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sábado, 6 de agosto de 2011

Rudyard Kipling-Eles-Conto Fantasmagórico


Eles 

Por:Rudyard Kipling

Um panorama me levou a outro; um pico a seu companheiro, até a metade do distrito, e, como eu não podia me ocupar de mais nada senão de uma alavanca, deixei que a região deslizasse sob minhas rodas. As planícies salpicadas de orquídeas da região leste deram lugar ao tomilho, ao azevinho e à grama acinzentada das colinas; e estas novamente às ricas plantações de trigo e de figueiras da costa mais baixa, onde se é acompanhado pela pulsação da maré à esquerda durante quinze milhas planas; e quando finalmente voltei para o interior em meio a um amontoado de colinas redondas e florestas, já me livrara completamente de meus conhecidos sintomas. Além daquela mesma vila madrinha da capital dos Estados Unidos, encontrei aldeias ocultas onde abelhas, as únicas coisas despertas, zumbiam em tílias de oitenta pés que pendem sobre cinzentas igrejas normandas; riachos prodigiosos a mergulhar sobre pontes de pedra construídas para um tráfego mais pesado que jamais as atormentaria novamente; celeiros de dízimos maiores do que suas igrejas e uma velha ferraria que declarava em altos brados ter sido outrora sede dos Cavaleiros Templários. Encontrei ciganos em um terreno comunitário onde o tojo, a samambaia e a urze juntos disputavam-no por uma milha de estrada romana; e, um pouco mais adiante, perturbei uma raposa vermelha bamboleando como um cão em plena luz do dia.
Quando as colinas arborizadas fecharam à minha volta, levantei-me no carro para avaliar a posição daquela grande colina, cuja cabeça em anel constitui uma baliza ao longo de cinqüenta milhas através das regiões baixas. Julguei que a direção do campo me levaria até alguma estrada para o norte que corresse de seu sopé, mas... mas não levei em conta o efeito desorientador dos bosques. Uma virada súbita mergulhou-me de início numa clareira envolta em pura luz do sol e, em seguida, num túnel sombrio onde as folhas mortas dos anos anteriores sussurravam e brigavam com meus pneus. Os fortes galhos das aveleiras, que se juntavam acima, não eram cortados pelo menos há umas duas gerações, nem o machado auxiliado o carvalho corroído pelo musgo e a faia a crescer acima deles. Ali a estrada se transformou abruptamente num caminho atapetado, em cujo veludo castanho maços de prímulas brilhavam como jade, e uns poucos jacintos brancos de pedúnculo e murchos acenavam juntos. Como a inclinação era favorável, desliguei o motor e deslizei sobre as folhas rodopiantes, esperando a cada momento encontrar um caseiro; mas ouvi apenas um gaio, ao longe, discutindo com o silêncio sob a penumbra das árvores.
A trilha ainda descia. Eu estava prestes a virar e retornar em segunda marcha, antes que acabasse em algum brejo, quando vi a luz do sol através do emaranhado acima e puxei o freio.
Imediatamente recomeçou a descida. À medida que a luz batia em meu rosto, meus pneus dianteiros arrancavam a turfa de um vasto gramado rente, do qual saltavam cavaleiros de dez pés de altura com lanças em riste, pavões monstruosos e damas-de-honra lisas e de cabeças redondas — azuis, negras e resplandecentes —, todos de teixo aparado. Para além do gramado — as árvores, dispostas para o combate, sitiavam-na por três lados — ficava uma casa antiga de pedra gasta pelo tempo e coberta de líquen, com janelas altas e cobertura de telha vermelho rosado. Cercavam-na muros em meia-lua, também vermelho rosado, que fechavam o gramado no quarto lado, e a seus pés uma sebe quadrada da altura de um homem. Havia pombas no teto, em volta das chaminés estreitas de tijolos, e vi de relance um redil na forma de octógono, atrás da blindagem do muro.
Ali, então, parei — a espada verde de um cavaleiro apontada para meu peito — tomado pela estonteante beleza daquela jóia em tal cenário.
“Se não sou despachado como um intruso, ou se este cavaleiro não me fizer bater em retirada”, pensei, “Shakespeare e a rainha Elizabeth, pelo menos, devem sair daquele portão de jardim meio aberto e me convidar para o chá.”
Uma criança surgiu numa janela do andar superior, e pareceu-me que a pequenina acenava amigavelmente. Mas era para chamar um companheiro, pois então surgiu uma outra cabeça reluzente. Em seguida, ouvi uma risada entre os pavões de teixo e, virando-me para me certificar (até então eu estivera observando apenas a casa), vi as águas prateadas de uma fonte atrás da sebe, iluminada pela luz do sol. As pombas do teto arrulhavam à água murmurante; mas entre as duas notas captei os risinhos de felicidades de uma criança absorvida em alguma pequena traquinagem.
O portão do jardim — carvalho pesado cravado na espessura da parede — abriu-se ainda mais: uma mulher, com um amplo chapéu de jardim pôs lentamente o pé no degrau corroído pelo tempo e, ainda devagar, caminhou através da turfa. Eu estava formulando um pedido de desculpas quando ela levantou a cabeça e percebi que era cega.
“Eu o ouvi”, disse ela. “Não é um automóvel?”
“Acho que me perdi na estrada. Eu deveria ter virado logo acima... jamais sonhei...”, comecei eu.
“Mas fico feliz. Imagine um automóvel entrando no jardim! Será uma ameaça tão grande...” Ela virou-se, como que olhando a sua volta. “Você... você não viu ninguém, não é... talvez?”
“Ninguém com quem pudesse falar, mas as crianças pareciam interessadas, à distância.”
“Quais?”
“Vi umas duas na janela lá em cima, agora há pouco, e acho que ouvi um pequenino no gramado.”
“Ah!, você tem sorte!”, exclamou ela, e seu rosto brilhou. “Eu os ouço, é claro, mas é tudo. Você os viu e ouviu?”
“Sim”, respondi. “E se conheço crianças, uma delas está se divertindo à beça ao lado da fonte, ali adiante. Ela fugiu, imagino.”
“Você gosta de crianças?”
Dei-lhe uma ou duas razões pela quais não as odiava inteiramente.
