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sábado, 10 de setembro de 2011

H.P.Lovecraft-O Desafio do Além

             “O Desafio do Além”

C. L. Moore, A. Merritt, H. P. Lovecraft,
                                                                     Robert E. Howard e Frank Belknap Long

      Em meio à névoa do sono, George Campbell abriu os olhos e ficou espiando durante alguns
  Eminutos, através da abertura na tenda, para a noite pálida de agosto, erguendo-se apenas o
  bastante para se perguntar pelo que o teria despertado. Havia nesses ares claros e cortantes das
  florestas canadenses um soporífico tão potente quanto qualquer droga. Campbell jazeu imóvel
  por um momento, atravessando de volta, lentamente, as fronteiras deliciosas do sono, consciente
  de uma agradável fadiga, uma sensação incomum de músculos bem usados – repouso, após a
  labuta, na noite doce e clara da floresta.

  Voluptuosamente, enquanto sua mente afundava de novo no esquecimento, ele pensou mais uma
  vez que três longos meses de liberdade o aguardavam – libertação das cidades e da monotonia,
  libertação do magistério e da universidade e dos estudantes sem quaisquer resquícios de interesse
  pela geologia com a qual ele ganhava seu sustento buzinando-a todos os dias em seus ouvidos
  obstinados. Libertação do...

  Súbito, a deliciosa sonolência se despedaçou à sua volta. Lá fora, em algum lugar, um som de
  lata batendo contra lata invadiu sua paz. George Campbell se ergueu de um salto e apanhou a
  lanterna.   Então   sorriu   e   baixou-a   outra   vez,   forçando   os   olhos   através   da   fraca   luminosidade
  noturna para constatar que, lá fora, um animalzinho negro e anônimo da noite vagueava em meio
  aos vasilhames caídos. Ele esticou um braço comprido e buscou uma pedra em frente à porta da
  tenda para jogar. Seus dedos se fecharam em torno de uma pedra grande, e ele recuou a mão no
  movimento de lançar.

  Mas nunca a lançou. A coisa que encontrara na noite era bastante estranha. Quadrada, lisa como
  cristal, obviamente artificial, com as arestas arredondadas. A estranheza das superfícies da rocha
  em seus dedos era tão notória que ele apanhou de novo a lanterna e acendeu a luz sobre o objeto
  que tinha nas mãos.

  Toda a sonolência se esvaiu quando ele observou o que tinha encontrado ao tatear distraidamente
  na   escuridão.   Era   transparente   como   cristal   de  rocha   aquele   cubo   esquisito   e   polido.   Quartzo,
  sem dúvida alguma, mas não na sua forma hexagonal cristalizada, como é comum. De alguma
  maneira   –   ele   não   podia   imaginar   o   método   –,   tinha   sido   esculpida   em   forma   de   um   cubo
  perfeito,   com   as   faces   desgastadas   de   cerca   de   quatro   polegadas.   Pois   estava   incrivelmente
  desgastado.      O   cristal,   bastante    duro,   tornara-se    arredondado       até  que    seus   cantos    quase
  desaparecessem   e   a   coisa   começasse   a   assumir   os   contornos   de   uma   esfera.   Eras   e   eras   de
  desgaste, anos quase incontáveis deviam ter transcorrido sobre aquela coisa estranha e clara.

                                                           
  Mas o mais curioso era aquela forma que ele podia entrever obscuramente no coração do cristal.
  Pois incrustado no centro havia um pequeno disco feito de uma substância clara e desconhecida,
  com alguns caracteres entalhados sobre a superfície que o cristal recobria. Caracteres em forma
  de cunha, a evocar vagamente a escrita cuneiforme.

  George Campbell franziu o cenho e, perplexo, observou de perto o pequeno enigma que tinha
  nas   mãos.   Como   uma   coisa   daquelas   podia   ter   sido   incrustada  dentro   do   puro   cristal?   Uma
  lembrança remota de antigas lendas que diziam ser o cristal de quartzo gelo que se solidificara
  demais   a   ponto   de   não   poder   derreter   novamente   flutuou   em   sua   mente.   Gelo   –   e   caracteres
  cuneiformes – sim, não tinha esse tipo de escrita se originado entre os sumérios, os quais vieram
  do   norte   nos   remotíssimos   começos   da   história   para   se   estabelecer   no   vale   da   Mesopotâmia
  primitiva? Então, retomou o controle sobre seus sentidos e sorriu. O quartzo, por certo, tinha se
  formado nos períodos geológicos mais primários, quando não havia nada em parte alguma além
  de impactos e rochas empilhadas. O gelo não viria senão dezenas de milhões de anos depois de
  aquela coisa ter se formado.

  E,   no   entanto,   aquela    escrita...  Feita   à  mão,  certamente,      embora     os  caracteres    não   fossem
  familiares   a   não   ser   pela   vaga   sugestão   das   notações   cuneiformes.   Ou   poderia   ter   havido,   no
  mundo   paleozóico,   coisas   capazes   de   linguagem          e   em   condições   de   gravar   aquelas   cunhas
  intrigantes sobre o disco no centro do quartzo? Ou... Poderia uma coisa daquelas ter caído lá do
  espaço,   como   um   meteoro,   sobre   o   rochedo   informe   de   um   mundo   ainda   não   solidificado?
  Poderia...

  Então     ele  se   conteve    e  sentiu    seus   ouvidos    arderem     sob   as  imprecisões      de   sua   própria
  imaginação. O silêncio e a solidão e a estranha coisa em suas mãos estavam conspirando para
  pregar peças em seu senso de realidade. Ele deu de ombros e depositou o cristal na beirada do
  colchão, apagando em seguida a luz. Talvez a manhã e uma cabeça fresca pudessem trazer-lhe
  uma resposta para as questões que agora lhe pareciam insolúveis.

