ASSOMBRAÇÕES
Por: Edward Bulwer-Lytton
![]() | |
Edward Bulwer-Lytton |
Um amigo meu, homem de letras e filósofo, disse-me um dia, meio
zombeteiro, meio sério: “Adivinhe! Desde que nos vimos pela última vez,
descobri uma casa assombrada no meio de Londres.”
“Assombrada de verdade? E pelo quê? Fantasmas?”
“Bem, não sei; tudo que sei é o seguinte: seis semanas atrás, minha mu-
lher e eu estávamos à procura de um apartamento mobiliado. Ao passar por
uma rua tranqüila, vimos na janela de uma das casas: „Apartamentos mobili-
ados‟. O lugar nos convinha; entramos na casa, gostamos dos aposentos,
mudamos para eles na semana seguinte... e os abandonamos no terceiro dia.
Nada no mundo poderia ter convencido minha mulher a permanecer mais
tempo; e não me surpreende.”
“E o que vocês viram?”
“Perdão; não quero ser ridicularizado como um visionário supersticio-
so, nem, por outro lado, poderia pedir-lhe aceitar, sob minha palavra, aquilo
que você considerasse inacreditável a menos que seus sentidos o compro-
vassem. A única coisa que posso lhe dizer é que não foi tanto o que vimos
ou ouvimos (pois você poderia muito bem imaginar que fôramos ludibria-
dos por nossa própria imaginação vivida ou vítimas da impostura de ou-
trem) que nos expulsou quanto um terror indefinível que nos tomava sem-
pre que passávamos pela porta de um determinado quarto vazio, no qual
nada víamos nem ouvíamos. E o mais espantoso de tudo foi que, pela pri-
meira vez em minha vida, concordei com minha mulher, por tola que ela
seja, e admiti, após a terceira noite, ser impossível ficar mais um dia naquela
casa. Assim, na quarta manhã, chamei a mulher que cuidava da casa e nos
assistia e disse-lhe que os aposentos não nos serviam e que provavelmente
não ficaríamos ali no restante da semana. Ela disse secamente: „Sei por quê:
vocês ficaram mais tempo do que os outros inquilinos. Poucos ficam além
da segunda noite; ninguém antes de vocês ficou até uma terceira. Mas supo-
nho que eles foram muito gentis com vocês‟.”
“Eles quem?, perguntei, tentando sorrir.”
“Ora, os que assombram a casa, sejam quem forem. Eles não me in-
comodam; lembro-me deles há muitos anos, quando morei nesta casa, não
como criada; mas sei que me matarão algum dia. Não me importo. Sou ve-
lha e morrerei logo, mesmo; e então estarei com eles e ainda nesta casa.”
“A mulher falava com sombria tranqüilidade, mas uma espécie de te-
mor me impeliu a interromper a conversação. Paguei a semana de aluguel, e
minha mulher e eu nos sentimos afortunados por pagarmos só pela estadia.”
“Você despertou minha curiosidade”, disse eu. “Nada me agradaria
mais do que dormir em uma casa assombrada. Por favor, dê-me o endereço
daquela que você abandonou tão vergonhosamente.”
Meu amigo deu o endereço e, quando nos despedimos, fui imediata-
mente para a casa indicada.
Ela está situada na parte norte da Oxford Street (em uma travessa sem
movimento, porém respeitável). Encontrei a casa fechada, sem nenhum car-
taz na janela, e ninguém respondeu às minhas batidas na porta. Quando es-
tava me afastando, um desses meninos que recolhem garrafas nas vizinhan-
ças disse-me: “O senhor quer falar com alguém daquela casa?”
“Sim, soube que ela estava para alugar.”
“Alugar! Ora, a mulher que cuidava dela está morta. Morreu há três
semanas e não há ninguém lá, embora o sr. J. a tenha oferecido a tanta gente.
Ele ofereceu-a à minha mãe, que lhe traz carvão, na semana passada, apenas
em troca de abrir e fechar as janelas, mas ela não quis.”
“Não quis! E por quê?”
“A casa é mal-assombrada; e a velha que cuidava dela foi encontrada
morta na cama, com os olhos arregalados. Dizem que o diabo a estrangu-
lou.”
“Bobagem! Você falou sobre o sr. J. Ele é o dono da casa?”
“É.”
“Onde ele mora? Quem é ele? O que faz?”
“Nada em particular, senhor; é solteiro.”
Dei ao menino uma gorjeta em paga de suas informações generosas e
dirigi-me ao sr. J, na rua G, que ficava perto da rua da famosa casa mal-
assombrada. Tive a sorte de encontrar o sr. J. em casa, um homem de idade,
com uma fisionomia inteligente e maneiras agradáveis.
Imediatamente disse-lhe meu nome e minha profissão. Contei que ou-
vira dizer que a casa era assombrada, que queria muito examinar uma casa
com uma reputação tão estranha, que ficaria imensamente agradecido se me
permitisse alugá-la, embora somente por uma noite. Estava disposto a pagar
o que ele pedisse por essa concessão. “Senhor”, disse o sr. J., com grande
cortesia, “a casa está a sua disposição, pelo tempo, curto ou longo, que o
senhor desejar. Alugá-la está fora de questão. O favor é o senhor quem me
prestará, se puder descobrir a causa dos estranhos fenômenos que até agora
a privou de todo o seu valor. Não posso alugá-la, por que não consigo se-
quer um criado para mantê-la em ordem ou atender à porta. Infelizmente a
casa é assombrada, se me permite usar essa expressão, não apenas à noite,
mas também de dia, embora à noite as perturbações sejam mais desagradá-
veis e por vezes mais amedrontadoras. A pobre velha que nela morreu há
três semanas era pobre e eu a tinha tirado de um asilo, pois, em sua infância,
fora conhecida por alguém de minha família e, em dias melhores, alugara
aquela casa de meu tio. Era bem educada e equilibrada — a única pessoa
que pude jamais convencer a ficar na casa. De fato, desde sua morte, que foi
súbita, e a autópsia, que chamou a atenção nas vizinhanças, perdi de tal mo-
do as esperanças de encontrar uma pessoa para tomar conta da casa, e mui-
to menos um inquilino, que de bom grado a cederia por um ano, sem paga-
mento de aluguel, a qualquer um que pagasse seus impostos e taxas.”
“Há quanto tempo a casa adquiriu essa característica sinistra?”
“Sei muito pouco sobre isso, mas há muitos anos. A velha senhora de
quem lhe falei disse que ela era assombrada quando alugou-a trinta ou qua-
renta anos atrás. Acontece que passei minha vida nas Índias Orientais, como
funcionário público da Companhia. Retornei à Inglaterra no ano passado,
ao herdar a fortuna de um tio, na qual se inclui a casa em questão. Encon-
trei-a lacrada e desabitada. Disseram-me que era mal-assombrada, que nin-
guém queria morar nela. Não levei a sério uma história tão tola. Gastei al-
gum dinheiro em sua recuperação, acrescentei à sua mobília antiquada al-
gumas peças modernas, anunciei-a e consegui alugá-la por um ano. Era um
coronel aposentado a meio-soldo. Ele entrou com sua família, um filho e
uma filha e quatro ou cinco criados; todos eles deixaram a casa no dia se-
guinte, e embora cada um deles declarasse ter visto algo diferente do que
assustara os outros, havia algo de igualmente terrível para todos. Não pude
em sã consciência processar, nem mesmo censurar o coronel por sua quebra
de contrato. Coloquei então a velha senhora de quem lhe falei e dei-lhe li-
cença para alugar aposentos da casa. Nunca tive um inquilino que ficasse
mais de três dias. Não lhe conto suas histórias — não houve dois inquilinos
que tenham presenciado exatamente o mesmo fenômeno. É melhor o se-
nhor julgar por si mesmo do que entrar na casa com a imaginação influenci-
ada por narrativas anteriores; esteja somente preparado para ver e ouvir al-
guma coisa e tome as precauções que desejar.”
“O senhor nunca teve a curiosidade de passar uma noite naquela ca-
sa?”
“Tive. Passei não uma noite, mas três horas em plena luz do dia naque-
la casa. Minha curiosidade não está satisfeita, mas reprimida. Não tenho ne-
nhum desejo de repetir a experiência. O senhor não pode, compreenda,
queixar-se de que não sou suficientemente franco; e a menos que seu inte-
resse seja extremo e seus nervos excepcionalmente fortes, com toda sinceri-
dade aconselho-o a não passar uma noite naquela casa.”