“Certamente, certamente”, disse ela. “Então você compreende. Então você não me julgará tola se eu lhe pedir para entrar no jardim com seu carro, uma vez ou duas — bem devagar. Tenho certeza de que elas gostarão de vê-lo. Elas têm tão pouco para olhar, coitadas. Tenta-se lhes agradar, mas...”, ela estendeu as mãos para os bosques. “Estamos tão longe do mundo, aqui.”
“Será ótimo”, disse eu. “Mas não posso estragar sua grama.”
Ela voltou-se para a direita. “Espere um pouco”, disse. “Estamos no portão sul, não é? Atrás daqueles pavões há um caminho pavimentado. Nós o chamamos de Passeio do Pavão. Não se pode vê-lo daqui, segundo me dizem, mas se você abrir caminho pela borda do bosque poderá virar no primeiro pavão e chegar ao pavimento.”
Era sacrilégio despertar a frente daquela casa de sonhos com o ranger de uma máquina, mas sacudi o carro para tirar a turfa, ladeei a borda do bosque e cheguei ao amplo caminho de pedra, onde a base da fonte jazia como uma safira.
“Posso entrar também?”, gritou ela. “Não, por favor, não me ajude. Elas gostarão mais se me virem.”
Ela tateou seu caminho rapidamente até a frente do carro e com um pé no estribo, chamou: “Crianças, olhem! Olhem e vejam o que vai acontecer!”
A voz teria despertado as almas perdidas do Inferno, pela piedade que subjazia a sua doçura, e não fiquei surpreso ao ouvir um grito de resposta atrás dos teixos. Devia ser a criança ao lado da fonte, mas ela fugiu quando nos aproximamos, deixando um pequeno barco de brinquedo na água. Vi o brilho de sua camisa azul entre os cavaleiros imóveis.
Com muita animação, desfilamos ao longo do pavimento e, a seu pedido, voltamos novamente. Desta vez a criança superara seu terror, mas ficou à distância e hesitante.
“O pequenino está nos observando”, disse eu. “Será que ele quer dar uma volta?”
“Eles ainda estão muito assustados. Muito assustados. Ah!, mas que sorte você tem por poder vê-los! Vamos ouvir.”
Desliguei o motor imediatamente, e o silêncio úmido, com um cheiro forte de madeira, envolvia-nos intensamente. Podíamos ouvir o ruído de tosquia de onde o jardineiro estava trabalhando; um murmúrio de abelhas e sons entrecortados de vozes que poderiam provir das pombas.
“Ah!, malcriado!”, disse ela, aborrecida.
“Talvez eles estejam apenas com medo do motor. A pequenina à janela parece muitíssimo interessada.”
“É mesmo?”, ela levantou a cabeça. “Eu não devia ter dito isso. Elas realmente gostam de mim. É a única coisa por que vale a pena viver — quando elas gostam de você, não é? Nem ouso pensar como seria este lugar sem eles. A propósito, ele é bonito?”
“Acho que é o lugar mais bonito que já vi.”
“Assim disseram-me. Posso senti-lo, é claro, mas não é a mesma coisa.”
“Então você nunca...”, comecei, mas detive-me, embaraçado.
“Não desde que posso me lembrar. Aconteceu quando eu tinha apenas alguns meses, segundo me dizem. E, contudo, devo lembrar-me de algo, do contrário como poderia sonhar com cores? Vejo luz em meus sonhos, e cores, mas nunca as vejo. Apenas ouço-os, exatamente como quando estou desperta.”
“É difícil ver rostos em sonhos. Algumas pessoas conseguem, mas a maioria de nós não tem esse dom”, continuei, levantando os olhos para a janela, onde a criança permanecia oculta.
“Também ouvir dizer isso”, disse ela. “E dizem-me que nunca se vê em sonho o rosto de alguém que morreu. É verdade?”
“Acho que sim... agora que você mencionou.”
“Mas como é com você — você?”, Os olhos cegos voltaram-se para mim.
“Nunca vi os rostos de meus mortos em sonho algum”, respondi.
“Então deve ser tão ruim quanto ser cego.”
O sol mergulhara atrás das árvores, e as longas sombras estavam envolvendo os insolentes cavaleiros, um a um. Vi a luz morrer no alto de uma lança de folhas brilhantes, e todo o maravilhoso gramado escuro mudar para um negro suave. A casa, aceitando um outro findar do dia, assim como aceitara outras centenas, parecia acomodar-se mais profundamente para seu descanso nas sombras.
“Você alguma vez quis?”, disse ela, após o silêncio.
“Muito, às vezes”, respondi. A criança deixara a janela quando as sombras se fecharam sobre ela.
“Ah!, eu também! Mas acho que não é permitido... Onde você mora?”
“Bem distante, do outro lado da região — sessenta milhas ou mais, e preciso voltar. Vim sem meu lampião grande.”
“Mas ainda não está escuro. Posso senti-lo.”
“Acho que já é hora de ir para casa. Você poderia me emprestar um para iluminar o início de minha estrada? Estou completamente perdido.”
“Vou pedir que Madden o acompanhe até a encruzilhada. Estamos tão distantes do mundo, não admira que você tenha se perdido! Eu o guiarei até a frente da casa; mas vá devagar, por favor, até sair do gramado. Você não acha que seja uma tolice, não é?”
“Prometo que sim”, disse eu e deixei que o carro começasse a descer a trilha pavimentada.
Ladeamos a ala esquerda da casa, cujas calhas de chumbo fundido e trabalhado valia bem a viagem de um dia; passamos sob o grande portão coberto de rosas e também à volta da alta fachada da casa, que excedia em beleza e magnificência ao lado posterior, assim como a tudo mais que eu vira.
“Ela é tão bonita assim?”, disse ela ansiosamente, quando ouviu minhas exclamações. “E você também gosta dos desenhos de chumbo? Atrás há o velho jardim de azáleas. Dizem que este lugar deve ter sido feito para crianças. Pode me ajudar, por favor? Eu gostaria de acompanhá-lo até a encruzilhada, mas não devo deixá-las. E você, Madden? Quero que você mostre a este cavalheiro o caminho até a encruzilhada. Ele perdeu-se, mas... ele as viu.”
Um mordomo surgiu silenciosamente no admirável portão de carvalho antigo que devia ser chamado de porta principal e inclinou-se para o lado, para pôr o chapéu. Ela ficou olhando para mim, com os olhos azuis abertos, que nada viam, e vi, pela primeira vez, que era linda.
“Lembre-se”, disse ela calmamente, “se você gosta dela, você voltará”, e desapareceu dentro da casa.