  Mas o sono não veio facilmente. Por uma coisa, ele percebeu, quando apagou a luz: era que o
  pequeno   cubo   tinha   brilhado   por   um   momento,   como   se   contivesse   luz   própria,   antes   de   se
  desvanecer na escuridão circundante. Ou talvez ele estivesse errado. Talvez tivessem sido apenas
  os seus olhos ofuscados que deram a impressão de ver a luz desaparecer devagar, bruxuleando
  nas entranhas enigmáticas do objeto com uma persistência esquisita.

  Ele permaneceu ali, inquieto, por um longo tempo, a revolver e a revolver em sua mente essas
  perguntas sem resposta. Havia alguma coisa no cubo de cristal que, para além de um passado
  imensurável   –   talvez   da   aurora   mesma   de   toda   história   –,   propunha   um   desafio   que   não   o
  deixaria dormir.

  [A. Merritt]

  Permaneceu   ali,   pareceu-lhe,   durante   horas.   Sua  mente   fora   capturada   pela   luz   hesitante,   pela
  luminescência   que   se   mostrara   tão   relutante  em   desaparecer.   Era   como   se   alguma   coisa   no
  coração     do   cubo    tivesse   despertado,    se   mexesse  preguiçosamente,          se  tornasse    subitamente
  alerta... e começasse a observá-lo.

  Pura fantasia, tudo isso. Ele se agitou, impaciente, e acendeu a luz sobre o relógio. Perto de uma
  hora; três horas mais, e já seria manhã. O facho baixou e caiu sobre o morno cubo de cristal. Ele
  o manteve em foco por alguns minutos. Então o tomou e o observou.


  Não havia dúvidas agora. Quando seus olhos se acostumaram à escuridão, ele viu que o estranho
  cristal brilhava com diminutas luzes furtivas em seu interior, como se fossem fios de relâmpagos
  safirinos. Estavam bem no centro e pareceram-lhe   provir   do   disco   pálido   com  suas   gravações
  perturbadoras. E o disco ele mesmo começava a crescer... as marcações mudando de forma... O
  cubo estava crescendo... Seria uma ilusão gerada pelos pequeninos relâmpagos?...

  Ouviu um som. Era quase o fantasma de um som, tais como os fantasmas de cordas de harpas
  tangidas por dedos fantasmais. Ele se curvou mais. Provinha do cubo...

  Havia um vagido na vegetação rasteira, uma agitação de corpos e um lamento agonizante, tal
  como o de uma criança que nasce e que logo se cala. Alguma pequena tragédia de selvageria –
  matador e presa. Ele deu alguns passos em direção ao bulício, mas não pôde ver nada. Tomou de
  novo   a   lanterna   e   iluminou   a   tenda.   Sobre   o   solo   havia   uma   pálida   cintilação   azulada.   Era   o
  cubo. Ele se abaixou para apanhá-lo; então, obedecendo a um aviso obscuro, retirou de volta a
  mão.

  E de novo ele viu: o brilho decaía. Os pequenos raios cor de safira brilhavam intermitentemente,
  recuando de volta para o disco de onde tinham vindo. Não havia nenhum som.

  Ele se sentou, observando a luminescência aumentar e diminuir, aumentar e diminuir, mas cada
  vez se tornando mais turva. Ocorreu-lhe que seriam necessários dois elementos para produzir o
  fenômeno. O próprio raio elétrico e a sua atenção absorta. Sua mente devia viajar ao longo do
  brilho, prender-se no coração do cubo, cuja pulsação oscilava, até que... O quê?

  Ele sentiu um arrepio de vida, como se proveniente do contato com alguma coisa alienígena. Era
  alienígena, ele sabia, não vinha desta Terra. Não da vida desta Terra. Ele conteve um tremor,
  apanhou o cubo e o levou para dentro da tenda. Não era quente nem frio; a não ser pelo peso, ele
  não   teria   consciência   de   o   estar   segurando.   Colocou-o   sobre   a   mesa,   mantendo   o   facho   da
  lanterna desviado dele; então foi até a porta da tenda e fechou o cortinado.

  Retornou à mesa, puxou a cadeira de acampamento, e assestou o facho diretamente sobre o cubo,
  dirigindo-o   o   máximo   que   pôde   para   o   seu   centro.   Dirigiu   toda   a   sua   vontade,   toda   a   sua
  concentração, por meio dele, enfocando a vontade e a vista sobre o disco tal como fizera com a
  luz.

  Como   se   obedecendo   a   um   comando,   os   relâmpagos   safirinos   explodiram.   Saltaram   do   disco
  para o corpo do cubo de cristal; em seguida ricochetearam de volta, banhando todo o disco e as
  gravações.      De   novo    essas   ultimas    começaram       a  se   transformar,     mudando,      movendo-se,
  avançando e recuando sob a claridade azul. Não eram mais cuneiformes. Eram coisas – objetos.

  Ouviu a música murmurante, o dedilhar de cordas de harpa. O som se tornou mais e mais alto, e
  agora todo o corpo do cubo vibrava ao ritmo delas. As faces do cristal começaram a amolecer,
  tornando-se nebulosas, como se formadas de uma névoa de diamantes. E o próprio disco estava
  crescendo. – as formas mudando, dividindo-se e multiplicando-se, como se alguma porta tivesse
  sido   aberta   e   multidões   de   fantasmas   entrassem   por  elas.   Mais   e   mais   brilhante   se   tornava   a
  pulsação da luz.

