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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

H.P.Lovecraft- O Diário de Alonzo Typer


                                                                           
                                       “O diário de Alonzo Typer” 
Por: H.P. Lovecraft e William Lumley

                                                                          Tradução: Mário Jorge Lailla Vargas

NOTA  DE  EDITOR:  Alonzo  Hasbrouch  Typer,  de   Quensintão,   Nova   Iorque,   foi   visto   por
       último e reconhecido em 17 de abril de 1908, ao redor de meio-dia, no hotel Richmond em
Batávia. Era o único sobrevivente duma antiga linhagem rural de Úlster e tinha 53 anos na hora da
desaparição.
         Senhor Typer foi educado em particular e nas universidades Colúmbia e Raidelberga. Toda
sua vida se passou como estudante. Seu campo de pesquisa incluía muitas obscuras e, geralmente,
temidas regiões fronteiriças do conhecimento humano. Seus documentos sobre vampirismo, gules e
fenômenos de poltergaiste foram impressos por conta própria após rejeição de muitos editores. Se
desligou da Sociedade pra Pesquisa Física em 1900 após uma série de controvérsia peculiarmente
amarga.
         Em     muitas    ocasiões     viajou   extensivamente      e,   às   vezes,   se   ausentava     durante    longos
períodos.   É   conhecido   por   ter   visitado   regiões   obscuras   no   Nepal,   Índia,   Tibete,   e   Indochina,   e
passou   a   maior   parte   do   ano   1899   na   misteriosa   ilha   de   Páscoa.   A   procura   extensiva   ao   senhor
Typer   depois   de   sua   desaparição   não   deu   resultado  e   sua   propriedade   foi   dividida   entre   primas
distantes da cidade de Nova Iorque.
         O diário narrando isto foi, supostamente, achado na ruína dum casarão rural perto de Ática,
Nova     Iorque,    que   mantinha     uma    reputação   particularmente       sinistra   durante    gerações    antes   do
colapso.   O   edifício   era,   realmente,   muito   velho,  anterior   à   colonização   branca   da   região,   e   fora
residência duma estranha e reservada família chamada van der Heyl que tinha migrado de Álbani
em 1746 envolta em suspeita de bruxaria. A estrutura provavelmente datava de 1760.
         Da   história   dos   van   der   Heyl   muito   pouco   é   conhecido.   Permaneceram   completamente
indiferentes a seus vizinhos normais, empregavam  criados negros trazidos diretamente da África,
falavam pouco inglês e educavam as crianças particularmente e em faculdades européias. Esses que
foram mundo afora logo foram perdidos de vista, entretanto não antes de ganharem má reputação
associados a instituições populares negras e cultos de significado ainda mais obscuro.
         Ao   redor   da   temida   casa   uma   aldeia   dispersa   surgiu,   povoada   por   índios   e   depois   por
renegados   da   região   circunvizinha,   que   mantinha   o   duvidoso   nome   de   Corazim.  Das   singulares
tensões     hereditárias    que,   posteriormente,      apareceram   aos     confusos     aldeãos    de  Corazim      várias
monografias foram escritas por etnólogos. Bem atrás da aldeia e diante da casa van der Heyl está
uma   colina   íngreme   coroada   com   um   anel   peculiar   de   antigas   pedras   eretas   com   as   quais   os
iroqueses   sempre   olharam   com   medo   e   repugnância.   A   origem   do   diário   de   Alonzo   Typer   e   a
natureza das pedras cuja datação que, de acordo com provas arqueológicas e climatológicas, deve
ser fabulosamente antiga, ainda é um problema não solucionado.
         De 1795 a diante as lendas dos pioneiros e colonos mais recentes têm muito a dizer sobre
gritos estranhos e cantos que procedem a certa estação de Corazim, do casarão e da colina de pedras
eretas. Entretanto há razão pra supor que os ruídos cessaram em 1872, quando toda a casa van der
Heyl, os criados e tudo, desapareceu de repente.
         Desde   então   a   casa   permaneceu   abandonada.   Outros   eventos   desastrosos,   incluindo   três
mortes inexplicadas, cinco desaparecimentos e quatro casos de loucura súbita, aconteceram quando
os donos mais recentes e visitas interessadas tentaram nela permanecer. A casa, aldeia, e extensas
áreas    rurais,   em   toda   parte,  foram     revertidas  ao    estado    e  leiloadas   na   ausência    de   herdeiros
conhecidos dos van der Heyl. Desde 1890 os donos (sucessivamente o recente Charles A. Shields e
seu    filho   Oscar    S.  Shields,   de   Búfalo)    deixaram     toda   a  propriedade      em   estado    de   absoluta
negligência e advertiram todos os curiosos a não visitar a região.

              1 Escrito em outubro de 1935. Publicado em fevereiro de 1938 em Weird tales, 31, #2, 152-66

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         Dos que se sabe terem se aproximado da casa durante os últimos quarenta anos a maioria era
estudante de ocultismo, oficial de polícia, jornalista e outras personagens estranhas em circulação.
Um dos seguintes era um eurasiano misterioso, provavelmente da Cochinchina, cuja mais recente
exibição com a mente em branco e bizarras mutilações chamou a atenção da grande imprensa em
1903.
         O   diário   de   senhor   Typer,   um   livro   de,   aproximadamente,   6×3½   polegadas,   com   papel
resistente e uma estranha e durável liga metálica de folha fina, foi descoberto em posse dum dos
decadentes aldeãos de Corazim, em 16 de novembro de 1935, por um policial estatal enviado pra
investigar o propalado colapso da abandonada mansão van der Heyl. A casa realmente tinha ruído,
obviamente       de   idade   avançada     e  decrepitude,     com    o  vento    forte  de   12   de   novembro.      A
desintegração estava peculiarmente completa e nenhuma busca completa da ruína poderia ser feita
nalgumas semanas. John Eagle, o moreno, cara-de-macaco, bugre aldeão que tinha o diário, disse
ter achado o livro bem perto da superfície do escombro, no que deveria ter sido um quarto dianteiro
superior.
         Muito pouco do conteúdo da casa poderia ser identificado, entretanto uma enorme abóbada
de tijolo incrivelmente sólida no porão (cuja antiga porta de ferro teve que ser dinamitada por causa
da    estranha    forma    de  obstinada     e  tenaz   fechadura)     permaneceu      intata   e  apresentou     várias
características     enigmáticas.     Em    primeiro    lugar   as  paredes    foram    cobertas    asperamente      com
hieróglifos de ainda indecifrado traço na obra de  alvenaria. Outra peculiaridade era uma abertura
circular enorme no fundo da abóbada, bloqueada por uma gruta, evidentemente por causa da queda
da casa.
         Mas     o  mais   estranho    de   tudo,   o  aparentemente      recente   depósito    dalguma     substância
fedorenta, enlodada, negra como azeviche, estava no chão lajeado e que estendia num quintal uma
linha irregular que termina numa abertura circular bloqueada. Os que primeiro abriram a abóbada
declararam que o lugar cheirava como um serpentário num jardim zoológico.
         O diário, que foi feito, aparentemente, só pra fazer uma investigação na temida casa van der
Heyl pelo desaparecido senhor Typer, foi demonstrado, por peritos grafotécnicos, ser genuíno. A
escritura mostra sinais de aumentar a tensão nervosa quando avança ao fim, e há lugares onde fica
quase ilegível. Aldeãos de Corazim, cuja estupidez e taciturnidade confundem todos os estudantes
da região e seus segredos, não tiveram lembrança de senhor Typer como um dos ilustres visitantes
da temida casa.
         O texto do diário é literalmente textual e sem comentário. Como interpretar e, diferente da
loucura do escritor, deduzir? Que o leitor decida por si. Só o futuro pode dizer se seu esforço pode
resolver   um   mistério   de   antigas   gerações.   Pode   ser   dito   que   esses   genealogistas   confirmam   a
memória relatada por senhor Typer no assunto de Adriaen Sleght.

