NO FIM DA PASSAGEM
Por: Rudyard Kipling
O céu é plúmbeo e nossas faces, vermelhas,
E os portais do Inferno estão abertos e violados,
E os ventos do Inferno estão soltos e impelidos,
E o pó fustiga a face dos Céus,
E as nuvens descem num sudário em chamas,
Pesado demais para subir e sólido demais para se espalhar.
E a alma do homem é tirada de sua carne,
Desprega-se das futilidades pelas quais lutou
O corpo doente e o coração opresso,
E sua alma alça vôo como o pó de um sudário
Desprega-se de sua carne, despede-se e vai embora,
1
Como os sons que se tiram das trompas da cólera.
Kipling, Himalaio
Quatro homens, cada um deles com direito à “vida, liberdade e à busca
da felicidade”,2 estavam sentados à mesa, jogando uíste.3 O termômetro
1
Collery-Horn, cholera horn (trompa da cólera). Longo instrumento de metal — trombeta de
corno — que produz um som horripilante geralmente usada pelos nativos indus em funerais
(N.E.).
2
Life, liberty, and the pursuit of happiness . Referência à Declaração da Independência dos E-
E.UU. (N.E.).
3 Whist, jogo de cartas de raciocínio, muito popular na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX; utili-
za um baralho comum de 52 cartas, e é jogado por quatro jogadores divididos em duas duplas. É
jogado ainda hoje na Inglaterra, e é considerado o ancestral do bridge. Em português, uíste (N.E.).
marcava — para eles — cento e um graus de calor [38,3°C]. O aposento
estava tão escuro que era possível distinguir apenas as figuras das cartas e as
faces muito brancas dos jogadores. Umpunkah 4 esfarrapado e podre de chi-
ta esbranquiçada poluía o ar quente e gemia lamurientamente a cada movi-
mento. Lá fora, pairavam as sombras nubladas de um dia londrino de no-
vembro. Não havia nem céu, nem sol, nem horizonte — nada senão um
mormaço pardacento e violáceo. Era como se a Terra estivesse morrendo
de apoplexia.
De tempos em tempos, nuvens de pó fulvo levantavam-se do chão
sem vento ou prenuncio, atiravam-se como toalhas por entre as copas das
árvores ressecadas e depois desciam novamente. Então, um redemoinho
corria através da campina por umas duas milhas, desfazia-se e caía, embora
nada houvesse para deter seu vôo exceto uma pilha longa e baixa de dor-
mentes de estrada de ferro esbranquiçados pela poeira, um amontoado de
barracas feitas de barro, trilhos descartados e lona, e um bangalô de quatro
cômodos abandonado, que pertencera ao engenheiro assistente responsável
por uma seção da linha Gaudhari State, então em construção.
Os quatro, quase despidos, cobertos apenas de seus pijamas mais leves,
jogavam uíste rabugentamente, com altercações acerca das mãos e reconhe-
cimento de cartas. Não era o melhor tipo de uíste, mas eles tinham se esfor-
çado para jogá-lo. Mottram, da Inspetoria Indiana, havia cavalgado trinta
milhas e viajado de trem por outras tantas cem de seu posto solitário no de-
serto desde a noite anterior; Lowndes, do Serviço Civil, em cargo especial
no departamento político, viera de longe para fugir por um instante às mes-
quinhas intrigas de um Estado nativo empobrecido, cujo rei alternadamente
bajulava e vociferava por mais dinheiro a ser retirado de impostos mingua-
dos, pagos por camponeses exauridos pelo trabalho e desalentados criadores
de camelos; Spurstow, o médico da linha, deixara um campo de trabalhado-
res devastado pelo cólera para cuidar de si durante quarenta e oito horas, no
4
Punkah. Um grande leque, consistindo numa armação recoberta de tecido que é posicionada
sob o teto e movimentada geralmente por um serviçal. Usado na Índia para a circulação de ar em
um aposento (N.E.).
convívio renovado com outros homens brancos. Hummil, o engenheiro
assistente, era o anfitrião. Ele era estacionário e recebia seus amigos, assim,
todo domingo, sempre que conseguiam vir. Quando um deles deixava de
comparecer, ele mandava um telegrama para o seu último endereço, com a
finalidade de saber se o ausente estava morto ou vivo. Existem muitas regi-
ões no Leste em que não é bom nem gentil perder de vista os conhecidos,
nem mesmo por uma breve semana.
Os jogadores não estavam conscientes de qualquer afeição mútua es-
pecial. Brigavam toda vez que se encontravam; mas desejavam ardentemen-
te se encontrarem, como homens sedentos desejam beber água. Eram pes-
soas solitárias, que compreendiam o terrível significado da solidão. Tinham
todos cerca de trinta anos — cedo demais para que se possa saber disso.
“Pilsener?”, disse Spurstow, após a primeira negra, enxugando a testa.
“Sinto muito, mas a cerveja acabou, e há muito pouca água gasosa para
esta noite”, disse Hummil.
“Que porcaria de estabelecimento!”, rosnou Spurstow.
“A culpa não é minha. Escrevi e telegrafei; mas os trens ainda não che-
gam regularmente. Na última semana o gelo acabou — como Lowndes sa-
be.”
“Ainda bem que eu não vim. Mas eu poderia ter-lhe mandado algumas,
se tivesse sabido. Ufa! Está quente demais para continuar jogando bumble-
puppy ”, disse, lançando um olhar feroz para Lowndes, que apenas sorriu. Ele
era um agressor inveterado.
Mottram levantou-se da mesa e olhou por uma fenda nas venezianas.
“Bonito dia!”, disse ele.
Os companheiros bocejaram, todos juntos, e lançaram-se a uma inves-
tigação inútil sobre todos os bens de Hummil — armas, romances despeda-
çados, selaria, esporas e objetos semelhantes. Eles os haviam contado inú-
meras vezes antes, mas não havia outra coisa a fazer.
“Alguma notícia nova?”, disse Lowndes.
“A Gazeta da Índia da última semana e um recorte de casa. Meu pai en-
viou-o. É bastante divertido.”
“Um daqueles paroquianos que se denominam M.P.s 5 novamente, não
é?”, disse Spurstow, que lia seus jornais quando os conseguia.
