandes   espaços  vazios   de   onde   haviam   sido
retirados os livros e sorrindo severamente para o painel da chaminé na parede norte, de onde um
ano   antes   as   feições   afáveis   de   Joseph   Curwen   olhavam   com   ar   benigno   para   baixo.   Dentro   em
pouco, as sombras começaram a se adensar e a alegria do pôr-do-sol cedeu o lugar a um vago e
crescente   terror   pairando   como   uma   sombra   no  anoitecer.   O   senhor   Ward   finalmente   chegou   e
mostrou-se   muito   surpreso   e   zangado   com   a   ausência   do   filho,   depois   de   todos   os   cuidados   que
haviam sido tomados para vigiá-lo. Ele não havia sido informado do encontro marcado por Charles
e prometeu notificar Willett quando o jovem voltasse. Ao desejar boa-noite ao médico, expressou
toda a sua perplexidade sobre a doença do filho  e instou o visitante a fazer todo o possível para
devolver o equilíbrio ao rapaz. Willett ficou feliz em fugir daquela biblioteca, pois algo assustador e
anormal   parecia   assombrá-la,   como   se   o   quadro  desaparecido   tivesse   deixado   atrás   de   si   uma
herança diabólica. Ele nunca gostara do quadro e mesmo agora, embora seus nervos fossem fortes,
do painel vazio emanava algo que o fazia sentir a urgente necessidade de sair para o ar puro o mais
depressa possível.
                                                               3
      Na manhã seguinte, Willett recebeu um bilhete do pai de Ward dizendo que Charles continuava
ausente.   O   senhor   Ward   mencionava   que   o   doutor   Allen   lhe   telefonara   para   dizer   que   Charles
permaneceria   em  Pawtuxet   por   mais   algum  tempo   e  não deveria ser incomodado. Isto se tornara
necessário   porque   o   próprio   Allen   precisara   partir   por   um   período   indeterminado,   deixando   as
pesquisas   à   supervisão   constante   de   Charles.     Charles   enviava   saudações   e   lamentava   por   todo
aborrecimento que sua abrupta mudança de planos havia causado. Ao ouvir a mensagem, o senhor
Ward escutou pela primeira vez a voz do doutor Allen e esta pareceu despertar alguma lembrança
vaga e fugaz que não poderia identificar, mas que o perturbou até o terror.
      Diante desses relatos desconcertantes e contraditórios, o doutor Willett ficou francamente sem
saber o que fazer. Não era possível negar a desesperada intensidade do bilhete de Charles, contudo,
o que pensar da imediata violação do compromisso assumido por seu próprio autor? O jovem Ward
havia escrito que suas investigações haviam se tornado blasfemas e ameaçadoras, que estas e seu
colega barbudo deviam ser eliminados a todo custo e que ele próprio nunca mais voltaria àquele
cenário; no entanto, segundo informações mais recentes, esquecera tudo isto e voltara a mergulhar
no    mistério    mais   impenetrável.      O   bom    senso   pedia    que   o   jovem    fosse   deixado     com    suas
extravagâncias, no entanto, um instinto mais profundo não permitia que a impressão provocada por
aquela carta desvairada aplacasse. Willett a releu e não conseguia fazer com que sua essência soasse
tão vazia e insana quanto seu palavrório bombástico e sua falta de cumprimento dos compromissos
poderiam sugerir. Seu terror era demasiado profundo e real e, junto com aquilo que o médico já
sabia, evocava sugestões demasiado vívidas de monstruosidade, além do tempo e do espaço, para
permitir   uma   explicação   cínica.   Horrores   inomináveis   estavam   por   toda   parte   e   ainda   que   muito
pouco   fosse   possível   fazer   para   atingi-los,   era   preciso   estar   preparado   para   todo   tipo   de   ação,   a
qualquer momento.
      Por   mais   de   uma   semana,   o   doutor   Willett   ponderou   sobre   o   dilema   que   aparentemente   lhe
havia sido imposto e cada vez mais sentiu-se inclinado a fazer uma visita a Charles no bangalô de
Pawtuxet. Nenhum amigo do jovem jamais se aventurara a invadir esse refúgio proibido e mesmo o
pai só conhecia seu interior pelas descrições que ele fazia; mas Willett achou que se fazia necessária
uma     conversa     direta   com    seu   paciente.   O    senhor   Ward     vinha    recebendo    do    filho   bilhetes
datilografados sucintos e cautelosos e disse que a senhora Ward, em seu refúgio em Atlantic City,
não recebera maiores informações. Então, por fim, o médico resolveu agir e, apesar de uma curiosa
sensação inspirada pelas antigas lendas sobre Joseph Curwen e pelas revelações e advertências mais
recentes de Charles Ward, partiu rumo ao bangalô sobre o penhasco acima do rio.
      Willett visitara o local numa ocasião anterior movido por mera curiosidade, embora, é claro,
jamais tivesse entrado na casa ou anunciado sua presença, portanto, sabia exatamente que caminho
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tomar.   Rumando   pela   Broad   Street   no   início   da   tarde   no   final   de   fevereiro,   em  seu   carrinho,   ele
pensava estranhamente sobre o implacável grupo que havia tomado aquele mesmo caminho cento e
cinqüenta e sete anos atrás, com uma terrível missão que ninguém jamais poderá compreender.
      O   percurso   pelas   cercanias   decadentes   da   cidade   foi   curto   e   a   bem   cuidada   Edgewood   e   a
sonolenta   Pawtuxet   estendiam-se   à   frente.   Willett   virou   à   direita   descendo   Lockwood   Street   e
seguiu a estrada rural até onde lhe foi possível, depois desceu do carro e caminhou em direção ao
norte   até   o   ponto   em   que   o   penhasco   dominava   as  belas   e   sinuosas   curvas   do   rio   e   a   linha   dos
baixios cobertos de névoa lá em baixo. As casas eram ainda escassas aqui e não havia como não
avistar    o  bangalô    isolado,   com   sua   garagem   de   concreto      num   ponto    elevado    à  sua  esquerda.
Subindo rapidamente o caminho de cascalho mal conservado, bateu à porta com mão firme e falou
sem tremer ao maldoso mulato português que a entreabriu milimetricamente.
      Disse que precisava conversar imediatamente com Charles Ward sobre assuntos de importância
vital. Não aceitaria nenhuma desculpa e uma recusa significaria apenas um relatório completo ao
senhor Ward pai. O mulato ainda hesitava e empurrou a porta quando Willett tentou abri-la; mas o
médico simplesmente levantou a voz e renovou seu pedido. Então, do interior escuro ouviu-se um
murmúrio áspero que gelou o ouvinte por completo, embora não soubesse a razão do pavor. "Deixe-
o entrar, Tony", dizia, "temos de falar de uma vez por todas." Mas por mais perturbador que fosse o
murmúrio, o pavor maior viria logo em seguida. O assoalho rangeu e o sujeito que havia falado se
mostrou — o dono daqueles sons estranhos e ressoantes não era senão Charles Dexter Ward.
      A precisão com a qual o doutor Willett recordou e transcreveu a conversa daquela tarde deve-
se à importância que atribui a esse período particular. Pois finalmente ele reconhece uma mudança
vital na mentalidade de Charles Dexter Ward e acredita que o jovem agora se expressava com um
cérebro irremediavelmente alienado em relação àquele cujo desenvolvimento havia acompanhado
por vinte e seis anos. A controvérsia com o doutor Lyman o impeliu a ser muito específico e ele
data   definitivamente   a   loucura   de   Charles   Ward  no   período   em   que   os   bilhetes   datilografados
começaram a chegar aos seus pais. Esses bilhetes não têm o estilo normal de Ward nem mesmo o
estilo daquela última e desvairada carta endereçada a Willett. Ao contrário, são estranhos e arcaicos,
como   se   o   convulsionamento   da   mente   do   seu   autor   tivesse   liberado   um   fluxo   de   tendências   e
impressões   captadas   inconscientemente   pela   paixão   pela   arqueologia   na   adolescência.   Existe   um
óbvio esforço de ser moderno, mas o espírito e ocasionalmente a linguagem são os do passado.
      O passado também era evidente em cada palavra e gesto de Ward ao receber o médico naquele
bangalô cheio de sombras. Ele inclinou a cabeça, indicou a Willett um lugar para sentar e começou
a falar abruptamente naquele estranho sussurro que tratou de explicar no início da conversa.
      "Fiquei tísico", começou, "com o amaldiçoado ar desse rio. Deve desculpar minha maneira de
falar. Suponho que o senhor veio a mando de meu pai para ver o que me aflige e espero que não
diga nada que o possa alarmar."
      Willett estudava esse tom arranhado, mas estudava com mais atenção ainda o rosto do locutor.
Alguma   coisa,   ele   sentia,   estava   errada   e   pensou  naquilo   que   a   família   lhe   contara   a   respeito   do
medo   do   mordomo   de   Yorkshire   naquela   noite.   Desejou   que   não   estivesse   tão   escuro,   mas   não
pediu para erguer as cortinas. Ao contrário, simplesmente perguntou a Ward por que não cumprira o
prometido na carta desesperada de pouco mais de uma semana antes.
      "Estava   justamente   para   falar   nisso",   replicou   o   anfitrião.   "O   senhor   deve   saber   que   meus
nervos estão em muito má situação e que falo e faço coisas esquisitas sem me dar conta. Como lhe
disse   frequentemente,   estou   prestes   a   conseguir   grandes   coisas   e   sua   grandeza   me   faz   delirar.
Qualquer pessoa ficaria apavorada com aquilo que descobri, mas não devo demorar muito tempo
agora. Fui um asno em pedir os guardas e ficar em casa; tendo chegado aonde cheguei, meu lugar é
aqui. Meus vizinhos bisbilhoteiros falam mal de mim e talvez tenha me deixado levar pela fraqueza
ao acreditar naquilo que eles dizem de mim. O que eu faço não traz prejuízos a ninguém, desde que
seja   bem-feito.   Tenha   a   bondade   de   esperar   seis meses   e   eu   lhe   mostrarei   algo   que   compensará
muito bem sua paciência.
      "O   senhor   certamente   sabe   que   tenho   meios   de  aprender   matérias   antigas   de   fontes   mais
seguras do que os livros e o senhor poderá julgar a importância da minha contribuição à história, à
                                                           44
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filosofia e às artes em razão dos meios aos quais tenho acesso. Meu antepassado possuía tudo isto
quando aqueles estúpidos bisbilhoteiros vieram aqui e o assassinaram. Agora eu estou próximo de
obtê-lo em parte, de modo muito imperfeito. Dessa vez nada deverá acontecer e muito menos por
causa dos meus temores idiotas. Peço que esqueça tudo o que lhe escrevi, senhor, e não tenha medo
desse lugar nem de qualquer um aqui. O doutor Allen é uma pessoa muito preparada e devo-lhe
desculpas por aquilo que de mal fadei a seu respeito. Gostaria de não ter de dispensá-lo, mas ele
tinha coisas a fazer em outro lugar. Seu zelo é igual ao meu em todas essas matérias e suponho que
quando eu temia o trabalho temia a ele também, meu maior colaborador".
      Ward parou e o médico não sabia o que dizer ou pensar. Sentia-se quase um tolo diante desse
calmo repudio da carta, e contudo persistia para ele o fato de que  embora   o   discurso   atual   fosse
estranho,   curioso   e   indubitavelmente   louco,   a   carta   também   era   trágica   por   sua   naturalidade   e
afinidade ao Charles Ward que ele conhecera. Willett agora tentou conduzir a conversa sobre outros
assuntos e lembrar ao jovem algum acontecimento passado que restabelecesse um clima familiar,
mas por esse processo obteve apenas os resultados mais grotescos. O mesmo aconteceria com todos
os   psiquiatras   mais   tarde.   Partes   importantes  da   massa   de   imagens   mentais   de   Charles   Ward,
principalmente aquelas que diziam respeito aos tempos modernos e à sua vida pessoal, haviam sido
inexplicavelmente   eliminadas,   enquanto   toda   a   paixão   pela   arqueologia   acumulada   na   juventude
brotava de um profundo subconsciente que tragava   o   contemporâneo   e   o   individual.   Os   enormes
conhecimentos que ele possuía sobre antiguidades eram anormais e blasfemos e ele tentava de todas
as    formas     ocultá-los.    Quando      Willett    mencionava       algum     tema    predileto    de   seus    estudos
arqueológicos   da   adolescência,   ele   frequentemente  fornecia,   por   mero   acidente,   informações   que
nenhum   mortal   normal   poderia   possuir   e   o   médico   arrepiava   enquanto   o   jovem   ia   falando   com
desenvolta fluência.
      Não   era   normal   saber   que   a   peruca   do   gordo   xerife   despencara   enquanto   ele   se   debruçava
durante a apresentação da peça na Academia Histriônica do senhor Douglass em King Street, no dia
 11 de fevereiro de 1762, uma quinta-feira; ou que os atores amputaram de um modo tão lamentável
o   texto   da   peça  O   Amante   Consciente,  de   Steele,   que   as   pessoas   quase   se   alegraram   quando   o
legislativo,   dominado   pêlos   batistas,   fechou   o   teatro  quinze   dias   mais   tarde.   Que   a   diligência   de
Boston de Thomas Sabin era "danada de desconfortável" era algo que velhas cartas poderiam ter
perfeitamente   mencionado;   mas   que   arqueólogo  normal   poderia   lembrar   que   o   rangido   da   nova
tabuleta do estabelecimento de Epenetus Olney (a vistosa coroa colocada depois que ele começou a
chamar sua taberna de Café da Coroa) fosse exatamente como as primeiras notas da nova peça de
jazz que todas as rádios de Pawtuxet estavam tocando?
      No   entanto,   Ward   não   se   deixaria   interrogar   por   muito   tempo   dessa   maneira.   Os   assuntos
modernos   e   pessoais   ele   os   descartava   sumariamente,   enquanto   com   respeito   a   questões   antigas
mostrava   logo   o   mais   evidente   enfado.   O   que   ele  pretendia   claramente   era   apenas   satisfazer   seu
visitante o bastante para que fosse embora sem a intenção de voltar. Com esta finalidade, ofereceu-
se para mostrar a Willett toda a casa e imediatamente conduziu o médico por todos os aposentos,
desde o porão até a mansarda. Willett olhava atentamente, mas notou que os livros visíveis eram
muito poucos e triviais em relação aos amplos espaços vazios deixados nas prateleiras na casa de
Ward,      e  que    o  medíocre,      assim    chamado,     "laboratório"      era  a   mais   inconsistente      fachada.
Evidentemente,   havia   em   outro   lugar   uma   biblioteca   e   um   laboratório,   mas   onde   exatamente   era
impossível dizer. Essencialmente derrotado em sua busca de algo que não conseguia definir, Willett
voltou   à   cidade   antes   do   anoitecer   e   contou   ao  senhor   Ward   tudo   que   havia   acontecido.   Eles
concordaram   que   o   jovem   deveria   estar   definitivamente   fora   do   seu   juízo,   mas   decidiram   que
naquele   momento   não   deveria   ser   tomada   nenhuma   medida   drástica.   Acima   de   tudo,   a   senhora
Ward   deveria   ser   mantida   no   mais   completo   desconhecimento,   na   medida   em   que   os   estranhos
bilhetes datilografados do filho o permitissem.
      O senhor Ward agora estava determinado a se encontrar com o filho numa visita de surpresa. O
doutor   Willett   levou-o   em   seu   carro   uma   noite,   guiando-o   até   as   proximidades   do   bangalô,   e
esperou pacientemente sua volta. A sessão foi longa e o pai saiu num estado muito contristado e
perplexo. Sua recepção foi muito parecida à de Willett, com a exceção de que Charles levara um
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tempo   excessivamente   longo   para   aparecer   depois  que   o   visitante   forçara   a   entrada   no   saguão   e
afastara   o   português   com   uma   ordem   imperiosa;  e   no   comportamento   do   filho,   tão   mudado,   não
havia nenhum sinal de afeto filial. A luz estava fraca, mas mesmo assim o jovem se queixou de que
o ofuscava excessivamente. Ele não falara de modo algum em voz alta, afirmando que sua garganta
estava em péssimas condições, mas em seu rouco sussurro havia algo tão vagamente perturbador
que o senhor Ward não conseguiu afastá-lo da mente.
      Agora,   definitivamente   aliados   para   fazer   todo   o   possível   para   salvar   a   mente   do   jovem,   o
senhor Ward e o doutor Willett começaram a reunir todas as informações disponíveis. Os boatos
que corriam em Pawtuxet foram a primeira coisa que estudaram, e foi relativamente simples coligi-
los, pois ambos tinham amigos na região. O doutor Willett conseguiu levantar a maior parte dos
comentários   porque   as   pessoas   conversavam   com   mais   franqueza   com   ele   do   que   com   o   pai   do
personagem central e, a partir de tudo que ouviu, chegou à conclusão de que a vida do jovem Ward
se tornara de fato bastante estranha. Os comentários não dissociavam sua casa do vampirismo do
verão   passado,   enquanto   as   idas   e   vindas   noturnas   dos   caminhões   contribuíam   para   as   lúgubres
especulações.   Os   comerciantes   locais   falavam  das   estranhas   encomendas   feitas   pelo   mulato   mal-
encarado e particularmente das quantidades imoderadas de carne e sangue fresco fornecidas pêlos
dois açougues da vizinhança mais próxima. Para uma casa de apenas três pessoas, as quantidades
eram totalmente absurdas.
      Depois   havia   a   questão   dos   sons   debaixo   da   terra.   Os   relatos   sobre   essas   coisas   eram   mais
difíceis    de  definir,   mas   todos  os    vagos   indícios    correspondiam      em    alguns   pontos    essenciais.