O mordomo nada disse no carro, até nos aproximarmos do portão da propriedade, onde, ao ver de relance um blusão azul numa moita, desviei-me subitamente para que o diabinho que põe os menininhos a brincar não me fizesse cometer o infanticídio.
“Perdão”, disse ele subitamente, “mas por que o senhor fez aquilo, senhor?”
“A criança ali.’
“Nosso jovem cavalheiro vestido de azul?”
“É claro.”
“Ele corre um bocado. O senhor o viu ao lado da fonte?”
“Ah!, sim, várias vezes. Viramos aqui?”
“Sim, senhor. E por acaso o senhor os viu lá em cima também?”
“Um pouco antes disso. Por que você quer saber?”
Ele ficou em silêncio por um momento. “Apenas para me certificar de que... de que eles haviam visto o carro, senhor, porque com crianças correndo por todo lado, embora eu tenha certeza de que o senhor está dirigindo com muito cuidado, poderia haver um acidente. Só por isso, senhor. Aqui está a encruzilhada. O senhor não pode errar o caminho daqui para frente. Obrigado, senhor, mas não é nosso hábito, não com...”
“Peço desculpas”, disse a ele, e abandonei os rodeios.
“Ah!, não há problemas com todos os outros, normalmente. Adeus, senhor.”
Ele recolheu-se a sua fortaleza e afastou-se. Evidentemente um mor-domo cioso da honra de sua casa e encarregado, provavelmente junto a uma criada, de cuidar das crianças.
Uma vez passados os postes sinalizadores, olhei para trás, mas as colinas enrugadas entrelaçavam-se tão ciumentamente que eu não conseguia ver onde estivera a casa. Quando perguntei seu nome em um chalé ao lado da estrada, a mulher gorda que vendia doces lá deu-me a entender que pessoas com automóveis não tinham muito direito de viver — e muito menos de “ficar falando por aí como gente de carroça.” Essa não era uma comunidade de maneiras muito agradáveis.
Quando retracei meu caminho no mapa naquela noite compreendi um pouco mais. Antiga Fazenda de Hawkins parecia ser o nome de levantamento do lugar, e o velho Guia do Condado, geralmente tão completo, não a mencionava. A casa principal daquelas paragens era Hodnington Hall, georgiana com melhoramentos do início da era vitoriana, como uma horrível gravação de aço atestava. Levei meu problema a um vizinho — uma árvore profundamente enraizada naquele solo —, e ele me deu o nome de uma família que nada tinha a ver.
Mais ou menos um mês depois, fui novamente, ou meu carro pode ter tomado o caminho por vontade própria. Ele transpôs os campos estéreis, percorreu rapidamente todas as voltas do labirinto de alamedas ao sopé das colinas, atravessou os bosques semelhantes a muros altos, de folhagens exuberantes e impenetráveis, chegou à encruzilhada onde o mordomo me deixara e, um pouco mais adiante, apresentou um problema interno que me forçou a desviá-lo para um atalho gramado irregular, que dava para um bosque de aveleiras silencioso e quente. Tanto quanto pude ter certeza, pelo sol e um mapa pequeno de estado-maior, essa deveria ser a estrada que flanqueava aquele bosque que eu divisara inicialmente de cima dos morros. Preparei-me para dar conta de uma avaria séria, com um sortimento reluzente de ferramentas, chaves de parafuso, bomba de ar e coisas assim, que dispus em ordem sobre um tapete. Era uma armadilha para atrair a criançada, pois, num dia como esse, pensei, as crianças não estariam longe. Quando fiz uma pausa em meu trabalho, prestei atenção, mas o bosque estava tão cheio de ruídos do verão (embora os pássaros já tivessem acasalado) que de início não consegui distingui-los dos passos de pezinhos cautelosos a se esgueirarem pelas folhas mortas. Toquei minha buzina delicadamente, mas os pés fugiram, e me arrependi, pois, para uma criança um ruído súbito é realmente aterrorizante. Eu devia estar trabalhando há uma meia hora quando ouvi na floresta a voz da mulher cega exclamando: “Crianças, ah, crianças, onde estão vocês?” e o silêncio demorou a fechar-se sobre a beleza daquele chamado. Ela veio em minha direção, tateando seu caminho com dificuldade por entre os troncos de árvores, e embora uma criança, parecia, se agarrasse a sua saia, ela se desviava entre a folhagem como um coelho à medida que se aproximava.
“É você?”, disse ela, “do outro lado do condado?”
“Sim, sou eu, do outro lado do condado.”
“Então por que não veio pelas florestas acima? Elas estavam lá agora há pouco.”
“Elas estavam aqui há poucos minutos. Acho que souberam que meu carro quebrou lá embaixo e vieram para ver a brincadeira.”
“Espero que não seja nada sério. Como os carros quebram?”
“De cinqüenta modos diferentes. Somente o meu escolheu o qüinqua-gésimo-primeiro.”
Ela riu da pilhéria, um riso grave e delicioso, e empurrou o chapéu para trás.
“Deixe-me ouvir”, disse ela.
“Espere um pouco”, gritei, “e lhe consigo uma almofada.”
Ele colocou o pé no tapete todo coberto de peças de reserva e parou sobre ele, impaciente. “Que coisas divertidas!” As mãos pelas quais ela via olharam, à luz quadriculada do sol. “Uma caixa aqui — outra caixa! Ora veja, você as dispôs como numa loja de brinquedos!”
“Confesso agora que as coloquei assim para atraí-las. Na verdade não preciso de metade delas.”
“Que gentil! Ouvi sua campainha na floresta acima. Você diz que elas estavam aqui antes disso?”
“Tenho certeza. Por que elas são tão tímidas? Aquele rapazinho de azul que estava com você há pouco deve ter vencido seu medo. Ele esteve me observando como um pele vermelha.”
“Deve ter sido sua buzina”, disse ela. “Ouvi uma delas passar por mim assustada quando eu estava descendo. Eles são tímidos — muito tímidos, até mesmo comigo.” Ela virou o rosto por cima do ombro e gritou novamente: “Crianças! Ah!, crianças, venham ver!’
“Elas devem ter se reunido para suas ocupações”, aventei, pois havia um murmúrio atrás de nós, de vozes baixas e entrecortadas pelas risadinhas súbitas de crianças. Voltei aos meus consertos e ela inclinou-se para frente, o queixo na mão, ouvindo atentamente.