“Sim. Ouçam isto. Diz respeito ao seu campo, Lowndes. O homem es-
tava fazendo um discurso aos seus eleitores e passou dos limites. Eis uma
amostra, „ E afirmo peremptoriamente que o Serviço Civil da Índia é reserva
— reserva de estimação — da aristocracia da Inglaterra. O que a democracia
— o que as massas — recebem daquele país, que pouco a pouco fraudulen-
tamente anexamos? Respondo: absolutamente nada. É cultivada unicamente
com vistas a seus próprios interesses pelos rebentos da aristocracia. Eles
cuidam muito bem de manter seus rendimentos generosos, evitar ou abafar
quaisquer investigações sobre a natureza e conduta de sua administração,
enquanto eles próprios forçam o infeliz camponês a pagar com o suor de
sua fronte todos os luxos com os quais se mimam‟.” Hummil abanou o re-
corte sobre sua cabeça. “Ouçam! Ouçam!”, disseram seus ouvintes.
E então Lowndes, pensativamente, “eu daria... daria o salário de três
meses para que esse cavalheiro passasse um mês comigo e visse como os
príncipes nativos livres e independentes lidam com as coisas. O velho Per-
na-de-pau” 6 — era esse o irreverente título para um ilustre e condecorado
príncipe feudatário — “me esgotou a paciência a semana passada por causa
de dinheiro. Por Júpiter, sua última façanha foi enviar-me uma de suas mu-
lheres como suborno!”.
“Que ótimo! Você aceitou?”, disse Mottram.
“Não. Gostaria de tê-lo feito, agora. Ela era bem bonitinha e contou-
me uma história comprida sobre a horrível penúria entre as mulheres do rei.
As queridinhas não conseguiram nenhuma roupa nova durante quase um
mês, e o velho quer comprar uma nova carruagem de Calcutá — grades de
prata maciça, lanternas de prata e quinquilharias desse tipo. Tentei fazê-lo
entender que ele esbanjou os últimos rendimentos dos últimos vinte anos e
precisa ir devagar. Ele não se convenceu.”
5 M.P.s: Members of Parlament (Membros do Parlamento) (N.E.).
6 No original: Timbersides, diz-se de uma construção de alvenaria, com uma das paredes de ma-
deira (N.E.).
“Mas ele possui as caixas-fortes do tesouro ancestral com que contar.
Deve haver pelo menos três milhões em jóias e moedas sob seu palácio”,
disse Hummil.
“Vá um rei nativo remexer no tesouro da família! Os sacerdotes o pro-
íbem, exceto como último recurso. O velho Perna-de-pau acrescentou algo
como um quarto de milhão ao depósito de seu reino.”
“De que maldade vem tudo isso?”, disse Mottram.
“Do país. A situação do povo é de deixar qualquer um doente. Eu
soube que os coletores de impostos se postam ao lado de uma camela leitei-
ra até que a cria nasça e então correm até a mãe em busca dos atrasados. E
o que posso fazer? Não consigo que os funcionários da corte me prestem
contas; não consigo senão um sorriso gordo do comandante-em-chefe
quando descubro que as tropas estão com três salários atrasados; e o velho
Perna-de-pau começa a chorar quando falo com ele. Encharca-se de King‟s
Peg, trocou o uísque por conhaque, e Heidsieck por água de soda.7 ”
“Foi nisso que o Rao de Jubela 8 se afundou. Nem mesmo um nativo
consegue agüentar muito tempo assim”, disse Spurstow. “Ele vai apagar.
Acho que então teremos um conselho de regência e um tutor para o jovem
príncipe, e de lhe devolver seu reino com as rendas acumuladas em dez a-
nos.”
“E depois disso esse jovem príncipe, a quem se ensinaram todos os ví-
cios ingleses, brincará com o dinheiro e desfará o trabalho de dez anos em
dezoito meses. Já vi isso antes”, disse Spurstow. “Eu pegaria leve com o rei,
se fosse você, Lowndes. De qualquer modo eles vão odiá-lo.”
“Perfeito. Quem está de espectador pode falar em pegar leve; mas vo-
cê não pode limpar um chiqueiro com uma pena molhada em água de rosas.
Conheço meus riscos; mas nada aconteceu ainda. Meu criado é um velho
patane e cozinha para mim. É muito pouco provável que o subornem, e não
7 King’s Peg, coquetel preparado com brandy e champanhe; Heidsieck, marca de champanhe
(N.E.).
8 Rao. Título honorífico concedido a gentlemans, magistrados etc; Jubela. Designação não con-
firmada de um Estado ou região da Índia (N.E.).
aceito comida de meus fiéis amigos, como eles se denominam. Mas é um
trabalho exaustivo! Eu preferiria ficar com você, Spurstow. Há caça perto
de seu acampamento.”
“Você iria? Acho que não. Cerca de quinze mortes por dia não incitam
um homem a atirar em nada exceto em si mesmo. E o pior de tudo é que os
pobres diabos olham para você como se fosse salvá-los. Deus sabe que ten-
tei de tudo. Minha última tentativa foi empírica, mas tirou um velho de difi-
culdades. Ele chegou até mim evidentemente depois de ter perdido todas as
esperanças, e lhe dei gim e molho Worcester com pimenta de Caiena. Isso o
curou, mas não o recomendo.”
“Como os casos acabam, de modo geral?”, disse Hummil.
“Na verdade, de uma forma muito simples. Chlorodyne, pílula de ópio,
colapso, nitro,9 pesos para os pés, e então... as escadarias do rio. Esta última
parece ser a única coisa que põe fim ao problema. É o cólera negro, você
sabe. Pobres diabos! Mas, digo-lhes, o pequeno Bunsee Lal, meu farmacêu-
tico, trabalha como o diabo. Vou indicá-lo para promoção, se ele sobrevi-
ver.”
“E quais são as suas chances, meu velho?”, disse Mottram.
“Não sei; pouco me importa, mas enviei uma carta. O que você tem
feito em geral?”
“Sentar sob uma mesa na tenda e cuspir no sextante para mantê-lo fri-
o", disse o topógrafo. "Lavar meus olhos para evitar a oftalmia, que certa-
mente pegarei, e tentar fazer o ajudante entender que um erro de cinco
graus num ângulo não é tão pequeno quanto parece. Estou completamente
sozinho, você sabe, e assim vou estar até o fim da estação quente.”
“Hummil é o sortudo”, disse Lowndes, atirando-se sobre um sofá. “E-
le tem um teto de verdade — de lona rasgada, mas ainda assim um teto —
sobre sua cabeça. Vê um trem todos os dias. Consegue deles cerveja, água
gasosa e gelo, quando Deus permite. Tem livros, quadros — eles foram re-
9 Prescrição para os casos de cólera no final do sec. XIX. Chorodyne: uma mistura de clorofór-
mio e ópio. Nitre: nitrato de potássio em solução diluída (N.E.).
cortados do Graphic — e o convívio com o sub-empreiteiro Jevins, além do
prazer de nos receber semanalmente.”