“Meu interesse é muito grande”, disse-lhe eu, “e embora somente um
covarde possa vangloriar-se de seus nervos em situações inteiramente des-
conhecidas para si, os meus têm sido temperados em tantos tipos diferentes
de perigo que tenho o direito de confiar neles — até mesmo em uma casa
mal-assombrada.”
O sr. J. não disse muito mais; pegou de sua escrivaninha as chaves da
casa, deu-as para mim e eu, agradecendo-lhe vivamente sua franqueza e cor-
tês assentimento a meu desejo, fui embora com meu troféu.
Impaciente por iniciar a experiência, assim que cheguei a minha casa
chamei meu criado de confiança — um jovem de espírito alegre, destemido
e tão isento de superstições quanto se possa conceber.
“F.”, disse eu, “você está lembrado de como ficamos desapontados
por não encontrar um fantasma naquele velho castelo na Alemanha, que
diziam ser assombrado por um fantasma sem cabeça? Bem, eu soube de
uma casa em Londres que, segundo espero, é assombrada de verdade. Pre-
tendo dormir lá hoje à noite. Pelo que ouvi, não há dúvida de que algo se
fará ver ou ouvir — algo, talvez, terrivelmente aterrorizante. Você não acha
que, se eu levar você comigo, poderei contar com sua presença de espírito,
aconteça o que for?”
“Sem dúvida, senhor! Conte comigo”, respondeu F., dando um sorri-
sinho de prazer.
“Muito bem; então aqui estão as chaves da casa, e este é o endereço.
Vá agora; escolha para mim o quarto que achar melhor; e, uma vez que a
casa há semanas permanece desabitada, acenda um bom fogo na lareira, are-
je a cama, verifique, é claro, se há velas e também combustível. Leve consi-
go meu revólver e minha adaga — são armas suficientes para mim; provi-
dencie também armas para si. E, se não formos páreo para uma dúzia de
fantasmas, seremos apenas uma dupla de ingleses patéticos.”
Passei o resto do dia tão ocupado em negócios tão urgentes que não
houve tempo para pensar muito na aventura noturna na qual empenhara
minha honra. Jantei sozinho e muito tarde e, enquanto jantava, li, como de
hábito. Selecionei um dos volumes dos Ensaios de Macaulay. Pensei com
meus botões que poderia levar o livro comigo; seu estilo é tão direto e os
assuntos tão relacionados com o cotidiano que poderia servir como um an-
tídoto contra a influência de fantasias supersticiosas.
E assim, às nove e trinta da noite, mais ou menos, pus o livro no bolso
e caminhei despreocupadamente até a casa assombrada. Levei comigo meu
cão favorito — um bull-terrier muito inteligente, corajoso e alerta, um cão
que gosta muito de farejar cantos e corredores estranhos e obscuros à noite,
em busca de ratos, enfim, o melhor dos cães para um fantasma.
Era uma noite de verão, mas muito fria, o céu algo sombrio e toldado.
Havia lua, esmaecida e doentia, ainda assim uma lua. E, se as nuvens permi-
tissem, após a meia-noite, ela estaria mais brilhante.
Cheguei a casa, bati e meu criado abriu-a com um sorriso animado.
“Está tudo arranjado, senhor, e muito confortável.”
“Ah!”, disse eu, um tanto desapontado; “você não viu ou ouviu nada
fora do comum?”
“Bem, senhor, devo reconhecer que ouvi algo estranho.”
“O quê? O quê?”
“O som de passos atrás de mim; e uma ou duas vezes ruídos curtos
como sussurros junto ao meu ouvido, nada mais.”
“Você não está assustado?”
“Eu? Nem um pouco, senhor”, e seu olhar corajoso tranqüilizou-me
quanto a um ponto, isto é, que, acontecesse o que acontecesse, ele não me
abandonaria.
Estávamos no saguão, a porta de entrada fechou-se e observei então
meu cão. Inicialmente ele entrara correndo, mas recuara sorrateiramente
para a porta e estava arranhando e gemendo para sair. Após eu acariciar sua
cabeça e dirigir-lhe palavras de estímulo, o cão pareceu resignar-se e acom-
panhou-nos pela casa, mas mantendo-se junto a meus calcanhares em vez
de correr curioso à frente, como era seu hábito usual e normal em todos os
lugares estranhos. Percorremos primeiramente os aposentos subterrâneos, a
cozinha e outras dependências, especialmente a adega, na qual havia duas ou
três garrafas de vinho em uma caixa, cobertas de teias de aranha e eviden-
temente intocadas há muitos anos. Os fantasmas decididamente não gosta-
vam de vinho. Quanto ao resto, nada descobrimos de notável. Havia um
quintalzinho sombrio com muros muito altos. As pedras desse quintal eram
muito úmidas, e em virtude quer da umidade, quer da poeira e da fuligem
no pavimento, nossos passos deixaram pegadas leves por onde passamos.
E então apareceu o primeiro fenômeno estranho testemunhado por
mim naquela estranha habitação. Vi, bem à minha frente, a impressão de um
pé como que subitamente formar-se. Parei, segurei meu criado e apontei
para ela. Diante daquela pegada, tão subitamente quanto antes, fez-se uma
outra. Nós dois a vimos. Avancei rapidamente para o lugar; a pegada conti-
nuava a me anteceder, uma pegada pequena — o pé de uma criança; a im-
pressão era leve demais para que se pudesse distinguir sua forma, mas a am-
bos pareceu-nos que era a impressão de um pé descalço. Esse fenômeno
cessou quando chegamos ao muro oposto, mas não se repetiu ao retornar-
mos. Voltamos à escada e entramos nos aposentos no andar térreo, uma
sala de jantar, uma saleta pequena e um terceiro cômodo ainda menor, que
fora provavelmente ocupado por um lacaio — todos em um silêncio mortal.
Então percorremos as salas de estar, que pareciam ter sido recentemente
reformadas. Na sala da frente, sentei-me em uma poltrona. F. colocou sobre
a mesa o candelabro que acendera para nós. Mandei-o fechar a porta.
Quando ele se virou para fazê-lo, uma cadeira à minha frente moveu-se da
parede rápida e ruidosamente e postou-se a cerca de uma jarda de minha
própria cadeira, de frente para ela.
“Ora, isto é melhor do que mesas que viram”, disse eu, meio sorrindo;
e quando ri meu cão ergueu a cabeça e uivou.
F, voltando, não notara o movimento da cadeira. Ele tratava agora de
acalmar o cão. Continuei a fitar a cadeira e imaginei nela ver, em uma névoa
azulada, o contorno de uma figura humana, mas tão vaga que não permitia
certeza. O cão agora estava quieto.
“Ponha essa cadeira à minha frente”, disse eu a F., “de volta junto à
parede.”
F. obedeceu. “Foi o senhor?”, disse ele, voltando-se abruptamente.
“Eu o quê?”
“Ora, algo me golpeou. Senti-o nitidamente no ombro, exatamente a-
qui.”
“Não”, disse eu. “Mas há ilusionistas aqui, e embora não consigamos
descobrir seus truques, nós os pegaremos antes que nos assustem.”
Não permanecemos muito tempo nas salas de estar — na verdade, elas
eram tão úmidas e geladas que foi um alívio chegar ao aquecido andar supe-
rior. Trancamos as portas das salas de estar — uma precaução que, devo
dizer, tínhamos tomado com todos os aposentos que vasculháramos no an-
dar abaixo. O quarto de dormir que meu criado escolhera para mim era o
melhor, naquele andar — um quarto grande, com duas janelas que davam
para a rua. A cama de dossel, que ocupava um espaço considerável, estava
em frente ao fogo, que queimava alto e reluzente; uma porta na parede à
esquerda, entre a cama e a janela, comunicava-se com o quarto que ele esco-
lhera para si. Este era pequeno, com um sofá-cama e não tinha nenhuma
comunicação com o corredor — nenhuma porta senão a que levava ao
quarto que eu ocuparia. De cada lado da lareira havia um armário, sem fe-
chaduras, encostado à parede e coberto com o mesmo papel de parede mar-
rom apagado. Examinamos esses armários — apenas ganchos para pendu-
rar vestidos femininos e nada mais; auscultamos as paredes — decididamen-
te sólidas — externas da casa. Terminado o exame desses aposentos, aqueci-
me por uns instantes e acendi um charuto; depois, ainda acompanhado por
F., dei continuidade à vistoria. No corredor, havia uma outra porta; estava
emperrada. “Senhor”, disse meu criado, surpreso, “destranquei esta porta
juntamente com todas as outras quando vim pela primeira vez; ela não pode
ter-se trancado por dentro, pois...”