  Ele sentiu um pânico repentino, tentou desviar sua vista e sua vontade, deixou cair a lanterna. O
  cubo não precisava mais do facho... e ele não podia se esquivar... não podia se esquivar? Ora, ele
  mesmo estava a ser sugado por aquele disco que era agora um globo dentro do qual dançavam
  formas inomináveis ao som de uma música que banhava o globo com um brilho constante.

                        
  Não   havia   tenda.   Havia   apenas   uma   vasta   cortina  de   névoa   cintilante   atrás   da   qual   refulgia   o
  globo... Ele se sentiu mergulhar na névoa, tragado por ela como por um vento forte – mergulhar
  diretamente no globo.

  [H. P. Lovecraft]

  Quando      a  luz   nevoenta    dos   sóis  azulados     se tornou    mais   intensa,   os   contornos    do   globo
  oscilaram à frente e se dissolveram num caos pululante. Seu palor e seu movimento e sua música
  – tudo se misturou numa névoa envolvente, dando-lhe uma cor pálida de aço e imprimindo-lhe
  um movimento ondulante. E os sóis de safira, também, se derreteram imperceptivelmente numa
  infinidade acinzentada de pulsações disformes.

  Ao mesmo tempo, a sensação de avançar para a frente e para fora se tornou intolerável, incrível e
  cosmicamente   rápida.   Qualquer   padrão   de   velocidade   conhecido   na   Terra   pareceria   menor,   e
  Campbell compreendeu que um vôo desses na realidade física significaria morte instantânea para
  qualquer     ser  humano.     Tal   como    era  –   nessa   hipnose    estranha   e  infernal   de   pesadelo    –,  a
  impressão      quase    visual   de  ser  arremessado      como     um   meteoro     quase    paralisava    a  mente.
  Conquanto não houvesse pontos reais de referência no vazio cinzento e pulsante, ele sentiu que
  estava     se  aproximando       da   velocidade     da   luz  e   mesmo     ultrapassando-a.      Finalmente      sua
  consciência sucumbiu, e uma treva benfazeja engoliu tudo.

  Foi muito subitamente, e em meio à escuridão mais impenetrável, que os pensamentos e as idéias
  de George Campbell se recompuseram. Quantos momentos – ou anos – ou eternidades – tinham
  se passado desde sua queda através do vazio cinzento ele não podia estimar. Sabia apenas que
  parecia estar imóvel e sem dores. Com efeito, a ausência de toda sensação física era a qualidade
  mais   evidente   em   sua   situação.   Fazia   até   a  escuridão   parecer   menos   compactamente   escura,
  sugerindo que ele era mais uma inteligência desencarnada num estado para além das sensações
  físicas   do   que   uma   criatura   corpórea   cujos   sentidos   tivessem   sido   privados   de   seus   objetos
  costumeiros de percepção. Ele podia pensar aguda e rapidamente – quase sobrenaturalmente –,
  sem no entanto formar qualquer idéia acerca de sua situação.

  Meio por instinto, reparou que não estava mais em sua tenda. Decerto, devia ter despertado lá de
  um   pesadelo   para   um   mundo   igualmente   escuro,   porém   sabia   que   não   era   isso.   Não   havia
  nenhuma cama de acampamento debaixo dele; ele não tinha mãos para sentir os cobertores ou a
  superfície da lona – nenhuma abertura através da qual pudesse vislumbrar a noite pálida lá fora...
  Alguma coisa estava errada, medonhamente errada.

  Recuando em seus pensamentos, reviu o cubo fluorescente que o tinha hipnotizado e tudo o que
  se seguira. Compreendera que sua mente estava indo, mas não fora capaz de retornar. No último
  momento   houvera   um   medo   pânico   e   perturbador,   um   medo   subconsciente   para   além   mesmo
  daquele   causado   pela   sensação   do   vôo   demoníaco.   Tinha   vindo   de   alguma   vaga   recordação
  momentânea ou remota – o quê, ele não pôde dizer de imediato. Um grupo de células na parte de
  trás   de   sua   cabeça   parecera   descobrir   uma   qualidade   nebulosamente   familiar   no   cubo,   e   essa
  familiaridade      vinha   carregada    de   um   sombrio     terror.  Agora    ele  tentava   lembrar    por   que   a
  familiaridade e o terror.

  Aos poucos lhe ocorreu. Certa vez, há muito tempo, em conexão com seu trabalho de geólogo,
  lera a respeito de qualquer coisa parecida com esse cubo. Tinha a ver com aqueles discutíveis e
  inquietantes fragmentos de argila chamados de os Cacos de Eltdown, escavados de estratos pré-
  carboníferos no sul da Inglaterra havia trinta anos. Sua forma e inscrições eram tão inusitadas
  que alguns especialistas sugeriram artificialidade, fazendo as mais desvairadas conjeturas acerca
  de sua origem. Provinham, por certo, de um tempo em que os seres humanos ainda não existiam

                                                           
  no    globo    –  mas    seus   contornos     e aspectos     eram    terrivelmente      intrigantes.    Foi   assim   que
  receberam tal nome.

  Não foi, contudo, nos escritos de algum cientista sisudo que Campbell vira essa referência a um
  globo   de   cristal   contendo   um   disco.   A   fonte   era   bem   menos   respeitável   e   infinitamente   mais
  vívida.   Por   volta   de   1912   um   clérigo   de   Sussex,   profundo   conhecedor   de   assuntos   ligados   ao
  ocultismo – o reverendo Arthur Brooke Winters-Hall –, alegara ter identificado as gravações nos
  Cacos     de   Eltdown     com    os   assim    chamados      “hieróglifos    pré-humanos”        tão  insistentemente
  encarecidos e esotericamente manueseados em certos círculos místicos, e publicara a expensas
  próprias     o  que    dizia  ser   uma    “tradução”     das   desconcertantes       “inscrições”     primais    –   uma
  “tradução” ainda freqüente e seriamente citada por escritores ocultistas. Nessa “tradução” – uma
  brochura surpreendentemente longa se comparada ao número limitado dos “cacos” existentes – é
  que   aparecia   a   narrativa,   de   autoria   supostamente   pré-humana,  na   qual   figurava   a   presente
  referência assustadora.