Hummil deu um sorriso feroz. “Sim, acho que sou um sujeito de sorte.
Jevins tem mais sorte ainda.”
“Como? Não...”
“Sim. Foi-se. Segunda-feira última.”
“Por suas próprias mãos?”, disse Spurstow rapidamente, insinuando a
suspeita que estava na cabeça de todos. Não há cólera perto da região de
Hummil. Até mesmo a febre dá a um homem o período de uma semana, e a
morte súbita geralmente implicava suicídio.
“Com esse tempo, não culpo ninguém”, disse Hummil. “Ele foi afeta-
do pelo sol, imagino; pois uma semana atrás, depois que vocês partiram,
entrou na varanda e me disse que estava indo para casa ver sua mulher, na
rua Market, em Liverpool, naquela noite.”
“Consegui que o farmacêutico viesse vê-lo e tentamos fazer com que
se deitasse, depois de uma ou duas horas, ele esfregou os olhos e disse que
achava ter tido um ataque, esperava não ter dito nenhuma palavra grosseira.
Jevins tinha grandes esperanças de progredir socialmente. Usava uma lin-
guagem muito peculiar.10”
“E?”
“Então ele foi para o seu pequeno bangalô e começou a limpar um ri-
fle. Disse ao criado que pela manhã iria caçar. Provavelmente mexeu no ga-
tilho e deu um tiro na cabeça — acidentalmente. O farmacêutico enviou um
relatório ao meu chefe, e Jevins está enterrado em algum lugar lá. Eu teria
lhe telegrafado, Spurstow, se você tivesse podido fazer alguma coisa.”
“Você é um sujeito esquisito”, disse Mottram. “Se você mesmo tivesse
matado o homem não poderia ter ficado mais quieto sobre o caso.”
“Cruzes! O que importa?”, disse Hummil calmamente. “Tenho muito
trabalho de supervisão dele a fazer, além do meu próprio. Sou o único a so-
10 No original Chucks: significando um meio de vida, atributos, ações, crenças e estilo de um
homem. Chucks the Boatswain, uma espécie de escalador social, in: Peter Simple novela do Capi-
tão Frederick Marryat (1792-1848) (N.E.).
frer. Jevins está livre, por puro acidente, é claro, mas livre. O farmacêutico
ia escrever um longo discurso sobre suicídio. Nada como um babu11 para
escrever besteiras sempre que a chance aparece."
“Por que você não deixou que isso passasse por suicídio?”, disse
Lowndes.
“Nenhuma prova irrefutável. Um homem não tem muitos privilégios
neste país, mas pelo menos deveria ser-lhe permitido manejar mal seu pró-
prio rifle. Além disso, algum dia eu posso precisar que alguém abafe um aci-
dente comigo. Viva e deixe viver. Morra e deixe morrer.”
“Tome uma pílula”, disse Spurstow, que estivera observando atenta-
mente o rosto pálido de Hummil. “Tome uma pílula e não faça besteira.
Esse tipo de conversa não tem sentido.12 De qualquer modo, suicídio é fugir
do trabalho. Se eu tivesse a paciência de dez Jós, estaria tão interessado no
que iria acontecer em seguida, que ficaria e observaria.”
“Ah! Perdi essa curiosidade”, disse Hummil.
“Fígado ruim?”, disse Lowndes compassivamente.
“Não. Não consigo dormir. O que é pior.”
“Por Júpiter que é!”, disse Mottram. “Vez por outra eu também fico
assim, e o ataque tem que se esgotar por si mesmo. O que você toma?”
“Nada. Para quê? Não preguei o olho desde a sexta-feira de manhã.”
“Coitado! Spurstow, você devia dar um jeito nisso”, disse Mottram.
“Agora que você falou, seus olhos estão bastante remelentos e inchados.”
Spurstow, ainda observando Hummil, sorriu levemente. “Eu o conser-
tarei logo mais. Você acha que está muito quente para cavalgar?”
“Para onde?”, disse Lowndes, cansado. “Teremos de partir às oito e
então haverá muito que cavalgar. Odeio um cavalo quando tenho de utilizá-
lo por necessidade. Céus! O que há para fazer?”
11
Babu: Funcionário bengali, fluente na língua inglesa. Bengali: habitante do Estado de Bengali,
Índia (N.E.).
12 Skittles, no original: um dos pinos no jogo de nove pinos; no contexto, non sense (N.E.).
“Começar o uíste novamente, por pontos de pintinho (um “pintinho”
vale oito xelins) e um mohur de ouro13 na falta”, disse Spurstow prontamente.
“Pôquer. O pagamento de um mês pela parada — sem limites — e
aumentos de cinqüenta rúpias. Alguém estará quebrado antes que nos levan-
temos”, disse Lowndes.
“De minha parte, não me daria prazer algum quebrar alguém nesta me-
sa”, disse Mottram. “Não há nada de emocionante nisso e é tolice.” Ele di-
rigiu-se ao pequeno piano velho e quebrado do acampamento — destroços
de um ocupante casado que outrora havia ocupado o bangalô e abriu-o.
“Está em cacos há muito tempo”, disse Hummil. “Os criados destruí-
ram-no.”
O piano estava de fato irremediavelmente quebrado, mas Mottram
conseguiu pôr as notas rebeldes numa espécie de acordo e nasceu do tecla-
do dissonante algo que poderia outrora ter sido o fantasma de uma canção
popular do teatro de variedades. Os homens nas poltronas viraram-se com
visível interesse enquanto Mottram golpeava com violência cada vez maior.
“Muito bem!”, disse Lowndes. “Por Júpiter! A última vez em que ouvi
essa canção foi em 79, ou por volta disso, um pouco antes de vir para cá.”
“Ah!”, disse Spurstow com orgulho, “eu estava em casa em 80.” E
mencionou uma canção popular em moda então.
Mottram dedilhou-a toscamente. Lowndes criticou e se propôs a fazê-
lo corretamente. Mottram esboçou outra cançoneta, diferente das caracterís-
ticas do teatro de variedades, e fez um movimento como se fosse se levantar.
“Sente-se”, disse Hummil, “eu não sabia que você compunha. Conti-
nue a tocar até que não consiga pensar em mais nada. Vou mandar afinar
esse piano antes que você venha novamente. Toque algo alegre.”