Antes que ele terminasse a frase, a porta, que nenhum de nós estava
então tocando, abriu-se silenciosamente sozinha. Trocamos um olhar por
um instante. O mesmo pensamento nos tomou: alguma mão humana podia
ser detectada aqui. Precipitei-me porta adentro, seguido de meu criado. Um
pequeno quarto sombrio e vazio: poucas caixas e cestos em um canto, uma
pequena janela com as venezianas fechadas, nem mesmo uma lareira, ne-
nhuma outra porta senão aquela pela qual entráramos; nenhum tapete, e o
soalho parecia muito velho, irregular e roído, remendado aqui e ali, como se
podia ver pelos remendos mais claros na madeira; mas nenhum ser vivo e
nenhum lugar visível no qual um ser vivo pudesse ter-se escondido. En-
quanto olhávamos em volta, a porta pela qual entráramos fechou-se tão si-
lenciosamente quanto se abrira antes: estávamos presos.
Pela primeira vez senti um arrepio de indefinível terror. Mas não meu
criado. “Ora, eles não pretendem nos armar uma cilada, senhor; eu conse-
guiria quebrar a porta ordinária com um pontapé.”
“Tente primeiro abri-la com a mão”, disse eu, afastando a vaga apreen-
são que me tomara, “enquanto abro as venezianas para ver o que há lá fora”.
Destranquei as venezianas — a janela dava para o quintalzinho descri-
to anteriormente; fora não havia nenhuma saliência — nada que interrom-
pesse o plano vertical da parede. Ninguém que saísse por aquela janela en-
contraria onde pôr os pés: ele cairia nas pedras abaixo.
F., nesse ínterim, tentava em vão abrir a porta. Virou-se então para
mim e pediu-me permissão para usar da força. E eu devo aqui fazer justiça
ao criado, que, longe de dar mostras de qualquer terror supersticioso, com
sua coragem, equilíbrio e até mesmo jovialidade em meio a circunstâncias
tão extraordinárias, conquistaram minha admiração e me fizeram congratu-
lar-me pela segurança de uma companhia tão à altura da ocasião. Dei-lhe de
bom grado a permissão solicitada. Porém, não obstante ele fosse extraordi-
nariamente forte, sua força foi tão inútil quanto seus esforços menos violen-
tos; a porta sequer mexeu com seu pontapé mais vigoroso. Sem fôlego e
ofegante, ele desistiu. Eu então também forcei a porta, igualmente em vão.
Quando desisti, fui novamente tomado daquele arrepio de terror; mas desta
vez mais frio e persistente. Senti como se algo terrível emanasse das frestas
daquele soalho corroído e enchesse a atmosfera de uma influência nefasta e
hostil à vida humana. A porta então, muito lenta e silenciosamente, abriu-se
como que por sua própria vontade. Precipitamo-nos no corredor. Vimos
uma luz fraca e volumosa — do tamanho de um corpo humano, mas in-
forme e transparente — mover-se à nossa frente e subir a escada que levava
ao sótão. Segui a luz, meu criado acompanhou-me. Ela entrou, à direita do
corredor, em um pequeno sótão, cuja porta estava aberta. Entrei no mesmo
instante. A luz então se transformou em um pequeno globo, extremamente
brilhante e nítido; pousou por um momento sobre uma cama no canto,
tremeu e desapareceu.
Aproximamo-nos da cama e a examinamos — uma cama estreita, co-
mo as que comumente se encontram em sótãos reservados aos criados. So-
bre a cômoda próxima a ela vimos um xale velho de seda desbotada, com a
agulha ainda no remendo inacabado de um rasgão. O xale estava coberto de
pó; provavelmente pertencera à velha senhora que morrera naquela casa, e
este devia ter sido seu quarto de dormir. Tive a curiosidade de abrir as gave-
tas: havia alguns poucos artigos de roupas femininas e duas cartas amarradas
com uma fita estreita de um amarelo desbotado. Tomei a liberdade de pegar
as cartas. Nada mais encontramos na sala digno de nota, nem houve outra
aparição da luz; mas ouvimos distintamente, quando nos viramos para sair,
um som de passos apressados no soalho, exatamente à nossa frente. Percor-
remos os outros sótãos (eram quatro), com os passos ainda a nos precede-
rem. Nada se via, nada havia exceto os passos. As cartas estavam em minha
mão; justamente quando eu estava descendo a escada, senti claramente que
pegavam meu pulso e um fraco e suave esforço para tiradas de mim. O úni-
co gesto que fiz foi apertá-las ainda mais, e o esforço cessou.
Retornamos ao quarto de dormir que me fora destinado, e então ob-
servei que meu cão não nos seguira quando dali havíamos saído. Ele se pos-
tara junto ao fogo, tremendo. Eu estava impaciente para examinar as cartas
e enquanto as lia meu criado abriu uma pequena caixa na qual depositara as
armas que eu lhe ordenara trazer; tirou-as, colocou-as sobre a mesa junto à
cabeceira de minha cama e então pôs-se a acalmar o cão, que, contudo, pa-
receu quase não notá-lo.
As cartas eram curtas e estavam datadas de exatamente trinta e cinco
anos atrás. Eram visivelmente de um amante a sua amada, ou de um marido
a uma jovem esposa. Não somente os termos, mas uma clara referência a
uma viagem anterior indicavam que o escritor fora um homem do mar. A
ortografia e a letra eram as de um homem de pouca instrução, mas mesmo
assim a linguagem era eloqüente. Nas expressões carinhosas havia uma es-
pécie de amor rústico, porém ardente; mas aqui e ali se liam alusões sombri-
as e vagas de algum segredo não amoroso — algum segredo aparentemente
com relação a um crime. “Devemos amar um ao outro”, era uma das frases
de que me lembro, “porque todos nos censurariam se soubessem de tudo”.
E também: “Não deixe ninguém ficar no mesmo quarto que você à noite —
você fala durante o sono”. Ou: “O que está feito está feito; e eu lhe assegu-
ro que não existe nada contra nós, a menos que o morto voltasse à vida”.
Aqui havia um comentário em uma caligrafia melhor (feminina): “Eles sa-
bem!” No fim da carta da data mais recente de todas, a mesma caligrafia
feminina escrevera estas palavras: “Desaparecido no mar em 4 de junho, no
mesmo dia em que...”
Depus as cartas e comecei a refletir sobre seu teor.
Temendo, contudo que o curso de meus pensamentos pudesse abalar
meus nervos, resolvi firmemente manter meu espírito em um estado mais
apropriado para lidar com os fenômenos extraordinários que a noite ainda
poderia trazer. Levantei-me, coloquei as cartas sobre a mesa, aticei o fogo,
que ainda estava alto e reconfortante, e abri meu Macaulay. Li bastante
tranqüilo até às onze e trinta. Então me atirei vestido na cama e disse a meu
criado que ele podia ir para seu quarto, mas permanecer acordado. Pedi-lhe
que deixasse aberta a porta entre os dois aposentos. Sozinho no quarto
mantive duas velas acesas sobre a mesa ao lado de minha cabeceira. Colo-
quei meu relógio junto às armas e calmamente retomei meu Macaulay. A
minha frente, o lume estava alto e, no tapete da lareira, provavelmente a-
dormecido, jazia o cão. Cerca de vinte minutos depois, senti um ar extre-
mamente frio passar pelo rosto, como uma brisa súbita. Imaginei que a por-
ta à minha direita, que dava para o corredor, se abrira; mas não, ela estava
fechada. Voltei então os olhos à minha esquerda e vi as chamas das velas
balançarem com força, como que sob a ação de uma golfada de vento. No
mesmo instante, o relógio ao lado do revólver deslizou suavemente da mesa
— muito lentamente, sem que qualquer mão o tocasse — e desapareceu.
Pulei da cama, agarrando o revólver com uma mão e o punhal com a outra:
eu não estava disposto a deixar que minhas armas tivessem o mesmo desti-
no do relógio. Assim armado, olhei o chão em torno: nenhum sinal do reló-
gio. Três batidas lentas e nítidas ouviram-se à cabeceira da cama; meu criado
disse em voz alta: “O senhor chamou?”
“Não; fique atento.”
O cão então levantou e sentou-se, movendo rapidamente as orelhas
para trás e para frente. Ele mantinha os olhos fixos em mim com um olhar
tão estranho que não pude afastar dele os meus. Levantou-se devagar, os
pêlos eriçados, e ficou totalmente imóvel e com o mesmo olhar fixo e feroz.