  Segundo   a   história,   habitava   um  mundo   –   e,   provavelmente,   incontáveis   outros   mundos   –   do
  espaço exterior uma ordem de poderosas criaturas em forma de vermes, cujos conhecimentos e
  cujo   controle   da   natureza   ultrapassavam   tudo  o   que   a   imaginação   terrestre   poderia   conceber.
  Bem   cedo   tinham   dominado   a   arte   das   viagens   interestelares   e   assim   povoaram   cada   planeta
  habitável em sua própria galáxia – exterminando as raças que encontravam.

  Para além dos limites de sua própria galáxia – que não era a nossa – não podiam navegar em
  pessoa,   mas   em   sua   busca   de   conhecimento   através   do   espaço   e   do   tempo   descobriram   uma
  maneira de abrir certos atalhos intergaláticos com suas próprias mentes. Confeccionavam objetos
  peculiares      –  cubos     estranhamente       energizados     de    um    cristal   peculiar    contendo      talismãs
  hipnóticos e protegidos por envelopes esféricos, resistentes ao espaço, feitos de uma substância
  desconhecida   –   que   podiam   ser   expelidos   para   além   dos   limites   de   seu   universo   e   que   só
  reagiriam à atração de matéria sólida e fria.

  Esses   objetos,   alguns   dos   quais   pousariam   necessariamente   em   vários   mundos   habitados   nos
  universos   exteriores,   formavam   as   pontes   etéreas   necessárias   para   a   comunicação   mental.   A
  fricção atmosférica incendiaria a cápsula protetora, expondo o cubo e deixando-o sujeito a ser
  descoberto por mentes inteligentes do mundo onde caísse. Por sua natureza intrínseca, o cubo
  atrairia e fixaria a atenção. Isso, conjugado com a ação da luz, era suficiente para colocar em
  ação as suas propriedades especiais.

  A mente que notasse o cubo seria tragada para dentro dele pela força do disco e seria enviada
  através de um fio de energia obscura para o lugar de onde o cubo viera, o mundo remoto dos
  exploradores espaciais em forma de vermes, atravessando estupendos abismos entre as galáxias.
  Recebida   numa   das   máquinas   com   a   qual   o   cubo        estivesse   sintonizado,   a   mente   capturada
  permaneceria   suspensa   sem   corpo   ou   sentidos   até   que   fosse   examinada   por   alguém   da   raça
  dominadora.   Então   seria,   por   um   processo   obscuro   de   intercâmbio,   esvaziada   de   todo   o   seu
  conteúdo. A mente do explorador poderia agora ocupar a estranha máquina, enquanto a mente
  cativa ocuparia o corpo vermicular do explorador. Em seguida, num outro intercâmbio, a mente
  do explorador saltaria através dos espaços ilimitados para o corpo vazio e inconsciente do cativo
  no mundo transgalático, animando o hospedeiro alienígena na medida do possível e explorando
  o novo mundo na forma de um de seus naturais.

  Finda a exploração, o aventureiro usaria o cubo e seu disco para realizar o retorno, e às vezes a
  mente   capturada   seria   devolvida   intacta   ao  seu   mundo   distante.   Nem   sempre,   porém,   a   raça
  dominadora era tão generosa. Às vezes, quando uma raça potencialmente importante e capaz de
  realizar   viagens   espaciais   era   encontrada,   o  povo   vermicular   usaria   o   cubo   para   capturar   e
  aniquilar   mentes   aos   milhares   e   extirparia   assim   a   raça   por   razões   diplomáticas,   usando   as
  mentes exploradoras como agentes de destruição.

  Noutros casos, seções do povo vermicular ocupariam permanentemente o planeta transgalático,
  destruindo   as   mentes   capturadas   e   dizimando   os   habitantes   remanescentes   em   condições   de
  ocupar corpos alienígenas. Nunca, entretanto, poderia a raça mãe ser duplicada em tais casos,
  desde que o novo planeta não conteria todos os materiais necessários para as realizações do povo
  vermicular. Os cubos, por exemplos, só podiam ser feitos no planeta lar.

  Apenas alguns dos inumeráveis cubos lançados chegavam eventualmente a pousar e a encontrar
  resposta   num   mundo   habitado,   desde   que   não   havia   tal   coisa   como  direcioná-los   para   metas
  além da visão e do conhecimento. Apenas três, dizia a história, teriam alguma vez pousado em
  mundos   habitados   deste   nosso   universo   particular.   Um   deles   teria   alcançado   um   planeta   na
  periferia   da   galáxia   há   dois   milhares   de   bilhões   de   anos,   enquanto   outro   aterrissara   há   três
  bilhões de anos num mundo próximo ao centro da galáxia. O terceiro – e o único que se sabe ter
  alguma      vez   entrado   no   sistema    solar   –  alcançou    nossa    própria   Terra    há  certa   de  cento    e
  cinqüenta milhões de anos.

  Era   principalmente   desse   último   que   a   “tradução”   do   doutor   Winters-Hall   tratava.   Quando   o
  cubo atingiu a terra, escreveu ele, a espécie terrestre dominante era uma raça de seres enormes,
  em   forma   de   cones,   que   ultrapassavam   todas   as   anteriores   ou   posteriores   em   realizações   e
  inteligência. Essa raça era tão avançada que teria de fato enviado mentes ao exterior, através do
  tempo e do espaço, para explorar o cosmo, tendo tomado consciência do que acontecera quando
  o cubo caiu do céu e certos indivíduos sofreram transformações mentais ao olharem para ele.