Muito simples eram de fato as melodias que a arte de Mottram e as li-
mitações do piano poderiam produzir, mas os homens ouviram com prazer
e nas pausas falavam todos juntos do que haviam visto ou ouvido quando
estiveram pela última vez em casa. Uma densa tempestade de areia soprou lá
13 Gold mohur: a moeda de maior valor utilizada na Índia na época (N.E.).
fora e passou sibilando por sobre a casa, envolvendo-a nas sufocantes trevas
da meia-noite, mas Mottram continuou, despreocupado, e o louco tilintar se
elevava acima da vibração do pano de teto esfarrapado.
No silêncio após a tempestade, ele passou gradativamente das canções
escocesas de apelo mais íntimo, cantarolando-as por vezes enquanto as to-
cava, para o Evening Hymn.
“Domingo”, disse ele, fazendo um aceno com a cabeça.
“Continue. Não se desculpe por isso”, disse Spurstow.
Hummil riu, longa e ruidosamente. “Isso mesmo, toque-a. Você está
cheio de surpresas, hoje. Eu não sabia que você tinha esse dom consumado
do sarcasmo. Como isso acontece?”
Mottram recomeçou a música.
“Está meio lenta. Você não pegou o tom de gratidão”, disse Hummil.
“Ela deveria passar para a „Grasshopper‟s Polka‟14 — assim.” E cantarolou,
pre stissimo,
Glória a Ti, meu Deus, por esta noite,15
Por todas as bênçãos de luz.
Isso mostra que realmente nos sentimos abençoados. Como ela conti-
nua? —
Se à noite deito-me insone,
Minha alma me enche de pensamentos sagrados:
Não perturbem meu descanso pensamentos maus —
14 Grasshopper’s Polka, composição de Ernest Bucalossi (1859-1933) (N.E.).
15 Glory to thee, my God, this night, / For all the blessings of the light. // If in the night I sleep-
less lie,/ My soul with sacred thoughts supply; / May no ill dreams disturb my rest, / Or powers of
darkness me molest!. Hino All praise to Thee, my God, this night (1674), letra do bispo Thomas
Ken sobre música de Thomas Tallis. Trechos citados erradamente por Kipling, talvez intencio-
nalmente. O correto é: All praise to Thee, my God, this night, / For all the blessings of the light! //
When in the night I sleepless lie, / My soul with heavenly thoughts supply; / Let no ill dreams
disturb my rest, / No powers of darkness me molest (N.E.).
Mais rápido, Mottram! —
Ou me persigam potências do mal!
“Bah! Que hipócrita você é!”
“Não seja bobo”, disse Lowndes. “Você tem toda liberdade para fazer
o que quiser, mas não brinque com esse hino. Ele está associado em meu
espírito às mais sagradas recordações...”
“Noites de verão no campo, janelas de vidro colorido, a luz esmaecen-
do, e você e ela, as cabeças coladas, pendendo sobre um livro de hinos”,
disse Mottram.
“Sim, e besouro velho e gordo atingindo seu olho quando vocês estão
indo para casa. Cheiro de feno e uma lua tão grande quanto uma chapeleira,
acima do topo de um monte de feno; morcegos, rosas, leite e mosquitos”,
disse Lowndes.
“Mães também. Lembro-me exatamente de minha mãe cantando isso
para eu dormir quando era pequeno”, disse Spurstow.
As trevas haviam caído sobre a sala. Eles podiam ouvir Hummil me-
xendo-se em sua cadeira.
“Conseqüentemente”, disse ele irritado, “você o canta quando está no
sétimo círculo, bem fundo no Inferno! É um insulto à inteligência da Divin-
dade fingir que não somos uns rebeldes atormentados”.
“Tome duas pílulas”, disse Spurstow: “isso é fígado maltratado”.
“O geralmente plácido Hummil está num mau humor dos diabos. Te-
nho pena dos coolies amanhã”, disse Lowndes, enquanto os criados traziam
os candeeiros e preparavam a mesa para o jantar.
Enquanto tomavam seus lugares em volta das sofríveis costeletas de
cabrito e do pudim de mandioca defumada, Spurstow aproveitou a ocasião
para sussurrar para Mottram, “muito bem, David!”
“Procure Saul, então”, foi a resposta.
“O que vocês estão cochichando?”, disse Hummil desconfiado.
“Apenas que você é um anfitrião bem ruinzinho. Não se consegue cor-
tar esta carne”, respondeu Spurstow, com um sorriso gentil. “Você chama
isso de jantar?”
“Não posso fazer nada. Você não esperava um banquete, não é?”
Durante toda aquela refeição Hummil se esforçou em insultar direta e
propositalmente todos os seus convidados, um após o outro, e a cada insul-
to Spurstow cutucava as pessoas agredidas sob a mesa; mas não ousou tro-
car um olhar de conivência com nenhum deles. O rosto de Hummil estava
branco e contraído, ao passo que seus olhos estavam anormalmente grandes.
Ninguém sonharia por um momento em ressentir-se de suas ofensas pesa-
das, mas assim que terminaram a refeição apressaram-se em partir.
“Não vão embora. Vocês estavam justamente ficando divertidos,
companheiros. Espero não ter dito nada que os aborrecesse. Vocês são tão
sensíveis...” E então, mudando o tom para uma súplica quase abjeta, Hum-
mil acrescentou, “Ora essa! Vocês não estão mesmo indo embora, não é?”
“Na língua do abençoado Jorrocks,16 onde como, durmo”, disse Spurs-
tow. “Quero dar uma olhada em seus coolies amanhã, se você não se importa.
Será que poderia me arranjar um lugar para deitar?”
Os outros alegaram urgência em seus muitos deveres no dia seguinte e,
montando, partiram juntos, Hummil lhes pedia que viessem no domingo
seguinte. Enquanto partiam a trote, Lowndes abriu-se com Mottram:
“... E eu nunca tive tanta vontade de chutar um homem na sua própria
mesa em toda a minha vida. Ele disse que eu roubei no uíste e me lembrou
que lhe devia dinheiro! Disse-lhe na sua cara que você era um mentiroso!
Você tem todo o direito de se sentir mais do que indignado.”
“Eu não me sinto”, disse Mottram. “Pobre diabo! Você já viu alguma
vez o velho Hummy se portar desse jeito ou de forma remotamente seme-
lhante?”