                                                       O diário

         Cheguei aqui aproximadamente às 18h. Tive de percorrer todo o caminho de Ática a pé ante
uma tempestade iminente, pois ninguém me alugaria um cavalo ou equipamento, e não posso andar
de automóvel. Este lugar é ainda pior do que eu esperava, e eu temia o porvir, embora queira, ao
mesmo tempo, desvendar o segredo. Bem cedo anoitecia, o velho horror do sabá de Valpúrgis, e
após   aquela   temporada   em   Gales   sei   o   quê   procurar.   Doravante   não   vacilarei.   Picado   por   algum
desejo insondável dei minha vida inteira à indagação de mistérios profanos. Vim àqui só pra isso e
não tripudiarei com destino.
         Estava     muito   escuro    quando    cheguei    àqui,  entretanto     o  sol  não   aparecia.   As   nuvens
tempestuosas eram as mais densas que já vira e eu não achava o caminho por causa dos relâmpagos.
A aldeia é um detestável pequeno remanso e seus poucos habitantes eram nada mais que simplórios.
Um deles me saudou dum modo estranho, como se me conhecesse. Eu podia ver muito pouco da
paisagem,      um   vale   pantanoso     de  estranho   matagal     marrom     e  fungos    venenosos     cercado    por
mirradas árvores maliciosamente torcidas com ramos nus. Atrás da aldeia uma tristonha colina em
cujo ápice está um círculo de grandes pedras com uma pedra ao centro. Essa, sem comentário, é a
coisa vil primordial que V... me disse sobre o N... inquestionável.

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         O casarão contrastava no meio dum enorme parque repleto de exóticas roseiras bravas. Mal
o pude transpor e, quando quase o fiz, a velhice e decrepitude do edifício me detiveram. O lugar
parecia imundo e doentio e quis saber como um edifício tão ruinoso podia se manter ereto. É de
madeira e, entretanto, suas linhas originais estão escondidas por um desnorteante emaranhado de
alas sobrepostas a várias datas. Creio que foi construído primeiro no antiquado estilo colonial da
Nova   Inglaterra.   Provavelmente   isso   era   mais   fácil   construir   que   uma   casa   de   pedra   holandesa.
Também lembro da esposa de Dirck van der Heyl, que veio de Salém, filha do não mencionável
Abaddon       Corey.    Havia     uma    pequena     varanda    de   pilares   e  me    abriguei    sob   ela  quando     se
desencadeou   a   tempestade.   Foi   uma   tempestade   diabólica,   negra   como   a   meia-noite,   com  chuva
cerrada, trovão e raio como no dia do juízo final e um vento fustigante.
         Destranquei   a   porta,   peguei   minha   lanterna   e   entrei.   A   poeira   estava   grossa,   polegadas
cobrindo   o   chão   e   a   mobília.   O   lugar   tinha   cheiro   de   bolor   de   tumba.   Havia   um   corredor   que
atravessava todo o percurso e um escadaria encaracolada à direita.
         Trilhei   meu   caminho   escada   acima   e   escolhi   o quarto   da   frente   pra   me  hospedar.   Todo   o
lugar   parece   bem  mobiliado,   entretanto   a   maior   parte   da   mobília   está   se  desintegrando.   Isso   foi
escrito às 8h, depois duma comida fria de minha mochila. Depois disso as aldeãos trarão material
pra mim. Mas não concordarão em chegar mais perto que a ruína do portão do parque.
         Eu queria me libertar dum sentimento desagradável de familiaridade com este lugar.

                                                         Depois

         Estou   consciente   de   várias   presenças   nesta   casa.   A   pessoa   me  é   francamente   hostil.   Uma
vontade malévola que tenta me destruir e me superar. Não devo ter vislumbrado seu semblante um
instante     mas    devo    me    esforçar    ao   máximo       pra   resistir.  É   horripilantemente       malévola      e,
definitivamente, inumana. Creio que se alia a poderes de fora da Terra. Poderes no espaço aquém e
além do universo. Sobressai como um colosso e confirma o que consta nos escritos de Aklo. Há tal
sentimento   de   imensidão   associado   a   ela   que   quero   saber   como  estas   câmaras   podem  conter   seu
volume,   ainda   que   não   tenha   dimensão   aparente.  Sua   idade   deve   ser   inconcebivelmente   remota,
terrivelmente indescritível.

                                                       18 de abril

         Dormi muito pouco ontem na noite. Às 3h da manhã um estranho vento rasteiro começou a
penetrar na região inteira, sempre subindo até  a casa, oscilando como um tufão. Quando desci na
escadaria   pra   ver   a   porta   dianteira   sacudindo   a   escuridão   criou   formas   semi-visíveis   em   minha
imaginação.   Só   sob   a   aterrissagem   fui   empurrado  violentamente   por   trás.   Pelo   vento,   suponho.
Entretanto poderia ter jurado ter visto traços etéreos duma gigantesca garra negra quando me virei
depressa. Não perdi o juízo mas, certamente, terminei a descida e tirei a pesada tranca da porta que
tremia perigosamente.
         Não   pretendia   explorar   a   casa   antes   do   amanhecer.   Contudo,   agora,   impossibilitado   de
dormir   novamente,   e   excitado   com   terror   misturado   a  curiosidade,   me   sentia   relutante   em   adiar
minha procura. Com minha poderosa lanterna caminhei no pó à grande sala de estar sul onde sabia
que os retratos estariam. Lá estavam, da mesma maneira que V... tinha dito, e como eu parecia saber
muito   bem   dalguma   fonte   obscura.   Alguns   estavam   muito   enegrecidos   e  manchados   pra   que   eu
pudesse   identificar   mas   dos   traços   que   pude   discernir   reconheci   que   realmente   eram   da   odiosa
linhagem      van   der   Heyl.   Algumas      das   pinturas    pareciam     sugerir   faces   que   eu  conhecia,     mas
exatamente quais faces não pude lembrar.
         O esboço daquele terrível Joris híbrido, parido em 1773 pela filha mais jovem de Dirck, era
o mais óbvio de tudo. Eu podia localizar os olhos verdes e o olhar de serpente em sua face. Toda
vez que eu apagava a lanterna a face pareceria brilhar na escuridão até que eu meio que imaginei
que brilhava com uma fosforescência esverdeada própria. Quanto mais eu olhava pior me parecia.
Me virei pra evitar ver mudança de expressão.
         Mas o ao qual me virei era ainda pior. A face longa, severa, pequena, olhos, próximos, fixos
e de feição suína característica o identificam imediatamente, embora o artista tivesse se esforçado