Não tive tempo, contudo, de observar atentamente o cão, pois meu criado
surgiu à porta; se vi alguma vez o terror estampado em um rosto humano,
foi essa. Eu não o teria reconhecido, caso nos encontrássemos na rua, tão
alteradas estavam suas feições. Ele passou por mim rapidamente, dizendo
em um sussurro que mal me chegou aos ouvidos: “Corra, corra! Ele está
atrás de mim!” Ele ganhou a porta para o corredor, abriu-a e precipitou-se
por ela. Segui-o até o corredor sem pensar, pedindo-lhe que parasse; mas,
sem me dar atenção, dirigiu-se à escada, agarrando-se ao balaústre e pulando
vários degraus de cada vez. Ouvi, de onde estava, a porta da rua abrir-se e
também se fechar. Eu estava só na casa assombrada.
Apenas por um instante fiquei indeciso quanto a seguir ou não meu
criado; orgulho e curiosidade, ao mesmo tempo, impediram-me de fugir
covardemente. Retornei ao meu quarto, fechando atrás de mim a porta, e
examinei cautelosamente o aposento. Nada encontrei que justificasse o ter-
ror de meu criado. Examinei-o novamente com todo cuidado, para ver se
havia alguma porta oculta. Não encontrei nenhum indício disso — nem
mesmo uma costura no papel de parede marrom desbotado com o qual o
cômodo estava revestido. Como, então, a COISA, ou seja lá o que fosse,
que tanto o assustara, conseguira entrar, exceto pelo meu próprio aposento?
Retornei ao meu quarto, fechei e tranquei a porta que abria para o inte-
rior da casa e postei-me próximo à lareira, expectante e alerta. Percebi então
que o cão se atirara a um ângulo da parede e colara-se a ela, como se esti-
vesse se esforçando por abrir caminho através dela. Aproximei-me dele e
dirigi-lhe algumas palavras; o pobre animal estava visivelmente fora de si
pelo terror. Ele mostrava todos os seus dentes, a mandíbula gotejava saliva e
certamente teria me mordido se eu o tocasse. Ele não pareceu me reconhe-
cer. Quem quer que tenha visto no jardim zoológico um coelho fascinado
por uma serpente, agachado em um canto, pode fazer uma idéia da angústia
que o cão mostrava. Procurando por todos os meios e em vão acalmar o
animal e temendo que sua mordida pudesse ser venenosa naquele estado,
tanto quanto na raiva hidrofóbica, afastei-me dele, coloquei minhas armas
sobre a mesa ao lado do fogo, sentei-me e retomei meu Macaulay.
Talvez, para não parecer em busca de crédito por coragem, ou antes
frieza, que o leitor possa julgar exagerada, eu possa ser perdoado se fizer
uma pausa para, em meu favor, fazer uma ou duas observações de cunho
pessoal.
Como julgo que a presença de espírito, ou aquilo que chamam de co-
ragem, seja exatamente proporcional à familiaridade com as circunstâncias
que levaram a ela, também devo dizer que há muito tempo conhecia todos
os experimentos que dizem respeito ao Excepcional. Eu testemunhara mui-
tos fenômenos extraordinários em diversas partes do mundo — fenômenos
a que não se daria absolutamente nenhum crédito se eu os contasse, ou seri-
am atribuídos a entes sobrenaturais. Ora, minha teoria é que o sobrenatural
é impossível, e que aquilo que chamam de sobrenatural é somente algo nas
leis da natureza que até então ignorávamos. Portanto, se um fantasma surge
à minha frente, não tenho o direito de dizer: “Então, o sobrenatural pode
existir”, mas antes, “Então, a aparição de um fantasma, ao contrário da opi-
nião corrente, está conforme as leis da natureza — isto é, não é sobrenatu-
ral”.
Ora, em tudo que até então eu havia testemunhado, e na verdade em
todos os prodígios que os diletantes do mistério em nossa época registram
como fatos, sempre se faz necessária a intervenção material pela qual, em
virtude de algumas características constitutivas, certos fenômenos estranhos
são percebidos pelos sentidos naturais.
Além disso, até mesmo o fato de se admitirem como verdadeiras as
narrativas de manifestação espiritual na América — sob a forma de música
ou outros sons, registros em papel, produzidos por nenhuma mão visível,
peças de mobília que se movem sem uma intervenção humana visível, ou a
visão ou toque de mãos concretos, aos quais não parecem pertencer quais-
quer corpos — exige que se encontre o MEIO ou ser vivo, com caracterís-
ticas constitutivas capazes de produzir tais sinais. Enfim, em todos esses
casos extraordinários, até mesmo na suposição de que não se trata de im-
postura, deve haver um ser humano como nós pelos quais, ou por meio dos
quais, os efeitos apresentados a seres humanos são produzidos. É assim
com o agora familiar fenômeno mesmerismo , ou eletrobiologia: a mente da
pessoa atingida é influenciada por um agente vivo material. Nem, supondo
verdade que um paciente mesmerizado possa responder à vontade ou passe
de um mesmerizador uma centena de quilômetros distante, é a resposta me-
nos ocasionada por um fluido material — chame-o Elétrico, chame-o Ódi-
co , ou o que seja — que tem o poder de atravessar o espaço e obstáculos,
que o efeito material é comunicado de um para o outro. Conseqüentemente,
eu acreditava que tudo quanto até aquele instante testemunhara, ou esperava
testemunhar naquela estranha casa, era criado mediante alguma intervenção
ou meio tão mortal quanto eu próprio. E essa idéia necessariamente me li-
vrara de ser tomado pelo assombro — em razão das aventuras daquela noite
extraordinária — ao qual estão sujeitos aqueles que consideram sobrenatu-
rais coisas que não se conformam às forças da natureza.
Mesmerismo, Magnetismo, Magnetismo Animal, Eletrobiologia: termos que foram cunhados
por Franz Anton Mesmer (1734-1815), médico, criador da teoria do Mesmerismo ou Magnetismo
Animal. “De todos os corpos da Natureza, é o próprio homem que com maior eficácia atua sobre
o homem”, afirma. Apesar de muito combatido em sua época, registrou desde 1773 inúmeras
curas e experiências com a movimentação de objetos inanimados. O magnetismo aceita a existên-
cia de um fluido especial, que é projetado pelo magnetizador influenciando a pessoa que o recebe.
De certa forma, precursor do moderno Hipnotismo e de grande influência na vulgarização do
Kardecismo. (N.E.)
2 Ódicforce : denominação dada em meados do século XIX para uma hipotética energia-vital ou
força da vida pelo Barão Carl von Reichenbach (1788-1869), famoso químico. (N.E.)
Como, então, minha conjectura era de que tudo que se mostrara, ou
seria mostrado aos meus sentidos, devia ter origem em algum ser humano,
dotado por constituição do poder para fazê-lo e tendo algum motivo para
tal, senti um interesse em minha teoria que, ao seu modo, era antes filosófi-
ca do que supersticiosa. E posso sinceramente dizer que meu ânimo estava
tão calmo e propício à observação quanto o de qualquer verdadeiro experi-
menta-lista, a aguardar o resultado de alguma combinação química rara, em-
bora talvez perigosa. É claro que, quanto mais impassível e distante da fan-
tasia eu mantinha minha mente, quanto mais apropriado à observação fica-
ria meu estado de espírito; portanto fixei olhos e pensamentos no forte teor
cotidiano das páginas do meu Macaulay.
Então percebi que algo se interpunha entre a página e a luz — uma
sombra toldava a página. Levantei os olhos e vi o que encontro muita difi-
culdade — e talvez me seja impossível fazê-lo — descrever.
Eram as próprias Trevas a tomar forma no ar, em um contorno bas-
tante vago. Não posso dizer que era humana, contudo parecia ter forma
humana, ou antes uma sombra de um ser humano, do que qualquer outra
coisa. Assim parada, completamente separada e distinta do ar e da luz a sua
volta, suas dimensões pareciam gigantescas e seu topo chegava ao teto. En-
quanto eu a fitava, uma sensação de frio intenso invadiu-me. Um iceberg di-
ante de mim não poderia ter-me enregelado mais; nem poderia o frio de um
iceberg ter sido mais material. Estou convicto de que não era o frio causado
pelo medo. Enquanto ainda estava a fitá-la, julguei — mas não posso afir-
má-lo com precisão — distinguir dois olhos olhando-me do alto. Por um
momento, imaginei distingui-los claramente; no seguinte, pareceram desfa-
zer-se; mas mesmo então dois raios de luz azul clara luziram em meio às
trevas, como que da altura em que eu meio acreditara, meio duvidara ter
visto os olhos.