16 Jorrocks. Personagem de diversas novelas de Robert Smith Surtees (1803-1864), um dos au-
tores preferidos de Kipling (N.E.).
“Não há desculpa para isso. Spurstow estava me chutando a perna o
tempo todo, e por isso me segurei. Do contrário, teria...”
“Não, você não o faria. Você fez como Hummy com Jevins; não jul-
gue mal um homem tão indisposto. Por Júpiter! A fivela da minha rédea está
queimando minha mão! Trote um pouco e cuidado com os buracos de ra-
to.”
Dez minutos de trote arrancaram de Lowndes uma observação bastan-
te solene quando ele se deteve, suando por todos os poros...
“Ainda bem que Spurstow ficou com ele esta noite.”
“Sim. Bom homem, o Spurstow. Nossas estradas se separam aqui. Ve-
jo você no próximo domingo, se o sol não me derrubar.”
“Acho que sim, a menos que o secretário das finanças do velho Perna-
de-pau consiga temperar um pouco de minha comida. Boa noite, e... Deus
meu!”
“O que foi agora?”
“Nada, não!”, Lowndes apanhou seu chicote e, batendo de leve no
flanco da égua de Mottram, acrescentou: “Você não é um sujeitinho de todo
mau, só isso”. E a essas palavras a égua disparou assustada por meia milha
através da areia.
No bangalô do assistente de engenheiro, Spurstow e Hummil fuma-
vam cachimbo juntos, em silêncio, observando-se atentamente um ao outro.
O espaço da moradia de um solteirão é tão elástico quanto simples sua or-
ganização. Um criado desocupou a mesa de jantar, trouxe um par de toscas
armações de cama feitas de tiras fixadas numa estrutura leve de madeira,
atirou um quadrado de esteira fresca de Calcutá sobre cada uma, colocou-as
uma ao lado da outra, prendeu com alfinetes duas toalhas àpunkah, de mo-
do que suas franjas pendessem até quase o nariz e a boca de quem nelas
dormisse, e anunciou que os leitos estavam prontos.
Os homens atiraram-se às camas, ordenando aos coolies do punkah que,
com todas as forças infernais, abanassem. Todas as portas e janelas estavam
fechadas, pois a temperatura lá fora estava um forno. Dentro, a temperatura
era apenas 104° [40°C], como testemunhava o termômetro, e pesado com o
~
terrível cheiro dos candeeiros a querosene mal-ajustados; e esse fedor, com-
binado ao do tabaco nativo, tijolo queimado e terra seca, faz parar até o co-
ração de um homem forte, pois é o cheiro do Grande Império Indiano
quando ele se transforma, durante seis meses, em um lugar atroz. Spurstow
empilhou habilmente seus travesseiros, de modo que ficasse mais reclinado
do que deitado, com a cabeça em uma altura adequada acima de seus pés.
Não é bom dormir em travesseiro baixo quando está fazendo calor e se tem
pescoço grosso, pois pode-se passar, com roncos e gorgolejos vigorosos, do
sono natural para o sono pesado da apoplexia por calor.
“Empilhe seus travesseiros”, disse o doutor secamente, quando viu
Hummil preparando-se para se estirar.
A iluminação noturna estava bem distribuída: a sombra do punkah on-
deava pela sala, o adejar da toalha-pu nkah e o suave ranger da corda através
do buraco da parede a seguiam. Então opunkah esmoreceu, quase cessou. O
suor pingava da fronte de Spurstow. Deveria ele sair e repreender o coolie?
Ela começou novamente a balançar com um solavanco forte e um alfinete
soltou-se das toalhas. Quando ele foi substituído, um tumtum na direção
dos coolies começou a soar com o pulsar firme de uma artéria inchada dentro
de um crânio tomado de febre cerebral. Spurstow virou de lado e roncou
suavemente. Não havia nenhum movimento da parte de Hummil. O ho-
mem havia se ajeitado tão rigidamente quanto um cadáver, as mãos aperta-
das em seus flancos. A respiração estava demasiado rápida para indicar sono.
Spurstow olhou para o rosto imóvel. A mandíbula estava cerrada e havia
uma ruga em torno das pálpebras palpitantes.
“Ele está se segurando o mais que pode”, pensou Spurstow. “Que dia-
bos está acontecendo com ele? — Hummil!”
“O quê?”, respondeu uma voz pesada e contida.
“Você não consegue dormir?”
“Não.”
“Cabeça quente? Sentindo a garganta inchada? Ou o quê?”
“Nenhuma das duas, obrigado. Não durmo muito, você sabe.”
“Sentindo-se muito mal?”
“Muito mal, obrigado. Há um tumtum lá fora, não? De início pensei
que fosse minha cabeça... Oh!, Spurstow, por misericórdia, me dê alguma
coisa para dormir, cair num sono profundo, ainda que por apenas seis ho-
ras!” Ele levantou-se num pulo, tremendo da cabeça aos pés. “Há dias não
tenho conseguido dormir bem, e não estou agüentando! Não estou agüen-
tando!”
“Pobre amigo velho!”
“Não adianta. Dê-me algo que me faça dormir. De verdade, estou qua-
se louco. Metade do tempo não sei o que digo. Durante três semanas tive de
pensar e soletrar cada palavra que me veio à boca antes que ousasse dizê-la.
Não é para deixar um homem louco? Não consigo ver as coisas claramente
agora, e perdi o sentido do tato. Minha pele dói — minha pele dói! Faça-me
dormir. Oh!, Spurstow, pelo amor de Deus, faça-me dormir um sono pro-
fundo. Não é suficiente deixar-me apenas sonhar. Faça-me dormir!”
“Está bem, meu velho, está bem. Vá com calma; você não está tão mal
assim.”
Uma vez abertas as comportas da represa, Hummil estava agarrando-se
a ele como uma criança amedrontada. “Você está machucando meu braço.”
“Vou quebrar seu pescoço, se não me ajudar. Não, não quis dizer isso.
Não fique bravo, meu velho.” Ele enxugou o suor enquanto se esforçava
por recompor-se. “Estou um pouco inquieto e inapetente, e talvez você pu-
desse me receitar alguma espécie de composto para dormir — brometo de
17
potássio. ”
“Brometo uma ova! Por que não me disse isso antes? Solte meu braço,
e verei se há algo em minha cigarreira que resolva seu problema.” Spurstow
procurou entre suas roupas diárias, aumentou a luz da lamparina, abriu uma
pequena cigarreira de prata e deu uns passos em direção ao expectante
Hummil com uma seringa extremamente fina e elegante.