Ouviam-se   ruídos   como   de   rituais   e,   às   vezes,   quando   o   bangalô   estava   escuro.   Evidentemente,
poderiam vir do porão; mas os boatos insistiam que havia criptas mais profundas e mais extensas.
Lembrando as antigas lendas sobre as catacumbas de Joseph Curwen e partindo do pressuposto de
que o atual bangalô havia sido escolhido por causa  de   sua   localização   sobre   a   antiga   fazenda   de
Curwen, conforme este revelara em um outro documento encontrado atrás do quadro, Willett e o
senhor Ward prestaram muita atenção a tais boatos e procuraram várias vezes, sem sucesso, a porta
na margem do rio mencionada pelo antigo manuscrito. Quanto à opinião popular sobre os vários
habitantes   do   bangalô,   logo   ficou   claro   que   o   português   era   detestado,   o   barbudo   doutor   Allen,
escondido atrás dos seus óculos, temido, e o jovem pálido estudioso, profundamente antipatizado.
Era   óbvio   que   nas   duas   últimas   semanas   Ward   mudara   muito;   abandonara   as   tentativas   de   se
mostrar   afável   e   falava   apenas   em   sussurros  ásperos   mas   estranhamente   repelentes   nas   poucas
ocasiões nas quais se aventurava a sair.
      Estes foram os fragmentos e os pedaços reunidos aqui e ali, e o senhor Ward e o doutor Willett
dedicaram-lhes       prolongadas     e  graves    conferências.   Esforçavam-se   para   exercitar   ao   máximo          a
dedução, a indução e a imaginação construtiva e para correlacionar todos os fatos conhecidos sobre
a vida recente de Charles, inclusive a carta desesperada que o médico agora mostrou ao pai, com as
escassas provas documentais disponíveis referentes ao velho Joseph Curwen. Eles dariam tudo para
poder olhar rapidamente os papéis que Charles havia encontrado, pois estava claro que a chave da
loucura do jovem se encontrava naquilo que ele havia aprendido a respeito do antigo bruxo e de
suas atividades. E contudo, no fim, não foi por iniciativa do senhor Ward ou do doutor Willett que
se deu o próximo passo desse caso singular. O pai e o médico, repelidos e confusos por uma sombra
demasiado informe e intangível para ser combatida, com certo embaraço haviam feito uma pausa
enquanto os bilhetes datilografados do jovem Ward se tornavam cada vez mais raros. Então veio o
primeiro     dia   do  mês    com    os  acertos    financeiros   usuais    e  os   funcionários     de  certos   bancos
começaram a balançar sua cabeça e a telefonar um para o outro. Os que conheciam Charles Ward de
vista foram até o bangalô para perguntar por que todos os seus cheques que chegavam ao banco na
ocasião não passavam de uma desajeitada falsificação e se sentiram muito menos tranqüilizados do
que deveriam quando o jovem explicou com voz roufenha que sua mão há pouco tempo ficara tão
afetada   por   um   choque   nervoso   que   escrever   normalmente   se   tornara   impossível.   Disse   que   só
conseguia formar caracteres escritos com grande dificuldade e podia comprová-lo pelo fato de ter
sido   obrigado   a   datilografar   todas   as   suas   últimas   cartas,   mesmo   aquelas   endereçadas   ao   pai   e   à
mãe, os quais corroborariam sua afirmação.
                                                           46
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      O que fez os investigadores pararem confusos não foi apenas esta circunstância, pois não era
algo incomum ou fundamentalmente suspeito, nem mesmo os boatos em Pawtuxet, alguns dos quais
haviam chegado até eles. Foi o discurso confuso do jovem que os deixou perplexos, pois implicava
uma perda praticamente total da memória no que dizia respeito a importantes assuntos monetários
com   os   quais   ele   costumava   lidar   com   extrema   facilidade   apenas   um   mês   ou   dois   antes.   Havia
algum problema, pois, apesar da aparente coerência e racionalidade de  seu   discurso,   não   poderia
existir uma razão normal para este mal disfarçado esquecimento sobre pontos vitais. Além disso,
embora nenhuma dessas pessoas conhecesse bem Ward, não puderam deixar de observar a mudança
de   sua   linguagem   e   modos.   Haviam   ouvido   dizer  que   ele   gostava   de   arqueologia,   mas   mesmo   o
arqueólogo mais obcecado não faz uso de uma fraseologia e de gestos obsoletos. De modo geral,
essa   combinação   de   rouquidão,   mãos   paralisadas,   má   memória,   fala   e   comportamento   alterados,
indicava alguma perturbação ou doença de real gravidade, a qual, indubitavelmente, era responsável
pêlos   boatos   na   maior   parte   estranhos.   Depois   de  sair,   os   funcionários   decidiram  que   a   conversa
com o pai de Ward se tornara imperativa.
      Assim, no dia 6 de março de 1928, houve uma longa e grave reunião no escritório do senhor
Ward, após a qual o pai, totalmente desorientado, convocou o doutor Willett com uma espécie de
desamparada   resignação.   Willett   examinou   as   assinaturas   forçadas   e   desajeitadas   nos   cheques   e
comparou-as mentalmente à caligrafia daquela última carta desesperada. Com certeza a mudança
fora   radical   e   profunda,   mas   havia   algo   detestavelmente   familiar   na   nova   letra.   Tinha   tendências
ininteligíveis   e   arcaicas,   de   um   tipo   bastante   curioso,   e   parecia   um   traço   totalmente   diferente
daquele que o jovem sempre usara. Era estranho — onde ele a havia visto antes? Era óbvio que
Charles   estava   louco.   Não   havia   dúvidas   quanto   a   isso.   E   como   parecia   improvável   que   pudesse
administrar seus bens ou continuar lidando com o mundo exterior por mais tempo, era preciso agir
de pronto para que fosse vigiado e possivelmente tratado. Nesse momento é que foram chamados os
psiquiatras, o doutor Peck e o doutor Providence, e o doutor Lyman, de Boston, aos quais o senhor
Ward e o doutor Willett forneceram o relato mais exaustivo possível do caso. Eles conferenciaram
longamente na biblioteca, agora em desuso, de seu jovem paciente, examinando os livros e papéis
que haviam sido deixados a fim de obter alguma outra noção sobre  sua estrutura mental habitual.
Depois     de   examinar     este  material    e  estudar   a  carta  enviada    pelo   jovem    a  Willett,   todos   eles
concordaram que os estudos de Charles Ward haviam sido suficientes para deformar ou pelo menos
perturbar   qualquer   intelecto   comum,   e   expressaram   o   desejo   de   ver   seus   volumes   e   documentos
mais   íntimos;   mas   eles   sabiam   que   isto   só   lhes  seria   possível   após   uma   intervenção   no   bangalô.
Willett   então   analisou   novamente   todo   o   caso   com   energia   febril   e   foi   nessa   oportunidade   que
obteve   as   declarações   dos   trabalhadores,   que   haviam   visto   Charles   encontrar   os   documentos   de
Curwen, e que ele estudou os incidentes descritos nos artigos dos jornais destruídos, procurando-os
na redação ao Journal.
      Na quinta-feira, dia 8 de março, os doutores Willett, Peck, Lyman e Waite, acompanhados pelo
senhor Ward, fizeram ao jovem uma solene visita, não ocultando seu propósito e interrogando com
extrema      minúcia     aquele    que   agora    era   reconhecidamente        seu   paciente.    Embora      demorasse
excessivamente para receber os visitantes e ainda rescendesse aos estranhos e insalubres odores do
laboratório            quando            finalmente            apareceu           agitado,           Charles           reve
lou-se um paciente nada recalcitrante; e admitiu abertamente que sua memória e equilíbrio haviam
ficado um pouco afetados com a constante aplicação a estudos abstrusos. Não ofereceu nenhuma
resistência quando insistiram em transferi-lo para outro local e, em realidade, pareceu mostrar um
elevado grau de inteligência além da memória prodigiosa. Seu comportamento teria feito com que
seus                entrevistadores                 se             retirassem                frustrados,               não
fosse    a  persistente    tendência    arcaizante    de   sua fala    e  a  inquestionável     substituição    de   idéias
modernas   por   idéias   antigas   em   sua   consciência,   que   o   marcavam   como   um   indivíduo   longe   da
normalidade.       A   respeito    de  seu   trabalho    não    declarou    ao   grupo    de   médicos     mais    do  que
anteriormente dissera à família e ao doutor Willett, e definiu a carta desesperada do mês anterior
como        um      simples      problema       nervoso       e    histeria.     Insistiu     que     aquele      sombrio
bangalô   não   possuía   nenhuma   biblioteca   ou   laboratório   além   dos   que   eram   visíveis   e   tornou-se
                                                            47
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abstruso   ao   explicar   a   razão   pela   qual   os   odores   que   nesse   momento   saturavam   suas   roupas   não
eram     percebidos     na   casa.   Atribuiu    os  boatos    da   vizinhança     a  invencionices      baratas,   fruto   de
curiosidade                    frustrada.                  A                 respeito                 do                 para
deiro   do   doutor   Allen,   disse  que   não   poderia   falar   de   modo   definitivo,   mas   assegurou   aos   seus
visitantes   que   o   sujeito   barbudo   de   óculos   voltaria   se   fosse   necessário.   Ao   despedir   e   pagar   o
impassível português que resistira a todas as indagações feitas pêlos visitantes e ao fechar o bangalô
que parecia conter segredos tão profundos, Ward não mostrou nenhum sinal de nervosismo, com
exceção de uma tendência quase imperceptível a se deter como para ouvir algo muito tênue. Parecia
animado por uma calma resignação filosófica, como se sua internação fosse um incidente transitório
que provocaria menos problemas se fosse facilitado e resolvido de uma vez por todas. Era evidente
que   confiava   na   agudeza   obviamente   intocada   de   sua   inteligência   absoluta para   superar   todos   os
embaraços que lhe haviam sido criados pela memória deformada, a perda da voz e da capacidade de
escrever   por   seu   misterioso   e   excêntrico   comportamento.   Concordaram   que   sua   mãe   não   seria
informada da mudança e o pai mandaria as cartas datilografadas em seu nome. Ward foi levado ao
hospital   do   doutor   Waite,   num   local   calmo   e   pitoresco,   em   Conanicut   Island,   na   enseada,   e   foi
submetido   aos   mais   minuciosos   exames   e   interrogatórios   por   todos   os   médicos   ligados   ao   caso.
Então foram notadas as singularidades físicas, o retardo do metabolismo, a alteração da pele e as
desproporcionais reações neurais. O doutor Willett era o mais perturbado dos vários examinadores,
pois   havia   cuidado   de   Ward   durante   toda   a   sua  vida   e   podia   verificar   com  terrível   intensidade   a
gravidade de sua desorganização física. Até a marca familiar em forma de azeitona sobre o quadril
havia desaparecido, enquanto em seu peito havia uma grande massa negra carnosa ou uma cicatriz
que jamais havia existido naquele lugar e que levou o doutor Willett a pensar se o jovem teria em
algum momento se submetido a alguns daqueles rituais para receber a "marca das bruxas", imposta,
segundo se acreditava, em certas reuniões noturnas em lugares selvagens e ermos. O médico não
conseguia afastar de sua mente certo registro transcrito de um julgamento de bruxas de Salem, que
Charles Ward lhe mostrara nos velhos tempos em que não se cercava de segredos, e que dizia: "O
senhor     G.B.    naquela     noite   pôs   a  Marca     do   Diabo    em    Bridget    S.,  Jonathan     A.,   Simon     O.,
Deliverance   W.   Joseph   C.,   Susan   P.,   Mehitable  C.   e   Deborah   B."   O   rosto   de   Ward   também   o
preocupava terrivelmente, até que a certa altura descobriu de repente por que ficara tão horrorizado.
Sobre o olho direito do jovem havia algo que jamais havia notado antes — uma pequena cicatriz ou
cova   exatamente   como   aquela  do   re-trato   pulverizado   do   velho   Joseph   Curwen,   talvez   revelando
alguma   horrenda   inoculação   ritual   à   qual   ambos   haviam   se   submetido   em   certo   estágio   de   suas
carreiras ocultas.
      Enquanto   o   próprio   Ward   intrigava   todos   os  médicos   do   hospital,   toda   a   correspondência
endereçada a ele ou ao doutor Allen, que o senhor Ward ordenara fosse entregue na residência da
família, estava sendo estritamente vigiada. Willett previra que muito pouco seria encontrado, pois
toda comunicação de natureza vital provavelmente seria realizada por mensageiro; mas, no final de
março, chegou de fato uma carta de Praga para o doutor Allen que deixou o médico e o pai muito
preocupados. Estava escrita numa letra muito arcaica e indecifrável e, embora claramente não fosse
o resultado do esforço de um estrangeiro, mostrava uma diferença tão singular em relação ao inglês
moderno quanto a fala do próprio jovem Ward. Dizia:
                                                                                                           Kleinstrasse, 11
                                                                                                            Altstadt, Praga,
                                                                                                  11 de fevereiro de 1928.
Irmão em Almousin-Metraton!_________
      Recebi hoje seu relato do que saiu dos sais que eu lhe enviei. Estava errado e significa claramente que
as   pedras   tumulares   haviam   sido   mudadas   quando   Barnabus   me   mandou   o   espécime.   Isto   ocorre   com
freqüência, como deve ter percebido pela coisa que recebeu do cemitério de King' Chapel em 1769 e por
aquela que recebeu do Cemitério Velho em 1690, que poderia acabar com ele. Eu obtive coisa semelhante no
Egito, há 75 anos, de onde apareceu aquela cicatriz que o menino viu em mim em 1924. Como lhe disse há
                                                             48
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muito tempo, não evoque aquilo que não puder mandar de volta quer pêlos sais mortos quer pelas esferas do
além. Tenha sempre prontas as palavras para mandar de volta todas as vezes e não espere para ter certeza
quando tiver alguma dúvida de Quem você tem. As lápides estão todas mudadas agora em nove túmulos de
cada dez. Nunca terá certeza enquanto não perguntar. Hoje recebi notícias de H., que teve problemas com os
soldados.   É   provável   que   ele   lamente   o   fato   de   a   Transilvânia   ter   passado   da   Hungria   para   a   Rumênia   e
mudaria   sua   sede   se   o   castelo   não   estivesse   tão   cheio  daquilo   que   nós   sabemos.   Mas   sem   dúvida   ele   lhe
escreveu a este respeito. Na minha segunda remessa, haverá algo de um túmulo da colina do leste que muito
lhe agradará. Enquanto isso, não esqueça que desejo B.F. se você puder chamá-lo para mim. Você conhece
G. em Filadélfia melhor do que eu. Chame-o você em primeiro lugar se quiser, mas não o use demais; ele
será difícil, terei de falar com de no fim.
                     Yogg-Sothotf Neblod Zin
                              Simon O.
          Para o senhor J.C. em
          Providence.
      O   senhor   Ward   e   o   doutor   Willett   pararam   num   caos  completo   diante   dessa   aparente   amostra   de
absoluta insanidade. Só aos poucos conseguiram assimilar o que ela parecia implicar. Então o ausente doutor
Allen, e não Charles Ward, era o espírito dominante em Pawtuxet? Isto explicaria a violenta referência e a
desvairada determinação da última carta desesperada do jovem. E o que dizer do fato de a carta ser remetida
ao estrangeiro de óculos e barba como "Senhor J.C."? Não havia como escapar à conclusão, mas existem
limites a possíveis monstruosidades. Quem era "Simon O."? O velho que Ward visitara em Praga há quatro
anos? Talvez, mas séculos antes havia existido outro Simon O. — Simon Orne, também Jedediah, de Salem,
que desaparecera em 1771, e cuja caligrafia peculiar o doutor  Willett agora reconhecia inconfundivelmente
como a das cópias fotostáticas das fórmulas de Orne que Charles certa vez lhe mostrara.  Que horrores e
mistérios», que contradições e contravenções da natureza voltavam após um século e meio para atormentar a
velha Providence com seus inúmeros campanários e cúpulas?
      O pai e o velho médico, praticamente sem saber o que fazer ou pensar, foram visitar Charles no hospital
e perguntaram-lhe da maneira mais delicada possível a respeito do doutor Allen, da visita a Praga e daquilo
que ele havia aprendido de Simon ou Jedediah Orne, de Salem. Diante de todas estas perguntas o jovem se
mostrou     polidamente      reservado,    limitando-se    a  responder    de   maneira    esganiçada,    com    seus   sussurros
ásperos, que descobrira que o doutor Allen tinha um notável relacionamento espiritual com certos espíritos
do passado e que o correspondente do barbudo em Pinga deveria ter iguais poderes. Quando saíram, o senhor
Ward     e  o  doutor    Willett   deram-se    conta   de   que,  para   seu   desapontamento,      eles   é  que  haviam     sido
investigados e que, sem fornecer nenhuma informação vital, o jovem internado havia astutamente extraído
deles tudo o que a carta de Praga continha.