Tentei falar, minha voz emudecera completamente; eu conseguia ape-
nas pensar com meus botões: “Isso é medo? Isso não é medo!” Tentei le-
vantar-me, em vão; senti como se uma força irresistível me empurrasse para
baixo. Na verdade, minha impressão era a de um imenso e supremo Poder a
se opor a qualquer ato voluntário — aquela sensação de total impotência
para lidar com uma força superior à de qualquer homem, que se pode sentir
fisicamente em uma tempestade no mar, em uma conflagração ou até mes-
mo quando nos deparamos com algum animal feroz, ou antes, talvez, com
um tubarão no oceano — era esse o sentimento moral que me tornara. O-
posta à minha vontade havia uma outra, tão superior à minha quanto são
materialmente superiores à força humana uma tempestade, um incêndio ou
um tubarão.
E então, enquanto essa impressão crescia em mim — veio, por fim, o
terror — um terror tal que nenhuma palavra pode descrever. Ainda assim
mantive meu orgulho, se não coragem; e em minha própria mente dizia: “Is-
so é terror, mas não medo; se eu não sentir medo, ele não poderá me fazer
mal; minha razão rejeita essa coisa, trata-se de uma ilusão — não sinto me-
do”. Com um esforço violento consegui por fim estender a mão para a arma
sobre a mesa; quando o fiz, recebi no braço e no ombro um estranho golpe,
e meu braço caiu ao lado, inerte. E então, para aumentar meu terror, a luz
começou a diminuir lentamente nas velas; elas não foram, por assim dizer,
apagadas, mas sua chama parecia recuar gradualmente; o mesmo ocorreu
com o fogo — a luz era extraída das labaredas; em poucos minutos, o quar-
to estava em completa escuridão.
O pavor que se abateu sobre mim, pavor de estar assim na escuridão
com aquela Coisa escura, cujo poder era sentido de modo tão intenso, pro-
vocou uma reação de coragem. Na verdade, o terror alcançara aquele clímax
no qual todas as minhas faculdades me abandonariam ou eu romperia o en-
cantamento. Eu o rompi. Consegui finalmente emitir um som, não obstante
este fosse um grito. Lembro-me de ter jorrado de minha boca algo como:
“Não tenho medo, minha alma não teme”; e ao mesmo tempo encontrei
forças para levantar-me. Ainda naquelas densas trevas, corri para uma das
janelas, com um repelão abri a cortina e empurrei as venezianas; meu pri-
meiro pensamento foi: LUZ. E quando vi a luz no alto, clara e calma, senti
uma alegria que quase contrabalançou o terror anterior. Havia lua, havia
também a luz dos lampiões de gás na rua deserta e silenciosa. Voltei-me pa-
ra olhar o quarto; o luar penetrava sua sombra de modo muito fraco e par-
cial — mas ainda assim havia luz. A Coisa escura, fosse o que fosse, dissi-
pou-se — salvo pelo fato de que eu ainda conseguia ver uma sombra vaga,
que parecia uma sombra daquela nuvem escura, junto à parede oposta.
Meus olhos então pousaram na mesa, e debaixo dela (que não estava
coberta por toalha ou cobertura — uma velha mesa redonda de mogno)
levantou-se uma mão, visível somente até o punho. Era, aparentemente, de
carne e osso como a minha, mas a mão de uma pessoa velha — magra, en-
rugada e pequena, também; a mão de uma mulher. Aquela mão muito sua-
vemente fechou-se em volta das duas cartas que jaziam sobre a mesa; mão e
cartas desaparecem. Soaram então as mesmas três batidas fortes que eu ou-
vira na cabeceira, antes do início daquela extraordinária cena. Quando aque-
les sons lentamente cessaram, senti que o quarto todo vibrava; e na extremi-
dade do quarto levantaram-se, como que do chão, centelhas e glóbulos co-
mo bolhas multicores de luz — verdes, amarelas, rubras, azuis. Para cima e
para baixo, para cá e para lá, aqui e ali, aparentando fogos-fátuos, as cente-
lhas moviam-se aleatoriamente, ora lentas, ora rápidas. Uma cadeira (repe-
tindo o ocorrido com a da sala de estar no andar debaixo) moveu-se de jun-
to à parede, sem qualquer intervenção material visível e colocou-se no lado
oposto da mesa. Subitamente, da cadeira brotou uma forma — uma forma
feminina. Era tão nítida quanto um ser vivente — espectral como uma for-
ma morta. O rosto era de uma jovem, com uma estranha beleza enlutada; o
pescoço e os ombros estavam nus, o resto vestia um manto largo de um
branco nebuloso. Ela começou a alisar seus longos cabelos dourados, que
lhe caíam aos ombros; seus olhos não estavam voltados para mim, mas para
a porta; pareciam tentar ouvir, observar, esperar. A sombra da névoa escura
no fundo tornou-se mais intensa; e novamente julguei ver os olhos brilhan-
do do alto da sombra — olhos que miravam fixamente aquela forma.
Como que da porta, embora ela não estivesse aberta, brotou uma outra
aparição, igualmente nítida, igualmente espectral — a forma de um homem,
um homem jovem. Estava vestido à moda do século passado, ou antes de
um modo semelhante (pois tanto a forma masculina quanto a feminina, em-
bora nítidas, eram obviamente imateriais, impalpáveis, simulacros, fantas-
mas); e havia algo de incongruente, grotesco, até mesmo amedrontador no
contraste entre o requinte elaborado, a precisão gentil daquela vestimenta
fora de moda, com seus franzidos, suas rendas e fivelas, e o aspecto cadavé-
rico e a imobilidade espectral de seu portador flutuante. Exatamente quando
a forma masculina aproximava-se da feminina, a sombra escura avançou de
junto à parede, todas três, por um momento, envoltas em escuridão. Quan-
do a luz pálida retornou, os dois fantasmas que estavam ocultos na sombra
surgiram lado a lado; e, no peito da visão feminina, via-se uma mancha de
sangue; o fantasma masculino apoiou-se em sua espada espectral, o sangue a
gotejar rapidamente dos franzidos, da renda; e o negrume da Forma inter-
mediária engoliu a ambos — e desapareceram. E novamente as bolhas de
luz moveram-se rapidamente, adejaram e flutuaram, tornando-se cada vez
mais densas e, seus movimentos, mais desordenados.
A porta do móvel à direita da lareira abriu-se então e da fresta surgiu a
figura de uma mulher idosa. Ela portava cartas na mão — as mesmas cartas
sobre as quais eu vira a Mão se fechar; e atrás dela ouvi passos. Ela virou-se
como se a ouvir e então abriu as cartas e pareceu lê-las; e sobre seu ombro
vi um rosto lívido, o rosto semelhante a um homem há muito tempo afoga-
do — inchado, esbranquiçado, com algas entrelaçadas em seus cabelos en-
sopados; e a seus pés jazia uma forma semelhante a um cadáver, e atrás do
cadáver escondia-se uma criança, uma criança terrivelmente esquálida, de
rosto encovado e olhos amedrontados. E enquanto eu olhava para o rosto
da mulher idosa, as rugas e as linhas desapareceram e ele transformou-se em
um rosto jovem — de olhos duros, opacos, mas ainda assim jovens; e a
Sombra precipitou-se e envolveu em escuridão aqueles fantasmas, como
havia feito com os anteriores.