17 Bromide of potassium. Medicamento utilizado em distúrbios nervosos, como sedativo. O pe-
dido de Hummil provoca a experta exclamação de Spurstow, que lhe injeta morfina (N.E.).
“O último recurso da civilização”, disse ele, “e algo que odeio usar. Es-
tenda seu braço. Bem, sua insônia não prejudicou seu músculo; e que couro
duro! Parece que estou dando uma subcutânea num búfalo. Agora, dentro
de poucos minutos a morfina começará a fazer efeito. Deite-se e espere”.
Um sorriso de genuíno e beatífico prazer começou a insinuar-se pelo
rosto de Hummil. “Acho”, sussurrou ele. — “Acho que estou apagando
agora. Meu Deus! É decididamente celestial! Spurstow, você precisa me dar
essa caixa para eu guardar; você...” A voz cessou enquanto a cabeça pendeu
para trás.
“Não por muito tempo”, disse Spurstow à forma inconsciente. “E a-
gora, meu amigo, já que insones do seu tipo tendem a relaxar a pressão mo-
ral em questiúnculas de vida e morte, tomarei a liberdade de travar suas ar-
mas.”
Ele andou descalço a passos trôpegos até o quarto de selaria e tirou da
caixa um rifle calibre doze, uma espingarda automática e um revólver. Do
primeiro ele desatarraxou o bocal e os escondeu no fundo da caixa de selari-
a; da segunda tirou a alavanca, chutando-a para trás de um grande guarda-
roupas. O terceiro ele apenas abriu, e emperrou o tambor com o salto de
uma bota de montar.
“Feito”, disse ele, enquanto sacudia o suor de suas mãos. “Essas pe-
quenas precauções pelo menos lhe darão tempo para mudar de idéia. Você é
muito compassivo com acidentes com armas.”
E, enquanto se levantava, a voz pastosa e abafada de Hummil excla-
mou na porta: “Seu tolo!”
É esse o tom de voz que costumam usar aqueles que, nos intervalos de
lucidez em meio ao delírio, falam a seus amigos um pouco antes de morrer.
Spurstow deu um pulo, deixando cair a pistola. Hummil estava na so-
leira, sacudindo-se numa gargalhada convulsiva.
“Você foi muito gentil, sem dúvida”, disse ele, muito lentamente, bus-
cando palavras. “Não pretendo pôr um fim em mim mesmo por minhas
próprias mãos, por enquanto. Ora essa, Spurstow, esse negócio não funcio-
na. O que vou fazer? O que vou fazer?” Pânico e terror transpareciam em
seus olhos.
“Deite-se e dê um tempo. Deite-se imediatamente.”
“Não tenho coragem. Aquilo vai me levar novamente e não poderei
fugir desta vez. Você sabe que isso era tudo que eu poderia fazer para me
safar neste instante? Geralmente sou rápido como um raio; mas você tinha
imobilizado meus pés. Quase fui pego.”
“Ah, sim, entendo. Vá se deitar.”
“Não, não é delírio; mas foi uma peça danada de baixa que você me
pregou. Você sabe que eu poderia ter morrido?”
Assim como uma esponja apaga completamente uma lousa, também
algum poder ignorado por Spurstow apagara do rosto de Hummil todo tra-
ço humano, e ele postava-se à porta como a manifestação de sua perdida
inocência. Dormindo, ele recuara à infância aterrorizada.
“Será que ele vai morrer aqui mesmo?”, pensou Spurstow. E então em
voz alta: “Está bem, meu filho. Volte para a cama e me conte tudo. Você
não conseguiu dormir; mas como foi o resto da bobagem?”
“Um lugar, um lugar lá”, disse Hummil, com uma sinceridade genuína.
A droga estava agindo sobre ele em ondas, e ele passara do medo de um
homem forte para o terror de uma criança quando seus nervos assumiram o
controle ou foram embotados.
“Deus do Céu! Há meses venho sentindo medo daquilo, Spurstow. Ele
transformou todas as noites em um inferno para mim; e, no entanto, não
tenho consciência de haver feito nada de errado.”
“Fique quieto e lhe darei outra dose. Vamos cessar seus pesadelos, seu
grandissíssimo idiota!”
“Sim, mas você precisa me dar bastante, para que eu não possa ir em-
bora. Você precisa me fazer dormir profundamente, e não só um pouco
sonolento. É muito difícil correr depois.”
“Eu sei, eu sei. Eu também já senti isso. Os sintomas são exatamente
como você descreve.”
“Ah!, não ria de mim, seu maldito! Antes que essa terrível insônia me
acontecesse, eu tentava apoiar-me no cotovelo e colocar uma espora na ca-
ma para me picar quando caía. Veja!”
“Por Júpiter! O homem tem sido esporeado como um cavalo! Caval-
gado turbulentamente pelo pesadelo! E todos nós o julgávamos muito sen-
sato. Vá lá entender! Você gosta de falar, não é?”
“Sim, às vezes. Não quando estou amedrontado. Nessa hora desejo cor-
rer. Você não?”
“Sempre. Antes de eu lhe dar sua segunda dose, tente dizer-me exata-
mente qual é o seu problema.”
Hummil falou num sussurro entrecortado por quase dez minutos, en-
quanto Spurstow examinava as pupilas de seus olhos e passava a mão diante
deles uma ou duas vezes.
No fim da narrativa, pegou a cigarreira de prata, e as últimas palavras
ditas por Hummil enquanto caía para trás pela segunda vez foram: “Faça-
me dormir um sono profundo; pois se eu for pego, morro, morro!”
“Sim, sim, como todos nós, cedo ou tarde, graças aos Céus, que põem
um fim a todas as nossas desgraças”, disse Spurstow, arrumando as almofa-
das sob a cabeça. “Ocorre-me que, a menos que beba algo, morro antes da
hora. Parei de suar e — eu uso um colarinho cinqüenta.” Fez um chá escal-
dante, que é um excelente remédio contra a apoplexia por calor, quando se
toma três ou quatro xícaras de uma só vez. Então observou aquele que
dormia.
“Um rosto apático que grita e não pode enxugar seus olhos, um rosto
apático que o persegue pelos corredores! Hum! Decididamente, Hummil
deveria pedir uma licença assim que possível; e, são ou não, ele indubita-
velmente esporeou-se da maneira mais atroz. Bem, vá lá entender!”
Ao meio-dia Hummil levantou-se, com um gosto ruim na boca, mas
com os olhos desanuviados e espírito alegre.