      Os   doutores   Peck,   Waite   e   Lyman   não   estavam   inclinados   a   atribuir   grande  importância   à   estranha
correspondência do companheiro do jovem Ward, pois conheciam a tendência de indivíduos excêntricos e
monomaníacos   a   constituírem   grupos   entre   si,   e   acreditavam   que   Charles   ou   Allen   haviam   simplesmente
descoberto um colega expatriado — quem sabe alguém que havia visto a caligrafia de Orne e a copiara na
tentativa de posar como reencarnação do finado personagem. O próprio Allen era talvez um caso semelhante
e   poderia   ter   persuadido   o   jovem   a   aceitá-lo   como   um   avatar   de   Curwen   há   muito   tempo   falecido.   Essas
coisas   já   eram   conhecidas   e,   com   o   mesmo   argumento,   os   obstinados   doutores   liquidaram   a   crescente
inquietação de Willett no que dizia respeito à atual caligrafia de Charles Ward, contida nas amostras obtidas
por vários artifícios. Willett acreditava ter identificado enfim a razão de sua estranha familiaridade, pois ela
se    assemelhava     vagamente      à  caligrafia   do   falecido    velho   Joseph    Curwen;     mas    os   outros   médicos
consideraram isto um fenômeno de imitação previsível neste tipo de loucura e recusaram-se a atribuir-lhe
alguma importância, a favor ou não. Ao constatar essa atitude prosaica em seus colegas, Willett aconselhou o
senhor Ward a guardar a carta que chegara para o doutor Allen no dia 2 de abril de Rakus, na Transilvânia,
numa   letra   tão   intensa   e   fundamentalmente   idêntica   à  do   código   de   Hutchinson  que   tanto   o   pai   quanto   o
médico se detiveram apavorados antes de violar o selo. A carta dizia:
                                                                                                             Castelo Ferenczy
                                                                                                          7 de março de 1928,
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   Caro C. —
   Apareceu um esquadrão de vinte milicianos por causa dos boatos do povo. Preciso cavar mais fundo e
manter menos gado. Esses rumenos incomodam horrivelmente, são intrometidos e detalhistas, enquanto era
possível comprar um magiar com bebida e comida. No mês passado M. me mandou o sarcófago das cinco
esfinges da Acrópole onde aquele que eu evoquei me disse que estaria, e tive três conversas com aquilo que
estava inumado em seu interior. Irá diretamente para S. O. em Praga e de lá para o senhor. É obstinado, mas
o senhor sabe como agir. O senhor mostrou sabedoria em ter menos do que antes, pois não havia necessidade
de   manter   os   guardas   em  forma   e   comendo   tanto,   e muito   poderia   ser   encontrado   em  caso   de   problemas,
como os senhores bem sabem. Agora o senhor pode se mudar e trabalhar em outro lugar sem o inconveniente
de matar, se necessário, embora espere que nada o obrigue tão cedo a uma medida tão incômoda. Folgo que
não esteja traficando muito com os de fora, pois nisso sempre houve um perigo mortal e o senhor sabe o que
ele fez quando pediu proteção de alguém que não estava disposto a dá-la. O senhor me supera em conseguir
as   fórmulas   para   que   um   outro   o   possa   dizê-las   com   sucesso,   mas   Borellus   imaginou   que   seria   assim,
bastando     ter  as  palavras   certas.   O  rapaz   as   usa  frequentemente?      Sinto   que   ele  esteja   se  tornando
excessivamente melindroso, como eu temia quando esteve aqui há cerca de quinze meses, mas percebo que o
senhor sabe como lidar com ele. O senhor não pode fazê-lo voltar com as fórmulas, pois aquilo só funciona
com aqueles que as fórmulas chamam dos sais, mas o senhor ainda tem mãos fortes, faca, pistola e túmulos
não   são   difíceis   de   cavar,   nem   os   ácidos   difíceis   de   queimar.   O.   diz   que   o   senhor   lhe   prometeu   B.F.   Eu
preciso tê-lo depois. B. irá para o senhor logo e poderá lhe dar o que o senhor deseja daquela coisa negra
debaixo de Memphis. Tenha cuidado com aquilo que evocar e cuidado com o menino. Daqui a um ano será o
momento de convocar as legiões das profundas e então não haverá limites ao nosso poder. Confie no que eu
digo, pois o senhor sabe que O. e eu tivemos esses 150 anos mais que o senhor para estudar tais assuntos.
                                                                                               Nephreu — Ka nai Hadoth
                                                                                                                     Edw:H.
Para o Cavalheiro J. Curwen,
Providence
      Mas embora Willett e o senhor Ward não mostrassem essa carta aos psiquiatras, não deixaram de, em
seguida, agir por conta própria. Não havia douto sofisma capaz de contestar o fato de que o estranho doutor
Allen, com seus óculos e barba, de quem a desesperada carta de Charles falara como de uma ameaça tão
monstruosa,   mantinha   uma   íntima   e   sinistra   correspondência   com   duas   inexplicáveis   criaturas   que   Ward
havia visitado em suas viagens e que claramente afirmavam ser sobreviventes ou avatares dos velhos colegas
de Curwen, em Salem. Que ele se considerava a reencarnação de Joseph Curwen e que cultivava — ou pelo
menos havia sido aconselhado a cultivar — mortais desígnios contra um "menino" que não poderia ser senão
Charles Ward. O Horror organizado estava agindo e, quem quer que o tivesse começado, o ausente Allen a
esta   altura   estava   na   origem   de   tudo.   Portanto,  agradecendo   aos   céus   por   Charles   agora   estar   a   salvo   no
hospital, o senhor Ward não perdeu tempo e contratou imediatamente detetives para que descobrissem tudo a
respeito do misterioso doutor barbudo, se informassem de onde ele vinha e o que Pawtuxet sabia sobre ele, e
se possível descobrissem seu atual paradeiro. Entregou-lhes uma das chaves do bangalô que eram de Charles
e recomendou-lhes que explorassem o quarto vazio de Allen identificado quando haviam sido empacotados
os   pertences   do   paciente   e   colhessem   todos   os   indícios   possíveis   dos   objetos   pessoais   que   ele   porventura
tivesse deixado por lá. O senhor Ward conversou com os detetives na antiga biblioteca do filho e eles se
sentiram bastante aliviados quando por fim saíram do aposento sobre o qual parecia pairar um vago fluido
diabólico. Talvez tivessem ouvido falar do abominável velho bruxo cujo quadro outrora espiava de cima do
painel sobre a lareira, talvez fosse algo diferente e irrelevante; de qualquer maneira, todos eles sentiram um
intangível miasma que emanava daquele vestígio entalhado de uma morada mais antiga e que chegava quase
à intensidade de uma emanação material.
                                                     Capítulo cinco
                                                 Pesadelo e cataclismo
                                                              1
                                                              50
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      Logo em seguida deu-se a horrenda experiência que deixou uma marca indelével de terror na
alma   de   Marinus   Bicknell   Willett   e   envelheceu  de   uma   década   a   aparência   de   um   homem   cuja
juventude já então andava muito distante. O doutor Willett conferenciou longamente com o senhor
Ward e chegou a um consenso com ele em vários pontos que, na opinião de ambos, os psiquiatras
achariam   ridículos.   Eles   se   davam   conta   de   que   existia   no   mundo   um   terrível   movimento   cuja
ligação direta com uma necromancia mais antiga ainda do que as bruxarias de Salem era algo acima
de qualquer dúvida. Que pelo menos dois homens vivos — e outro no qual não ousavam pensar —
detinham   o   domínio   absoluto   de   mentes   ou   personalidades   que   haviam   existido   já   em   1690   ou
mesmo   antes,   como   estava   quase   inquestionavelmente   comprovado,   mesmo   contra   todas   as   leis
naturais conhecidas. O que estas terríveis criaturas — bem como Charles Ward — estavam fazendo
ou tentando fazer parecia bastante claro pelas suas cartas e por todo vislumbre de luz antigo e novo
que   filtrara   sobre   o   caso.  Eles   estavam   saqueando   túmulos   de   todos   os   tempos,   inclusive   os   dos
maiores   e   mais   sábios   homens   do   mundo,   na   esperança   de   recuperar   das  vetustas   cinzas   algum
vestígio da ciência e do saber que outrora os animara e informara.
      Um   tráfico   hediondo   desenrolava-se   entre   estes   vampiros   de   pesadelo,   e   ossos   ilustres   eram
barganhados   com   a   atitude   calculista   e   calma   de   meninos   de   escola   trocando   livros   entre   si;   por
aquilo     que  era   possível   arrancar    dessa   poeira   secular   anteviam-se      um   poder    e  uma   sabedoria
superiores a tudo o que o cosmos jamais vira concentrado num só homem ou grupo. Eles haviam
encontrado       meios   blasfemos     de   manter    vivos  seus    cérebros,    no   mesmo     corpo    ou  em    corpos
diferentes, e, evidentemente, haviam descoberto uma maneira de extrair a consciência dos mortos
que   eles   conseguiam   obter.   Aparentemente,   existia   um   fundo   de   verdade   no   velho   e   quimérico
Borellus,   quando   escreveu   a   respeito   do   modo   de   preparar,   mesmo  para   os   restos   mais   antigos,
certos "sais essenciais" dos quais era possível evocar a sombra de um ser há muito falecido. Havia
uma     fórmula     para   evocar    essa   sombra     e  outra   para   fazê-la   voltar,   e  agora    havia   sido   tão
aperfeiçoada       que   podia   ser  ensinada     com    sucesso.   Era   preciso    ter  muito   cuidado     com    essas
evocações, pois as lápides das tumbas antigas nem sempre são precisas.
      Willett   e   o   senhor   Ward   estremeciam   ao   passar   de   conclusão   em   conclusão.   As   coisas   —
presenças ou vozes — podiam ser evocadas de lugares desconhecidos bem como do túmulo e nesse
processo também era preciso ter muito cuidado. Joseph Curwen indubitavelmente evocara muitas
coisas proibidas, e quanto a Charles — o que se podia pensar dele? Que forças "fora das esferas"
haviam   chegado   a   ele   dos   tempos   de   Joseph   Curwen   fazendo   sua   mente   voltar-se   para   coisas
esquecidas? Ele fora levado a descobrir certas instruções e as usara. Conversara com o homem do
horror   em   Praga   e   vivera   muito   tempo   com   a   criatura   nas   montanhas   da  Transilvânia.   Por   fim,
encontrara o túmulo de Joseph Curwen. O artigo do jornal e aquilo que sua mãe ouvira aquela noite
eram   demasiado   importantes   para   serem   desprezados.   Então   ele   chamara   algo   e   este   algo   viera.
Aquela voz possante nas alturas, na  Sexta-feira Santa, e aqueles tons diferentes no laboratório da
mansarda trancada—Arqueie assemelhavam com sua profundidade e cavernosidade? Não haveria
neles um horrível prenúncio do temido estrangeiro, o doutor Allen, com seu tom baixo espectral?
Sim, era isso que o senhor Ward havia percebido com um vago horror em sua única conversa com o
homem pelo telefone — se é que se tratava de um homem.
      Que consciência ou voz infernal, que mórbida sombra ou presença respondera aos secretos ritos
de Charles Ward atrás daquela porta trancada? Aquelas vozes ouvidas numa discussão — "é preciso
que fique vermelho três meses" — Bom Deus! Não. Aquilo acontecera pouco antes de começar a
onda   de   vampirismo?        O   saque   do   antigo   túmulo   de   Ezra   Weeden   e   mais   tarde   os   gritos   em
Pawtuxet — que mente planejara a vingança e redescobrira a sede das mais antigas blasfêmias, por
todos evitada? E depois o bangalô e o estrangeiro barbudo, os boatos e o terror. A loucura final de
Charles não podia ser explicada nem pelo pai nem pelo médico, mas eles tinham certeza de que a
mente   de   Joseph   Curwen   voltara   novamente   à   terra   e   estava   seguindo   suas   antigas   tendências
mórbidas. A possessão demoníaca era realmente uma possibilidade? Allen tinha algo a ver com isso
e os detetives tinham de descobrir mais a respeito de um indivíduo cuja existência ameaçava a vida
do jovem. Enquanto isso, como a existência de alguma enorme cripta debaixo do bangalô parecia
praticamente   indiscutível,   era   preciso   fazer   alguma   tentativa   de   encontrá-la.   Willett   e   o   senhor
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Ward,     conscientes     da   atitude   cética   dos  psiquiatras,    resolveram     durante    sua   conferência     final
empreender   uma   exploração   conjunta   de   uma   minúcia   sem   igual   e   combinaram   encontrar-se   no
bangalô na manhã seguinte com valises, instrumentos e material adequados à pesquisa arquitetônica
e à exploração subterrânea.
      A manhã do dia 6 de abril surgiu clara e ambos os exploradores estavam no bangalô às dez
horas. O senhor Ward tinha a chave, entraram e realizaram uma busca rápida. Pela desordem do
quarto   do   doutor   Allen   era   óbvio   que  os   detetives   já   haviam   estado   lá,   e   os   novos   exploradores
esperaram   que   tivessem   encontrado   algum   indício   valioso.   Evidentemente,   o   negócio   principal
ficava no porão; portanto, desceram sem muita demora, percorrendo de novo o trajeto que cada um
deles   havia   feito   anteriormente   na   presença   do jovem   e   maníaco   proprietário.   Por   algum   tempo
sentiram-se frustrados, cada polegada do chão de terra e das paredes de pedra tinha um aspecto tão
sólido e inócuo que era impossível imaginar uma abertura escancarada. Willett refletiu que como o
porão original fora escavado sem que se soubesse da existência de uma catacumba debaixo dele, o
início da passagem seria justamente a escavação recente do jovem Ward e seus sócios, à procura do
antigo subterrâneo cuja existência lhes poderia ter sido revelada por meios não-normais.
      O médico tentou colocar-se no lugar de Charles para entender como um explorador começaria,
mas   não   conseguiu   obter   muita   inspiração   com   este   método.   Então,   decidiu   optar   por   aquele   da
eliminação e percorreu cuidadosamente toda a superfície subterrânea, vertical e horizontal, tentando
estudar cada polegada separadamente. Logo restringiu substancialmente sua área de interesse e por
fim só restava a pequena plataforma diante da tina de lavar roupa, que ele já havia experimentado.
Tentando agora de todos os modos possíveis, e aplicando força redobrada, finalmente descobriu que
a tampa de fato girava e deslizava horizontalmente sobre um eixo no canto. Debaixo dela havia uma
superfície     lisa  de   concreto    com    uma    tampa    de   ferro,  para   a  qual   o  senhor    Ward    se   dirigiu
imediatamente,   excitado   em   seu   zelo.   A   tampa   não   era   difícil   de   levantar   e   o   pai   a   havia   quase
removido   quando   Willett   notou   que   seu   aspecto   ficara   estranho.   Ele   vacilava   e   agitava   a   cabeça
atordoado e, na lufada de ar pestilento que saiu do poço negro lá em baixo, o médico logo descobriu
a causa.
      Num instante, o doutor Willett deitou no chão o companheiro que desmaiara e o ajudou a voltar
a si com água fria. O senhor Ward reagiu fracamente, mas percebia-se que a lufada de ar mefítico
da cripta de alguma forma o deixara num profundo mal-estar. Ansioso por não correr riscos, Willett
saiu apressadamente em busca de um táxi em Broad Street e logo despachou o doente para casa,
apesar   de   seus   fracos   protestos;   depois,   pegou   uma   lanterna   a  pilha,   cobriu   o   nariz   com   uma
bandagem        de  gaze    esterilizada    e  desceu    mais    uma    vez   para    espiar   as  profundezas      recém-
descobertas. O ar empestado diminuíra ligeiramente e Willett pôde vasculhar com sua lanterna o
abismo   infernal.   Observou   que   havia   uma   queda   exatamente   cilíndrica   de  cerca   de   três   metros   e
meio, com paredes de concreto e uma escada de ferro; depois disso, o buraco parecia dar num lance
de antigos degraus de pedra, originalmente, devia emergir um pouco ao sul do edifício atual.
      Willett admite francamente que por um instante a lembrança das velhas lendas sobre Curwen o
impediu de descer sozinho na voragem malcheirosa. Não podia deixar de pensar naquilo que Luke
Fenner contara a respeito da última noite monstruosa. Então, o dever predominou e ele se decidiu,
carregando   urna   grande   valise   para  levar   algum   papel   que   se   revelasse   de   suprema   importância.
Lentamente,   como   convinha   a   uma   pessoa   de   sua  idade,   desceu   a   escada   e   alcançou   os   degraus
limosos em baixo. Era uma construção antiga, de tijolos, conforme a lanterna desvendava, e, sobre
as   paredes   gotejantes,   viu   o   musgo   doentio   dos   séculos.   Os   degraus   desciam,   desciam,   não   em
espiral,    mas   em    três  abruptas    curvas,    e  eram    tão  estreitos   que   dois   homens     passariam     com
dificuldade. Contara cerca de trinta quando ouviu um som muito fraco e depois disso não teve mais
disposição para contar.
      Era    um   som    perverso;    o  som    daqueles    insidiosos    e  graves    ultrajes   da  natureza    que   não
deveriam   existir.   Chamar   aquilo   um   gemido  surdo,   um   queixume   prolongado   fatal   ou   um   uivo
desesperado   de   uma   angústia   coral   e   uma   carne  aflita   sem  cérebro   não   definiria   sua   repugnância
essencial     e  seu  tom    aterrorizante.    Seria   isso  que   Ward    parecia    ouvir   naquele    dia  em   que   foi
internado?      Era   a  coisa   mais    chocante    que   Willett    jamais    ouvira   e  continuava      de  um    ponto
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indeterminado enquanto o médico chegava ao fim dos degraus e movia a luz da lanterna à sua volta
sobre as elevadas paredes do corredor encimadas por abóbadas ciclópicas e recortadas por inúmeros
arcos negros. Õ saguão no qual ele se encontrava talvez tivesse mais de quatro metros de altura no
centro   da   abóbada   e   mais   de   três   metros   de   largura.   Seu   assoalho   era   formado   de   largas   lajes
entrecortadas e suas paredes e teto eram de tijolos lisos. Não poderia imaginar seu comprimento,
pois   estendia-se   adiante   indefinidamente   na   escuridão.   Alguns   dos   arcos   tinham  portas   do   antigo
tipo colonial de seis painéis, enquanto outros não.