Então, nada restou senão a Sombra, e sobre ela meus olhos fixaram-se
até que novamente os olhos brotaram da Sombra — olhos maus, olhos de
serpente. E as bolhas de luz novamente surgiram e caíram, e em seus mo-
vimentos desordenados, irregulares, turbulentos, fundiram-se com o pálido
luar. E então, desses mesmos glóbulos, como que da casca de um ovo, jor-
raram coisas monstruosas; o ar encheu-se delas; larvas tão exangues e tão
horrendas que não consigo absolutamente descrevê-las, exceto para lembrar
o leitor da vida fervilhante que o microscópio solar põe diante de seus olhos
em uma gota d‟água — coisas transparentes, flexíveis, ágeis, caçando-se mu-
tuamente, devorando-se mutuamente — formas nunca antes contempladas
a olho nu. Assim como as formas eram assimétricas, também seus movi-
mentos eram desordenados. Em suas errâncias nada havia de jovial; contor-
navam-se incessantemente, cada vez mais densas e velozes, pululando sobre
minha cabeça, rastejavam sobre meu braço direito, distendido em uma or-
dem involuntária contra todos os seres vis. Por vezes eu sentia um toque,
não da Sombra, mas de mãos invisíveis. Senti uma vez o aperto como de
dedos frios e macios em meu pescoço. Eu ainda estava igualmente consci-
ente de que, se cedesse ao medo, correria perigo físico e concentrei todas as
minhas faculdades unicamente na vontade obstinada de resistência. E desvi-
ei meus olhos da Sombra — sobretudo daqueles estranhos olhos de serpen-
te — olhos que agora haviam se tornado totalmente visíveis. Pois ali, e em
nada mais do que me rodeava, eu sabia existir uma VONTADE, e uma
vontade do mal em ação, intenso, original, que poderia esmagar a minha.
A atmosfera opaca do quarto começou então a avermelhar-se, como
que à aproximação de uma conflagração. As larvas tornaram-se vividas co-
mo as coisas que vivem no fogo. O quarto novamente vibrava; novamente
ouviram-se as três batidas espaçadas; e novamente todas as coisas foram
engolidas pelas trevas da Sombra escura, como se daquela escuridão tudo
surgira e a ela tudo retornasse.
Quando a penumbra diminuiu, a Sombra desapareceu completamente.
Tão lentamente quanto seu recuo, as chamas levantaram-se de novo nas
velas sobre a mesa e também na lareira. O quarto todo se tornou, uma vez
mais, calmo e sadiamente visível.
As duas portas ainda estavam fechadas, e a porta que se comunicava
com o quarto do criado, ainda trancada. No canto da parede ao qual ele tão
convulsivamente se colara, jazia o cão. Chamei-o; ele não se moveu. Apro-
ximei-me. O animal estava morto, os olhos proeminentes, a língua de fora,
as mandíbulas espumantes. Peguei-o nos braços, levei-o para junto da lareira.
Eu estava desolado pela perda de meu predileto e censurei-me severamente;
sentia-me culpado por sua morte. Supus que ele morrera de pavor. Mas qual
foi minha surpresa ao descobrir que, na verdade, seu pescoço estava que-
brado. Isso fora feito no escuro? Não teria isso sido feito por uma mão tão
humana quanto a minha? Não haveria necessariamente uma intervenção
humana durante todo o tempo naquele quarto? Havia bons motivos para
achar que sim. Não tinha certeza. Posso apenas registrar fielmente o fato; o
leitor tirará suas próprias conclusões.
Uma outra circunstância surpreendente: meu relógio de pulso fora de-
volvido à mesa da qual fora retirado tão misteriosamente; mas parará no
mesmo instante em que desaparecera e, a despeito dos esforços do fabrican-
te, desde então não voltou a funcionar normalmente. Isto é, funciona de
modo errático por algumas horas e depois pára. Ficou inutilizado.
Nada mais aconteceu no resto da noite. Na verdade, logo amanheceu.
Deixei a casa somente quando já ia adiantado o dia. Antes disso, inspecionei
a pequena sala vazia na qual meu criado e eu havíamos sido aprisionados
por algum tempo. Eu tinha uma forte impressão — não sei explicar por quê
— de que nela se originara o mecanismo dos fenômenos — por assim dizer
— que vivenciara em meu quarto. E embora eu entrasse nele agora, em ple-
na luz do dia, com o sol a penetrar pela janela embaçada, ainda sentia subir
pelos pés o terror que sentira pela primeira vez na noite anterior e que fora
tão exacerbado pelo que se passara em meu próprio quarto. Não consegui,
com efeito, permanecer mais do que meio minuto dentro daquelas paredes.
Desci a escada e novamente ouvi um passo à minha frente; e quando abri a
porta da rua julguei ouvir distintamente uma risada bem baixa. Fui até mi-
nha casa, contando em encontrar lá meu criado fujão. Mas ele não aparecera
e por três dias não deu notícias, quando então recebi uma carta sua, datada
de Liverpool e que dizia:
“Prezado Senhor, humildemente peço desculpas, embora poucas espe-
ranças tenha de que o senhor me julgará merecedor delas, a menos — Deus
não permita — que o senhor tenha visto o mesmo que eu. Sinto que anos se
passarão antes que eu me recupere, e acho que não conseguirei trabalhar
nunca mais. Portanto, vou ficar com meu cunhado em Melbourne. O navio
parte amanhã. Talvez a longa viagem me cure. Fico assustado e tremo o
tempo todo, pensando que AQUILO está me perseguindo. Humildemente
lhe peço, prezado senhor, que envie minhas roupas e o salário a que faço jus
à casa de minha mãe, em Walworth. O John sabe meu endereço”.
A carta terminava com outros tantos pedidos de desculpas, um tanto
incoerentes, e detalhes quanto aos objetos de uso sob a custódia do missi-
vista.
Essa fuga talvez dê margem a suspeita de que ele queria ir para a Aus-
trália e de que matreiramente usara o pretexto dos acontecimentos da noite
para isso. Não tenho como refutar essa conjectura; ao contrário, considero
que essa seja uma solução que pareceria a muitas pessoas a mais provável
para acontecimentos improváveis. A crença em minha própria teoria per-
manece inabalada. Retornei a casa na noite seguinte para trazer em uma car-
ruagem de aluguel as coisas que lá deixara e o corpo de meu pobre cão. Não
fui perturbado, nem qualquer incidente digno de nota me ocorreu, exceto
que ainda, ao subir e ao descer a escada, ouvi o mesmo som de passos à
frente. Ao deixar o local, dirigi-me à casa do sr. J. Ele estava lá. Devolvi-lhe
as chaves, disse-lhe que minha curiosidade fora plenamente satisfeita e,
quando estava para relatar rapidamente o que se passara, ele me interrom-
peu e disse, embora com muita delicadeza, que não tinha mais nenhum inte-
resse por um mistério que ninguém jamais solucionara.
Eu estava decidido a informá-lo pelo menos das duas cartas que lera,
assim como do modo extraordinário pelo qual haviam desaparecido, e então
indaguei se ele julgava que elas haviam sido endereçadas à mulher que mor-
rera na casa e se havia algo em seu passado que pudesse confirmar as sus-
peitas sombrias que elas haviam levantado. O sr. J. pareceu assustado e, a-
pós ponderar por alguns momentos, respondeu: “Não sei muito a respeito
do passado da mulher, salvo, como lhe disse anteriormente, que sua família
era conhecida da minha. Mas o senhor reaviva algumas vagas reminiscências
desfavoráveis a ela. Farei algumas investigações e o informarei do resultado.
Mesmo assim, ainda que pudéssemos aceitar a superstição popular de que
uma pessoa que fora ou o criminoso ou a vítima de crimes terríveis em vida
conseguisse revisitar, como um espírito inquieto, o palco no qual esses cri-
mes haviam sido cometidos, é preciso observar que a casa estava infestada
de estranhas aparições e sons antes da morte da velha senhora... O senhor
sorri! O que o senhor diz?”
“Eu diria o seguinte: que estou convencido de que, se conseguíssemos
chegar ao fundo desses mistérios, encontraríamos uma intervenção huma-
na.”
“O quê! O senhor crê que seja tudo uma fraude? Com que finalidade?”
“Não uma fraude no sentido comum da palavra. Se eu subitamente ca-
ísse em um sono profundo, do qual o senhor não pudesse me acordar, mas
nesse sono pudesse responder a perguntas com uma exatidão que não pode-
ria fingir quando acordado, dizer-lhe quanto em dinheiro o senhor tem no
bolso; mais ainda, descrever seus próprios pensamentos; isso não é necessa-
riamente uma fraude, tanto quanto não é necessariamente algo sobrenatural.
Eu estaria, inconscientemente, sob a mesma influência hipnotizante, que me
foi comunicada à distância por um ser humano que havia adquirido poder
sobre mim mediante uma ligação anterior.”
“Mas se um hipnotizador pudesse causar um efeito assim sobre um
outro ser vivo, o senhor pode imaginar que um hipnotizador conseguiria
afetar também objetos inanimados, mover cadeiras, abrir e fechar portas?”