“Quantas são?”, disse eu por fim. O trabalho estava terminado, mas eu não via motivo para ir.
Sua testa franziu um pouco, pensativa. “Não sei exatamente”, disse ela candidamente. “Às vezes mais — outras menos. Elas vêm e ficam comigo porque eu as amo, sabe?”
“Isso deve ser muito agradável”, disse eu, recolocando uma gaveta, e, enquanto falava, ouvi a futilidade de minha resposta.
“Você... você não está rindo de mim”, exclamou ela. “Eu... eu não tenho nenhuma. Nunca me casei. As pessoas riem de mim às vezes por causa delas, porque... porque...”
“Porque são bárbaros”, completei. “Não há nada com que se aborrecer. Esses tipos riem de tudo que não faz parte de suas vidas gordas.”
“Não sei. Como poderia? Eu só não gosto de que riam de mim por causa delas. Isso dói; e quando não se pode ver... não quero parecer tola”, seu queixo tremeu como o de uma criança enquanto ela falava; “mas nós, ceguinhos, somos muito sensíveis, acho eu. Tudo que vem do exterior atinge nossas almas. É diferente com vocês. Seus olhos são uma boa defesa — olhar — antes que alguém possa realmente feri-los intimamente. As pessoas se esquecem disso quanto a nós.”
Fiquei em silêncio, a repassar aquela questão inesgotável — a brutalidade mais do que herdada (uma vez que também isso é cuidadosamente ensinado) das pessoas cristãs, ao lado da qual o paganismo simples dos negros da costa oeste é inocente e contido. Isso me levou a um retraimento pensativo.
“Não faça isso!”, disse ela subitamente, pondo as mãos diante dos olhos.
“O quê?”
Ela fez um gesto com a mão.
“Isso! É... violeta e negro. Não faça! Essa cor dói.”
“Mas como é possível que você conheça cores?”, exclamei, pois aí estava uma verdadeira revelação.
“As cores como cores?”, perguntou ela.
“Não. Essas cores que você viu agora há poucos instantes.”
“Você sabe tão bem quanto eu”, riu ela, “do contrário, não teria feito essa pergunta. Elas não pertencem ao mundo. Elas estão em você — quando você fica muito bravo.”
“Você quer dizer uma mancha violeta baça, como vinho do porto misturado de tinta?”, disse eu.
“Nunca vi tinta ou vinho do porto, mas as cores não são misturadas. Elas são separadas — todas separadas.”
“Você quer dizer listas pretas e denteadas sobre o violeta?”
Ela fez que sim, com a cabeça. “Sim... se elas são assim”, e fez um ziguezague com o dedo novamente. “Mas é mais vermelha do que violeta — essa cor ruim.”
“E quais são as cores no topo do... do que quer que você veja?”
Lentamente ela inclinou-se para frente e traçou no tapete a figura do próprio Ovo.
“Eu os vejo assim”, disse ela, apontando para uma haste de relva, “branco, verde, amarelo, vermelha, roxo, e quando as pessoas estão bravas ou mal, negro sobre o vermelho — como você estava agora há pouco”.
“Quem lhe falou tudo sobre isso — no começo?”, indaguei.
“Sobre as cores? Ninguém. Eu costumava perguntar de que cores eram, quando era pequena — nas toalhas de mesa, cortinas e tapetes, sabe? Porque algumas cores me ferem e outras me alegram. As pessoas me disseram; e quando fiquei mais velha foi assim que vi as pessoas.” Novamente ela traçou o contorno do Ovo, que há muito poucos é dado ver.
“Tudo sozinha?”, repeti.
“Sozinha. Não havia ninguém mais. Somente depois descobri que as outras pessoas não viam as cores.
Ela se encostou ao tronco de árvore dobrando e desdobrando talos de relva arrancados ao acaso. As crianças na floresta haviam se aproximado. Eu conseguia vê-las com rabo do olho, traquinando como esquilos.
“Agora tenho certeza de que você nunca rirá de mim”, continuou ela, após um longo silêncio. “Nem delas.”
“Meu Deus, não!”, exclamei, despertado do fio de meus pensamentos. “Um homem que ri de uma criança — a menos que a criança também esteja rindo — é um pagão!”
“Eu não quis dizer isso, é claro. Você nunca riria de crianças, mas julguei — eu julgava — que talvez você poderia rir por causa delas. Portanto, agora lhe peço desculpas... Do que você vai rir?”
Eu não fizera nenhum som, mas ela sabia.
“Da idéia de você me pedir desculpas. Se você tivesse cumprido seu dever como um pilar da sociedade e como uma proprietária fundiária, deveria ter me chamado às falas por invasão quando entrei sem pedir licença em suas florestas no outro dia. Foi vergonhoso de minha parte — indesculpável.”
Ela olhou para mim, a cabeça contra o tronco de árvore — longa e fixamente essa mulher que podia ver dentro da alma.
“Que estranho”, sussurrou ela. “Muito estranho.”
“Por quê? O que fiz?”
“Você não compreende... e contudo entendeu as cores. Não entende?”
Ela falava com um sentimento que nada justificara, e eu a encarei perplexo, enquanto ela se levantava. As crianças haviam se reunido num círculo, atrás de um arbusto de amoreira-preta. Uma cabeça macia inclinou-se sobre algo menor, e os pequenos ombros em conjunto contaram-me que os dedos estavam sobre os lábios. Também elas tinham algum grande segredo infantil. Somente eu me encontrava perdido lá, em plena luz do sol.
“Não”, disse eu e balancei a cabeça, como se os olhos mortos pudessem notar. “Seja o que for, ainda não compreendo. Talvez mais tarde — se você me permitir retornar.”
“Você voltará”, respondeu ela. “Com certeza voltará e andará pela floresta.”
“Talvez as crianças venham a me conhecer bem o suficiente, então, para me deixarem brincar com elas — como um favor. Você sabe como são as crianças.”
“Não é uma questão de favor, mas de direito”, respondeu ela, e enquanto eu me perguntava o que ela queria dizer, uma mulher em desalinho surgiu na curva da estrada, de cabelos soltos, roxa, quase mugindo de agonia, enquanto corria. Era a minha mal-educada, gorda amiga da loja de doces. A mulher cega ouviu e recuou. “O que foi, sra. Madehurst?”, perguntou.