“Eu passei bem mal na noite passada, não é?”, disse ele.
“Já vi homens mais saudáveis. Você deve ter tido insolação. Olhe: se
eu escrever um atestado médico a seu favor, você pedirá licença imediata-
mente?”
“Não.”
“Por quê? Você precisa disso.”
“Sim, mas posso agüentar até que o tempo fique um pouco mais fres-
co.”
“E por quê, se pode conseguir um alívio imediato?”
“Burkett é o único que poderia ser enviado; e ele é um rematado tolo.”
“Oh!, não se preocupe com a linha. Você não é tão importante assim.
Telegrafe pedindo licença, se necessário.”
Hummil parecia muito constrangido.
“Posso agüentar até a estação das chuvas”, disse evasivamente.
“Você não pode. Telegrafe ao centro de operações pedindo Burkett.”
“Não. Se você quer saber por quê, exatamente, Burkett é casado e sua
mulher acabou de ter um filho e está em Simla, lugar mais fresco, e Burkett
tem um ótimo posto que lhe permite ir até Simla de sábado a segunda. A
mulherzinha não está muito bem. Se Burkett fosse transferido, ela teria de
segui-lo. Se ela deixasse o bebê para trás, ficaria mortalmente aflita. Se ela
viesse — e Burkett é um daqueles animaizinhos egoístas que estão sempre
falando do lugar de sua mulher com seu marido — ela morreria. E assassi-
nato trazer uma mulher para cá justamente agora. Burkett tem o físico de
um rato. Se vier para cá, morre; e sei que ela não tem dinheiro algum e te-
nho certeza de que morrerá também. De certa forma estou imunizado, não
sou casado. Espere até a estação das chuvas, e então Burkett pode emagre-
cer aqui embaixo. Isso lhe fará um bem danado.”
“Você quer dizer que pretende enfrentar... o que você enfrentou, até a
chegada das chuvas?”
“Ora, não será tão ruim, agora que você me mostrou a saída. Sempre
posso telegrafar-lhe. Além disso, agora que encontrei o caminho do sono,
vai ficar tudo bem. De qualquer modo, não vou pedir licença. E ponto fi-
nal.”
“Meu excelente Scott! Eu julgava que tudo isso já eram águas passa-
das.”
“Pfuh! Você faria o mesmo. Sinto-me um novo homem, graças àquela
cigarreira. Você vai para o acampamento agora, não é?”
“Sim; mas virei vê-lo de vez em quando, se puder.”
“Não estou tão ruim assim. Não quero incomodá-lo. Dê gim e ket-
chup aos coolies.”
“Então você está se sentindo bem?”
“Pronto para sobreviver, mas não para ficar ao sol conversando com
você. Vá embora, meu velho, e Deus o acompanhe.”
Hummil girou em seus calcanhares para enfrentar a solidão permanen-
te de seu bangalô, e a primeira coisa que viu na varanda foi a imagem de si
mesmo. Ele deparara-se com uma aparição semelhante uma vez antes,
quando estava sofrendo de excesso de trabalho e da pressão do calor.
“Isso é muito mau”, disse ele, esfregando os olhos. “Se a coisa deslizar
para longe de mim de uma só vez, como um fantasma, saberei se se trata
apenas de um desarranjo dos olhos e do estômago. Se ela caminhar... minha
cabeça está indo.”
Ele se aproximou da figura, que tinha a característica de manter distân-
cia dele, como costumam fazer todos os espectros que nascem do excesso
de trabalho. Ela deslizou pela casa e dissolveu-se nas manchas dentro do
globo ocular assim que atingiu a luz ofuscante do jardim. Hummil cuidou de
seus afazeres até o entardecer. Quando entrou para jantar, ele viu a si pró-
prio sentado à mesa. A visão levantou-se e saiu apressadamente. Salvo pelo
fato de não lançar sombra, ela era, sob todos os aspectos, real.
Nenhum homem vivo sabe o que aquela semana preparava para
Hummil. Um aumento da epidemia reteve Spurstow no acampamento, en-
tre os coolies, e tudo que pudera fazer fora telegrafar para Mottram, instando-
o para que fosse para o bangalô e dormisse lá. Mas Mottram estava a qua-
renta milhas de distância do telégrafo mais próximo e de nada sabia, exceto
das necessidades da inspeção, até que encontrou, na manhã de domingo,
Lowndes e Spurstow a caminho da casa de Hummil para a reunião semanal.
“Espero que o pobre sujeito esteja num humor melhor”, disse o pri-
meiro, pendendo seu corpo para apear-se à porta. “Acho que ele ainda não
se levantou.”
“Vou dar uma olhada nele”, disse o doutor. “Se ele estiver dormindo,
não há necessidade de acordá-lo.”
E um instante mais tarde, pelo tom da voz de Spurstow pedindo-lhes
que entrassem, os homens souberam o que acontecera. Não havia necessi-
dade de acordá-lo.
O punkah ainda estava sendo movido, mas Hummil deixara a vida ha-
via pelo menos três horas.
O corpo jazia de costas, as mãos rígidas ao lado do corpo, como
Spurstow as vira sete noites antes. Nos olhos estatelados estava escrito um
terror fora do alcance de qualquer pena.
Mottram, que entrara atrás de Lowndes, inclinou-se sobre o morto e
tocou levemente a testa com os lábios. “Oh, sujeito de sorte, diabo de sor-
te!”, sussurrou.
Mas Lowndes vira os olhos e recuou tremendo para o outro lado da
sala.
“Pobre rapaz! Pobre rapaz! E na última vez em que o vi eu estava bra-
vo. Spurstow, deveríamos ter cuidado dele. Ele...?”
Habilmente, Spurstow continuou em suas investigações, terminando
em uma busca pela sala.
“Não, ele não”, disse ríspida e rapidamente. “Não há vestígios de nada.
Chame os criados.”
Eles vieram, oito ou dez deles, cochichando e espiando por sobre os
ombros dos outros.
“Quando seu Sahib foi para a cama?”, disse Spurstow.
“Achamos que às onze ou dez”, disse o criado pessoal de Hummil.
“Ele estava bem então? Mas como vocês sabem?”
“Ele não estava doente, tanto quanto pudemos entender. Mas havia
dormido muito pouco durante três noites. Isso eu sei, porque o vi cami-
nhando muito e especialmente no meio da noite.”
Quando Spurstow estava arranjando o lençol, uma grande espora reta
de caça caiu no chão. O doutor suspirou. O criado pessoal olhou de relance
para o corpo.