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pra fazer o focinho parecer tão humano quanto possível. Era isso que V... tinha sussurrado. Quando
o   fitei,   horrorizado,   pensei   que   os   olhos   assumiram   um   brilho   avermelhado   e,   num   momento,   o
fundo parecia substituído por uma cena estranha e, aparentemente, irrelevante: Um solitário, deserto
terreno de caça sob um céu amarelo borrado, onde cultivavam um maltratado arbusto de espinheira
negra.    Temendo       por  minha     sanidade    apressei    a saída    daquela    galeria   amaldiçoada       ao  canto
espanado escada acima onde tenho meu acampamento.

                                                         Depois

         Decidi explorar um pouco mais os cantos labirínticos da casa à luz diurna. Não posso estar
perdido, minhas pegadas estão visíveis no pó e posso traçar outras marcas de identificação quando
necessário. É curioso como facilmente aprendo a complexa sinuosidade dos corredores. Segui um
longo corredor, um puxado que dava ao exterior na extremidade boreal, e surgiu uma porta trancada
que    forcei.   Além     havia   um    quarto    muito    pequeno     bastante    atulhado     de   mobília    e  com    o
revestimento de painéis carcomido. Na parede exterior espiei um vão escuro atrás do madeirame
apodrecido       e   descobri    uma     estreita   passagem      secreta    que    conduz    a    negra    profundidade
desconhecida. Era uma rampa íngreme ou túnel sem degrau ou alçapão. Eu queria saber pra quê
teria servido.
         Sobre   a   lareira   estava   uma   pintura   bolorenta   que   achei   no  final   da   inspeção   como  sendo
duma mulher jovem à moda do século 18. A face é de beleza clássica, contudo, com a expressão
mais    diabolicamente       má   que   eu   alguma   vez  vira    o  semblante     humano  ostentar.   Não   somente
desumanidade,   cobiça,   e   crueldade   mas   um   pouco   de   hediondez   além   da   compreensão   humana
parece se sentar nessas características finamente esculpidas. E me pareceu que o artista, ou o lento
processo de bolor e decadência, tinha dado àquela aparência pálida um doentio matiz esverdeado e
sugeria   uma   quase   imperceptível   textura   escamosa.   Depois   ascendi   ao   sótão   onde   achei   vários
volumes      de   livros  estranhos,    muitos    de  aspecto  totalmente      estranho    tanto   nas  letras   como   na
aparência física. Um continha variantes do formulário de Aklo que eu não sabia que existia. Mas
ainda não examinei os livros nas estantes empoeiradas do andar de baixo.

                                                       19 de abril

         Com  certeza,   há   presenças   não   vistas   aqui,   embora   o   pó   não   apresente   pegada   além   das
minhas.   Tomei   um   atalho   pelo   jardim   de   roseira   brava   ao   portão   do   parque   onde   meu   material
permanece   mas   nesta   manhã   o   achei   fechado.   Muito   estranho:   Desde   então   os  arbustos   estão   se
revigorando com seiva primaveral. Logo tive aquele sentimento dalgo próximo tão colossal que é
espantoso as câmaras a conterem. Dessa vez senti que uma das presenças é de grande envergadura.
E sei agora que o terceiro ritual de Aklo, que achei ontem naquele livro no sótão, faria tal presença
ficar sólida e visível. Não sei se ousarei tentar essa materialização. Os perigos são grandes.
         Ontem na noite comecei a ver fugazmente sombrios rostos evanescentes e formas nos cantos
escuros   dos   corredores   e   câmaras.   Faces   e   forma   tão   horrorosas   e   repugnantes   que   não   ouso
descrever. Pareciam aliados em substância àquela garra titânica que tentou me empurrar escadaria
abaixo na noite anterior. Deve ser, obviamente, fantasmagoria de minha imaginação transtornada. O
que estou buscando não seria algo bem assim. Vi a garra novamente, às vezes só e, às vezes, com
sua companheira mas decidi ignorar todo o fenômeno.
         No   começo   desta   tarde   explorei   o   porão   em   primeira   vez   e   desci   numa   escada   de   mão
encontrada num alojamento cujos degraus de madeira tinham apodrecido. O lugar todo é uma massa
de   incrustação   nitrosa   com   montículos   amorfos  que   marcam   as   manchas   onde   vários   objetos   se
desintegraram. No extremo mais distante tem uma passagem estreita que parece se estender sob o
puxado boreal onde achei o quarto meio fechado e no término uma espessa parede de tijolo tem
uma porta férrea trancada. Pertencendo aparentemente a uma abóbada dalgum tipo, essa parede tem
evidências   de  batente   de  porta   artesanal   do   século   18   e   deve   ser   contemporânea   às   adições   mais
antigas à casa, claramente pré-revolucionária. Na fechadura que é, obviamente, mais velha que o
resto do ferragem ornamental estão gravados certos símbolos que não pude decifrar.

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         V...   não   me  tinha   falado  sobre   essa   abóbada.   Me   dá   mais   inquietação  que   qualquer   outra
coisa que já vi. Toda vez que me aproximo tenho um impulso quase irresistível de escutar algo. Até
agora nenhum som desfavorável marcou minha permanência neste lugar maligno. Quando saí do
porão desejei ardentemente que as pegadas ainda estivessem lá. Minha subida na escada de mão
parecia assustadoramente lenta. Não quero descer até lá novamente. E ainda algum gênio mau me
instiga a tentar isso na noite se eu quiser aprender a lição.