      Vencendo o horror provocado pelo cheiro e pêlos uivos, Willett começou a explorar esses arcos
um por um; encontrou atrás deles cômodos com tetos de pedra com nervuras, cada um de tamanho
médio   e   aparentemente   reservados   para   usos   bizarros;   a   maioria   deles   tinha   lareira,   sendo   que   a
parte superior das chaminés poderia permitir um interessante estudo de engenharia. Jamais ele vira,
ou viu depois disso, tais instrumentos ou sugestões de instrumentos que apareciam aqui por todos os
lados   entre   o   pó   e   as   teias   de   aranha   de   um século   e   meio,   em   muitos   casos   evidentemente
estilhaçados,      quem    sabe   pêlos    antigos   invasores.   Muitos      dos   cômodos      pareciam     não   ter  sido
visitados   em   tempos   recentes   e   deviam   representar   as   primeiras   e   mais   ultrapassadas   fases   das
experiências   de   Joseph   Curwen.   Finalmente,   apareceu   um   quarto   obviamente   moderno,   ou   pelo
menos   de   ocupação   recente.   Havia   fogareiros,   prateleiras   e   mesas,   cadeiras   e   gabinetes,   e   uma
escrivaninha   com   enormes   pilhas   de   papéis   de variados   graus   de   antiguidade   e   contemporâneos.
Castiçais e lampiões espalhavam-se por vários lugares e, encontrando à mão uma caixa de fósforos,
Willett acendeu todos os que estavam prontos para o uso.
      Na luminosidade agora mais plena via-se que esse apartamento não era senão o último estúdio
ou biblioteca de Charles Ward. O médico havia visto muitos daqueles livros antes e boa parte da
mobília viera claramente da mansão de Prospect Street. Aqui e ali havia uma peça bem conhecida
para   Willett   e   a   sensação   de   familiaridade   se   tomou   tão   grande   que   quase   esqueceu   o   cheiro
nauseabundo   e   os   uivos,   ambos   mais   fracos   aqui   do  que   ao   pé   dos   degraus.   Seu   primeiro   dever,
como      havia    longamente       planejado,     era   descobrir     e  recolher    todos    os   papéis    que    fossem
considerados   de   importância   vital,   principalmente   aqueles   monstruosos   documentos   encontrados
por Charles há tanto tempo, atrás do quadro em Olney Court. Enquanto procurava deu-se conta de
que espantosa tarefa seria decifrar todo o mistério; pois cada arquivo estava repleto de papéis em
curiosas   caligrafias   e   com   desenhos   curiosos,  de   modo   que   meses   ou   talvez   mesmo   anos   seriam
necessários   para   uma   decifração   e   compilação   completa.   Em   certo   momento,   descobriu   grandes
pacotes   de   cartas   com  selos   de   Praga   e   Rakus   numa   caligrafia   claramente   reconhecível   como   de
Orne e Hutchinson; tudo isso ele carregou consigo junto com as coisas a serem levadas na valise.
Por fim, num gabinete de mogno trancado a chave, que outrora adornava a casa de Ward, Willett
descobriu      o  lote  de   velhos   papéis    de  Curwen,      reconhecendo-os       graças  ao    olhar   relutante   que
Charles   lhe   permitira   tantos   anos   antes.   O   jovem   evidentemente   os   havia   conservado   juntos   da
mesma       maneira    como     estavam     quando     os  descobrira,     pois   todos   os   títulos   lembrados     pêlos
operários estavam lá, com exceção dos papéis endereçados a Orne e Hutchinson e o código com sua
explicação. Willett colocou todo o lote em sua mala e continuou a examinar os arquivos. Como a
doença   imediata   do   jovem   Ward   era   a   principal   questão   em   jogo,   a   pesquisa   mais   cuidadosa   foi
realizada      entre   o   material    mais     obviamente      recente,    e   nessa    abundância       de   manuscritos
contemporâneos         observou      uma    curiosidade     desconcertante.      Essa   singularidade      era   a  limitada
quantidade de coisas escritas na caligrafia normal de Charles, entre as quais indubitavelmente não
havia nada mais recente do que dois meses antes. Por outro lado, havia literalmente resmas e resmas
de    símbolos     e  fórmulas,     apontamentos       históricos    e  comentários      filosóficos,    numa     caligrafia
intrincada absolutamente idêntica à escritura antiga de Joseph Curwen, embora inegavelmente com
datas modernas. Era evidente que uma parte do programa dos últimos dias havia sido uma diligente
imitação     da   caligrafia   do   velho   bruxo,    em   que  Charles     parecia    ter  conseguido     uma    perfeição
maravilhosa. De uma terceira caligrafia, que deveria pertencer a Allen, não havia traços. Se de fato
ele havia se tornado o chefe, devia ter obrigado o jovem Ward a servir-lhe de amanuense.
      Nesse   novo   material,   uma   fórmula   mística,   ou   melhor,   duas   fórmulas   apareciam   com   tanta
freqüência que Willett a decorou antes de chegar à metade de sua investigação. Consistia em duas
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colunas   paralelas,   a   da   esquerda   encimada   pelo   símbolo   arcaico   chamado   "Cabeça   do   Dragão"   e
usado    em   almanaques      para  indicar   o  nó  ascendente,    e  a  da  direita  encimada     por  um    sinal
correspondente,   o   da   "Cauda   do   Dragão",   ou   nó   descendente.   O   aspecto   da   fórmula   era   algo
semelhante   ao   que   está   reproduzido   abaixo   e   quase   inconscientemente   o   doutor   percebeu   que   a
segunda metade não era senão a primeira escrita com as sílabas invertidas, com exceção dos últimos
monossílabos      e  do   estranho    nome   Yog-Sothoth,    que    ele  aprendera    a   reconhecer    em   várias
ortografias por outras coisas que havia visto relacionadas a esse horrível assunto. As fórmulas eram
as seguintes — exatamente
                                                      Y'AI 'NG'NGAH,
                                                       YOG-SOTHOTH
                                                       H'EE - L'GEB
                                                       FAI THRODOG
                                                           UAAAH
                  OGTHROD AI'F
                  GEB'L - EE'H
                 YOG-SOTHOTH
                  'NGAH'NG AI'Y
                      ZHRO
como Willett pôde testemunhar abundantemente — e a primeira despertou uma curiosa sensação de
lembrança desconfortável e latente em sua mente, que reconheceu mais tarde ao rever os eventos
daquela   horrível   Sexta-Feira   Santa   do   ano   anterior.   Eram   tão   obsedantes   as   fórmulas   e   ele   as
encontrou tantas vezes que, antes de se dar conta, o médico as estava repetindo em voz baixa. A
certa   altura,   achando   que   tinha   apanhado   todos   os   papéis   de   interesse   que   poderia   digerir   no
momento, resolveu não examinar mais nada até que pudesse trazer os céticos psiquiatras en masse
para uma ampla e mais sistemática incursão. Ainda precisava encontrar o laboratório oculto, assim,
deixando   a   valise   na   sala   iluminada,   voltou   a   penetrar   no   negro  corredor   fétido   cujas   abóbadas
ressoavam incessantemente com aquele gemido surdo e horrendo.
     Os poucos cômodos seguintes em que entrou estavam todos abandonados ou cheios apenas de
caixas    semidestruídas     e  caixões   de  chumbo     de aspecto     sinistro,  mas   que   o  impressionaram
profundamente com a magnitude das operações originais de Joseph Curwen. Pensou nos escravos e
marujos desaparecidos, nos túmulos violados em todos os cantos do mundo e naquilo que o grupo
da invasão final provavelmente viu; e então decidiu que era melhor não pensar mais. A certa altura,
uma grande escadaria de pedra subia à sua direita e deduziu que deveria conduzir a um dos edifícios
de Curwen — talvez o famoso edifício de pedra com as altas janelas semelhantes a fendas — se os
degraus que ele subira iniciassem na casa da fazenda de teto muito inclinado. De repente, as paredes
pareceram desaparecer de vista mais à frente e o fedor e os gemidos se tornaram mais fortes. Willett
notou que chegara a um amplo espaço aberto, tão grande que a luz de sua lanterna não alcançava o
outro lado, e à medida que avançava descobria pilares aqui e ali sustentando os arcos do teto.
     Depois   de   algum   tempo,   chegou   a   um   círculo   de   pilares   agrupados   como   os   monolitos   de
Stonehenge e um imenso altar esculpido sobre uma base de três degraus no centro; as esculturas
daquele altar eram tão curiosas que ele se aproximou para examiná-las com a lanterna, mas quando
viu o que representavam recuou  estremecendo e não parou para investigar as marcas escuras que
borravam   a   superfície   superior   e   haviam   se   espalhado   pêlos   lados   em   filetes   aqui   e   ali.   Em   vez
disso,   chegou   até   a   parede   distante   e   a   percorreu  enquanto   ela   se   abria  num   círculo   gigantesco
perfurado   por   negras   portas   esparsas   que   davam   numa   miríade   de   celas   pouco   profundas,   com
grades de ferro e argolas para pulsos e tornozelos presas a correntes fixadas à pedra da parede de
tijolos   do  fundo.   Essas   celas   estavam    vazias,  mas   o  horrível   cheiro   e  os  gemidos    lúgubres
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persistiam,   agora   mais   insistentes   do   que   nunca,  e,   ao   que   parecia,   variavam   às   vezes   com   uma
espécie de baques e escorregões.
                                                               2
      A   atenção   de   Willett   já   não   conseguia   se   desviar   do   cheiro   assustador   e   do   ruído   horrível.
Ambos eram mais nítidos e mais horrendos no grande saguão de pilares do que em qualquer outro
lugar e davam a vaga impressão de virem de baixo, mais abaixo ainda do que esse profundo e negro
mundo   de   mistérios   subterrâneos.   Antes   de   tentar   procurar   em   algumas   das   escuras   arcadas   os
degraus que o levariam ainda mais para baixo, o médico dirigiu o jato de luz sobre o chão de pedras
perfuradas. Era pavimentado de modo muito desconexo e a intervalos irregulares notava-se uma laje
curiosamente perfurada com pequenos orifícios dispostos ao acaso; num lugar havia uma escada de
madeira muito comprida jogada no chão. Curiosamente, a esta escada parecia aderir uma boa parte
do   cheiro   assustador   que   impregnava   tudo.   Enquanto   Willett   se   movia   lentamente   pelo   local,   de
repente se deu conta de que tanto o ruído quanto o odor pareciam mais fortes diretamente em cima
das   lajes   com   as   curiosas   perfurações,   como   toscos   alçapões   levando   a   alguma   região   de   horror
ainda    mais    profunda.    Ajoelhando-se      ao   lado  de  uma    delas,   tentou   levantá-la    com   as   mãos    e
verificou que conseguia fazê-la mover com extrema dificuldade. Com isso, o gemido lá em baixo
ficou mais forte e com uma agitação enorme o médico continuou a erguer a pesada pedra. Um fedor
indizível   subia   agora   das   profundezas   e   a   cabeça   de   Willett   começou   a   rodar   vertiginosamente
enquanto apoiava a laje para trás e iluminava com a lanterna o negro espaço quadrado que acabava
de escancarar.
      Se   esperava   um   lance   de   escada   conduzindo   a  algum   imenso   abismo   de   abominação   total,
Willett estava destinado a se desapontar, pois entre o fedor e os gemidos entrecortados enxergou
apenas o topo revestido de tijolos de um poço cilíndrico de aproximadamente um metro e meio de
diâmetro,   sem   qualquer   escada   ou   outros   meios   para  a   descida.   Enquanto   a   luz   iluminava   lá   em
baixo, os gemidos se tornaram de repente uma série de uivos horríveis junto com os quais vinha de
novo     aquele   ruído   de   movimentos      desordenados      e   inúteis  e  surdos    baques    e  escorregões.     O
explorador   tremeu,   recusando-se  inclusive   a   imaginar   que   coisa  horrorosa   poderia   aguardar   no
abismo;   mas   logo   encontrou   a   coragem   de   espiar   pela   beirada   toscamente   recortada,   deitado   no
chão e segurando a lanterna com o braço esticado para ver o que poderia existir lá em baixo. Por um
segundo, não conseguiu distinguir nada, com exceção das paredes verdes e escorregadias de limo
que mergulhavam sem fim num miasma quase material de negridão, fedor e desesperado frenesi;
então viu alguma coisa escura pulando de modo desajeitado e frenético, para cima e para baixo, no
fundo da estreita abertura que ficava talvez a sete ou oito metros abaixo do chão de pedra sobre o
qual ele estava deitado. A lanterna tremeu em sua mão, mas ele olhou de novo para ver que espécie
de   ser   vivente   estaria   murado   na   escuridão   daquele   poço   construído   pelo   homem   e   havia   sido
deixado morrer de inanição pelo jovem Ward por um mês inteiro desde que os médicos o haviam
levado, evidentemente apenas um de um grande número de outros trancados em poços semelhantes
cujas tampas de pedra perfurada eram tão freqüentes no chão da grande caverna abobadada. O que
quer que fossem essas coisas, não podiam ficar deitadas em seus cubículos apertados, mas apenas
gemer e esperar, pulando fracamente por todas aquelas horríveis semanas desde que seu dono as
abandonara e negligenciara.
      Mas Marinus Bicknell Willett arrependeu-se de olhar de novo, pois, embora fosse cirurgião e
veterano da sala de dissecação, não foi mais o mesmo a partir daquele momento. É difícil explicar
como a simples visão de um objeto concreto de dimensões mensuráveis poderia de tal modo abalar
e mudar um homem; podemos apenas dizer que certas figuras e entidades possuem um poder de
simbolismo e sugestão que agem de maneira assustadora sobre a visão de um pensador sensível e
sussurram terríveis sugestões de obscuras relações cósmicas e realidades indescritíveis por trás das
protetoras ilusões da visão comum. Naquela segunda olhada, Willett viu essa criatura ou entidade e
nos   instantes   seguintes,   sem   sombra   de   dúvida,  enlouquecera   como   qualquer   paciente   da   clínica
privada   do   doutor   Waite.   Deixou   cair  a   lanterna   da   mão,   da   qual   sumira   toda   força   muscular   ou
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coordenação nervosa, tampouco se preocupou com o barulho de dentes trincando algo, indicando o
destino daquela no fundo do poço. Ele gritou, gritou e gritou ainda numa voz cujo falsete provocado
pelo   pânico   nenhum   amigo   seu   jamais   reconheceria,   e,   não   conseguindo   erguer-se   sobre   os   pés,
arrastou-se   e   rolou   desesperadamente   para   longe        sobre   o  chão   úmido    onde   dezenas    de   poços
infernais    deixavam      escapar   gemidos     e  uivos   extenuados     em   resposta   aos  seus    gritos  insanos.
Esfolou as mãos sobre as pedras desconexas e ásperas e várias vezes machucou a cabeça contra os
numerosos pilares, mas mesmo assim continuou. Então, finalmente, aos poucos voltou a si em meio
à   escuridão   total   e   ao   fedor,   e  tapou   os   ouvidos   para   não   ouvir   os   gemidos   surdos   em   que   se
transformara a explosão de uivos. Estava banhado em suor e, sem ter como fazer luz, debilitado e
esgotado naquela negritude e naqueles horrores abissais, esmagado por uma lembrança que jamais
poderia apagar. Debaixo dele, dezenas   daquelas   coisas   ainda   viviam  e   a   tampa   de   um  dos   poços
estava levantada. Sabia que o que ele vira jamais conseguiria subir pelas paredes escorregadias, no
entanto, estremecia à idéia de que pudesse existir algum ponto de apoio oculto.
      Não     conseguia     compreender      o  que   era   aquele    ser.  Parecia-se    com    algumas     das  coisas
esculpidas no altar infernal, mas ainda estava viva. A natureza jamais a fizera com aquela forma,
pois    era   demasiado      evidente     que   estava   inacabada.       As  suas     deficiências    eram     as  mais
surpreendentes   e   as   anomalias   de   suas   proporções   indescritíveis.   Willett   arrisca   apenas   dizer   que
esse    tipo  de   coisa   devia   representar    entidades    que   Ward    evocara    de  sais   imperfeitos    e  que
conservava com propósitos servis ou rituais. Se não tivesse alguma importância, sua imagem não
teria sido gravada naquela maldita pedra. Não era a pior coisa representada na pedra — mas Willett
jamais abriu os outros poços. Naquele momento,  a primeira idéia que ocorreu à sua mente foi um
parágrafo de algumas das anotações do velho Curwen que ele havia analisado muito tempo antes,
uma frase usada por Simon ou Jedediah Orne na  impressionante carta apreendida, endereçada ao
falecido feiticeiro:
      "Com certeza, não havia senão o mais vivo horror naquilo que H. evocou daquilo que havia
conseguido apenas em parte".
      Então, para aumentar o horror da imagem em vez de afastá-la, surgiu a lembrança dos antigos e
persistentes boatos sobre a coisa queimada e retorcida que fora encontrada nos campos uma semana
após a incursão na fazenda de Curwen. Charles Ward certa vez contara ao médico o que o velho
Slocum falara a respeito daquilo: que não era totalmente humana, nem se assemelhava a qualquer
animal que o povo de Pawtuxet jamais tivesse visto ou a cujo respeito tivesse lido.