“Ou provocar em nossos sentidos a crença em tais efeitos, embora
nunca tivéssemos tido uma ligação com a pessoa que age sobre nós? Não. O
que é comumente chamado hipnotismo não conseguiria fazê-lo; mas pode
haver um poder afim ao hipnotismo e mais forte do que ele: o poder que
em épocas passadas era chamado de Mágico. Se esse poder pode se estender
a todos os objetos materiais inanimados, não sei dizer; mas se assim fosse
não seria contrário à natureza. Seria apenas um poder raro na natureza que
pode-ria ser dado a constituições com certas peculiaridades e desenvolvido a
um grau extraordinário mediante a prática. Que esse poder possa ser esten-
dido sobre os mortos — isto é, sobre certos pensamentos e memórias que o
morto ainda possa conservar — e obrigar, não aquilo que deveria mais pro-
priamente ser chamado ALMA e que está muito além do alcance humano,
mas antes um fantasma do que foi mais terreno neste mundo, a se tornar
visível aos nossos sentidos, é uma teoria muito antiga, embora obsoleta, so-
bre a qual eu não me arriscaria a emitir opinião. Mas não creio que o poder
seja sobrenatural. Permita-me exemplificar o que quero dizer com um expe-
rimento que Paracelso descreve como mais ou menos fácil e que o autor das
Curiosidades da Literatura cita como crível. Uma flor perece; é incinerada. Se-
jam quais forem os elementos daquela flor quando viva, eles desaparecem,
dispersam-se, não se sabe para onde; não se consegue nunca encontrá-los
ou reuni-los. Mas pode-se, por meios químicos, das cinzas dessa flor criar
um espectro dela, com a aparência que ela possuía quando viva. O mesmo
pode ocorrer com o ser humano. A alma saiu dele tanto quanto a essência
ou os elementos da flor. Ainda assim é possível obter um espectro dela.
“E esse fantasma, embora na superstição popular seja considerado a
alma daquele que partiu, não deve ser confundido com a verdadeira alma;
trata-se apenas de um eidolon da forma morta. Por conseguinte, como as his-
tórias mais bem confirmadas de fantasmas ou espíritos, o que mais nos im-
pressiona é a ausência do que consideramos alma; isto é, da inteligência su-
perior e liberta de preconceitos. Essas aparições surgem com pouco ou ne-
nhum objetivo; elas raramente falam quando surgem; se falassem, não co-
municariam idéias acima das de uma pessoa comum na terra. Os videntes
norte-americanos publicaram muitos livros sobre comunicações em prosa e
em verso, que afirmam ter sido dados sob os nomes dos mortos mais ilus-
tres — Shakespeare, Bacon e sabe-se lá mais quem. Essas comunicações,
mesmo as melhores, de forma alguma são superiores às que se obtêm dos
vivos de grande talento e educação; são imensamente inferiores ao que Ba-
con, Shakespeare e Platão disseram ou escreveram quando na Terra. Tam-
pouco — o que é mais notável — elas jamais contêm uma idéia que não
houvesse na Terra antes. Por espantosos, portanto, que tais fenômenos pos-
sam ser (a crer que sejam verdadeiros), admito que muito possa ser questio-
nado pela filosofia, mas nada que cabe à filosofia negar, isto é, nada que seja
sobrenatural. Trata-se apenas de idéias manifestadas de um modo ou de ou-
tro (ainda não descobrimos como) de um cérebro mortal para outro. Se, ao
fazê-lo, mesas movem-se sozinhas, ou formas malignas aparecem em um
círculo mágico, ou mãos sem corpos levantam e escondem objetos materiais,
ou uma Filha das Trevas, como a que me apareceu, gela nosso sangue —
ainda assim estou convencido de que são apenas intervenções comunicadas,
como que por fios elétricos, ao meu próprio cérebro pelo cérebro de um
outro. Em algumas constituições há uma química natural, e essas constitui-
ções podem produzir prodígios químicos; em outras, um fluido natural —
ou eletricidade —, e estes podem produzir prodígios elétricos.
“Mas os prodígios diferem da Ciência Normal nisto: são igualmente
sem objetivo, sem finalidade, pueris, incoerentes. Não conduzem a resulta-
dos grandiosos; e portanto o mundo não os nota, e os verdadeiros sábios
não refletiram sobre eles. Mas estou certo, de tudo que vi ou ouvi, que um
homem, tão humano quanto eu, foi sua origem primeira; e acredito que sem
consciência dos efeitos pontuais produzidos, pelo seguinte motivo: o senhor
disse que duas pessoas jamais vivenciaram a mesma coisa. Ora, veja bem;
nunca houve duas pessoas que vivenciassem exatamente o mesmo sonho.
Em uma fraude comum, o mecanismo funcionaria com vistas a efeitos qua-
se semelhantes; em uma intervenção sobrenatural concedida por Deus To-
do-Poderoso, eles certamente teriam um motivo definido. Esses fenômenos
não pertencem a nenhuma dessas categorias; na minha opinião, eles provêm
de algum cérebro agora distante; que esse cérebro não produziu voluntaria-
mente nada do que ocorreu; que o que realmente ocorre reflete apenas seus
pensamentos errantes, heterogêneos, mutáveis, incompletos; em suma, que
se trata de sonhos que esse cérebro pôs em ação e dotou de uma semi-
substância. Que esse cérebro possui um poder imenso, que pode mover ob-
jetos materiais, que é maligno e destrutivo — nisso eu acredito. Alguma for-
ça material deve ter matado meu cão; a mesma força poderia, pelo que sei,
ser suficiente para me matar, tivesse eu sido subjugado pelo terror como o
cão, não tivesse meu intelecto ou meu espírito apresentado uma resistência
compensadora em minha vontade.”
“Ele matou seu cão! Que coisa terrível! De fato, é estranho que não se
possa obrigar animal algum a ficar naquela casa; nem mesmo um gato. Não
se acham nem ratos nem camundongos lá.”
“Os instintos das criaturas irracionais detectam ameaças letais a sua e-
xistência. A razão humana tem uma percepção menos sutil, porque possui
um poder de resistência muito superior. Mas basta. O senhor compreende
minha teoria?”
“Sim, embora não inteiramente — e aceito qualquer extravagância
(com perdão da palavra), embora esquisita, de preferência a aceitar de pron-
to a idéia de fantasmas e duendes que absorvemos em nossos berços. Ainda
assim o mal feito a minha casa continua. Que diabos posso fazer com a ca-
sa?”
“Direi o que eu faria. Estou intimamente convencido de que o peque-
no quarto vazio contíguo à porta do quarto que ocupei forma um ponto de
partida ou receptáculo para as influências que assombram a casa; e aconse-
lho-o a que derrube as paredes e remova o soalho. Mais do que isso: derru-
be o quarto todo. Observei que ele está separado do corpo da casa e está
construído sobre o pequeno quintal e poderia ser removido sem prejuízo do
resto do edifício.”
“E o senhor julga que, se eu o fizesse...”
“O senhor cortaria os fios do telégrafo. Tente. Estou convencido de
que estou certo, que quase valerá as despesas, se o senhor permitir que co-
mande os trabalhos.”
“Não importa, posso arcar com os custos; quanto ao resto, permita-me
que o comunique por escrito.” Cerca de dez dias depois, recebi uma carta
do sr. J., dizendo que havia visitado a casa desde minha visita a ele; que en-
contrara as duas cartas que eu dissera ter recolocado na gaveta de onde as
tirara; que ele as lera com pressentimentos semelhantes aos meus; que pro-
cedera a uma investigação cuidadosa sobre a mulher a quem eu acertada-
mente imaginara terem elas sido escritas. Ao que parece, trinta e seis anos
atrás (um ano antes da data das cartas) ela se casara, contra a vontade de
seus parentes, com um americano de caráter suspeito — na verdade, acredi-
tava-se que ele era um pirata. Ela, por sua vez, era filha de comerciantes
muito respeitáveis e servira como babá antes de casar-se. Tinha um irmão
viúvo, que era tido por rico, com um filho de cerca de seis anos. Um mês
antes do casamento, o corpo desse irmão foi encontrado no Tâmisa, perto
da Ponte de Londres; havia, ao que parece, algumas marcas de violência em
sua garganta, mas elas não foram julgadas suficientes para se instaurar um
inquérito e o caso foi encerrado com uma declaração de “encontrado afoga-
do”.