                                                       20 de abril

         Perscrutei a profundeza de horror mas só senti o silêncio abissal. Ontem na noite a tentação
era   muito   forte   e,   nos   breves   intervalos   de   escuridão,   desci   mais   uma   vez   àquele   infernal   porão
nitroso com minha lanterna e andei nas pontas dos pés entre os amontoados amorfos àquela terrível
parede de tijolo e porta trancada. Não fiz ruído e me abstive de sussurrar qualquer encantamento
que eu conhecia mas escutei com furiosa obstinação.
         Afinal   senti   os   sons   de   além   dessa   barreira  de   chapa   de   ferro   dentro   da   qual   gigantescas
coisas noturnas ameaçavam e murmuravam. Havia também um detestável serpenteio, como duma
gigantesca   serpente   ou   monstro   marinho   que   arrasta   seus   monstruosos   coleios   sobre   um   chão
pavimentado.   Quase   paralisado   de   espanto   dei   uma   olhadela   à   enorme   fechadura   mofada   e   aos
estranhos   hieróglifos   secretos   entalhados   nela.   Tinham   sinais   que   não   reconheci   e   algo   em   sua
técnica     vagamente      mongólica      remetia    a  uma    antigüidade     blasfema     e  indescritível.    Às   vezes
imaginei que poderia os ver brilhar com uma luz esverdeada.
         Me virei pra fugir mas vi aquelas garras gigantescas atrás de mim, as   grandes   garras   que
pareciam inchar e ficar mais tangíveis quando as contemplava. Fora da maligna escuridão do porão,
com sombrios meneios de pulsos escamosos atrás delas e com uma traiçoeira e maligna vontade que
guia seu horrível tatear. Então ouvi atrás, dentro daquela abominável abóbada, um estouro fresco de
reverberações amortizadas que pareciam ecoar de horizontes longínquos como um distante trovão.
Impelido      por  esse   pavor    avancei    em   direção   às  garras    sombrias     com    minha    lanterna   e  as   vi
desaparecer   diante   da   plenitude   da   luz   elétrica.   Então   corri   pra   subir   na   escada   de   mão   com   a
lanterna   entre   dentes   e   não   descansaria   enquanto   não   chegasse   a   meu   acampamento   do   andar
superior.
         Qual será fim não ouso imaginar. Vim como investigador mas agora sei que algo está me
procurando.       Não   pude    ir  embora     quando    queria.   Nesta    manhã     tentei   ir  ao  portão    com    meu
equipamento        mas   encontrei    as  roseiras    bravas   tenazmente      retorcidas   em   meu     caminho.     Era  o
mesmo   em   toda   direção:   Atrás   e   em   todos   os   lados   da   casa.   Nalguns   lugares   os   cipós   farpados
marrons se espiralavam a alturas surpreendentes e formavam um tapume pra barrar meu egresso. Os
aldeãos     estão    relacionados     a tudo     isso.  Quando      cheguei     ao recinto     coberto    encontrei     meu
equipamento no grande corredor dianteiro. Não tenho pista de como foram parar lá. Me arrependi
de ter varrido o pó. Eu deveria espalhar um pouco mais e ver quais impressões permanecem.
         Nesta tarde li alguns dos livros na grande biblioteca sombria no fundo do andar térreo, e tive
certas suspeitas que não resisto mencionar. Eu nunca tinha visto o texto dos Manuscritos pnacóticos
ou dos Fragmentos de Eltdown e não teria vindo àqui se soubesse o conteúdo. Agora acredito que é
muito recente, pois o terrível sabá será, apenas, daqui a dez dias. Porque aquela noite de horror será
minha salvação.

                                                       21 de abril

         Estudei   os   retratos   novamente.   Alguns   têm  nomes   anexos.   Notei   um,   duma   mulher   mal-
encarada, pintado há uns dois séculos, que me confundiu. Tinha o nome de Trintje van der Heyl
Sleght     e  tive   a  distinta   impressão     de   ter  conhecido     o   nome   Sleght     antes,   nalguma     relação
significativa. Então não era horrível mas ficou. Tenho de matutar pra achar uma pista.
         Os   olhos   dos   quadros   me  assombram.  É   possível   que   alguns   deles   estejam   se   exumando
mais perceptivelmente da mortalha de pó, decomposição e mofo? As fisionomias ofídicas e bruxos
de feição suína me encaram horrivelmente de suas molduras enegrecidas e um grupo doutros rostos
híbridos começa a perscrutar o lado de cá da sombria profundeza. Há um horripilante semblante de

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familiaridade   neles   todos,   e   o   que   é   humano   é  mais   horrível   que   o   inumano.   Queria   que   me
lembrassem menos outros rostos, rostos que eu conhecia. Era uma linhagem amaldiçoada e Cornelis
de Leydon era o pior deles. Era quem, sem dinheiro, descia a barreira depois que seu pai achou a
outra chave. Estou seguro que V... sabe só um fragmento da horrenda verdade, de forma que estou
realmente   desprevenido   e   indefeso.   Qual   linhagem   antes   da   velha-guarda?   O   que   fez   em   1591
nunca poderia ter sido acabado sem gerações de herança maligna ou algum vínculo com o exterior.
E   que   descendência   essa   linhagem   monstruosa  gerou?   Estão   espalhados   no   mundo.   Tudo   o   que
esperam é sua comum herança de horror? Preciso lembrar o lugar específico onde vi o nome Sleght.
         Queria   ter   certeza   de   que   esses   quadros   sempre  ficam   na   moldura.   Agora,   durante   várias
horas, vi presenças momentâneas como aquelas garras e a face sombria e formas duplicando alguns
dos antigos retratos próximos. De certo modo nunca vislumbrei uma presença e o retrato ao mesmo
tempo.   A   luz   sempre   está   errada   num   ou   noutro   ou   a   presença   e  o   retrato   estão   em   aposentos
diferentes.
         Talvez,     como    esperava,    as  presenças     são   mero   produto    da   imaginação      mas   não   tenho
certeza. Alguns são femininos e da mesma beleza infernal do quadro no pequeno aposento trancado.
Vi que alguns estão sem moldura, examinei suas feições desconhecidas pintadas, escondidas sob o
molde de fuligem de telas que não pude decifrar. Alguns, temo desesperadamente, se aproximaram
da materialização sólida ou semi-sólida e alguns têm uma espantosa e inexplicada familiaridade.
         Há uma mulher que, com tanta beleza e encanto, superou todo o resto. Seu charme e veneno
são como a flor adocicada que cresce na beira do Inferno. Quando a olho de perto desaparece, só
reaparecendo depois. Sua face tem um matiz esverdeado e, de vez em quando, imagino poder espiar
uma suspeita escama em sua lisa textura. Quem é ela? É aquele ser que morou no pequeno quarto
trancado mais dum século atrás?
         Meu equipamento novamente ficou no corredor dianteiro, como de hábito. Salpiquei pó pra
colher pegadas mas nesta manhã todo o corredor foi varrido por algum agente desconhecido.