“O que você acha, Chuma?”, disse Spurstow, percebendo o olhar na
face escura.
“O Nascido-do-Céu,18 na minha pobre opinião, este que era o meu
amo desceu até as Trevas e lá foi pego porque não conseguiu escapar rápido
o bastante. Temos a espora como prova de que ele lutou com o Medo. Te-
nho visto homens da minha raça fazerem assim com espinhos quando um
encanto lhes foi lançado para arrastá-los nas horas de sono e eles não ousa-
vam dormir.”
“Chuma, você é um cabeça tonta. Vá e faça os preparativos para selar
os pertences de Sahib.”
“Deus criou o Nascido-do-Céu. Deus me criou. Quem somos nós, pa-
ra indagar os desígnios de Deus? Pedirei aos outros criados para manter dis-
tância enquanto o senhor estiver relacionando os bens de Sahib. São todos
ladrões e roubariam.”
“Na minha avaliação, ele morreu de... ora, de qualquer coisa; de parada
cardíaca, apoplexia pelo calor, ou alguma outra provação”, disse Spurstow a
seus companheiros. “Precisamos fazer um inventário de seus bens e coisas
assim.”
“Ele estava morto de medo”, insistiu Lowndes. “Veja esses olhos! Pelo
amor de Deus, não deixem que seja enterrado com eles abertos!”
“Fosse o que fosse, ele está livre de todos os problemas agora”, disse
Mottram suavemente.
Spurstow estava examinando os olhos abertos.
“Venha cá”, disse ele. “Consegue ver algo aí?”
18 Heaven-born. Título aplicado aos membros do Indian Civil Service como forma de elogio e
respeito. Inspirado em twice-born [nascido-duas-vezes] como eram nomeados os Brâmanes, sa-
cerdotes hindus da mais alta casta e cultura superior (N.E.).
“Não consigo olhar para ele!”, disse Lowndes com uma voz lamurienta.
“Cubra o rosto! Haverá no mundo um medo que possa imprimir num ho-
mem essa aparência? É horrível. Oh, Spurstow, cubra isso!”
“Nenhum medo... no mundo”, disse Spurstow. Mottram inclinou-se
sobre seu ombro e olhou atentamente.
“Não vejo nada, exceto algumas manchas cinzentas na pupila. Não
pode haver nada, você sabe.”
“Mesmo assim. Bem, pensemos. Levará metade do dia para montar
qualquer tipo de caixão; e ele deve ter morrido à meia-noite. Lowndes, meu
velho, vá e diga aos coolies para começar a abrir uma cova ao lado do túmulo
de Jevins. Mottram, dê uma volta pela casa com Chuma e veja se puseram
selos nas coisas. Mande-me uns dois homens e porei ordem nisso.”
Os criados de braços fortes, quando retornaram aos seus, contaram
uma estranha história do doutor Sahib inutilmente tentando chamar de volta
à vida o seu amo, por rituais mágicos — segurando uma pequena caixa ver-
de que tinia em cada um dos olhos do homem morto, e de um murmúrio
confuso da parte do doutor Sahib, que levou embora consigo a pequena
caixa verde.
O ecoar das batidas de martelo em um caixão não é um som agradável,
mas os que passaram pela experiência sustentam que muito mais terrível é o
suave farfalhar dos lençóis de linho, o ranger das tiras de lona de cama,
quando aquele que caiu à beira da estrada é preparado para o enterro, o gra-
dual afundar à medida que as tiras amarradas são soltas, até que a forma
amortalhada toca o chão e não se ouve nenhuma queixa contra a indignida-
de da remoção apressada dos restos mortais.
No último momento, Lowndes foi tomado de escrúpulos. “Há neces-
sidade de vocês seguirem o ritual inteiro?”, disse a Spurstow.
“É o que pretendo. Como civil, você é o mais velho. Pode fazê-lo você
mesmo, se preferir.”
“Não quis dizer exatamente isso. Apenas pensei que, se pudéssemos
conseguir um capelão em algum lugar, eu me ofereceria para ir procurado e
dar ao pobre Hummil uma chance melhor. Só isso.”
“Pfuh!”, disse Spurstow, pondo nos lábios as terríveis palavras que são
ditas no início das exéquias.
Depois do desjejum, fumaram cachimbo em silêncio, em memória do
morto. Então disse Spurstow distraidamente:
“Não é coisa para a medicina.”
“O quê?”
“Coisas no olho de um morto.”
“Pelo amor de Deus, deixa para lá aquele horror!”, disse Lowndes. “Já
vi um nativo morrer de puro medo quando um tigre o acossara. Sei o que
matou Hummil.”
“Uma ova, que você sabe! Vou tentar saber.” E o doutor foi para o
banheiro com uma câmera Kodak. Após alguns minutos, ouviu-se o som de
algo sendo quebrado em pedaços com um maneio, e ele surgiu, muito, mui-
to branco.
“Você tirou uma fotografia?”, disse Mottram. “Como é a criatura?”
“Foi impossível, é claro. Você não precisa olhar, Mottram. Destruí os
filmes. Não havia nada lá. Foi impossível.”
“Isso”, disse Lowndes, escandindo as palavras, observando a mão que
tremia, tentando acender o cachimbo, “uma mentira deslavada.”
Mottram riu inquieto. “Spurstow está certo”, disse. “Estamos todos
em tal estado agora que acreditaríamos em qualquer coisa. Pelo amor de
Deus, vamos tentar ser racionais.”
Nada mais se disse por um longo tempo. O vento quente soprou lá fo-
ra, e as árvores secas soluçaram. Então, o trem diário, relampejando metal,
aço polido e jorrando vapor, parou ofegante na intensa luz cegante. “Deve-
mos embarcar”, disse Spurstow. “Voltar ao trabalho. Já escrevi meu atesta-
do. Não podemos ajudar em mais nada aqui, e o trabalho manterá nossos
juízos em ordem. Vamos.”
Ninguém se moveu. Não é agradável enfrentar viagens de trem no
meio do dia em junho. Spurstow pegou seu chapéu e seu chicote e, voltan-
do-se na soleira da porta, disse:
“Pode existir Céu — pode existir Inferno. Por enquanto, existe a nossa
vida aqui.19 E então?”
Nem Mottram nem Lowndes encontraram resposta para a pergunta.
19 Citação do final do poema de Robert Browning, “Time’s Revenger”: There may be heaven;
there must be hell; / Meantime, there is our earth here — well! (N.E.).
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