      Essas palavras soavam na cabeça do doutor enquanto ele se agitava de lá para cá, agachado no
chão salitroso de pedra. Tentou afastá-las e repetiu mentalmente o Padre-Nosso e este acabou se
emendando   a   uma   cantilena   mnemônica   como   o   moderno   "Wates   Land"   de   T.S.   Eliot   e   enfim
voltou à dupla fórmula mencionada tão frequentemente, que encontrara na biblioteca subterrânea de
Ward:    Y'ai   'ng'ngah,   Yog-   Sothoth'  e   assim   por   diante,   até   o "Zhro" final,   sublinhado.   Parecia
acalmá-lo e, cambaleando, depois de algum tempo, ficou de pé; lamentando amargamente a perda
da   lanterna   pelo   horror,   procurou   com   desespero  à   sua   volta   algum   clarão   de   luz   na   pegajosa
escuridão negra como tinta daquele ar gélido. Não conseguia pensar, mas procurou com os olhos
em todas as direções em busca de um fraco vislumbre ou do reflexo da brilhante iluminação que
deixara na biblioteca. Após alguns momentos pensou ter captado uma tênue luminosidade a uma
distância infinita e nessa direção foi se arrastando com um cuidado angustiante sobre as mão se os
joelhos, entre o fedor e os uivos,  sempre   tateando   à   sua   frente   para  não   esbarrar   nos   inúmeros   e
enormes pilares ou mergulhar no poço abominável que havia destampado.
      Em   certo   momento,   seus   dedos   trêmulos   tocaram   algo   que   sabia   serem   os   degraus   do   altar
diabólico   e   afastou-se   com   repugnância   desse   local.   Mais   tarde,  encontrou   a   laje   perfurada   que
havia removido e aqui seu cuidado se tornou quase patético. Mas o fato de esbarrar na horrenda
abertura não o fez parar. Aquilo que havia lá em baixo não produzia nenhum som nem se mexia.
Evidentemente, mastigar a lanterna que caíra não havia sido bom para ele. Cada vez que os dedos
de   Willett   apalpavam   uma   laje   perfurada,   ele   estremecia.   Sua   passagem   sobre   a   laje   às   vezes
aumentava os gemidos em baixo, mas em geral não produzia nenhum efeito, pois seus movimentos
não    faziam    qualquer    barulho.   Em    vários   momentos      durante    sua  busca,    o  brilho  à  sua   frente
                                                           56
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diminuiu perceptivelmente e ele se deu conta de que as velas e lampiões que havia deixado iam se
apagando,   um   a   um.   A   idéia   de   estar   perdido   na   escuridão   total,   sem   fósforos,   nesse   mundo
subterrâneo de pesadelo com seus labirintos, impeliu-o a ficar de pé e correr, o que podia fazer sem
perigo agora que havia passado o poço aberto, pois sabia que se a luz apagasse, a única esperança
de se salvar e de sobreviver estaria na hipótese de o senhor Ward enviar um grupo em seu socorro,
algum tempo após seu desaparecimento. No entanto, conseguiu sair do espaço aberto penetrando no
corredor   estreito   e   localizar   definitivamente   o   brilho   que   vinha   de   uma   porta   à   sua   direita.   Num
instante alcançou-o e encontrou-se mais uma vez na biblioteca secreta do jovem Ward, e, tremendo
aliviado, observou o extinguir-se do último lampião que o havia trazido para a salvação.
                                                                3
      Em   seguida,   encheu   os   lampiões   vazios   com   uma   reserva   de   querosene   que   havia   notado
anteriormente e, quando a sala ficou de novo iluminada, olhou à sua volta para ver se encontraria
uma outra lanterna que lhe permitisse uma ulterior exploração. Pois, embora aflito pelo horror, seu
propósito inabalável era maior do que tudo e ele estava firmemente determinado a tentar qualquer
coisa em sua busca dos fatos hediondos responsáveis pela bizarra loucura de Charles Ward. Não
conseguindo encontrar uma lanterna, escolheu o menor dos lampiões para carregar consigo. Encheu
também os bolsos de velas e fósforos e levou um galão de querosene com a intenção de guardá-lo
como   reserva   no   laboratório   oculto   que   porventura   viesse   a   descobrir   do   outro   lado   do   terrível
espaço   aberto   com   o   altar   manchado   e   inomináveis   fossas   cobertas.   Atravessar   de   novo   aquele
espaço exigiria sua total fortaleza de espírito, mas sabia que aquilo tinha de ser feito. Felizmente,
nem o altar apavorante nem a laje aberta estavam perto da vasta parede com os buracos das celas
que   circundava   a   área   da   caverna   e   cujas   misteriosas   abóbadas  negras   constituíam   os   próximos
alvos de uma busca lógica.
      Assim,   Willett   voltou   para   o   grande   saguão   cheio  de   pilares,   em   meio   ao   fedor   e   aos   uivos
angustiantes,   baixou   a   chama   dos   lampiões   para   evitar   qualquer   vislumbre   longínquo   do   altar
infernal ou do poço descoberto com a laje de pedra perfurada virada ao seu lado. A maioria das
passagens levava apenas a pequenos cômodos, alguns vazios, outros evidentemente usados como
depósitos e, em vários destes, viu curiosas pilhas de objetos diversos. Um estava repleto de trouxas
de   roupas   podres   e   cobertas   de   pó   e   o   explorador  estremeceu   ao   se   dar   conta   de   que   se   tratava
inconfundivelmente         de   vestimentas    de   um   século    e  meio   antes.   Em    outro   cômodo,     encontrou
numerosas peças de vestuário moderno, co mo se aos poucos estivessem sendo feitas provisões para
equipar um vasto contingente de homens. Mas o que mais o desagradou foram as enormes bacias de
cobre espalhadas aqui e ali; estas e as sinistras incrustações que havia sobre elas. Desagradaram-lhe
ainda mais que as tigelas de chumbo com figuras fantasmagóricas, cujos restos continham depósitos
tão   asquerosos   e   em   torno   das   quais   pairavam   os   repelentes   odores   perceptíveis   mesmo   sobre   o
fedor geral da cripta. Quando completou quase metade da circunferência da parede, descobriu outro
corredor como aquele do qual viera, em que se abriam várias portas.
      Começou   a   inspecioná-lo   e,   depois   de   entrar  em   três   cômodos   de   dimensões   médias   cujo
conteúdo não tinha especial importância, chegou finalmente a um amplo apartamento oblongo cujos
tanques   e   mesas,   fornalhas   e   instrumentos   modernos,   livros   ocasionais   e  inumeráveis   prateleiras
com jarros e garrafas de aspecto muito eficiente afirmavam sem sombra de dúvida tratar-se do há
muito procurado laboratório de Charles Ward —  e, antes dele, indubitavelmente do velho Joseph
Curwen.
      Após acender os três lampiões que encontrara já cheios e prontos, o doutor Willett examinou o
local   e   todos   os   seus   acessórios   com   a   mais  ávida   curiosidade,   observando,   pelas   quantidades
relativas dos vários reagentes nas prateleiras, que o interesse dominante do jovem Ward devia ter
sido   algum   campo   da   química   orgânica.   Ao   todo,   pouco   se   podia   depreender   da   aparelhagem
científica,   que   incluía   uma   mesa   de   dissecação  de   aspecto   macabro,   de   modo   que   o   cômodo   em
realidade o desapontou. Entre os livros havia um  antigo exemplar em frangalhos de Borellus em
letras   góticas   e   foi   fantasticamente   interessante   observar   que   Ward   havia   sublinhado   o   mesmo
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trecho que tanto perturbara o bom senhor Merritt na casas da fazenda de Curwen, há mais de um
século   e   meio.   A   cópia   mais   antiga,   evidentemente,   devia   ter   perecido   junto   com   o   restante   da
oculta biblioteca de Curwen na incursão final. Três passagens em arco abriam-se fora do laboratório
e   o   médico   procedeu   à   sua   exploração,   uma   por  uma.   Em   sua   rápida   pesquisa,   viu   que   duas
conduziam simplesmente a pequenos depósitos que ele examinou com cuidado, notando as pilhas
de caixões em vários estágios de ruína, e estremeceu violentamente quando conseguiu decifrar duas
ou três das poucas placas sobre os caixões. Nesses cômodos havia também muita roupa armazenada
e   várias   caixas   novas    e  cuidadosamente       pregadas   que     não   se  deteve    para  examinar.     O   mais
interessante, talvez, eram alguns objetos esparsos que julgou serem fragmentos dos instrumentos de
laboratório do velho Joseph Curwen. Haviam sido danificados pelas mãos dos invasores, mas ainda
eram em parte reconhecíveis como a parafernália química do período georgiano.
      A terceira passagem levava a uma sala de bom tamanho, totalmente revestida de prateleiras e
tendo ao centro uma mesa com dois lampiões. Willett os acendeu e à sua luz brilhante examinou as
intermináveis      prateleiras    que   se  estendiam     à  sua  volta.   Alguns    dos   níveis   superiores    estavam
totalmente vazios, mas a maior parte do espaço estava preenchida por pequenos jarros de chumbo
de formato estranho e de dois tipos: um alto e sem asas como lekythoi gregos ou jarros de óleo, e o
outro com uma única asa e proporcional, como um jarro de Faleros. Todos tinham tampas de metal
e   estavam   cobertos   de   símbolos   de   aspecto   peculiar,   em   baixo-relevo.  Num   instante   o   médico
observou que estes jarros estavam classificados com extremo rigor; todos os lekythoi ficavam num
lado da sala com uma grande tabuleta de madeira em cima com a palavra "Custodes", e todos os
jarros de Faleros do outro, igualmente rotulados  com uma tabuleta dizendo "Matéria". Cada um dos
vasos ou jarros, exceto alguns sobre as prateleiras de cima que estavam vazios, tinham uma placa de
papelão com um número que aparentemente se referia a um catálogo, e Willett resolveu procurá-lo.
Por enquanto, porém, estava mais interessado na natureza dos objetos expostos em geral, e abriu, a
título   de   experiência,    vários  lekythoi  e  Faleros      ao  acaso,   tentando    formar    uma    idéia  geral.   O
resultado era invariável. Ambos os tipos de jarros continham uma pequena quantidade de uma única
espécie de substância; um fino pó seco muito leve e de variadas nuanças de cor neutra e opaca. Não
existia   um   método   aparente   na   disposição   das  cores,   o   único   elemento   de   variação,   nem   uma
aparente distinção entre o conteúdo dos lekythoi e o dos Faleros. Um pó cinza-azulado estava ao
lado   de   um   pó   branco-rosado   e   qualquer   um   dos   que   estavam   nos   Faleros   podia   ter   sua   exata
contrapartida      num   lekythos.    A   característica    mais    peculiar   dos   pós   era  o  fato   de  não    serem
aderentes.   Willett   despejou   um   na   mão   e,   ao   colocá-lo   de   volta   em   seu   jarro,   constatou   que   não
permanecia nenhum resíduo na palma.
      O    significado    das  duas    tabuletas  o   intrigava   e  ficou   imaginando      por   que  essa   bateria   de
substâncias      químicas     estava   separada    tão  radicalmente      daquelas   nos    jarros  de   vidro   sobre   as
prateleiras do laboratório. "Custodes" e "Matéria"; em latim significavam "Guardas" e "Matéria",
respectivamente        —    e  então,   num    lampejo    de   memória,     lembrou     onde   havia    visto   a  palavra
"Guardas"       antes,   relacionada     a  este   terrível   mistério.    Evidentemente,       fora  na   recente    carta
endereçada   ao   doutor   Allen   supostamente   pelo   velho   Edward   Hutchinson,   e   a   frase   dizia:   "Não
havia necessidade de manter os guardas em forma comendo em demasia, com isto muitas coisas
poderiam ser descobertas em caso de problema, como o senhor muito bem sabe". O que significava
isto? Mas, um momento — não havia outra referência a "guardas" de que esquecera totalmente ao
ler   a   carta   de   Hutchinson?   Na   época   em   que   ainda   não   fazia   tanto   mistério,   Ward   falara-lhe   a
respeito do diário de Eleazer Smith, contando que Smith e Weeden espionavam a fazenda Curwen e
naquela      horrível   crônica    eram    mencionadas       conversas     ouvidas    antes   que   o   velho   bruxo    se
recolhesse totalmente debaixo da terra. Smith e Weeden insistiam que havia terríveis diálogos em
que   figuravam   Curwen,   alguns   prisioneiros   seus  e   os   guardas   desses   prisioneiros.  Esses   guardas,
segundo Hutchinson, ou seu avatar, "comiam demais", de modo que agora o doutor Allen não os
mantinha   mais  em   forma.  E   se   não  em   forma,  como   senão   nos   "sais"   nos   quais   parece   que   esse
bando de bruxos tentava reduzir todos os corpos ou esqueletos humanos que podia?
      Portanto,   era   isso   que   os  lekythoi  continham;   o   monstruoso   fruto   de   rituais   e   ações   iníquas,
presumivelmente         vencidos    ou   intimidados     até   cederem     a  esta  submissão      para  ajudar    quando
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evocados   por   alguma   magia   infernal,   em   defesa  de   seu   blasfemo   mestre   ou   nos   interrogatórios
daqueles que não estavam dispostos a ceder? Willett estremeceu à idéia daquilo que despejara em
suas mãos e, por um instante, sentiu o impulso de sair correndo em pânico da caverna com suas
horrendas prateleiras e suas silenciosas e quem sabe atentas sentinelas. Então pensou na "Matéria"
— na miríade de jarros de Faleros do outro lado do cômodo. Sais também — e se não eram os dos
"guardas", então os sais do quê? Meu Deus! Seria possível que aí se encontrassem os sais mortais
de metade dos grandes pensadores de todas as eras; roubados por supremos vampiros das criptas
onde o mundo os julgava em segurança, obedientes ao sinal de loucos que buscavam arrancar sua
sabedoria por alguma finalidade ainda mais desvairada cuja conseqüência última afetaria, como o
pobre Charles mencionara em seu bilhete desesperado, "toda a civilização, toda lei natural, quem
sabe mesmo o destino do sistema solar e do universo"? E Marinus Bicknell Willett deixara escorrer
seu pó em suas mãos!
      Então observou urna pequena porta na extremidade do cômodo e, acalmando-se, aproximou-se
dela   examinando   a   tosca   inscrição   esculpida   sobre  ela.   Era   apenas   um   símbolo,   mas   encheu   seu
coração de um vago terror; pois, certa ocasião, um amigo seu, mórbido sonhador, o desenhara sobre
um   pedaço   de   papel   e   dissera-lhe   alguns   dos   seus   significados   no   negro   abismo   do   sono.   Era   o
símbolo   de   Koth,   que   os   sonhadores   vêem  fixado   sobre   o   arco   de   urna   torre   negra   que   se   ergue
sozinha   no   crepúsculo   —   e   Willett   não   gostara   do   que   o   amigo   Randolph   Carter   lhe   contara   a
respeito de seus poderes. Mas um segundo mais tarde ele havia esquecido o símbolo ao sentir um
novo odor acre no ar fétido. Era um cheiro químico e não um cheiro animal, e vinha diretamente do
cômodo atrás da porta. Inconfundivelmente, era o mesmo cheiro que saturava as roupas de Charles
Ward      no  dia  em    que   os  médicos    o  haviam     levado.   Então    era  aqui   que   o  jovem    havia   sido
interrompido   pela   intimação   final?   Ele   fora   mais   sábio   do   que   o   velho  Joseph   Curwen,   pois   não
resistira. Willett, corajosamente determinado a penetrar em todos os mistérios e pesadelos que esse
reino subterrâneo pudesse conter, agarrou o pequeno lampião e cruzou o limiar. Uma onda de terror
indizível o envolveu, mas ele não cedeu e não condescendeu a nenhuma sensação. Não havia nada
de vivo aqui que pudesse fazer-lhe algum mal e nada o impediria de penetrar a nuvem tenebrosa
que tragara seu paciente.
      O cômodo além da porta era de dimensões médias e não tinha mobília, com exceção de uma
mesa, uma única cadeira e dois grupos de curiosas máquinas com braçadeiras e rodas que Willett
reconheceu após um instante como instrumentos medievais de tortura. De um lado da porta havia
um suporte para chibatas bárbaras, acima do qual havia algumas prateleiras com fileiras vazias de
taças rasas de estanho providas de pé do formato de kylíkes gregos. Do outro lado estava a mesa,
com     uma    potente    lâmpada    de   Argand,    uma    prancheta     e  um   lápis   e  dois lekythoi   tampados
semelhantes aos das prateleiras do outro cômodo, espalhados, como se deixados temporariamente
ou às pressas. Willett acendeu o lampião e olhou com cuidado a prancheta para ver que anotações o
jovem Ward teria rabiscado rapidamente quando fora interrompido; mas não descobriu nada mais
inteligível do que os seguintes fragmentos desconexos na caligrafia rabiscada de Curwen, que não
esclareciam em absoluto o caso:
      "B. não feito. Fugiu dentro das paredes e encontrou lugar lá em baixo."
      "Vi o velho V. dizer o Sabaoth e aprendi o caminho."
      "Evoquei três vezes Yog- Sabaoth e no dia seguinte fui libertado."
      "F. tentou apagar todo conhecimento para evocar os de fora."
      Enquanto   a   forte   lâmpada   de   Argand   iluminava todo   o   cômodo,   o   médico   viu   que   a   parede
oposta   à   porta,   entre   os   dois   grupos   de   instrumentos   de   tortura   nos   cantos,   estava   coberta   de
ganchos   dos   quais   estavam  penduradas   vestimentas   disformes   de   um  branco   amarelado   um  tanto
lúgubre. Mas muito mais interessantes eram as duas paredes vazias, ambas profusamente cobertas
de símbolos e fórmulas grosseiramente gravadas na pedra lisa. O chão úmido também trazia marcas
gravadas; mas com pouca dificuldade Willett decifrou um grande pentagrama no centro, com um
círculo simples de cerca de três pés de largura, entre este e cada um dos outros cantos. Num desses
quatro   círculos,   perto   do   qual   uma   veste   amarelada   havia   sido   atirada   descuidadamente   ao   chão,
havia um kylix raso do mesmo tipo encontrado nas prateleiras em cima do suporte das chibatas, e
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imediatamente fora da periferia havia um jarro de Faleros das prateleiras do outro cômodo e seu
cartão tinha o número 118. Este não tinha tampa e, ao examiná-lo, constatou que estava vazio; mas
o explorador viu com um arrepio que o kylix não estava. Em sua concavidade rasa, e impedido de se
espalhar unicamente pela ausência de vento nessa caverna isolada, havia uma pequena quantidade
de   pó   seco,   verde-opaco   florescente,   que   devia   pertencer   ao   jarro;   e   Willett   quase   cambaleou   ao
atinar de repente com as implicações, enquanto pouco a pouco relacionava os vários elementos e os
antecedentes da cena. As chibatas e os instrumentos de tortura, o pó e os sais do jarro da "Matéria",
os dois lekythoi da prateleira dos "Custodes", as roupas, as fórmulas nas paredes, as anotações sobre
a prancheta, as indicações contidas nas cartas e lendas e as milhares de vagas sugestões, dúvidas e
suposições   que   atormentavam   os   amigos   e   pais  de   Charles   Ward   —   tudo   isto   tragava   o   médico
como uma onda de horror enquanto ele olhava o esverdeado pó seco espalhado no kylix de chumbo
de pé alto sobre o chão.