O americano e sua mulher ficaram responsáveis pelo garoto, em virtu-
de de ter o falecido deixado à sua irmã a guarda de seu único filho — e se a
criança morresse a irmã seria a herdeira. A criança morreu cerca de seis me-
ses depois; houve suspeitas de negligência e maus-tratos. Os vizinhos teste-
munharam havê-la ouvido gritar a noite toda. O médico legal que fez o e-
xame post -mortem disse que a criança estava emaciada, como se estivesse mal-
nutrida, e o corpo estava coberto de contusões lívidas. Parece que, em uma
noite de inverno, a criança tentou fugir — arrastou-se até o quintal, tentou
escalar o muro, caiu exausta e foi encontrada sobre as pedras pela manhã,
agonizante. Porém, não obstante houvesse algumas provas de crueldade,
não se pôde alegar assassinato; e a tia e seu marido procuraram dissimular a
crueldade pela alegação de extrema teimosia e mau gênio da criança, que se
declarou ser retardada. Seja como for, com a morte do órfão, a tia herdou a
fortuna do irmão. Antes de um ano de casados, o americano deixou subita-
mente a Inglaterra e nunca mais retornou. Ele adquiriu uns navios cruzeiros,
que se perderam no Atlântico dois anos depois. A viúva ficou rica; mas re-
veses de diversos tipos lhe sobrevieram; um banco faliu, um investimento
deu prejuízo, ela envolveu-se em um negócio de pouca monta e ficou insol-
vente. Então, buscou empregos, afundando-se cada vez mais, de governanta
a faxineira, nunca permanecendo muito tempo no mesmo lugar, embora
nada se tenha jamais alegado contra seu caráter. Apesar de considerada equi-
librada, honesta e particularmente tranqüila em suas atividades, nada dava
certo para ela. Assim foi que acabou no asilo, do qual o sr. J. a tirara, para
ser encarregada da mesma casa da qual fora senhora nos primeiros anos de
sua vida de casada.
O sr. J. acrescentou que passara uma hora sozinho no quarto vazio que
eu lhe aconselhara destruir, e que seus sentimentos de pavor enquanto lá
permanecera foram tão grandes, não obstante não ouvisse nem visse nada,
que apressou-se em derrubar as paredes e remover o assoalho como eu lhe
sugerira. Ele contratara pessoas para o trabalho e começaria qualquer dia
que me aprouvesse marcar.
Marcou-se, assim, o dia. Retornei à casa assombrada, entrei no lúgubre
quarto vazio, tirei os lambris e depois o assoalho. Sob as vigas, coberto com
entulho, encontrou-se um alçapão, grande o suficiente para um homem. Ele
estava bem pregado, com parafusos e rebites de ferro. Depois de removê-
los, descemos a um quarto abaixo, de cuja existência nunca se havia suspei-
tado. Nesse quarto, houvera uma janela e um fumeiro, mas eles haviam sido
cobertos de tijolos, aparentemente muitos anos atrás. Com o auxílio de velas,
examinamos esse lugar; ele ainda conservava alguns móveis deteriorados —
três cadeiras, um banco de carvalho, uma mesa — todos no estilo de cerca
de oitenta anos antes. Havia uma cômoda contra a parede, na qual encon-
tramos, meio roídas, peças de vestimenta masculina antigas, do tipo que se
usava oitenta ou cem anos antes por um cavalheiro de posses — fivelas ca-
ras e botões de aço, como os que ainda se usam em vestes de corte, uma
bela espada. Em um colete que no passado fora adornado de renda dourada,
mas que agora estava enegrecida e suja de umidade, encontramos cinco gui-
néus, umas poucas moedas de prata e um ingresso de marfim, provavelmen-
te para um lugar de entretenimento há muito desaparecido. Mas nossa prin-
cipal descoberta foi em uma espécie de cofre de ferro fixado à parede, cuja
fechadura muito nos custou arrombar.
Nesse cofre havia três prateleiras e duas gavetas pequenas. Alinhadas
nas prateleiras havia várias garrafas de cristal hermeticamente fechadas. Elas
continham essências voláteis incolores, de cuja natureza direi somente que
não era venenosa — havia fósforo ou amônia na composição de algumas
delas. Havia também alguns tubos de vidro muito estranhos e uma haste
pequena e pontuda de ferro, com uma protuberância de cristal de rocha e
uma outra de âmbar — também uma magnetita de grande poder.
Em uma das gavetas, encontramos um retrato miniatura com moldura
de ouro, cujas cores se conservavam admiravelmente vividas, apesar do
grande espaço de tempo que provavelmente permanecera lá. O retrato era
de um homem já na meia-idade, talvez quarenta e sete ou quarenta e oito.
Era um rosto notável, impressionante. Se pudéssemos imaginar uma
serpente poderosa transformada em homem e que conservasse nos traços
humanos as características anteriores do réptil, teríamos uma idéia melhor
daquela fisionomia do que podem dar longas descrições: a largura e achata-
mento da testa, o elegante afilamento do contorno, que disfarçava a força da
mandíbula letal, os olhos longos, grandes e terríveis a brilhar, verdes como
esmeraldas, e contudo uma certa calma implacável, como que nascida da
consciência de um imenso poder.
Mecanicamente virei a miniatura para examinar seu verso e nele estava
gravado um pentagrama; no meio deste, uma escada, cujo terceiro degrau
era formado pela data 1765. Examinando-o mais detalhadamente, descobri
uma mola que, ao ser pressionada, abriu o verso da miniatura, como uma
tampa. Dentro dela estava gravado: “Marianna, para ti. Sê fiel na vida e na
morte a...” Aqui seguia um nome que não mencionarei, mas que não me era
desconhecido. Ouvira-o da boca de pessoas idosas, em minha infância, co-
mo o nome de um charlatão fascinante que fizera sensação em Londres du-
rante mais ou menos um ano e que fugira do país sob a acusação de duplo
homicídio dentro de sua própria casa: a de sua amante e de seu rival. Eu
nada disse sobre isso ao sr. J., a quem relutantemente entreguei a miniatura.
Não tivemos dificuldade em abrir a primeira gaveta dentro do cofre de
ferro; encontramos grande dificuldade em abrir a segunda: ela não estava
trancada, mas resistiu a todos os esforços, até que inserimos nas frestas a
lâmina de um formão. Quando assim a havíamos puxado, encontramos um
instrumento muito singular, de grande refinamento. Sobre um livro peque-
no e fino, ou antes um bloco, estava colocado um pires de cristal; esse pires
estava cheio de um líquido claro, e nele flutuava uma espécie de bússola,
com uma agulha que girava rapidamente; mas em vez dos pontos usuais de
uma bússola havia sete caracteres estranhos, não muito diferentes dos usa-
dos por astrólogos para indicar planetas.
Um odor singular, mas não forte nem desagradável, veio dessa gaveta,
que estava forrada de uma madeira que depois descobrimos ser aveleira.
Esse odor, qualquer que fosse sua origem, produziu um grande efeito sobre
os nervos. Todos nós o sentimos, até mesmo os dois operários que estavam
no quarto — uma sensação de formigamento e de arrepio que subia das
pontas dos dedos da mão até as raízes do cabelo. Impaciente por examinar
o bloco, removi o pires. Quando o fiz, a agulha da bússola girou com ex-
trema rapidez, e eu senti um choque que percorreu todo meu corpo e me
fez deixar cair ao chão o pires. O líquido derramou-se, o pires quebrou, a
bússola rolou pelo quarto e naquele instante as paredes oscilaram para fren-
te e para trás, como se um gigante as balançasse e agitasse. Os dois operá-
rios ficaram tão apavorados que subiram a escada pela qual havíamos desci-
do do alçapão; mas, vendo que nada mais acontecia, foram facilmente con-
vencidos a retornar.
Entrementes, eu abrira o bloco: ele estava encadernado de pele verme-
lha lisa, com um fecho de prata; continha apenas uma folha de velino espes-
so, e nessa folha estavam escritas dentro de um pentagrama duplo palavras
em antigo latim monacal, que poderiam ser traduzidas literalmente como se
segue: “Sobre todos aqueles que adentrarem estas paredes — sensíveis ou
inanimados, vivos ou mortos — e moverem a agulha, será exercida a minha
vontade! Maldita seja a casa e desinquietos sejam os seus habitantes”.
Nada mais encontramos. O sr. J. queimou o bloco e seu anátema. Ele
demoliu a parte do edifício que continha o quarto secreto e o compartimen-
to sobre ele. Teve então a coragem de habitar ele próprio a casa durante um
mês, e casa mais tranqüila e mais saudável não havia em toda Londres. Pou-
co tempo depois, ele a alugou bem, e seu inquilino não fez quaisquer quei-
xas.
0 comentários:
Postar um comentário
Poste apenas comentários construtivos , A Toca da Morgana é um espaço para energias positivas.