  Certos de que os indivíduos modificados representavam mentes invasoras, os líderes da raça os
  destruíram,   mesmo   ao   preço   de   terem   deixado  as   mentes   desalojadas   em   exílio   no   espaço
  alienígena. Haviam tido experiência mesmo com transições mais estranhas. Quando, mediante
  uma   exploração   mental   do   espaço   e   do   tempo,  formaram  uma   idéia   aproximada   do   que   era   o
  cubo, eles cuidadosamente isolaram a coisa da luz e da vista, considerando-a uma ameaça. Não
  quiseram destruir uma coisa tão rica em possibilidades de experimentação posterior. De vez em
  quando,   furtivamente,   algum   aventureiro   afoito   e  inescrupuloso   obteria   acesso   a   ele   e   testaria
  seus poderes perigosos, a despeito das conseqüências, mas todos esses casos foram descobertos e
  tratados com segurança e drasticamente.

  Dessas intrusões malignas o único resultado mau foi que a distante raça vermicular descobriu, a
  partir dos novos exilados, o que aconteceu com seus exploradores na Terra e tomaram um ódio
  violento pelo planeta e por todas as suas formas de vida. E o teriam despovoado, se pudessem,
  tendo    mesmo      enviado    cubos    adicionais    através  do    espaço    na  esperança     malsã    de  atingi-lo
  acidentalmente em locais desguarnecidos, mas tal evento jamais aconteceu.

  As   criaturas   terrestres   em   forma   de   cone   mantiveram   o   único   cubo  existente   guardado   num
  santuário especial, como uma relíquia e uma base para experimentos, até que, depois de eras, ele
  se perdeu em meio ao caos da guerra e da destruição da grande cidade polar onde era mantido.
  Quando, há cinqüenta milhões de anos, os seres enviaram suas mentes através do futuro infinito
  com   o   intuito   de   evitar   o   perigo   inominável   do   interior   da   terra,   o   paradeiro   do   cubo   sinistro
  proveniente do espaço se tornou desconhecido.

  Tudo   isso,   de   acordo   com   o   erudito   ocultista,   constava   dos   Cacos   de   Eltdown.   O   que   agora
  tornava o relato tão furtivamente amedrontador para Campbell era a minúcia e a exatidão com
  que o cubo alienígena fora descrito. Todos os detalhes eram dados: dimensões, consistência, o
  disco central com os hieróglifos, os efeitos hipnóticos. Enquanto matutava no assunto em meio

                                                              
  às trevas de sua estranha situação, começou a se perguntar se toda a sua experiência com o cubo
  de cristal – de fato, a própria existência do mesmo – não seria apenas um pesadelo despertado
  por   alguma   caprichosa   lembrança   subconsciente   dessa   velha   peça   de   literatura   extravagante   e
  charlatã.   Se   fosse   assim,   o   pesadelo   devia   estar   em  andamento,   já  que   seu   presente   estado   de
  desincorporação nada tinha de normal.

  Quanto   tempo   durou   essa   rememoração   e   essa   reflexão   confusa   Campbell   não   saberia   dizer.
  Tudo em seu estado era tão irreal que as dimensões e mensurações ordinárias se tornaram sem
  sentido.   Pareceu   uma   eternidade,   mas   talvez   não   tivesse   demorado   tanto,   até   que   aconteceu   a
  primeira e brusca interrupção. O que ocorreu foi tão estranho e inexplicável quanto a escuridão
  que   veio   antes.   Houve   uma   sensação   –   mais   da   mente   do   que   do   corpo   –,   e   subitamente
  Campbell sentiu que seus pensamentos eram varridos ou sugados, de uma maneira tumultuada e
  caótica, para fora de seu controle.

  Lembranças fluíram desordenadas e confusas. Tudo o que ele sabia – todo o seu passado pessoal,
  tradições,     experiências,      conhecimento,       sonhos,    idéias    e  inspirações     –   se  escoou     abruta   e
  simultaneamente,   com   uma   velocidade   estonteante   e   uma   abundância   que   em   breve   o   tornou
  incapaz de seguir o fio de cada conceito separado. O desfile de todos os seus conteúdos mentais
  tornou-se uma avalanche, uma cachoeira, um vórtice. Era tão horrível e vertiginoso quanto seu
  vôo   hipnótico   através   do   espaço   quando   o   cubo   de   cristal   o   atraiu.   Finalmente,   esvaziou   sua
  consciência e trouxe o puro esquecimento.

  Outro vazio imensurável – e então um lento ressurgir das sensações. Desta vez era físico, não
  mental. Luz azulada, e um som lento e distante.  Havia impressões táteis; ele podia sentir que
  estava deitado sobre alguma coisa, embora houvesse uma atordoadora estranheza no sentimento
  dessa   postura.   Ele   não   podia   conciliar   a   pressão   da   superfície   de  apoio   com   os   seus   próprios
  contornos   –   ou   com   os   contornos   de   uma   forma   humana.   Tentou   mover   os   braços,   mas   não
  obteve resposta definida a essa tentativa. Em vez disso, havia pequenas e ineficazes contrações
  nervosas por toda a área que parecia ser o seu corpo.

  Tentou   abrir   mais   os   olhos,   mas   descobriu-se  incapaz   de   controlar   o   seu   mecanismo.   A   luz
  azulada   chegava   de   um   modo   difuso,   nebuloso  e   não   podia   ser   em   parte   alguma   enfocada
  voluntariamente e com definição. Gradualmente, porém, imagens visuais indecisas e peculiares
  começaram   a   se   formar.   Os   limites   e   características   da   visão   não   eram   aqueles   com   os   quais
  estava acostumado, mas ele podia relacionar vagamente a sensação com o que conhecera como
  sendo a visão. Quando tal sensação atingiu certo grau de estabilidade, Campbell notou que ainda
  devia estar a viver as agonias de um pesadelo.