     No   entanto,   com   algum   esforço,   Willett   se   recompôs   e   começou   a   examinar   as   fórmulas
gravadas nas paredes. Pelas letras manchadas e cheias de incrustações era óbvio que haviam sido
gravadas   na  época   de   Joseph   Curwen,   e   o   texto   era   vagamente   familiar   a   alguém   que   havia   lido
tanto   material   sobre   Curwen   ou   mergulhado   intensamente   na   história   da   magia.   Uma   fórmula   o
médico   reconheceu   claramente   como   sendo   aquela   que   a   senhora   Ward   ouvira   o   filho   recitar
naquela   nefanda   Sexta-Feira   Santa   um   ano   antes   e  que   um   especialista   dissera   tratar-se   de   uma
terrível invocação aos deuses secretos fora das esferas normais. Aqui não estava grafada exatamente
como a senhora Ward a repetira de memória, tampouco como o especialista a mostrara a ele nas
páginas     proibidas   de   "Eliphas   Levi",   mas   sua  identidade     era  inconfundível     e  palavras   como
Sabaoth, Metraton, Almonsin  e Zariatnatmik provocaram um arrepio de medo no explorador que
havia visto e experimentado tanta abominação cósmica nas imediações do lugar.
      Esta se encontrava na parede à esquerda de quem entrava. A parede à direita não estava menos
coberta   de   inscrições   e   Willett   sentiu   um   sobressalto   ao   se   dar   conta   de   que   se   tratava   das   duas
fórmulas tão freqüentes nas recentes anotações encontradas na biblioteca. Eram, grosso modo,  as
mesmas: com os antigos símbolos da "Cabeça do Dragão" e da "Cauda do Dragão" encabeçando-as,
como nos rabiscos de Ward. Mas a grafia era muito diferente daquela das versões modernas, como
se o velho Curwen tivesse uma maneira diferente de gravar sons, ou se estudos posteriores tivessem
gerado     variações   mais   potentes   e  aperfeiçoadas    das   invocações     em   questão.   O   médico    tentou
combinar a versão gravada com aquela que voltava insistentemente à sua cabeça, mas achou difícil.
O trecho que ele havia memorizado começava com  "Y'ai 'ng'ngah, Yog- Sothoth", e esta epígrafe
começava com "Aye, cengehgah, Vogge-Sothotha", o que na sua opinião interferiria seriamente com
a escansão da segunda palavra.
      Como   o   último   texto   estava   profundamente   gravado   em   sua   consciência,   a   discrepância   o
incomodava e ele se percebeu recitando a primeira das fórmulas em voz alta na tentativa de fazer
corresponder o som que concebera com as letras gravadas que acabava de descobrir. Sua voz soava
fantasmagórica e ameaçadora naquele abismo de antigas blasfêmias, suas cadências eram as de uma
cantilena    sussurrada    pela   magia   do   passado    e do   desconhecido,     ou   pelo  demoníaco      exemplo
daqueles gemidos surdos, ímpios, dos poços, cuja frieza desumana subia e baixava ritmicamente,
em meio ao fedor e à escuridão.
                                                 "Y'AI'NG'NGAH
                                                 YOG-SOTHOTH
                                                   H'EE - L'GEB
                                                 FAI' THRODOG
                                                      UAAAH!
      Mas    o  que   era   esse  vento   gélido    que  criara   vida   ao  canto?   Os   lampiões     bruxuleavam
tristemente e a escuridão tornara-se tão densa que as letras na parede se apagavam. Havia fumaça
também e um odor acre que quase sobrepujava o fedor dos poços distantes; um odor como aquele
que   sentira   antes,   mas   infinitamente   mais   forte  e   mais   pungente.   Desviou   o   olhar   das   inscrições,
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virou-se   para   o   cômodo   com   seus   objetos   bizarros   e   viu   que   do  kylix  no   chão,   que   continha   o
sinistro pó florescente, se desprendia uma nuvem de espesso vapor negro-acinzentado de volume e
opacidade surpreendentes. Aquele pó — Deus Todo-poderoso! saíra da prateleira da "Matéria" —,
o que estava fazendo agora, o que o provocara? A fórmula que ele recitava — a primeira das duas
—, a Cabeça do Dragão, o nó ascendente —Jesus Bendito, poderia ser...
      O médico teve uma vertigem e pela sua cabeça passaram aceleradamente trechos desconexos
de tudo aquilo que ele havia visto, ouvido e lido a respeito do espantoso caso de Joseph Curwen e
Charles Dexter Ward. "Digo-lhe novamente, não evoque ninguém que não possa mandar de volta...
Tenha as palavras prontas todas as vezes para mandar de volta e não se detenha para ter certeza
quando   houver   alguma   dúvida   de  quem  o   senhor   tem...   Três   conversas   com Aquilo          que   estava
inumado..." Deus do Céu, o que era aquela forma atrás da fumaça que estava se dissipando?
                                                              4
     Marinus Bicknell Willett não esperava nem um pouco que as pessoas acreditassem mesmo em
parte   em   seu   relato,   com   exceção   de   algum   amigo   condescendente,   portanto,   não   fez   qualquer
tentativa de narrá-lo fora do círculo dos mais  íntimos. Somente alguns estranhos a este círculo o
ouviram   e    a  maioria    destes   ri  e  observa  que,  com   certeza,    o  médico     está  ficando   velho.   Foi
aconselhado a tirar umas férias prolongadas e a evitar casos futuros de distúrbios mentais. Mas o
senhor   Ward   sabe   que   o   velho   médico   diz   uma  horrível   verdade.   Acaso  ele   próprio   não   viu   a
pestilenta abertura no porão do bangalô? Willett não o mandara para casa vencido e doente às onze
horas daquela agourenta manhã? Acaso não telefonou em vão ao médico naquela noite e novamente
no dia seguinte, e não foi de carro até o bangalô  ao meio-dia encontrando o amigo inconsciente,
porém incólume, numa das camas do andar superior? Willett estertorava e abriu lentamente os olhos
quando o senhor Ward lhe deu um conhaque que buscara no carro. Então teve um calafrio e gritou,
"Aquela barba... aqueles olhos... Meu Deus, quem é você?" Algo muito estranho a ser dito a um
cavalheiro elegante, de olhos azuis, bem escanhoado, a quem ele conhecia desde a adolescência.
     Na luminosidade do meio-dia o bangalô não havia mudado desde a manhã anterior. As roupas
de   Willett   não   estavam   desalinhadas,   com   exceção   de   algumas   manchas,   os   joelhos   um   pouco
puídos, e um leve odor acre lembrou ao senhor Ward aquele que sentira em seu filho no dia em que
este fora levado ao hospital. A lanterna do doutor estava faltando, mas sua valise estava lá, inteira,
vazia   como   quando   ele   a   trouxera.   Antes   de   se  delongar   em   explicações   e   obviamente   com   um
grande esforço moral, Willett cambaleava completamente tonto enquanto descia até o porão onde
tentou forçar a fatal plataforma diante da tina. Não cedia. Atravessou o local e foi ao lugar onde
havia deixado sua sacola de ferramenta, que não usara no dia anterior, pegou um formão e começou
a forçar as pranchas renitentes, uma por uma. Em baixo, o concreto liso ainda era visível, mas já
não havia sinal de qualquer abertura ou perfuração. Nada se escancarava dessa vez, aterrorizando o
pai desorientado que seguira o médico no porão; somente o concreto liso em baixo das pranchas —
nenhum   poço   fétido,   nenhum   mundo   de   horrores   subterrâneos,   nenhuma   biblioteca   secreta,   nem
papéis   de   Curwen,   nem   poços   dignos   de   pesadelos   com   fedores   e   uivos,  nenhum   laboratório   ou
prateleiras ou fórmulas gravadas nas paredes, nada... O doutor Willett ficou pálido e se agarrou ao
homem mais jovem. "Ontem", perguntou em voz branda, "você o viu aqui... e sentiu o cheiro?" E
quando o próprio senhor Ward, petrificado pelo horror e pelo espanto, encontrou forças para acenar
afirmativamente, o médico emitiu um som quase um suspiro ou um estertor e acenou por sua vez.
"Então vou lhe contar", ele disse.
      Assim, durante uma hora, no cômodo mais ensolarado que conseguiram encontrar no andar de
cima,   o   médico   sussurrou   seu   relato   estarrecedor   ao  pai   surpreso.   Não   havia   nada   a   contar   além
daquela forma que aparecera quando o vapor negro-esverdeado começou a se desprender do kylix e
Willett   estava   demasiado   fatigado   para   perguntar  a   si   mesmo   o   que   em   realidade   acontecera.   Os
dois homens desnorteados ficaram abanando a cabeça, num gesto inútil, e a certa altura o senhor
Ward arriscou uma sugestão num sussurro. "O senhor supõe que seria útil cavar?" O médico ficou
calado,   pois   parecia   inadequado   a   qualquer   espírito   humano   responder   quando   poderes   e   esferas
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 desconhecidas haviam invadido de modo tão extraordinário esse lado do Grande Abismo. De novo
 o senhor Ward perguntou: "Mas aonde foi? Ele trouxe o senhor aqui, o senhor sabe, e vedou de
 alguma forma o buraco". E Willett de novo deixou o silêncio falar em seu lugar.
      Mas, apesar de tudo, o assunto não estava encerrado. Pegando o lenço antes de se levantar para
 ir embora, os dedos do doutor Willett agarraram no bolso um pedaço de papel que não estava lá
 antes, junto com as velas e os fósforos que havia apanhado no subterrâneo desaparecido. Era uma
 folha   de   papel   comum,   arrancada   obviamente   da  prancha   barata   naquele   fantástico   cômodo   dos
 horrores, em algum ponto debaixo da terra, e o que estava escrito nele havia sido rabiscado com um
 lápis comum — sem dúvida aquele mesmo que se encontrava ao lado da prancha. Estava dobrado
 de   qualquer   jeito   e,   à   parte   o  leve   odor   acre   do   cômodo   misterioso,   não   trazia   nenhum   sinal   ou
 marca    de   algum    outro   mundo     além   desse.   Mas,   em   realidade,    o  texto estava    impregnado      de
 mistério,   pois   a   caligrafia   não   pertencia   a   nenhuma   época   normal,   mas   os   traços   elaborados   de
 perversidade medieval, quase ilegíveis para o leigo que agora se esforçava em decifrá-lo, continham
 combinações se símbolos vagamente familiares.
      Essa era a mensagem rabiscada às pressas e seu mistério ofereceu um objetivo aos dois homens
 bastante abalados, os quais sem demora se encaminharam decididos para o carro de Ward, pedindo
 para serem levados primeiramente a um lugar tranqüilo a fim de almoçar e depois para a Biblioteca
 John Hay, sobre a colina.
      Na biblioteca foi fácil encontrar bons manuais  de paleografia e os dois se debruçaram sobre
 estes   até   que   as   luzes   começaram a   brilhar   no  grande   lustre.   No  fim,   encontraram  aquilo   de   que
 precisavam. Em realidade, as letras não eram uma invenção fantástica, mas a escritura normal de
 um   período   obscuro.   Tratava-se  de   um   pontudo   cursivo   saxônio   do  século   VIII   ou   IX   e   trazia
 consigo as memórias de uma época misteriosa em  que,   sob   o   recente verniz  cristão,   agitavam-se
 furtivamente   crenças   e   ritos   antigos   e   a   pálida  lua   da   Bretanha   às   vezes   testemunhava   estranhos
 acontecimentos nas ruínas romanas de Caerleon e Hexhaus e perto das Torres ao longo da muralha
 de   Adriano    agora    em   ruínas.  As   palavras    eram   num    latim   lembrado   numa      época   bárbara    —
 "Corwinus   necandus   est.   Cadáver   aq(ua)   forti   dissolvendum,   nec   atiq(ui)d   retinendum.   Tace   ut
potes."  E podemos traduzi-las como: "Curwen deve ser morto. O corpo deve ser dissolvido em aqua
fortis  e nada pode restar. Manter o maior silêncio possível".
      Willett   e   o   senhor   Ward   estavam   mudos   e   perplexos.   Haviam   encontrado   o   desconhecido   e
 percebiam      que   não   conseguiam      reagir  emocionalmente        como,    em   modo     vago,   achavam      que
 deveriam. Willett, em particular, quase esgotara a capacidade de experimentar novas impressões de
 horror; os dois homens ficaram sentados, imóveis e desamparados, sem saber o que fazer, até a hora
 de fechar a biblioteca, quando foram obrigados a sair. Então, indiferentes, voltaram à mansão Ward
 em Prospect Street e conversaram sobre coisas banais até tarde da noite. O médico foi descansar ao
 amanhecer, mas não voltou para casa. E lá se encontrava ainda ao meio-dia do domingo quando os
 detetives que haviam sido incumbidos de investigar o doutor Allen telefonaram.
      O   senhor   Ward,   que   caminhava   nervosamente   para   cima   e   para   baixo   de   roupão,   respondeu
 pessoalmente e, ao ouvir que o relatório estava quase pronto, disse aos homens que aparecessem na
 manhã seguinte cedo. Willett e ele ficaram contentes que esta fase do caso estivesse começando a
 tomar forma, pois qualquer que fosse a origem da estranha mensagem manuscrita, parecia certo que
 o "Curwen" a ser destruído não podia ser outra pessoa senão o estranho de barba e óculos. Charles
 temia esse homem e havia dito na mensagem desesperada que ele deveria ser morto e dissolvido em
 ácido. Além disso, Allen estava recebendo cartas dos estranhos bruxos da Europa usando o nome de
 Curwen e claramente se considerava um avatar do falecido necromante. E agora, de uma fonte nova
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e   desconhecida,   surgia   uma   mensagem   dizendo   que   "Curwen"   devia   ser   morto   e   dissolvido   em
ácido.   A   ligação   era   demasiado   inconfundível   para   ser   artificial;   além   disso,   não   estava   Allen
planejando assassinar o jovem Ward por conselho da criatura chamada Hutchinson? Evidentemente,
a   carta   que   eles   haviam   lido   nunca   chegara   ao   estrangeiro   barbudo;  mas,   por   seu   conteúdo,   eles
podiam constatar que Allen já havia feito planos de cuidar do jovem caso este ficasse demasiado
 "melindroso". Sem dúvida, Allen devia ser detido e, mesmo que não fossem tomadas as medidas
mais drásticas, deveria ser posto em condições de não mais prejudicar Charles Ward.
      Naquela tarde, esperando, contrariamente a todas as expectativas, extrair algum vislumbre de
informação sobre os mais profundos mistérios da única pessoa capaz de fornecê-la, o pai e o médico
desceram a baía e visitaram o jovem Charles no hospital. De modo simples e grave, Willett contou-
lhe tudo o que havia descoberto e se deu conta de que o jovem empalidecia a cada descrição que
comprovava a veracidade da descoberta. O médico empregou o máximo efeito dramático de que foi
capaz   e   ficou   observando   um   estremecimento   de   Charles   quando   abordou   o   assunto   dos   poços
cobertos e dos hídricos inomináveis neles contidos. Mas Ward não se abalou. Willett parou e sua
voz   soou   indignada   ao   comentar   que   as   coisas   estavam   morrendo   de   fome.   Acusou   o   jovem   de
mostrar   uma   chocante   desumanidade   e   tremeu  quando,   em   resposta,   obteve   apenas   uma   risada
sardônica. Pois Charles, desistindo de simular, visto que se tornara inútil, que a cripta não existia,
parecia   considerar   o   caso   uma   pilhéria   horrível  e   ria   roucamente   com  algo   que   o   divertia.   Então
sussurrou, em tons duplamente terríveis por causa da voz áspera: "Malditos, eles  comem mesmo,
mas não precisam disso! fato é que é curioso! Um mês, o senhor diz, sem comida? Deus, como o
senhor      é  modesto!     Sabe,    essa   foi  a  piada    para   o  pobre    velho    Whipple,     com    sua   virtuosa
fanfarronice!   Matar   a   todos   era   o   que   ele   queria?   Pois,   diabo,   ficou   meio   surdo   com   o   ruído   do
Além   e   não   viu   ou   ouviu   nada   nos   poços.   Ele   jamais   sonhou   que   estavam   lá!   Que   o   diabo   as
carregue, aquelas coisas malditas estão uivando lá em baixo desde que acabaram com Curwen, há
cento e cinqüenta e sete anos".