A mulher atirou seu avental sobre a cabeça e literalmente rastejou na poeira, gritando que seu neto estava mortalmente doente, que o médico local estava fora, pescando, que Jenny, a mãe, estava fora de si e assim por diante, com repetições e berros.
“Onde está o médico mais próximo?”, perguntei entre os paroxismos.
“Madden lhe dirá. Vá até a casa e leve-o com você. Eu cuido disso. Rápido!”
Ela mal tolerava a mulher gorda, na sombra. Em dois minutos eu estava soprando todas as cometas de Jericó à porta da Linda Casa, e Madden, na despensa, correspondeu à conjuntura como um mordomo e um homem.
Quinze minutos de velocidades acima do permitido conseguiram-nos um médico a cinco milhas. Em meia hora nós o despejamos, muito interessado em motores, à porta da loja de doces e estacionamos à beira da estrada para aguardar o veredicto.
“Muito úteis, os carros”, disse Madden, na qualidade de homem, não de mordomo. “Se eu tivesse um quando a minha ficou doente, ela não teria morrido.”
“Como foi isso?”, perguntei.
“Crupe. A sra. Madden estava fora. Ninguém sabia o que fazer. Viajei oito milhas em uma carroça alugada, em busca do doutor. Ela havia se asfixiado quando voltamos. Este carro a teria salvo. Ela teria agora quase dez anos.”
“Lamento”, disse eu. “Pensei que você gostava muito de crianças, pelo que você me disse a caminho da encruzilhada, outro dia.”
“O senhor as viu novamente — esta manhã?”
“Sim, mas elas são muito reticentes quanto a carros. Não consegui que nenhuma delas se aproximasse menos de vinte jardas dele.”
Ele olhou-me cautelosamente como um escoteiro examina um estranho — não como um doméstico levantaria os olhos para seu superior designado pela divindade.
“Gostaria de saber por quê”, disse ele, com um longo suspiro.
Nós aguardamos. Um vento leve do mar soprava pelas longas linhas das florestas, e o capim da trilha, já quase brancos da poeira do verão, levantava e pendia em acenos abatidos.
Uma mulher, enxugando a espuma das mãos, saiu do chalé ao lado da doceria.
“Eu estava ouvindo no quintal”, disse ela animadamente. “Ele diz que o Arthur está muito mal. Vocês o ouviram gritar agora há pouco? Muito mal mesmo. Acho que será a vez de Jenny caminhar pela floresta na próxima semana, sr. Madden.”
“Perdão, senhor, mas seu cobertor está escorregando”, disse Madden, solícito. A mulher sobressaltou-se, fez um cumprimento e afastou-se depressa.
“O que ela quer dizer com ‘caminhar pela floresta’?”, perguntei.
“Deve ser alguma expressão que eles usam por aqui. Eu sou de Norfolk”, disse Madden. “Neste condado, as pessoas têm um jeito todo seu. Ela o tomou por um motorista, senhor.”
Vi o doutor sair do chalé, seguido por uma meretriz com vestes sujas que se agarrava ao seu braço como se ele pudesse negociar com a Morte por ela. ‘Eles”, gemia ela — “eles valem tanto para nós quanto se fosse legítimo. Valem tanto quanto — tanto quanto! E Deus pode ficar tão agradecido quanto se o senhor salvasse um deles, doutor. Não o tire de mim. A dona Florence vai lhe dizer o mesmo. Não deixe ele, doutor!”
“Eu sei, eu sei”, disse o homem, “mas ele ficará calmo por algum tempo, agora. Conseguiremos a enfermeira e o remédio tão rápido quanto pudermos.”
Ele me fez um sinal para avançar com o carro, e eu procurei não me intrometer no que se seguiu; mas vi o rosto da moça, manchado e gelado de tristeza, e senti a mão sem anel apertar meus joelhos quando me afastei.
O doutor era um homem de certo senso de humor, pois me lembro de ele ter requisitado meu carro sob o juramento de Esculápio e fez uso dele e de mim sempiedade. Primeiramente escoltamos a sra. Madehurst e a cega para junto do leito do doente até que chegasse a enfermeira. Em seguida, invadimos uma asseada cidade do condado em busca de medicamentos (o doutor disse que o problema era meningite cérebro-espinal), e quando no Instituto do Condado, cercado e flanqueado por assustado gado de corte, declararam que por enquanto não havia enfermeiras, nos despachamos literalmente a esmo pelo condado. Conferenciamos com os proprietários de casas grandes — magnatas — nos extremos de alamedas em arco, cujas mulheres se afastaram a largos passos de suas mesas de chá para ouvir ao despótico doutor. Por fim, uma senhora de cabelos brancos, sentada sob um cedro do Líbano e cercada por uma corte de galgos — todos hostis a motores —, deu ao doutor, que as recebeu como de uma princesa, ordens escritas, que portamos por muitas milhas em velocidade máxima, através de um parque, a um convento francês, onde recebemos em troca uma freira pálida e trêmula. Ela ajoelhou-se ao fundo da parte traseira do carro, rezando seu terço sem cessar até que, por atalhos providenciados pelo doutor, chegamos com ela a doceria, mais uma vez. Foi uma longa tarde, recheada de episódios loucos, que surgiram e se dissolveram como o pó das rodas; representantes de vidas remotas e incompreensíveis, entre os quais corríamos em ângulos retos; e fui para casa ao entardecer, exausto, para sonhar com os chifres em colisão do gado; freiras de olhos redondos a caminhar num jardim de cemitério; reuniões agradáveis de chá à sombra de árvores; os corredores pintados de cinza e recendendo a ácido fênico; os passos de crianças tímidas na floresta, e as mãos que apertavam meus joelhos enquanto o motor começava a funcionar.