                                                       22 de abril

         Foi um dia de horrível descoberta. Explorei novamente o sótão infestado de teia de aranha e
achei uma arca talhada tombada, claramente holandesa, cheia de livros blasfemos e papelada mais
velha   que   qualquer   outra   até   então   encontrada  aqui.   Havia   um   Necronomicão   grego,   um   Livre
d'Eibon, de Norman-French e uma primeira edição antiga de De vermis mysteriis, de Ludvig Prinn.
Mas   o   antigo   manuscrito   encadernado   era   o   pior.  Estava   em   baixo   latim,   o   mais   estranho,   na
garatuja de Claes van der Heyl, sendo, evidentemente, o diário ou caderno mantido por ele entre
1560   e   1580.   Quando   desprendi   o   gancho   prateado   enegrecido   e   abri   as   folhas   amareladas   um
desenho colorido caiu. A imagem duma monstruosa criatura que não se assemelha a algo mais que
um   calamar   bicudo   e   tentacular,   com   grandes   olhos   amarelos   e   abominável   semelhança   com   a
forma humana em sua silhueta.
         Nunca      vira  antes   uma    forma    tão  repugnante     e de    pesadelo.    Nas   patas,   pés,   e  cabeça
tentacular havia garras curiosas me fazendo lembrar as etéreas formas colossais que tateavam tão
horrivelmente   no   escuro   em   meu   caminho,   enquanto   a   entidade   se   sentou   como   um   todo   num
grande   trono   tipo   pedestal   inscrito   com   hieroglifos   desconhecidos   de   cunho   vagamente   chinês.
Sobre a escritura e a imagem pairava um ar de sinistra malignidade tão profundo e penetrante que
não pude pensar ser isso o produto dalgum lugar ou época. Antes devia aquela monstruosa forma
concentrar todo o mal num espaço ilimitado, ao longo das eras passadas e futuras. Esses sinistros
símbolos   são   ícones   de   vil   significado   dotados     duma   mórbida   vida   própria   pronta   a   saltar   do
pergaminho pra destruir o leitor. Pro significado daquele monstro e desses hieroglifos não encontrei
pista mas soube que fora localizado com precisão  infernal e sem propósito mencionável. Quando
estudei os maliciosos caracteres a afinidade com os símbolos naquela ominosa fechadura no porão
ficou   cada   vez   mais   evidente.  Deixei   o   quadro  no  sótão,   pois   jamais   poderia   dormir   perto   de   tal
coisa.
         Passei    toda   a  tarde   lendo   o   velho   livro  manuscrito     de   Claes   van   der   Heyl.   O   que   li
confundirá e deixará horrorizado qualquer um que viva depois de mim. A gênese do mundo e de

                                                              6

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mundos anteriores se desdobrou ante meus olhos. Aprendi que a cidade Chambala, construída pelos
lemurianos   50   milhões   de   anos   atrás   ainda   se   mantém   inviolada   atrás   de   sua   parede   de   força
psíquica   no   exílio   oriental.   Aprendi   do   Livro  de   Dziã,   cujos   primeiro   seis  capítulos   pré-datam   a
Terra,   e   que   já   era   antigo   quando   os   senhores   de  Vênus   cruzaram   o   espaço   em   suas   naves   pra
civilizar nosso planeta. E vi registrado por escrito, em primeira vez, aquele nome que outros me
disseram   sussurrando   e   sobre   o   qual   eu   soubera   dum   modo   mais   reservado  e   mais   horrível:   O
temido e terrível nome de Yian-Ho.
          Em  muitos   lugares  eu   precisava   subir   a   passagens   que   requerem  uma   chave.   Finalmente,
após várias alusões, concluí que o velho Claes não tinha ousado registrar todo seu conhecimento
num livro mas deixara certos pontos pra outro. Nenhum volume é completamente inteligível sem
seu   companheiro.   Conseqüentemente   me  dispus   a   achar   o   segundo   volume   nalgum   lugar   dentro
desta     casa    amaldiçoada.       Embora       claramente     prisioneiro      não    perdi    meu     eterno    amor     ao
desconhecido. E estou determinado a sondar o cosmo tão profundamente quanto possível antes do
juízo final.

                                                        23 de abril

          Procurei,     durante    toda   a   manhã,     o  segundo     diário,    e  o  encontrei     no   meio-dia     numa
escrivaninha no pequeno aposento trancado. Como o primeiro, redigido no bárbaro latim de Claes
van der Heyl, parece consistir em notas esparsas que se referem a várias seções do outro. Folheando
vi,   imediatamente,   o   abominado   nome   de   Yian-Ho,   aquela   cidade   perdida   e   oculta   na   qual   se
aninhavam segredos ancestrais e da qual as mais obscuras recordações, mais antigas que o corpo
espreitam no âmago da mente de todos os homens. Isso foi repetido muitas vezes e o texto ao redor
estava claramente pontilhado com toscos hieroglifos claramente similares àqueles do pedestal cujo
desenho      infernal    eu  tinha   visto.   Aqui,   obviamente,      estava    a  chave    daquela    monstruosa      forma
tentacular e sua mensagem proibida. Com esse conhecimento ascendi os degraus rangendo ao sótão
de teias de aranha e horror.
          Quando   tentei   abrir,   a   porta   do  sótão   não   aderiu   como  antes.  Várias   vezes   resistiu   a   todo
esforço pra abrir. Quando, afinal, consegui tive uma clara sensação de que alguma colossal forma
não vista a tinha soltado de repente. Uma forma que planava ao longe, imaterial mas com audível
bater   de   asas.   Quando   achei   o   horrível   desenho  percebi   que   não   era   exatamente   onde   o   tinha
deixado.   Aplicando   a   chave   ao   outro   livro   logo   vi  que   o   seguinte   não   era   um   guia   imediato   ao
segredo.   Só   uma   pista   a   um  obscuro   segredo   que   foi   muito   bem  guardado.   Levaria   horas,   talvez
dias, pra extrair a terrível mensagem.
          Viverei o suficiente pra desvendar o segredo? Os assombrados braços negros e garras agora
assombram   cada   vez   mais   minha   vista.   Parece   até   mais   titânico   que   no  princípio.   Nunca   quis
libertar essas vagas presenças inumanas cujo tamanho nebuloso parece muito grande pra ser contido
nas    câmaras.     E  de   vez   em   quando     as  grotescas     faces,   as   formas   evanescentes   e   as   molduras
zombeteiras se reúnem em minha frente numa desnorteante confusão.
          Realmente,   é   um   terrível   arcano   primevo   da  Terra   que   é   melhor   ser   deixado   em   paz   e
esquecido. Segredos terríveis que nada têm a ver com o homem, homem esse que só pode aprender
em troca de paz e sanidade. Verdades secretas que fazem do sábio um eternamente estranho entre os
seus   e   o   faz   caminhar   solitário   na   Terra.   Igualmente,   há   sobrevivências   terríveis   de   coisas   mais
antigas   e   mais   potentes   que   o   homem.  Coisas   blasfemas   que   perambulavam   em   idades   remotas
nunca suspeitadas. Monstruosas entidades eternamente adormecidas em incríveis criptas e remotas
cavernas, fora das leis de causa e efeito. Estará pronto pra ser despertado por tais blasfemadores
quem souber seus obscuros sinais proibidos e contra-senhas furtivas.