      Mas   Willett   não   conseguiu   tirar   mais   do   que   isso   do   jovem.   Horrorizado,   contudo   quase
convencido contra sua vontade, continuou seu relato na esperança de que algum incidente pudesse
despertar   seu   ouvinte   da   louca   compostura   que   ele   mantinha.   Olhando   para   o   rosto   do   jovem,   o
médico não podia deixar de sentir uma espécie de terror com as mudanças que os últimos meses
haviam      produzido.     Em    verdade,    o  rapaz   chamara     dos   céus   horrores    indescritíveis,    Quando     o
cômodo com as fórmulas e o pó esverdeado foram mencionados, Charles mostrou o primeiro sinal
de animação. Um ar zombeteiro espalhou-se por seu rosto enquanto ouviu o que Willett havia lido
na   prancheta   e   arriscou   a   fraca   afirmação   de   que   aquelas   anotações   eram   antigas,   sem   nenhuma
eventual   importância   para   ninguém   que   não   fosse profundamente   iniciado   na   história   da   magia.
 "Mas", acrescentou, "se o senhor conhecesse as palavras para evocar aquele que eu tinha na taça,
não estaria aqui agora para me contar isto. Era o Número 118 e garanto que teria tremido se tivesse
visto minha lista no outro cômodo. Eu nunca o havia chamado, mas pretendia fazê-lo no dia em que
o senhor foi à minha casa para sugerir que eu viesse para cá."
      Então Willett mencionou a fórmula que recitara e a fumaça negra-esverdeada que saíra e, ao
fazer isto, viu pela primeira vez o medo despontar no rosto de Charles Ward. "Ele veio e você está
vivo! " Enquanto Ward grasnava as palavras, sua voz parecia quase explodir, libertando-se do que a
prendia, e mergulhar em abismos cavernosos de  sinistras ressonâncias. Willett, iluminado por uu
lampejo   de   inspiração,   acreditou   ter   compreendido   a   situação   e   colocou   em   sua   resposta   uma
advertência contida numa carta que ele lembrava. "Número 118, você diz? Mas não esqueça que as
pedras foram todas mudadas agora em nove cemitérios em cada dez.  Você nunca tem certeza se
não   perguntai"   E   então,   repentinamente,   pegou   a  mensagem   em   gótico,   colocando-a   diante   dos
olhos do paciente. Não poderia esperar uma reação maior, pois Charles Ward desmaiou em seguida.
      Toda   esta   conversa,   evidentemente,   fora   realizada   em   grande   sigilo,   para   que   os   psiquiatras
residentes   não   acusassem   o   pai   e   o   doutor   de   encorajar   os   delírios   de   um   louco.   Sem   solicitar
qualquer ajuda também, o doutor Willett e o senhor Ward ergueram o jovem e o colocaram no divã.
Ao   voltar   a   si,   o   paciente   murmurou   várias   vezes   que   deveria   dizer   algo   a   Orne   e   Hutchinson
imediatamente; assim, quando pareceu recobrar de todo a consciência, o médico lhe disse que pelo
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menos   uma   daquelas   estranhas   criaturas   era   seu   grande   inimigo   e   aconselhara   o   doutor   Allen   a
assassiná-lo. Essa revelação não produziu um efeito visível e, antes mesmo que ela fosse feita os
visitantes   puderam   perceber   que   seu   anfitrião   já   tinha   o   aspecto   de   um   homem   acuado.   Depois
disso, não conversou mais e então Willett e o pai se despediram, deixando uma advertência contra o
barbudo Allen, à qual o jovem apenas replicou que este indivíduo estava sendo bem vigiado e não
poderia   fazer   mal   a   ninguém   ainda   que   quisesse.  Estas   palavras   foram   pronunciadas   com   uma
risadinha quase maligna, dolorosa de se ouvir. Eles não se preocuparam com o que Charles poderia
escrever aos dois monstruosos indivíduos na Europa, porque sabiam que as autoridades do hospital
apreendiam toda a correspondência que saía e não deixariam passar nenhuma missiva desvairada ou
bizarra.
      No entanto, há uma curiosa continuação da questão de Orne e Hutchinson, se é que eram de
fato estes os bruxos exilados. Movido por um vago pressentimento em meio aos horrores daquele
período,   Willett   conseguiu,   de   uma   agência   internacional   de   notícias,   recortes   sobre   importantes
crimes e acidentes ocorridos recentemente em Praga e na Transilvânia oriental; depois de seis meses
acreditou ter descoberto duas coisas bastante significativas entre os variados artigos que recebeu e
mandou traduzir. Uma era a destruição completa de uma casa durante a noite, no bairro mais antigo
de Praga, e o desaparecimento do malvado velho chamado Josef Nadeh, que nela morava sozinho
desde há tempos imemoriais. Â outra foi uma explosão gigantesca nas montanhas da Transilvânia, a
oriente   de   Rakus,   e   o   desaparecimento   completo,  com   todos   os   seus   habitantes,   do   famigerado
Castelo Ferenczy, a respeito de cujo dono tão mal falavam camponeses e soldados o qual, inclusive,
dentro em breve seria convocado em Bucareste para rigorosas investigações, se esse incidente não
acabasse com uma carreira que já se estendia muito anteriormente a toda lembrança comum. Willett
afirma   que   a   mão   que   escrevera   aquelas   letras   seria   capaz   de   segurar   armas   muito   mais   fortes
também e que, embora ficasse incumbido de dar cabo de Curwen, o autor da mensagem sentia-se
capaz de encontrar e liquidar Orne e o próprio Hutchinson. O doutor esforça-se diligentemente em
não pensar em qual poderá ter sido o destino daqueles.
                                                             5
      Na   manhã   seguinte,   o   doutor   Willett   dirigiu-se   apressadamente   para   a   residência   dos   Wards
para   estar   presente   quando   os   detetives   chegassem.   A   destruição   ou   prisão   de   Allen   —   ou   de
Curwen, se se pudesse considerar válida a tácita declaração de reencarnação —, em sua opinião,
deveria ocorrer a qualquer custo e comunicou esta convicção ao senhor Ward enquanto esperavam a
chegada   dos   homens.   Dessa   vez   estavam   no   andar  térreo   da   casa,   pois   os   andares   superiores
começavam a ser evitados devido a uma peculiar atmosfera repugnante que parecia impregná-los
indefinidamente,   repugnância   que   os   criados   mais  antigos   relacionavam   a   uma   maldição   deixada
pelo retrato desaparecido de Curwen.
      Às nove horas, os três detetives se apresentaram e de pronto expuseram tudo o que tinham a
dizer. Infelizmente, não haviam localizado o português Tony Gomes como pretendiam, tampouco
haviam     encontrado      o  menor    indício   da  procedência      do  doutor    Allen   ou   mesmo     de  seu   atual
paradeiro,   mas   haviam   conseguido   descobrir   um   número   considerável   de   impressões   locais   e   de
fatos   concernentes   ao   reticente  estrangeiro.   Allen   era   visto   pelo   povo   de   Pawtuxet   como   um   ser
vagamente   antinatural   e   a   opinião   geral   era   que   sua   espessa   barba   cor   de   areia   fosse   tingida   ou
postiça — opinião definitivamente confirmada pela descoberta de uma barba postiça junto a um par
de óculos escuros em seu quarto no fatídico bangalô. Sua voz, nesse caso o senhor Ward poderia
testemunhar pela única conversa telefônica que tivera com ele, tinha um tom profundo e cavernoso
que não podia ser esquecido facilmente, e seu olhar parecia maldoso mesmo através de seus óculos
escuros   de   aro   de   tartaruga.   Um   comerciante, no   decorrer   de   certas   transações,   havia   visto   uma
amostra     de   sua  caligrafia   e  declarou    que   era  muito   estranha    e  cheia   de   garatujas,   sendo   isto
confirmado pelas notas a lápis, de um significado um tanto obscuro, encontradas em seu quarto e
identificadas pelo comerciante.
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      Quanto aos boatos de vampirismo do verão anterior, a maioria dos comentários pressupunha
que Allen, e não Ward, era o verdadeiro vampiro. Declarações foram obtidas também dos policiais
que   haviam   visitado   o   bangalô   após   o   desagradável   incidente   do   roubo   do   caminhão.   Eles   não
haviam percebido nada de sinistro no doutor Allen, mas o haviam visto como a figura principal no
curioso   e   sombrio   bangalô.   O   local   estava   demasiado   escuro   para   que   eles   pudessem   observá-lo
claramente, mas o reconheceriam se voltassem a vê-lo. Sua barba parecia estranha e eles achavam
que   o   personagem   tinha   uma   pequena   cicatriz   sobre  o   olho   direito   coberto pêlos   óculos   escuros.
Quanto   à   busca   no   quarto   de   Allen,   não   revelou   nada   de   definido,   com   exceção   da   barba   e   dos
óculos,   e   várias   anotações   escritas   a   lápis   numa   letra   cheia   de   garatujas,   que   Willett   percebeu
imediatamente ser idêntica à dos Manuscritos do velho Curwen e à do recente volume de anotações
do jovem Ward, descoberto nas catacumbas do terror agora desaparecidas.
      O doutor Willett e o senhor Ward captaram uma sensação de profundo, sutil e insidioso terror
cósmico à medida que essas informações lhes eram apresentadas e quase tremeram ao perceberem a
vaga e louca idéia que aparecera simultaneamente na mente de ambos. A barba postiça e os óculos,
a caligrafia garatujada de Curwen — o antigo retrato com a minúscula cicatriz, o jovem perturbado
no hospital com a mesma cicatriz, a voz profunda e surda ao telefone — não foi disso que o senhor
Ward se lembrou quando seu filho pronunciou aquela espécie de latidos em tom esganiçado, aos
quais   dizia   estar   reduzida   agora   sua   voz?   Quem   alguma   vez   havia   visto   Charles   e   Allen   juntos?
Sim,   os   policiais   os   haviam  visto   uma   vez,   mas   quem  mais   a   partir   daí?   Não   fora   quando   Allen
partira que Charles de repente perdera seu medo  crescente e começara a viver definitivamente no
bangalô? Curwen — Allen — Ward — em que fusão blasfema e abominável duas idades e duas
pessoas haviam se fundido? Aquela execrável semelhança do quadro com Charles — não costumara
observar insistentemente e seguir o rapaz pelo quarto com os olhos? Por que, então, Allen e Charles
copiavam a caligrafia de Joseph Curwen, mesmo quando sozinhos e sem necessidade de estar em
guarda?      E   depois    o  trabalho    horroroso     daquelas    pessoas     —,   a   cripta   dos   horrores    agora
desaparecida,   que   fizera   o   médico   envelhecer   da  noite   para   o   dia;   os   monstros   esfomeados   nos
poços fedorentos; a horrível fórmula que provocara resultados tão indescritíveis; a mensagem em
cursivo encontrada no bolso de Willett; os papéis e cartas e toda aquela conversa sobre túmulos,
"sais"   e   descobertas   —   para   onde levaria   tudo   aquilo?   No   fim,  o   senhor   Ward   fez   a   coisa   mais
sensata. Sem se perguntar por que fazia aquilo, deu aos detetives algo para que o mostrassem aos
comerciantes   de   Pawtuxet   que   haviam   conhecido  o   misterioso   doutor   Allen.   Tratava-se   de   uma
fotografia do seu infeliz filho, na qual ele desenhara cuidadosamente à tinta o par de pesados óculos
e a barba negra e pontuda que os homens haviam trazido do quarto de Allen.
      Por duas horas ele aguardou com o médico no ambiente opressivo da casa onde o medo e os
miasmas   estavam   lentamente   se   adensando,   enquanto   o   painel   vazio   na   biblioteca   lá   em   cima
olhava e continuava a olhar sem interrupção. Então os homens voltaram. Sim, a fotografia retocada
assemelhava-se de modo passável ao doutor Allen. O senhor Ward ficou pálido e Willett limpou
com   o   lenço   a   testa   subitamente   molhada   de   suor.   Allen   —   Ward   —   Curwen   —   tudo   estava   se
tornando demasiado horrendo para alguém poder pensar de modo coerente. O que o rapaz evocara
do vazio e o que aquilo fizera com ele? O que havia acontecido, em realidade, desde o princípio até
o fim? Quem era esse Allen que tentara matar Charles por considerá-lo demasiado "melindroso" e
por que sua vítima predestinada dissera no pós-escrito daquela carta desesperada que ele deveria ser
completamente dissolvido em ácido? Por que, também, a mensagem, em cuja origem nenhum dos
dois sequer ousava pensar, dissera que "Curwen" devia ser do mesmo modo destruído? Qual era a
mudança e quando ocorrera o estágio final? No dia em que chegara sua carta desesperada — ele
andara   nervoso   a   manhã   toda,   então   houve   unia   alteração.   Esgueirara-se   sem   ser   visto   e   voltara
passando   atrevidamente   pêlos   guardas   que   haviam  sido   contratados   para   vigiá-lo.   Fora   naquela
hora,   enquanto   ele   saíra.   Mas   não   —   ele   não   gritara   de  terror   ao   entrar   no   escritório   —   naquele
mesmo quarto? O que encontrara lá? Ou, esperem — o que o encontrara? Aquele simulacro que
entrara rápida e atrevidamente sem ser visto — seria uma sombra alienígena, um ser horripilante
introduzindo-se à força numa figura trêmula que jamais se fora totalmente? O mordomo não falara
por acaso de ruídos estranhos?
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      Willett chamou o empregado e lhe fez algumas perguntas em voz baixa. Havia sido mesmo um
negócio muito feio. Houve muito barulho — gritos, estertores e uma espécie de algazarra, rangidos
ou baques surdos, ou tudo isto ao mesmo tempo. E o senhor Charles não era mais o mesmo quando
saiu a passos longos e silenciosos, sem pronunciar uma palavra. O mordomo estremecia ao falar e
cheirou o ar pesado que vinha de alguma janela aberta dos andares superiores. O terror estabelecera-
se definitivamente naquela casa e somente os diligentes detetives não se davam plenamente conta
disso.   Mas   até   eles   se   mostravam   inquietos,   pois   esse   caso   tinha   como   pano   de   fundo   vagos
elementos   que   não   lhes   agradavam   em   absoluto.   O   doutor   Willett   estava   pensando   profunda   e
rapidamente   e   seus   pensamentos   eram   terríveis.   Vez   por   outra   ele   quase   desatou   a   resmungar
enquanto   em   sua   mente   analisava   uma   nova   cadeia  assustadora   e   cada   vez   mais   conclusiva   de
acontecimentos de pesadelo.
      Então o senhor Ward fez um sinal para indicar que a conferência acabara e todos, menos ele e
o   médico,   saíram   da   sala.   Já   era   meio-dia,   mas  as   trevas,   como   se   a   noite   estivesse   próxima,
pareciam tragar a casa assombrada por fantasmas. Willett começou a conversar muito seriamente
com seu anfitrião e instou-o a confiar-lhe grande parte das futuras investigações. Previa que haveria
certos elementos detestáveis que um amigo toleraria melhor do que um parente. Como médico da
família, deveria ter liberdade de ação e a primeira coisa que exigiu foi que lhe permitisse passar
algum tempo sozinho e sem ser incomodado na biblioteca do andar de cima, onde a peça sobre a
lareira atraíra ao seu redor um horror deletério mais intenso do que quando as feições do próprio
Joseph Curwen miravam maliciosamente de cima do painel pintado.
      O   senhor   Ward,   confuso   pela   maré   de   grotesca   morbidez   e   de   sugestões   inimagináveis   e
enlouquecedoras que jorravam de toda as partes,  só poderia concordar, e meia hora mais tarde o
médico era trancado na sala com o painel de Olney Court evitada por todos. O pai, escutando do
lado   de   fora,   ouviu   ruídos   desajeitados   de   alguém   remexendo   e   procurando   enquanto   o   tempo
passava      e,  finalmente,     um   repuxão     violento    e um     rangido,    como     se  a  porta    de  um    armário
firmemente fechada tivesse sido aberta. Então ouviu-se um grito abafado, uma espécie de resfolego
sufocado   e   um   bater   apressado  do   que   havia   sido   aberto.   Quase   imediatamente   a   chave   tiniu   e
Willett   apareceu   no   saguão,   com   um   ar   perturbado   e   espectral,   pedindo   lenha   para   a   lareira   de
verdade   na   parede   sul   da   sala.   A   fornalha   não   era  suficiente,   ele   disse,   e   a   lareira   elétrica   tinha
pouca   utilidade   prática.   Ansioso,   mas   sem   ousar   fazer   perguntas,  o   senhor   Ward   deu   as   ordens
necessárias e um criado trouxe grandes troncos de pinho, estremecendo ao entrar no ar corrompido
da    biblioteca    para    colocá-los    sobre    a  grade.   Enquanto       isso,  Willett    subira   até   o  laboratório
desmantelado e trouxera para baixo algumas bugigangas deixadas para trás na mudança do mês de
julho. Estavam num cesto coberto e o senhor Ward nunca pode ver do que se tratava.
      Então   o   médico   voltou   a   se   trancar   na   biblioteca   e,   pelas   nuvens   de   fumaça   que   saíam   da
chaminé e passavam em grandes rolos pela janela, percebeu-se que ele havia aceso o fogo. Mais
tarde, depois de muitos ruídos de jornais remexidos, ouviu-se novamente aquele curioso repuxão e
rangido,   seguidos   por   um   baque   surdo   que   desagradou   a   todos   os   que   estavam  escutando.   Então
ouviram-se   dois   gritos   abafados   de   Willett   e   logo  depois   disso   um   sussurro   sibilado   de   um   som
indefinidamente detestável. Finalmente, a fumaça que o vento trazia para baixo da chaminé tornou-
se   muito   escura   e   acre,   e   todos   desejaram  que   o tempo   lhes   poupasse   esta   asfixiante   e   venenosa
inundação   de   vapores   estranhos.   A   cabeça   do   senhor  Ward   rodava   vertiginosamente   e   todos   os
criados   formaram   um   grupo   compacto   para   olhar   a   horrível   fumaça negra   arremeter   para   baixo.