* * *

Eu pretendia voltar em um ou dois dias, mas quis o destino que ficasse retido naquele lado do condado, sob muitos pretextos, até que florescesse a rosa mais velha e rebelde. Chegou por fim um dia brilhante, límpido a sudoeste e que mostrava as colinas ao alcance da mão — um dia de ventos instáveis e de nuvens altas e diáfanas. Sem nada a impedir, eu estava livre e pus o carro naquela estrada conhecida. Quando alcancei o topo das colinas, senti o ar suave mudar, vi-o brilhar sob o sol; e, olhando o mar abaixo, num instante divisei o azul do canal transformar-se em prata polida, e aço embaçado, em peltre desbotado. Um navio carvoeiro carregado que ladeava a costa dirigia-se ao largo em busca de águas mais profundas e, através da neblina acobreada, vi as velas erguerem-se uma a uma acima da frota de pesqueiros ancorada. Numa duna profunda atrás de mim, um redemoinho de vento subitamente ressoou através de carvalhos protegidos e levantou a primeira amostra de seca de folhas de outono. Quando alcancei a estrada costeira, o nevoeiro do mar elevava-se acima das olarias, e a maré avisava a todas as arestas do temporal além de Ushant. Em menos de uma hora, a Inglaterra estival desaparecera num cinzento gelado. Estávamos novamente na ilha fechada do norte, com todos os navios do mundo a vociferar em nossos portões em perigo; e entre seus clamores ouvia-se o lamento das gaivotas perplexas. Meu carro pingava umidade, as dobras do tapete represava-a em poças ou escorria-a em riachos, e a geada salgada grudava em meus lábios.
Na região interior, o perfume de outono enchia o nevoeiro adensado entre as árvores, e o orvalho se transformou em uma garoa contínua. Contudo, as flores tardias — malva de beira de estrada, escabiosa do campo e dália do jardim — mostravam-se alegres na névoa e, para além do sopro do mar pouco indício havia de decadência na folha. Todavia, nas aldeias, as portas das casas estavam todas abertas, e crianças de pernas e cabeças nuas estavam à vontade, sentadas nas soleiras úmidas para gritar “pihhh” para o forasteiro.
Tomei a liberdade de ir até a doceria, onde a sra. Madehurst veio ao meu encontro com as lágrimas hospitaleiras de uma mulher gorda. O filho de Jenny, disse ela, morrera dois dias depois da chegada da freira. Fora melhor assim, achava ela, ainda que companhias de seguro, por razões que ela não pretendia compreender, não quisessem assegurar vidas tão incertas. “Não que Jenny não tenha cuidado de Arthur como se ele tivesse vindo ao mundo da maneira certa — como a própria Jenny.” Graças à senhorita Florence, a criança fora enterrada com uma pompa que, na opinião da sra. Madehurst, compensava em muito a pequena irregularidade de seu nascimento. Ela descreveu o caixão, por dentro e por fora, o carro funerário com vidros e o revestimento de sempre-vivas no túmulo.
“Mas como está a mãe?”, perguntei.
“Jenny? Ah!, ela vai se recuperar. Senti o mesmo com um ou dois dos meus. Ela vai se recuperar. Ela está passeando na floresta agora.”
“Neste clima?”
A sra. Madehurst olhou-me com olhos apertados por trás da máquina registradora.
“Não sei, mas é como se abrisse o coração. Sim, abre o coração. É o que torna igual perder e dar à luz, no fim das contas, como dizemos.”
Agora, a sabedoria das parteiras é maior do que a de todos os antepassados, e aquele último oráculo me pôs a pensar durante tanto tempo enquanto eu subia pela estrada, que quase atropelei uma mulher e uma criança na curva arborizada ao lado dos portões da Bela Casa.
“Tempo horrível!”, gritei eu, enquanto diminuía quase totalmente a velocidade, para fazer a curva.
“Nem tanto”, respondeu ela placidamente, por entre a névoa. “O meu está acostumado. Você encontrará o seu lá dentro, eu acho.”
Lá dentro, Madden recebeu-me com cortesia profissional e perguntas gentis sobre a saúde do motor, que ele queria cobrir.
Esperei num saguão castanho e silencioso, agradavelmente adornado de flores tardias e aquecido pelo delicioso fogo de lenha acesa — um lugar de bons eflúvios e grande paz. (Homens e mulheres podem por vezes, após um grande esforço, fazer com que se acredite numa mentira; mas a casa, que é seu templo, nada pode dizer exceto a verdade daqueles que nela viveram.) Um carrinho de brinquedo e uma boneca jaziam sobre o chão preto e branco, de onde um tapete fora afastado. Senti que as crianças haviam acabado de fugir — para esconder-se, provavelmente — para um dos muitos lances da grande escadaria entalhada à mão que subia, imponente, do saguão, ou para se agacharem e olhar por entre os leões e das rosas do balcão entalhado acima. Ouvi então sua voz acima de mim, cantando como fazem os cegos: do fundo da alma.

Nos aprazíveis pomares.
E todos os meus primeiros verões responderam ao chamado.

Nos aprazíveis pomares,
Deus abençoe todas as nossas riquezas, dizemos...
Mas que Deus abençoe todas as nossas perdas,
Que melhor convém à nossa condição.

Ela omitiu o quinto verso e repetiu:

Que melhor convém à nossa condição!

Ela parou.
Eu a vi inclinar-se sobre o balcão, as mãos brancas como pérolas entrelaçadas contra o carvalho.
“É você... do outro lado do condado?”, chamou ela.
“Sim, eu, do outro lado do condado”, respondi rindo.
“Quanto tempo, desde que você veio aqui pela última vez.” Ela desceu correndo as escadas, uma mão a tocar levemente o largo balaústre. “São dois meses e quatro dias. O verão acabou!”
“Minha intenção era vir antes, mas o destino não quis.”
“Eu sabia. Por favor, faça algo com aquele fogo. Eles não me deixam mexer com ele, mas posso sentir que ele está se comportando mal. Bata nele!”
Olhei para ambos os lados da lareira funda e encontrei apenas um atiçador meio carbonizado, com o qual cutuquei uma tora negra para acendê-la.
“Ele nunca se apaga, noite ou dia”, disse ela, como que explicando. “Caso venha alguém com dedos frios, você sabe.”
“O interior é mais encantador ainda do que o exterior”, murmurei. A luz vermelha difundia-se desde as guarnições escuras polidas pelo tempo até as rosas e leões Tudor do balcão, que adquiriam cor e movimento. Um antigo espelho convexo, encimado por uma águia, reunia o quadro em seu centro misterioso, distorcendo novamente as sombras distorcidas e dando às linhas curvas do balcão a curvatura de um navio. O dia estava se fechando numa quase tempestade, enquanto o nevoeiro transformava-se num chuvisco viscoso. Através das esquadrias nuas da ampla janela, eu podia ver os valentes cavaleiros do gramado recuar e recobrar-se contra o vento que os castigava com legiões de folhas mortas.
“Sim, deve ser lindo”, disse ela. “Você gostaria de vê-la? Ainda há luz suficiente lá em cima.”