                                                        24 de abril

          Estudei o quadro e a chave o dia todo no sótão. No crepúsculo ouvi sons estranhos, dum tipo
não   encontrado   antes   e   parecendo  vir   de   longe.   Escutando,   percebi   que   têm   que   fluir   daquela
estranha   colina   abrupta   com   o   círculo   de   pedras   eretas   que   contrasta   atrás   da   aldeia   a   alguma
distância ao norte da casa. Ouvi dizer que aquele era um atalho levando da casa ao topo daquela

                                                                7

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colina   rumo  ao   primitivo   cromeleche.   Tendo   suspeitado   disso,   em   certas   ocasiões,   van   der   Heyl
teve   muita   oportunidade   de   experimentar   mas   todo   o   assunto   ficara,  até   agora,   oculto   em   minha
consciência. Os sons consistiam num soar estridente misturado a um tipo peculiar e horroroso de
assobio ou silvo e um bizarro tipo de música como nunca descrito nos anais terrenos. Era muito
lânguido   e   logo   enfraquecia   mas   o   argumento   era  conhecido,   pensei.   Está   prà   colina   tal   qual   a
puxada nortista com a calha secreta e a abóbada de tijolo fechada estendida embaixo. Pode haver
alguma conexão que de longe me passou despercebida?

                                                       25 de abril

         Fiz    uma    peculiar   e  perturbadora      descoberta     sobre   a  natureza    de   minha    encarceragem.
Atraído à colina por um sinistro fascínio encontrei as roseiras bravas postadas atrás de mim, mas só
naquele   lado.   Há   um   portão   arruinado   e,   sob   os   arbustos,   os   vestígios   dum   antigo   caminho   que,
indubitavelmente, existe. As roseiras bravas se expandem a cima e ao redor da colina. Entretanto,
no ápice, com os montes de pedras eretas, só um estranho crescimento de musgo e grama raquítica.
Escalei   a   colina.   Passei   muitas   horas   ali   e   notei um  estranho  vento   que   sempre   parece   soprar   ao
redor    dos   interditos   monolitos     e  que,   às  vezes,  parece     sussurrar    numa   articulação      estranha   e
misteriosamente enigmática.
         Essas pedras, tanto em cor quanto em textura, não se assemelham a algo que eu tenha visto
noutro lugar. Não são marrons nem acinzentadas mas dum matiz amarelo bem pálido fundido num
verde   maligno   sugerindo   o   mimetismo   dum   camaleão.   Sua   textura   é   extravagante   como  a   duma
serpente escamada e é, inexplicavelmente, sensível ao toque, sendo fria e úmida como a pele dum
sapo ou outro réptil. Próximo ao menir central tem um buraco de singular borda rochosa que não
posso explicar mas que pode ser a entrada dum afilado túnel. Quando tentei descer a colina até a
extremidade   da   casa,   ao   longe,   encontrei   as   roseiras   bravas   que   me   interceptaram   como   antes.
Entretanto o caminho até a casa era facilmente relocalizável.

                                                       26 de abril

         Galguei   a   colina,   novamente,   hoje   na   noite,   e   senti   aquele   vento   sussurrante   muito   mais
intenso. Os murmúrios quase irados se aproximaram da linguagem atual, dum tipo vago, sibilante, e
me fizeram lembrar do sereno canto estranho que eu tinha ouvido a distância. Depois do crepúsculo
veio   um   estranho   relâmpago   de   prematuro   verão   iluminando   o   horizonte   norte,   seguido,   quase
imediatamente, dum estrepitoso trovão no céu oscilante. Algo nesse fenômeno me perturbou muito
e não pude evitar a impressão de que o ruído culminou num tipo inumano de linguagem sibilante
resultante     duma    gutural    gargalhada     cósmica.     Minha     mente    está   vacilando,     afinal,  ou   minha
injustificada curiosidade evocou inauditos horrores dos espaços crepusculares? O sabá agora está a
alcance da mão. Qual será o fim?

                                                       27 de abril

         Até que enfim meu sonho será realizado! Seja ou não reivindicada minha vida, espírito ou
corpo, entrarei no portal! O progresso em decifrar esses cruciais hieroglifos na pintura estava lento
mas   nesta   tarde   encontrei   a   pista   final.   Perto do   crepúsculo   descobri  o   significado,   que   pode   ser
aplicado duma só maneira às coisas que encontrei nesta casa.
         Há, sob esta casa, sepultado não sei onde, um Antigo que me mostrará o portal no qual eu
entraria e me dará os sinais perdidos e palavras das quais precisarei. Quanto tempo esteve enterrado
aqui,    esquecido,    exceto    por   aqueles   que    criaram   a  pedra    na  colina   e  por   aqueles    que   depois
procuraram       este  lugar   e  construíram      esta  casa,   não   posso    conjeturar.    Procurando      essa   Coisa
inquestionável, Hendrik van der Heyl veio a Nova Holanda em  1638. Os homens desta Terra não a
conhecem, exceto nos sussurros secretos do arrepio algum que achou ou herdou a chave. Nenhum
olho humano a fitou, ainda que brevemente, a menos que, quem sabe, os desaparecidos magos desta
casa investigaram além do que se pensa.

                                                              8

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         Com o conhecimento dos símbolos veio um domínio dos Sete Sinais Perdidos de Terror e,
igualmente, um reconhecimento tácito das palavras horríveis e indescritíveis de pavor. Tudo aquilo
que   me  falta   realizar   é   o   Canto   que   transfigurará   Aquele   Que   Foi   Esquecido   que   é   Guardião   do
Antigo Portal. Me maravilhei muito com o Canto. É composto de estranhas e repelentes guturais e
perturbantes sibilos que não se assemelham a algum idioma que alguma vez encontrei, nem mesmo
nos mais negros capítulos do Livre d'Eibon. Quando visitei a colina no crepúsculo tentei ler isso em
voz alta mas ecoou em resposta só um vago e sinistro estrondo no horizonte distante e uma tênue
nuvem de pó elementar que se contorceu e girou como alguma coisa viva maligna. Talvez eu não
tenha pronunciado corretamente as sílabas estrangeiras ou talvez só no sabá, aquele sabá infernal ao
qual os poderes nesta casa não podem me proteger, que a grande transfiguração pode acontecer.
         Tive um curioso turno de espanto nesta manhã. Pensei, num momento, ter lembrado onde vi
aquele frustrante nome Sleght antes e o cenário de realização me encheu de horror indescritível.