Após   o   que   pareciam   séculos,   os   vapores   começaram   a   clarear   e   ruídos   indefinidos   de   alguém
raspando, varrendo e realizando outras operações menores foram ouvidos atrás da porta trancada.
Finalmente, após um bater de portas de algum armário no interior, Willett apareceu, triste, pálido e
com   o   semblante   perturbado,   carregando   o   cesto  coberto   com   um   pano   que   havia   retirado   do
laboratório em cima. Havia deixado a janela aberta e, naquela sala outrora amaldiçoada, penetrava
agora em profusão o ar puro e saudável misturando-se a um novo cheiro estranho de desinfetantes.
A velha peça continuava em seu lugar, mas agora parecia despida de sua malignidade e estava tão
calma   e   imponente   em   seus   painéis   brancos   como   se  jamais   tivesse   exibido   o   retraio   de   Joseph
Curwen.   A   noite   se   aproximava,   no   entanto   dessa   vez   suas   sombras   não   estavam   carregadas   de
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terrores latentes, mas apenas de uma delicada melancolia. O médico jamais comentou a respeito do
que havia feito. Ele disse ao senhor Ward: "Não posso responder a nenhuma pergunta, direi apenas
que    existem     diferentes   tipos   de  magia.     Fiz  uma    grande    purificação.     Os   habitantes    dessa   casa
dormirão melhor graças a isto".
                                                              6
      Que     a  "purificação"     do   doutor    Willett   consistiu    uma    provação     quase    tão  enlouquecedora
quanto suas horrendas perambulações pela cripta agora desaparecida demonstra-o o fato de que o
velho     médico     desmaiou     ao   chegar    em   casa   naquela     noite.   Durante    três   dias  ele   permaneceu
constantemente em seu quarto, embora os criados mais tarde comentassem que o ouviram após a
meia-noite      da   quarta-feira,    quando    a  porta   principal    se  abriu   delicadamente       e  se  fechou    com
espantoso cuidado. Felizmente, a imaginação dos criados é limitada, caso contrário os comentários
poderiam   se   deixar   influenciar   por   um   artigo   publicado   na   quinta-feira   no Evening   Bulletin,  que
dizia o seguinte:
               VAMPIROS DO CEMITÉRIO NORTE AGEM MAIS UMA VEZ
      Após uma calmaria de dez meses, desde os covardes atos de vandalismo cometidos no jazigo da família
Weeden   no   Cemitério   Norte,   um   gatuno   notumo   foi   avistado   nessa   madrugada   no   mesmo   cemitério   por
Robert Hart, o vigia da noite. Olhando de sua guarita por volta das duas da manhã, Hart observou a luz de
uma lanterna de bolso não muito longe da ala norte e, ao abrir a porta, avistou a silhueta de um homem com
uma colher de pedreiro claramente recortada contra uma luz elétrica das proximidades. Imediatamente correu
em sua perseguição e viu a figura largar a toda pressa em direção da entrada principal, ganhando a rua e
desaparecendo na escuridão antes que ele pudesse se aproximar e agarrá-la.
      Como o primeiro da série de vampiros que agiram no ano passado, esse invasor não provocou danos
reais   antes   de  ser  surpreendido.    Una   parte   vaga   do  jazigo   dos  Wards    mostrava     sinais  de  escavação
superficial,   mas   nada   que   se   assemelhasse   às   dimensões  de   um   túmulo   e,   por   outro   lado,   nenhum   outro
túmulo foi molestado.
      Hart, que pode apenas descrever o intruso como um homem baixo, provavelmente barbudo, acredita que
os três casos de violação de túmulos tenham uma origem comum; mas a polícia do Segundo Distrito tem
outra opinião, considerando a selvageria do segundo incidente, no qual foi levado um caixão antigo e sua
lápide foi violentamente despedaçada.
      O   primeiro   dos   incidentes,   no   qual   acredita-se   ter   sido   frustrada   uma   tentativa   de   enterrar   algo,   uma
coisa   ocorreu   um   ano   atrás,   em   março   passado,   e  foi   atribuída   a   contrabandistas   que   procuravam   um
esconderijo para sua mercadoria. É possível, afirma o sargento Riley, que esse terceiro caso seja de natureza
semelhante.   Policiais   do   Segundo   Distrito   estão   tomando   medidas   especiais   para   capturar   a   gangue   de
perversos indivíduos responsável por estas repetidas violações.
      Durante   toda   a   quinta-feira   o   doutor   Willett   descansou   como   para   se   recuperar   de   algo   ou
preparando-se para algo futuro. À noite, escreveu um bilhete ao senhor Ward, que foi entregue na
manhã   seguinte   e   fez   com   que   o   pai,   pasmo,   mergulhasse   em   longas   e   profundas   meditações.   O
senhor Ward não conseguia voltar ao trabalho desde o choque da segunda-feira, com seus descon
certantes relatos e sua sinistra "purificação", mas achou algo reconfortante a carta do médico, apesar
do desespero que parecia prometer e dos novos mistérios que parecia evocar.
                                                                                                           Barnes St.,nº 10
                                                                                                          Providence, R.I.,
                                                                                                        12 de abril de 1928
Caro Theodore,
      Acho que preciso dizer-lhe algo antes de fazer o que pretendo amanhã. Servirá para encerrar o terrível
caso que vivemos (pois penso que nenhuma pá no mundo conseguirá chegar até o lugar monstruoso que nós
conhecemos), mas temo que não aplacará seu espírito a não ser que eu o assegure expressamente de que será
uma ação definitiva.
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      Você me conhece desde que era menino, portanto, acho que não me privará de sua confiança quando
sugiro que é melhor deixar alguns assuntos inconcluídos e inexplorados. É melhor que você não tente mais
nenhuma especulação a respeito do caso de Charles e é quase imperativo que não conte à mãe do rapaz mais
do   que   ela   já   suspeita.   Quando   eu   for visitá-lo   amanhã,   Charles   terá   fugido.   Isto   é   tudo   o que   as   pessoas
devem saber. Ele era louco e fugiu. Pode contar com cuidado à sua mãe, e gradativamente, o episódio da
loucura quando deixar de enviar-lhe as cartas datilografadas em nome dele. Eu o aconselharia a ir para junto
dela, em Atlantic City, e tirar umas férias. Deus sabe que precisa depois desse choque, assim como eu. Irei
para o Sul por algum tempo para me acalmar e pôr a cabeça no lugar.
      Portanto, não  me faça nenhuma pergunta quando eu  aparecer por aí. Pode ser que alguma   coisa saia
errada,   mas   eu   lhe   durei   caso   isso   aconteça.   Não   acredito   que   acontecerá.   Não   haverá   mais   nada   para   se
preocupar, porque Charles estará muito, muito seguro. Agora — ele está mais seguro do que você poderia
sonhar. Não precisa temer nada de Allen, nem de quem ou do que ele possa ser. Ele faz parte do passado
tanto quanto o quadro de Joseph Curwen e, quando eu tocar sua campainha, pode ter certeza de que essa
pessoa   não   existirá.   E   quem   escreveu   aquela   mensagem  em   cursivo   nunca   mais   perturbará   a   você   ou   aos
seus.
      Mas   você   não   pode   se   entregar   à   melancolia   e   deve preparar   sua   esposa   para   fazer   o   mesmo.   Devo
dizer-lhe com franqueza que a fuga de Charles não significará que ele lhe será devolvido. Ele foi afetado por
uma doença peculiar, como deve ter percebido pelas sutis alterações físicas e mentais que ocorreram nele, e
não deve esperar vê-lo novamente. Tenha apenas este consolo — que ele jamais foi um espírito maligno ou
mesmo um louco de verdade, mas apenas um menino ambicioso, estudioso e curioso cujo amor pelo mistério
e pelo passado foi sua ruína. Ele descobriu coisas que nenhum mortal deveria conhecer e recuou no tempo
como nenhum outro homem e de todos esses anos saiu algo que o devorou.
      E agora chegamos ao assunto a respeito do qual devo pedir-lhe que confie em mim acima de qualquer
coisa. Pois, em realidade, não teremos nenhuma incerteza sobre o destino de Charles. No prazo de mais ou
menos um ano, se o desejar, você poderá pensar, se desejar, num relato adequado do fim pois o rapaz não
existirá mais. Pode colocar uma lápide em seu jazigo no Cemitério Norte, exatamente a dez metros oeste do
seu pai, voltada na mesma direção, e ela marcará o verdadeiro local em que seu filho jaz. Não deve temer
porque   não   marcará   nenhuma   anormalidade   ou   o   corpo  de   outra   pessoa.   As   cinzas   depositadas   naquele
túmulo      serão   as  dos   seus   próprios    ossos   e   carne  —     do   verdadeiro    Charles    Dexter    Ward     cujo
desenvolvimento   espiritual   você   acompanhou   desde   a   infância   —,   o   verdadeiro   Charles   com   a   marca   de
azeitona no quadril e sem a marca negra de bruxo no peito ou a cova na testa. O Charles que na verdade
nunca fez o mal e que terá pago com a vida por seus "melindres".
      É tudo. Charles terá fugido e daqui a um ano você poderá instalar sua lápide. Não me pergunte nada
amanhã.   E   acredite   que   a   honra   de   sua   antiga   família   permanece   imaculada,   agora   como   sempre   foi   no
passado.
      Com a mais profunda simpatia e exortando-o à fortaleza de ânimo, à calma e resignação, serei sempre
                                                                                                          Seu sincero amigo
                                                                                                         Marinus B. Willett
      Assim, na manhã da sexta-feira, 13 de abril de 1928, Marinus Bicknell Willett fez uma visita
ao quarto de Charles Dexter Ward na clínica particular do doutor Waite em Conanicut Island. O
jovem, embora sem tentar furtar-se à visita, estava mal-humorado e não parecia disposto a iniciar a
conversação que Willett obviamente desejava. A descoberta da cripta e a monstruosa experiência do
médico      em    seu  interior   evidentemente       criava   um   novo     motivo    de   embaraço,      portanto,    ambos
hesitavam de modo perceptível após uma troca de tensas e escassas formalidades. Então surgiu um
novo   fator   de   constrangimento,   quando   Ward   pareceu   ler   no   rosto   rígido   como   uma   máscara   do
médico uma terrível determinação que jamais tivera. O paciente tremia, consciente de que desde a
ultima visita havia ocorrido uma mudança em conseqüência da qual o solícito médico de família se
transformara num impiedoso e implacável vingador.
      De fato, Ward empalideceu e o médico foi o primeiro a falar. Ele disse:
      — Mais coisas foram descobertas e devo adverti-lo honestamente de que se faz necessário um
ajuste de contas.
      — Andou escavando de novo e descobriu outros pobres bichinhos morrendo de fome? — foi a
resposta irônica. Era evidente que o jovem pretendia exibir uma atitude de desafio até o fim.
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      — Não — retrucou lentamente Willet —, dessa vez eu não precisei escavar. Mandamos alguns
homens vigiar o doutor Allen e eles descobriram a barba postiça e os óculos no bangalô.
      —   Excelente   —   comentou   o   anfitrião,   inquieto,  arriscando   uma   espirituosa   agressão   —,   e
acredito que ficavam melhor do que a barba e os óculos que o senhor está usando agora!
      — Eles ficariam bem melhor em você — foi a resposta tranqüila e estudada —, como de fato
pareciam ficar.
      Enquanto Willett dizia isto, foi como se uma nuvem passasse sobre o sol, embora não houvesse
nenhuma mudança nas sombras do chão. Então Ward arriscou:
      — E é isto que torna tão necessário um acerto de contas? Suponhamos que um sujeito ache
conveniente, vez por outra, ter duas personalidades?
      —   Não   —   disse   Willett   gravemente   —,   engana-se   de   novo.   Não   é   da   minha   conta   se   um
sujeito procura uma dupla personalidade, desde que tenha algum direito a existir e desde que ele
não destrua o que o chamou de fora do espaço.
      Ward agora teve um violento sobressalto.
      — Bem, meu senhor, o que descobriu e o que quer de mim?
      O médico esperou um pouco antes de responder, como se estivesse escolhendo as palavras para
dar uma resposta de efeito.
      — Descobri — declarou finalmente — alguma coisa num armário atrás de um antigo painel
onde uma vez havia um retrato e a queimei e enterrei as cinzas no lugar em que deveria estar o
túmulo de Charles Dexter Ward.
      O louco engasgou e pulou da cadeira na qual estava sentado:
      — Desgraçado, a quem você contou — e quem acreditará que era ele após esses dois meses, se
eu estou vivo? O que pretende fazer?
      Embora fosse um homem de baixa estatura, Willett assumiu nesse momento um ar majestático
de juiz, acalmando o paciente com um gesto.
      — Não contei a ninguém. Esse não é um caso comum — é uma loucura fora do tempo, um
horror   que   vem   de   além   das   esferas   e   que   nem  a   polícia   nem   os   advogados,   nem   tribunais   nem
psiquiatras     poderiam    compreender      ou   combater.   Graças     a  Deus   a  sorte  me   deixou    a  luz  da
imaginação,   para   que   eu   não   me   distraísse   até   resolver   essa   coisa. Você   não   pode   me   enganar,
Joseph Curwen, porque eu sei que sua maldita mágica é verdadeira!
      "Eu sei que você preparou o encantamento que ficou aguardando todos estes anos e encarnou
em seu sósia e descendente; sei que você o arrastou para o passado e fez com que o trouxesse de
volta do seu detestável túmulo; sei que ele o manteve escondido em seu laboratório enquanto você
estudava coisas modernas e vagava à noite como um vampiro e que você mais tarde se mostrou com
barba e óculos para que ninguém desconfiasse de  sua ímpia semelhança com ele; sei o que você
resolveu fazer quando ele recusou suas monstruosas violações dos túmulos de todo o mundo e o que
você planejou depois, e sei como você fez aquilo.
      "Você abandonou barba e óculos e burlou os guardas em volta da casa. Eles pensaram que era
ele que entrava e pensaram que era ele que saía quando você o estrangulou e o escondeu. Mas você
não se deu conta dos diferentes contextos de duas mentes. Você foi um tolo, Curwen, em imaginar
que uma simples identidade física seria suficiente. Por que você não pensou na fala, na voz e na
caligrafia? Sabe, aquilo, no fim das contas, não funcionou. Você sabe melhor do que eu quem ou o
que escreveu aquela mensagem em cursivo, mas eu lhe afirmo que aquilo não foi escrito em vão.
Existem abominações e blasfêmias que devem ser aniquiladas e eu acredito que o autor daquelas
palavras cuidará de Orne e Hutchinson. Uma daquelas criaturas escreveu-lhe uma vez, 'não chame
nada   que   você   não   possa   mandar   de   volta'.   Você   já   foi   destruído   uma   vez,   talvez   dessa   mesma
maneira, e talvez sua própria magia maligna o destrua mais uma vez. Curwen, um homem não pode
interferir com a natureza além de certos limites e todo horror que você criou se erguerá para destruí-
lo".
      Mas a essa altura o médico foi interrompido por um grito convulsivo da criatura à sua frente.
Irremediavelmente   perdido,   desarmado   e   consciente   de   que   qualquer   tentativa   de   violência   física
atrairia   uma   dúzia   de   atendentes   em   socorro  do   médico,   Joseph   Curwen   recorreu   ao   seu   antigo
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aliado e começou uma série de gestos cabalísticos com seus indicadores, enquanto sua voz profunda
e cavernosa, agora sem a falsa rouquidão, berrava as palavras introdutórias de uma terrível fórmula.
     "PER ADONAI ELOIM, ADONAI JEHOVA, ADONAI SABAOTH, METRATON..."
     Mas Willett foi mais rápido do que ele. Enquanto os cães no quintal começavam a uivar e um
vento   gélido   repentinamente   soprava   da   baía,  o   médico   começou   a   solene   e   pausada   recitação
daquilo   que   todo   o   tempo   desejara   pronunciar.   Olho   por   olho   —   magia   por   magia   —,   que   o
resultado   mostre   quão   bem   foi   aprendida   a   lição dos   abismos!   Assim,   em   voz   clara,   Marinus
Bicknell Willett iniciou a segunda  daquelas duas fórmulas, a primeira das quais levantara o autor
daquelas palavras em cursivo — a invocação misteriosa cujo cabeçalho era a Cauda do Dragão, o
signo do nó descendente
                                              "OGTHROD A'TF
                                                 GEB'L - EE'H
                                                YOG-SOTHOTH
                                               'NGAH'NG Al'Y
                                                    ZHRO! ''
     Quando a boca de Willett pronunciou a primeira palavra, a fórmula anteriormente iniciada pelo
paciente parou de chofre. Incapaz de falar, o monstro agitou violentamente os braços até que estes
também   pararam.   Quando   o   nome   terrível   de   Yog-Sothoth  foi   mencionado,   iniciou   a   horrenda
transformação.      Não   se  tratava   de  uma    simples   dissolução,   mas    de   uma   transformação     ou
recapitulação,  e   Willett   fechou   os   olhos   para   não   desmaiar   antes   que   o   resto   do   encantamento
pudesse ser pronunciado.
     Mas ele não desmaiou e aquele homem de séculos profanos e segredos proibidos nunca mais
perturbou o mundo. A loucura do tempo cessara e o caso Charles Dexter Ward estava encerrado. Ao
abrir   os   olhos   antes   de   sair   cambaleando   daquele   quarto   do   horror,   o   doutor   Willett   viu   que não
havia esquecido o que retivera na memória. Como ele previra, não houve necessidade de ácidos.
Pois, como seu amaldiçoado quadro um ano antes, Joseph Curwen agora jazia espalhado sobre o
chão como uma leve camada de fino pó cinza-azulado.
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Fontes:www.sitelovecraft.com                                                                  

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