Segui-a pela escadaria firme, ampla, até o balcão, que dava para portas elizabetanas, de canas estreitas.
“Sinta como eles punham as maçanetas bem baixo, por causa das crianças.” Ele moveu uma porta para dentro.
“A propósito, onde estão elas?”, perguntei. “Não as ouvi hoje.”
Ela não respondeu imediatamente. Então, “Eu só consigo ouvi-las”, respondeu suavemente. “Este é um de seus quartos — está tudo pronto, como você vê.”
Ela apontou para um quarto todo revestido de madeira. Havia mesinhas baixas e cadeiras para crianças. Uma casa de bonecas, com a parte dianteira curva meio aberta, estava diante de um grande cavalo de balanço malhado, de cuja sela almofadada de um pulo uma criança poderia subir até o amplo banco embutido da janela que dava para o gramado. Uma arma de brinquedo jazia num canto, ao lado de um canhão de madeira pintada de dourado.
“Com certeza elas acabaram de sair”, sussurrei. Na luz fraca, uma porta rangeu cautelosamente. Ouvi o farfalhar de um avental e o ruído de passos — passos ligeiros através de um quarto mais adiante.
“Ouvi isso”, gritou ela triunfantemente. “É você? Crianças, ah, crianças, onde estão?”
A voz encheu as paredes, que a sustentaram amorosamente até a última nota perfeita, mas não houve um grito em resposta, como eu ouvira no jardim. Percorremos um a um os quartos de soalho de carvalho; um degrau acima aqui, três degraus abaixo acolá; por entre um labirinto de corredores; sempre enganados por nossa caça. Menos difícil seria procurar uma agulha no palheiro. Havia inúmeras saídas de fuga — reentrâncias em paredes, vãos de janelas estreitas e fundas, agora escurecidas, de onde eles poderiam escapar pelas nossas costas; e lareiras de alvenaria abandonadas, de seis pés de profundidade, assim como o entrançado de portas comunicantes. Sobretudo, em nosso jogo, eles tinham a penumbra a seu favor. Eu captara uma ou duas risadinhas de subterfúgio, e uma ou duas vezes vira a silhueta do avental de uma criança contra uma janela na penumbra no fim de um corredor; mas retornamos ao balcão de mãos vazias, exatamente quando uma mulher de meia-idade estava colocando um candeeiro em seu lugar.
“Não, não a vi nem nesta tarde, srta. Florence”, ouvi-a dizer, “mas aquele Turpin disse que quer falar sobre a choupana dele.”
“Ah!, o sr. Turpin precisa muito falar comigo. Diga-lhe que venha ao saguão, sra. Madden.”
Olhei para o saguão abaixo, iluminado apenas pelo fogo fraco, e imersas na sombra vi-as finalmente. Elas deviam ter se esgueirado para baixo enquanto estávamos nos corredores, e agora se julgavam completamente escondidas atrás de um antigo biombo de couro dourado. Pelas leis infantis, minha caçada infrutífera servia como uma apresentação, mas, já que eu tivera tanto trabalho, decidi forçá-las a se mostrarem mais tarde mediante o truque simples, que as crianças detestam, de fingir não notá-las. Elas se agruparam, num grupinho amontoado, não mais do que sombras, exceto quando uma rápida chama traía um contorno.
“E agora beberemos um chá”, disse ela. “Creio que eu deveria tê-lo oferecido a você de início, mas não se adquirem modos, de certa forma, quando se vive sozinho e é considerado — hum... — especial.” Então, com um delicioso desdém, “Você gostaria de um candeeiro para ver o que come?”
“O fogo da lareira é muito mais agradável, acho.” Descemos para aquela deliciosa penumbra, e Madden trouxe chá.
Levei minha cadeira para perto do biombo, pronto para surpreender ou ser surpreendido na continuação do jogo e, com a permissão dela, uma vez que uma lareira é sempre sagrada, inclinei-me para frente para brincar com o fogo.
“Onde você conseguiu essas lindas varas curtas?”, perguntei ao acaso. “Ora essa, são talhas!”
“É claro”, disse ela. “Como não posso ler ou escrever, voltei à antiga talha inglesa para fazer minhas contas. Dê-me uma e lhe direi o que ela significa.”
Passei-lhe uma talha de aveleira não queimada, de cerca de um pé de comprimento, e ela correu seu polegar pelos cortes.
“Este é o registro do leite para a fazenda, para o mês de abril do ano passado, em galões”, disse ela. “Não sei o que teria feito sem as talhas. Um dos meus velhos guardas-florestais ensinou-me o sistema. Está fora de moda agora, e ninguém mais o usa; mas meus inquilinos o respeitam. Um deles está vindo agora para me ver. Ah!, não importa. Ele não devia vir aqui fora do horário de trabalho. É um homem ganancioso, ignorante... muito ganancioso ou... não viria aqui depois do anoitecer.”
“Você possui muitas terras, então?”
“Apenas uns duzentos acres, graças a Deus. Os outros seiscentos estão quase todos arrendados para pessoas que conheciam os meus antes de mim, mas esse Turpin é bastante novo — e um ladrão de estrada.”
“Mas você tem certeza de que eu não...?”
“Claro que não. Você tem direito. Ele não tem filhos.”
“Ah!, as crianças!”, disse eu e deslizei minha cadeira para trás até que ela quase tocasse o biombo que as escondia. “Será que elas virão me procurar?”
Ouviram-se vozes — a de Madden e uma outra mais grave — à porta lateral baixa, e um gigante de cabeça ruiva, de galochas de lona, o inconfundível tipo de fazendeiro inquilino tropeçou ou foi empurrado para dentro.
“Venha até o fogo, sr. Turpin”, disse ela.
“Com licença... com licença, senhorita, eu... eu prefiro ficar ao lado da porta.”
Ele agarrou-se ao trinco enquanto falava, como uma criança amedrontada. Subitamente percebi que ele estava tomado de um enorme pavor.
“Sim?”
“Sobre aquela nova choupana para os pequeninos... só isso. Essas primeiras tempestades de outono estão chegando... mas volto depois, senhorita.” Seus dentes não batiam muito mais do que o trinco da porta.
“Acho que não”, respondeu ela no mesmo tom. “A nova choupana... humm. O que meu administrador lhe escreveu no dia 15?”
“Eu... achei que talvez, se eu viesse vê-la... co... como de homem para homem, senhorita... mas...”