  Parecia   estar   num   cômodo   de   extensão   considerável   –  de   altura   mediana,   mas   com   uma   área
  bastante ampla. Em cada face – e era como se ele pudesse ver todas as faces ao mesmo tempo –
  havia fendas altas e estreitas que sugeriam portas e janelas combinadas. Havia mesas baixas e
  pedestais   singulares,   mas   nenhuma   mobília   de   natureza   ou   proporções   normais.   Através   das
  fendas   jorravam   cascatas   de   luz   safirina,   e   para  além   delas   se   podiam   ver,   nebulosamente,   as
  faces e os telhados de edifícios fantásticos parecidos com cubos empilhados. Nas paredes – nos
  painéis     verticais   que    havia    entre   as  fendas     –  viam-se     estranhas     inscrições    de   caracteres
  desconhecidos         e  inquietantes.     Demorou       um   pouco      para    Campbell      descobrir     por   que    o
  perturbavam tanto – e então ele viu que eram, repetidos em certos aspectos, precisamente iguais
  a alguns dos hieróglifos do disco no cubo de cristal.

  O verdadeiro elemento de pesadelo foi, porém, algo mais do que isso. Começou com a coisa viva
  que de repente entrou por uma das fendas, avançando decididamente em sua direção e segurando
  uma caixa de metal de proporções bizarras e superfícies vítreas e espelhadas. Pois tal coisa não


  tinha nada de humana – nada de terrena –, nem mesmo nada de algum mito ou sonho humano.
  Era um verme ou centopéia gigantesca, de cor cinzenta clara, com a largura de um homem e o
  comprimento   de   dois,   exibindo   uma   cabeça   em   forma   de   disco,   aparentemente   destituída   de
  olhos, guarnecida de cílios e com um orifício central avermelhado. Deslizava sobre seus pares de
  patas traseiras. Ao longo de sua espinha dorsal havia um curioso pente arroxeado e uma cauda
  em leque formada por um tipo de membrana cinzenta que arrematava o todo grotesco. Havia um
  anel de pontas vermelhas e flexíveis em torno ao seu pescoço, e das contorções dessas pontas
  provinham estalidos e zunidos num ritmo medido e deliberado.

  Aqui, de fato, estava o pesadelo em sua quintessência – a fantasia caprichosa em seu ápice. Mas
  não   foi   ainda   essa   visão   de   delírio   que   fez   com   que   George   Campbell   tombasse   outra   vez   na
  inconsciência.   Houve   uma   outra   coisa   –   um   toque   final,   insuportável   –   que   o   levou   a   isso.
  Quando o inominável verme avançou com sua caixa iridescente, o homem deitado captou, na
  superfície   espelhada,   um   vislumbre   do   que   deveria   ser   o   seu   próprio   corpo.   No   entanto   –
  horrivelmente consciente de suas sensações desordenadas e desconhecidas – não era de todo o
  seu próprio corpo que ele viu refletido no metal polido. Era, em vez disso, o aspecto asqueroso,
  cinza pálido, de uma das grandes centopéias.

  [Robert E. Howard e Frank Belknap Long]

  Desse     ultimo   mergulho     na   inconsciência     ele emergiu      com    um   entendimento      pleno   de   sua
  situação. Sua mente estava aprisionada no corpo de um dos amedrontadores nativos do planeta
  alienígena, enquanto, em alguma parte do outro lado do universo, seu próprio corpo hospedava a
  personalidade do monstro.

  Ele   teve   de   superar   um   terror   irracional.   Olhada   de   um   ponto   de   vista   cósmico,   por   que   sua
  metamorfose   deveria   causar-lhe   horror?   A   vida  e   a   consciência   eram   as   únicas   realidades   do
  universo.     A   forma    não   importava.    Seu    corpo  atual    era  hediondo     apenas    para   os   padrões
  terrestres. O medo e a repulsa afogaram-se na excitação de uma aventura titânica.

  O que era o seu corpo anterior senão um invólucro, que a morte um dia lançaria fora de qualquer
  maneira? Ele não tinha ilusões sentimentais sobre a vida da qual tinha sido exilado. O que lhe
  dera ela senão trabalho, pobreza, frustração contínua e repressão? Se esta vida que o aguardava
  não lhe oferecesse mais, pelo menos não lhe oferecia menos. A intuição lhe dizia que oferecia
  mais – muito mais.

  Com     a  honestidade     que   se   torna  possível    apenas    quando    a  vida   é  desnudada     até  os   seus
  fundamentos, teve consciência de que se lembrava com prazer apenas das delícias físicas de sua
  vida anterior. Mas há muito ele já havia exaurido todas as possibilidades físicas contidas naquela
  vida    terrena.   Esgotaram-se      os  estímulos    da   Terra.   Mas    na  impressão     deste   corpo    novo   e
  alienígena ele pressentia as promessas de deleites estranhos e exóticos.

  Uma exultação selvagem o invadiu. Ele era um homem sem mundo, livre de todas as convenções
  ou inibições da Terra ou deste planeta estranho, livre no universo de todo recalque artificial. Ele
  era um deus! Com grande satisfação, pensou em seu velho corpo a se mover entre os negócios e
  a sociedade na Terra, com um monstro alienígena a olhar através das janelas que eram os olhos
  de George Campbell para pessoas que fugiriam dele se soubessem.