                                                       28 de abril

         Hoje escuras nuvens ominosas pairaram com intermitência em cima do círculo nesta colina.
Notei tal névoa várias vezes antes mas agora os contornos e arranjos têm um instigante significado.
São   serpentinos   e   fantásticos   e,   curiosamente,   como   as   assombrações   malignas   que   vi   na   casa.
Flutuam num círculo ao redor do cromeleche primitivo e revolvem repetidamente como se dotados
duma vida e propósito sinistros. Eu poderia jurar que dão um sussurro irado adiante. Depois duns
quinze   minutos   pairam   lentamente   ao   longe,   sempre          a  leste,  como   as   unidades     dum   batalhão
disperso.   Realmente,   são   aquelas   entidades   terríveis   que   Salomão   conheceu   na   velhice,   aqueles
seres negros gigantes cujo número é legião e cujo passo faz tremer a terra?
         Ensaiei o Canto que transfigurará a Coisa anônima. Contudo temores estranhos me assaltam
até   mesmo   quando   articulo   as   sílabas   resfolegando.   Perscrutando   todo   o   conjunto   de   evidência
descobri que o único modo é atravessar a abóbada do porão cerrado. Aquela gruta foi construída
com   um   propósito   infernal   e   deve   cobrir   o   esconderijo   que   conduz   ao   covil   imemorial.   Quais
guardiões vivem eternamente ali e desabrocham de século em século com alimento desconhecido,
só um alienado pode conjeturar. Só os bruxos desta casa que os convocaram da Terra interior os
conheceram muito bem, como os chocantes retratos e recordações do lugar revelam.
         O que mais me aborrece é a natureza limitada do Canto. Evoca o Inominado, contudo não
provê     método     pro   controle   do   que   é  evocado.     Há,  claro,    os  sinais   gerais   e  gestos    mas   se
demonstrarem   eficácia   pruma   coisa   pode,   ainda,   omitir   algo.   Ainda,   a   recompensa   é   grande   o
bastante     pra  justificar   qualquer    perigo.   E  não   poderia    me   retirar  se   quisesse,   pois   uma    força
desconhecida francamente me instiga.
         Descobri   mais   um   obstáculo.   Considerando          que   preciso   atravessar   a   abóbada   do   porão
fechado tenho de achar a chave. A fechadura está muito alto e é muito resistente pra arrombar. Não
tenho   dúvida   de   que   a   chave   está   nalgum  lugar  aqui   mas   falta   pouco   tempo   pro   sabá.   Tenho   de
procurar     com    afinco.   Terei    coragem     de   destrancar    a  porta   de   ferro   e   encarar    os   horrores
aprisionados espreitando de dentro?

                                                         Depois

         Evitei   o   porão   nos   último   dois   dias.   Mas   nesta   tarde   desci   novamente   a   esses   recintos
interditos.
         No princípio tudo estava silencioso mas dentro de cinco minutos os murmúrios ameaçadores
do miolo     começaram mais uma vez a sair da porta férrea. Nessa vez era alto e mais terrificante que
nas ocasiões anteriores. Reconheci aquele conhecido deslizar dalgum monstruoso monstro marinho,
agora mais rápido e frenético, como se a coisa estivesse se esforçando pra chegar ao portal onde eu
estava.
         As passadas ficaram mais altas, mais inquietas e mais sinistras. Começou a bater nela essas
reverberações infernais e mais enigmáticas que as que eu tinha ouvido em minha segunda visita ao
porão. Reverberações amortizadas que pareciam  ecoar de horizontes longínquos como um trovão
distante.   Mas   agora   o   volume   aumentou   umas   cem  vezes   e   o   timbre   adquiriu   novas   e   terríficas

                                                              9

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implicações.   Posso   comparar   o   som   com   algo   mais   adequadamente   que   o   urro   dalgum   terrível
monstro      da   desaparecida      era  dos   sáurios,   quando     horrores    primitivos   vagavam        na   Terra   e  os
homens-serpente         de   Valúsia    plantaram     a  pedra   fundamental        de  magia     malévola.     Tal   urro,  se
expandindo a alturas ensurdecedoras, jamais alcançado por alguma garganta orgânica conhecida era
análogo a este estrepitoso som. Ousarei destrancar a porta e enfrentar a violenta investida do além?

                                                        29 de abril

         Achei   a   chave   da   abóbada.   No   meio-dia   a   encontrei   no   pequeno   aposento   fechado,   sob   o
entulho     numa     gaveta    da   antiga    escrivaninha,     como     se  nalgum      esforço    prà   esconder.    Estava
embrulhada num jornal se deteriorando datado de 31 de outubro de 1872 mas havia uma envoltura
interna     de  pele   seca,   evidentemente       o  couro    dalgum     réptil   desconhecido,       que   ostentava    uma
mensagem em baixo latim na mesma garatuja escrita nos cadernos que encontrei. Como eu tinha
pensado, a fechadura e a chave eram imensamente mais velhas que a abóbada. Não pude calcular
essa   diferença   de   idade.   O   velho   Claes   van   der  Heyl   as   tinha   prontas   pra   algo   que   ele,   ou   seus
descendentes, pretendia fazer. Decifrando a mensagem latina tremi num novo acesso de angustioso
terror e indefinível espanto.
         Os segredos da monstruosa Unidade primeva. Folheei o ilegível texto cujas palavras secretas
relacionam as coisas ocultas que existiam antes do homem. Coisas que ninguém da Terra deveria
aprender, pra não ter seu sossego perdido pra sempre. Isso jamais me deveria ter sido revelado. Pra
Yian-Ho,   aquela   perdida   e   proibida   cidade   de  eras   incontáveis,   cuja   localização   não   pode   ser
revelada. Recebi a autêntico cerne desse conjunto  como nenhum outro em vida. Ali tenho de me
estabelecer e, assim, adquirir aquela sabedoria que eu queria, alegremente, perder. Mas não posso.
Aprendi a atravessar um buraco que não deveria ser atravessado e tenho de invocar da Terra o que
não deveria ser despertado nem chamado. E o que foi enviado pra me acompanhar não descansará
até que eu ou os seguintes façam o que deve ser feito.
         Daquilo que despertei e trago comigo não posso me separar. Assim está escrito no Livro das
Coisas Ocultas. O que trago estará entrelaçado de forma terrível a meu redor e, se eu não viver pra
cumprir sua ordem, essas crianças ao redor, nascidas e a nascer, virão depois de mim até a ordem
ter sido cumprida. Estranha pode  ser sua junção, e terrível a ajuda podem convocar até o fim ser
alcançado. Em terras desconhecidas e ignotas se deve procurar e uma casa deve ser construída pros
guardiões exteriores.
         Esta é a chave daquela fechadura que me foi dada na cidade terrível, ancestral e proibida de
Yian-Ho.   A   fechadura   que   eu   ou   os   meus   têm   que   colocar   na   entrada   do  que   for   encontrado.   E
poderão os senhores de Yaddith me socorrer, ou a ele, que tem que fixar aquela fechadura no lugar
e chavear.
         Tal   era   a   mensagem   que,   uma   vez   que   a   tinha  lido,   parecia   ter   conhecido   antes.   Agora,
escrevendo estas palavras, a chave está atrás de mim. A contemplei com medo e fascínio, sem ter
palavra   pra   descrever   seu   aspecto.   É   do   mesmo  refinado   metal   desconhecido   esverdeado   fosco
como   a   fechadura.   Metal   melhor   comparado   a   bronze   manchado   com   verdigris2.   Seu   formato   é

estranho   e   fantástico   e   as  pontas   em  formato   de   ataúde   do maciço   volume   de   lâminas   não   deixa
dúvida     de   que   a  fechadura     foi  bem    ajustada.  A     maçaneta     forma     grotescamente      uma    estranha
imagem inumana cujo exato traçado e identidade não pude descobrir ainda. Ao a segurar, seja qual
for   o   intervalo   de   tempo,   sinto   uma   estranha   e  anômala   agitação   no   metal   frio.   Um  estímulo   ou
pulsação muito tênue pra reconhecimento ordinário.
          Sob    a   aparição    esculpida     está   uma    baça   legenda,     usual    nesses    blasfemos     hieroglifos
siniformes3      que   eu   conhecia   tão   bem.  Só   pude   entender   o   começo,   as   palavras:   Minha   vingança

espreita...   O  início   do   texto   estava   desbotado   a   ponto   de   ficar   confuso.   Há   alguma  fatalidade   no
oportuno achado da chave, pois amanhã na noite será o sabá infernal. Mas, por incrível que pareça,