Seus olhos percorriam todos os cantos da sala, arregalados de pavor. Ele entreabriu a porta pela qual entrara, mas notei que ela se fechara nova-mente — do lado de fora e com força.
“Ele escreveu o que eu lhe ordenei”, continuou ela. “Você já está abar-rotado de estoque. A Fazenda Dunnett nunca teve mais do que cinqüenta bois — mesmo no tempo do sr. Wright. E ele usava ração. Você tem sessenta e sete e não forra. Nisso você rompeu o contrato. Você está esgotando a fazenda.”
“Eu... eu estou trazendo alguns minerais... superfosfatos... na próxima semana. Eu também já mandei uma carroça cheia. Vou até a estação amanhã para pegar. Depois eu posso vir e falar com a senhorita de homem para homem, à luz do dia... Esse senhor não está indo embora, está?” Ele estava quase gritando.
Eu havia apenas deslizado a cadeira um pouco mais para trás e estendera o braço atrás de mim para bater no couro do biombo, mas ele pulou como um rato.
“Não. Por favor, preste atenção a mim, sr. Turpin.” Ela virou sua cadeira e encarou-o; ele permaneceu de costas para a porta. Era um estratagemazinho velho e sórdido o que ela empregava. “Seu pedido de um novo estábulo à custa da proprietária, para que ele pudesse com o estéreo coberto pagar o aluguel do ano seguinte com o lucro, após (como ela deixou claro) ter exaurido as ricas pastagens.”
Eu não poderia deixar de admirar o grau de sua ganância, quando o vi enfrentando, por ela, o pavor que lhe escorria da fronte, fosse qual fosse o motivo.
Parei de bater no biombo — na verdade, eu estava calculando o custo do estábulo — quando senti minha mão solta ser tomada suavemente entre macias mãos infantis. Eu ganhara, finalmente. Dentro de instantes, eu me viraria e conheceria aqueles caminhantes de pés ligeiros...
O beijinho roçou o centro de minha palma — como um presente, em torno do qual os dedos deveriam se fechar: como todos os sinais sinceros e de quase censura de uma criança que não está acostumada a ser ignorada, nem mesmo quando os adultos estão mais ocupados — um fragmento do código mudo inventado há muito, muito tempo.
Então eu soube. E era como se eu houvesse sabido desde o primeiro dia, quando olhei do gramado para a janela alta.
Ouvi a porta fechar-se. A mulher virou para mim em silêncio, e senti que ela sabia.
Quanto tempo se passou depois disso, não sei. Fui despertado pela queda de uma tora e mecanicamente levantei-me para colocá-la de volta. Então retornei ao meu lugar na cadeira, bem perto do biombo.
“Agora você compreende”, sussurrou ela, em meio às densas sombras.
“Sim, eu compreendo... agora. Obrigado.”
“Eu... eu apenas as ouço.” Ela pendeu a cabeça sobre as mãos. “Não tenho o direito, você sabe... nenhum outro direito. Nem dei à luz, nem perdi... nem dei à luz, nem perdi!”
“Fique feliz, então”, disse eu, pois minha alma toda se abriu dentro de mim.
“Perdoe-me!”
Ela ficou imóvel, e eu voltei para minha tristeza e minha alegria.
“Foi porque eu as amava tanto”, disse ela por fim, a voz entrecortada. “Foi por isso, até mesmo da primeira... até mesmo antes que eu soubesse o que elas... elas eram tudo que eu jamais teria. E eu as amava tanto!”
Ela estendeu os braços para as sombras e as sombras dentro da sombra.
“Elas vieram porque eu as amava... porque eu precisava delas. Eu... eu devo tê-las feito vir. Foi errado, você não acha?”
“Não... não.”
“Eu... eu lhe garanto que os brinquedos e... e tudo aquilo era loucura, mas... mas eu odiava tanto quartos vazios, quando era pequena!” Ela apontou para o balcão. “E os corredores todos vazios... E como jamais poderia eu suportar a porta do jardim fechada? Imagine...”
“Não! Por piedade, não!”, exclamei. O crepúsculo trouxera uma chuva fria com rajadas de ventos de tempestade que batiam nas calhas de chumbo.
“E a mesma coisa com o fogo a noite inteira. Eu não acho que isso seja muito tolo. E você?”
Eu olhei para a larga lareira de alvenaria, vi, através das lágrimas, creio, que não existia um ferro intransponível sobre ela ou perto dela e acenei com a cabeça.
“Fiz isso e muitas outras coisas — só para fingir. Então elas vieram. Ouvia-as, mas não sabia que não eram minhas por direito, até que a sra. Madden me contou...”
“A mulher do mordomo? O quê?”
“Uma delas... eu ouvi... ela viu... e descobriu. A dela! Não para mim. Eu não sabia, de início. Talvez eu tivesse ciúmes. Depois eu comecei a compreender que era somente porque eu as amava, não porque... Ah!, você precisa dar à luz ou perder”, disse ela piedosamente. “Não há outra maneira — e todavia elas me amam. Com certeza! Não é?”
Não havia nenhum som na sala exceto o do crepitar do fogo, mas ambos ouvíamos atentamente, e ela por fim consolou-se com o que ouvia. Ela recobrou-se e endireitou-se. Fiquei sentado, imóvel em minha cadeira ao lado do biombo.
“Não pense que sou uma coitada por assim lamentar-me, mas... mas estou em completa escuridão, você sabe, e você pode ver.”
Era verdade, eu podia ver, e minha visão confirmava minha resolução, embora esta fosse como o dilaceramento do espírito e da carne. E, contudo, eu permaneceria um pouco mais, uma vez que era a última vez.
“Você acha que é errado, então?”, exclamou ela, num tom agudo, embora eu nada dissera.
“Não de sua parte. Mil vezes, não. Para você está certo... sou grato a vocês, mais do que palavras poderiam expressar. Para mim seria errado. Para mim, somente...”
“Por quê?”, disse ela, mas passou a mão diante do rosto como fizera em nosso segundo encontro no bosque. “Ah!, entendo”, continuou, desafetadamente como uma criança. “Para você seria errado.” Então, com uma risada interior, “E, você se lembra, eu o chamei de afortunado — uma vez — no início. Você não deve retornar aqui, jamais!”
Ela me deixou sentar por mais algum tempo ao lado do biombo, e ouvi o som de seus passos morrerem no balcão acima.

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