  Que ele caminhasse pela Terra e matasse e destruísse à vontade. A Terra e suas raças não tinham
  mais qualquer significado para George Campbell. Lá ele tinha sido apenas uma entre bilhões de
  não-entidades,   fixada   em   seu   lugar   por   uma    acumulação   montanhosa   de   convenções,   leis   e
  costumes, fadada a viver e a morrer em seu sórdido nicho. Mas num salto cego ele se elevara


  acima da realidade comum. Isto não era a morte, mas um renascimento – o nascimento de uma
  mentalidade amadurecida, dona de uma liberdade recém-descoberta que pouco se importava com
  o cativeiro físico em Yekub.

  Sobressaltou-se. Yekub! Era o nome deste planeta, mas como ele soubera? Então ele sabia, tal
  como      sabia    o  nome     daquele     cujo    corpo    agora    ocupava:     Tothe.     A   memória,      inscrita
  profundamente   no   cérebro   de   Tothe,   brotava   nele   como   sombras   do   conhecimento   que   Tothe
  possuía.   Gravadas   bem   fundo   nos        tecidos   físicos  do   cérebro,    falavam    obscuramente,      como
  instintos   implantados,   a   George   Cambell,   e   sua   consciência   física   se   apoderava   deles   e   os
  traduzia para mostrar-lhe o caminho não apenas para a segurança e a liberdade, mas para o poder
  a que sua alma – lavada de seus impulsos primitivos – aspirava. Não viveria como um escravo
  em   Yekub,   mas   como   um   rei!   Tal   como   os   bárbaros   antigos   tinham   se   sentado   no   trono   de
  impérios senhoriais.

  Pela   primeira   vez   voltou   sua   atenção   para   os  arredores.   Ainda   estava   deitado   sobre   aquela
  espécie   de   colchão   no   meio   daquele   cômodo   fantástico,   e   o   homem-centopéia   estava   à   sua
  frente, segurando o objeto de metal polido e estalando as pontas em seu pescoço. Desse modo
  ele   falava,   Campbell     sabia,   compreendendo        de   algum   modo     o  que   era  dito,  por   meio    dos
  processos   de   pensamento   herdados   de   Tothe,   enquanto   descobria   que           a   criatura   era   Yukth,
  senhor supremo da ciência.

  Mas Campbell não deu ouvidos, pois tinha feito seu plano desesperado, um plano tão inusitado
  para os costumes de Yekub que estaria além da compreensão de Yukth, pegando-o totalmente
  despreparado.   Yukth,   tal   como   Campbell,   via   o   fragmento   de   metal   pontiagudo   numa   mesa
  próxima,   mas   para   Yukth   era   apenas   um   instrumento   científico.   Sequer   sabia   que   poderia   ser
  usado como uma arma. A mente terrestre de Campbell forneceu o saber e a ação que se seguiu,
  levando o corpo de Tothe a fazer movimentos que nenhum homem de Yekub jamais fizera antes.

  Cambell   arrebatou   a   lasca   pontuda   e   atacou,   cortando   brutalmente   para   cima.   Yukth   recuou   e
  tombou; suas entranhas jorraram para o piso. Num instante, Campbell já deslizava para a porta.
  Sua velocidade era espantosa, exultante, primeiro cumprimento da promessa de novas sensações
  físicas.

  Enquanto      corria,   guiado    inteiramente    pelo   conhecimento       instintivo   implantado     nos   reflexos
  físicos de Tothe, era como se ele fosse sustentado em suas patas por uma consciência particular.
  O corpo de Tothe o transportava através de uma via que fora percorrida milhares de vezes antes,
  quando animado pela mente de Tothe.

  Correu   por   um   corredor   sinuoso,   subiu   por   uma   escada,   atravessou   uma   porta,   e   os   mesmos
  instintos que o tinham levado ali lhe diziam que encontrara o que procurava. Descobriu-se num
  recinto circular, com um teto abobadado do qual jorrava uma luz lívida e azulada. Uma estranha
  estrutura se erguia no meio do piso de cores irisadas, camada sobre camada, cada qual de uma
  cor diferente e vívida. A última camada era um cone púrpura, de cujo ápice subia uma névoa
  azul em direção a uma esfera que pairava no ar – uma esfera que brilhava como se fosse marfim
  translúcido.

  Isso,   diziam   as   memórias   gravadas   de   Tothe   a   Campbell,   era   o   deus   de   Yekub,   conquanto   a
  razão pela qual o povo de Yekub o temia e o reverenciava tivesse sido esquecida há milhões de
  anos.   Um   verme-sacerdote   se   achava   entre   ele   e   o   altar   que   nenhuma   mão   ou   carne   jamais
  haviam tocado. Tocá-lo seria uma blasfêmia que nunca, em tempo algum, ocorrera a qualquer
  habitante de Yekub. O verme-sacerdote jazeu paralisado de horror até que o fragmento de metal
  de Campbell lhe arrancasse a vida.

                                                             
  Com   suas   pernas   de   centopéia,   Campbell   galgou  as   camadas   do   altar,   indiferente   aos   seus
  estremecimentos súbitos, indiferente à transformação que começou a ocorrer na esfera flutuante,
  indiferente     à  fumaça    que   agora   se   acumulava     em    nuvens    azuis.  A   sensação    de   poder   o
  embriagava.   Não   temia   as   superstições   de   Yekub mais   do   que   temia   as   da   terra.   Com   aquele
  globo nas mãos, ele se tornaria rei de Yekub. Os homens-vermes não se atreveriam a lhe negar
  coisa alguma quando se tivesse apoderado de seu deus. Ergueu uma mão até a esfera – não mais
  da cor de marfim, mas vermelha como sangue...