2  Verdete,  verdigris:  Pigmento    antigo,  utilizado,   sobretudo, até o   século   17.  Acetato  básico   de cobre,  artificial,

Cu(CH COO)  ·2Cu(OH)
        3      2          2
3 Siniforme: Em formato chinês

                                                               10

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em toda essa horrorosa expectativa, a questão do nome Sleght me aborrece cada vez mais. Por que
eu deveria temer ver nisso uma conexão com os van der Heyls?

                                       Véspera de Valpúrgis, 30 de abril

         Chegou      a  hora.   Despertei    ontem    na  noite  e   vi  a  chave    brilhando    com   um    esplendor
esverdeado lúrido, aquele mesmo verde mórbido que vi nos olhos e pele de certos retratos aqui, na
fechadura chocante e na chave, no menir monstruoso da colina e em mil outros intervalos de minha
consciência.   Havia   sussurros   estridentes   no   ar,   cochichos   sibilantes   como   os   do   vento   ao   redor
daquele cromeleche terrível. Algo falou a mim do gélido éter de lugar, dizendo Chegou a hora. É
um   presságio,   e   rio   de   meus   próprios   medos.   Eu   não tinha  as   palavras  terríveis   e  os   Sete   Sinais
Perdidos   de   Terror,   o   poder   coercitivo   dalgum   Morador   no   cosmo   ou   no   espaço   ignoto?   Não
hesitarei mais.
         O   céu   está   muito   escuro,   como   se   uma   formidável   tempestade   estivesse   chegando.   Uma
tempestade até maior que a da noite em que cheguei àqui, uns quinze dias atrás. Da aldeia, menos
que   uma   milha   adiante,   ouvi   um balbucio   estranho   e   desacostumado.   Era,   como  pensei,   aqueles
idiotas, pobres degenerados, que compartilham o segredo e mantém o terrível sabá na colina.
         Aqui na casa as sombras se ajuntam densamente. Na escuridão o céu diante de mim quase
brilhou com uma luz esverdeada própria. Entretanto não fui ao porão. É melhor esperar, pra evitar
que    o  ruído   daqueles    murmúrios      e resfolegares,     essas   fugidias   e abafadas     reverberações,     me
enervem antes que eu possa destrancar a porta fatal.
         O   que   encontrarei   e   o   que   farei   só   tenho   uma  vaga   idéia.   Encontrarei   minha   missão   na
própria abóbada ou terei de escavar mais profundamente no coração noturno de nosso planeta? Há
coisas que ainda não entendo ou, pelo menos, prefiro não entender, apesar duma sensação terrível,
crescente e inexplicada de antiga familiaridade com esta casa medonha. Por exemplo, aquela calha
que conduz a baixo do pequeno quarto fechado. Mas creio que a ala com a abóbada se estende até a
colina.

                                                     6h da tarde

         Olhando as janelas norte posso ver um grupo de aldeãos na colina. Parecem desavisados do
céu ameaçador e estão cavando perto do grande menir central. Me ocorreu que estão trabalhando
naquela pedra obtusa escavando naquele lugar o que parece ser a entrada dum afilado túnel. O que
acontecerá?      Quanto     dos  antigos    ritos  de  sabá   retiveram     essas  pessoas?     Aquela    chave    brilha
horrivelmente,   não   é   imaginação.   A   usarei   como  deve   ser   usada?   Outro  assunto   me   perturbou
muito. Folheando nervosamente um livro na biblioteca descobri uma mais ampla forma do nome
que   arreliou   minha   memória   tão   penosamente:   Trintje,   esposa   de   Adriaen   Sleght.   Adriaen   me
conduz ao mais remoto da memória.

                                                      Meia-noite

         O    horror    está  solto   mas    não    devo   desanimar.     A    tempestade     desabou     furiosa    num
pandemônio   e   raios   atingiram   a   colina   três   vezes.   Contudo,   os   híbridos   e   disformes   aldeãos   se
ajuntaram dentro do cromeleche. Os posso ver nos relâmpagos quase constantes. As grandes pedras
eretas surgem lamentavelmente com uma luminosidade verde fosco que os revela até mesmo sem
raio. Os repiques de trovão são ensurdecedores e todos parecem responder horrivelmente a algum
comando desconhecido. Enquanto eu escrevia as criaturas na colina começaram a cantar, uivar e
gritar numa degenerada e simiesca versão do ritual antigo. O aguaceiro caía como uma inundação,
contudo eles saltavam e emitiam sons num tipo de êxtase diabólico.
         — Iä Shub-Niggurath!
         — A cabra com mil filhotes!
         Mas o pior está dentro da casa. Mesmo agora comecei ouvir sons do porão. São os o ruído
daqueles murmúrios e resfolegares, as fugidias e abafadas reverberações dentro da abóbada.

                                                            11

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         Recordação      vem    e  vai.   O   nome    de   Adriaen    Sleght    bate  estranhamente      em    minha
consciência.   O   genro   de   Dirck   van   der   Heyl... Sua   criança   neta   do   velho   Dirck   e   bisneto   de
Abaddon Corey...

                                                      Depois

         Deus misericordioso! Afinal lembrei onde vi aquele nome. Sei, e estou cravejado de horror.
Todos estão perdidos...
         A chave começou a aquecer quando minha mão esquerda nervosamente a empunhava. Às
vezes aquele acelerar vago ou pulsar são tão distintos que posso sentir quase o movimento de metal
vivo. Veio de Yian-Ho prum propósito terrível e, pra mim, o qual todos também souberam tarde
demais, que na coisa fluía o sangue de van der Heyl, que respinga nos Sleght em minha própria
linhagem. Veio a horrível tarefa de cumprir aquele propósito...
         Minha coragem e curiosidade minguaram. Sei o horror que existe além que porta férrea. Se
Claes van der Heyl era meu antepassado é preciso que eu expie seu pecado inominável? Não irei.
Juro que não!... (a escrita aqui prossegue indefinidamente)... Muito tarde. Não posso me ajudar. A
garra negra se materializou. Fui arrastado ao porão...

                                                          12
======================================================================
Fontes:

www.sitelovecraft.com                                                                     de3103@yahoo.com.

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