  [Frank Belknap Long]

  O corpo de George Campbell saiu da tenda para a noite pálida de agosto. Movia-se de maneira
  lenta e trêmula em meio aos vultos de enormes árvores, caminhando por uma senda na floresta
  recoberta por folhas de pinheiro docemente aromáticas. O ar era seco e frio. O céu era uma tigela
  invertida de prata gelada, salpicada de pontos brilhantes, e à distância, ao norte, a aurora boreal
  estendia faixas de fogo.

  A cabeça do caminhante oscilava grotescamente para um lado e para o outro. Dos cantos de sua
  boca semiaberta escorriam grossos fios de espuma ambarina, a qual estremecia na brisa noturna.
  Ele caminhou ereto a princípio, como um homem caminharia, mas gradualmente, à medida que a
  tenda   desapareceu,   sua   postura   se   modificou.  Seu   torso   começou   quase   imperceptivelmente   a
  vergar-se, e seus membros a encurtar.

  Num distante mundo do espaço exterior, a criatura centípede que era George Campbell estreitava
  ao peito um deus cuja cor era vermelha como sangue e atravessava, contorcendo-se como um
  inseto,    um   salão   irisado   e,  através  de   maciços    portais,   saía  para   a  luz  brilhante    de  sóis
  alienígenas.

  Perambulando por entre as árvores da Terra numa atitude que sugeriria o trotar de um animal, o
  corpo     de   George    Campbell      se   encaminhava     para    um    destino    irracional.   Longos     dedos
  terminando   em   garras   arrastavam  folhas   do   tapete   de   olorosas  agulhas   de   pinheiro,   enquanto
  avançava em direção a uma vasta extensão de água iluminada.

  No   distante   mundo   extragalático   do   povo   de   vermes,   George   Campbell   se   movia   por   entre
  blocos ciclópicos de alvenaria negra, descendo por longas avenidas guarnecidas de samambaias,
  enquanto segurava o deus vermelho e redondo.

  Houve um grito áspero de animal em meio à vegetação perto do lago iluminado na Terra, onde a
  mente de uma criatura vermicular ocupava um corpo que se movia por instinto. Dentes humanos
  cravaram-se      em   macio    pêlo   animal,   rasgaram  carne     de   animal   preto.  Uma     pequena    raposa
  prateada meteu suas garras, numa retaliação frenética, num pulso humano coberto de pele e se
  debateu aterrorizada, enquanto seu sangue jorrava. Lentamente, o corpo de George Campbell se
  levantou, a boca manchada pelo sangue fresco. Com os membros superiores agitando-se de um
  modo estranho, caminhou para as águas do lago.

  Enquanto a criatura multiforme que era George Campbell rastejava por entre os blocos negros de
  pedra, milhares de formas vermiculares se prostraram na névoa cintilante que o precedia. Um
  poder divino parecia emanar do seu corpo rastejante quando se movia com um movimento lento
  e ondulante em direção ao trono de um império espiritual que transcenderia todas os potentados
  da terra.

 
  Um caçador exausto, vagueando por entre as densas florestas da Terra próximo à tenda onde a
  criatura vermicular ocupara o corpo de George Campbell, veio até as águas iluminadas do lago e
  discerniu qualquer coisa a boiar ali. Tinha estado perdido na floresta durante toda a noite, e o
  cansaço já o cobria como uma capa de chumbo sob a luminosidade pálida da lua.

  Mas   a   forma   era   uma   provocação   que   ele   não   podia   ignorar.   Achegando-se   à   margem,   ele   se
  ajoelhou   sobre   o   solo   úmido   e   esticou   o   braço   em  direção   ao   volume   flutuante.   Lentamente,
  puxou-o para a terra.

  Ao   longe,   no   espaço   infinito,   a   criatura   em   forma   de   verme   que   segurava   o   deus   brilhante   e
  vermelho subia ao trono que luzia como a constelação de Cassiopéia sob uma abóbada de hiper-
  sóis.   A   grande   deidade   que   ele   segurava   no   alto   energizava   seu   corpo   vermicular,   queimando
  num fogo branco de espiritualidade ultramundana os últimos vestígios de animalidade.

  Na Terra, o caçador olhou com horror indizível para a face enegrecida e peluda do afogado. Era
  uma face bestial, de contornos repulsivamente antropóides, e de sua boca retorcida e deformada
  escorria uma baba escura.

  “Aquele que buscou o seu corpo nos abismos do tempo ocupará uma habitação incontrolável”,
  disse o deus vermelho. “Ninguém que nasceu em Yekub pode dominar o corpo de um humano.

  “Em toda a Terra, criaturas vivas se submetem umas às outras, e se regalam com indescritível
  crueldade   sobre   os   seus   próprios   parentes.   Nenhuma   mente-verme   pode   controlar   um   bestial
  corpo   humano   quando   este   decide   se   libertar.   Apenas   as   mentes   dos   homens,   instintivamente
  condicionadas   através   de   dez   mil   gerações,   podem   conter   os   instintos   humanos.   Seu   corpo   se
  destruirá   a   si   mesmo   na   Terra,   buscando   o   sangue  de   seus   semelhantes,   buscando   a   água   fria
  onde possa chafurdar à vontade – buscando sua eventual destruição, pois o instinto de morte é
  mais poderoso nele do que os instintos de vida, e se destruirá a si mesmo procurando retornar à
  lama de onde emergiu.”

  Assim falou o deus vermelho e redondo de Yekub a George Campbell num longínquo segmento
  do contínuo espácio-temporal, enquanto este último, purgado de todo desejo humano, se sentou
  num trono e regeu um império de vermes mais sábia, cordial e bondosamente do que qualquer
  homem da Terra jamais regeu um império de homens.
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Fontes:

 www.sitelovecraft.com                                                                         de3103@yahoo.com.br  Tradução:Renato Suttana:
e-mail:
rsuttana@arquivors.com
                                                       

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