“O Caso de Charles Dexter Ward”
Por: H.P. Lovecraft
Fonte: “O Caso de Charles Dexter Ward”. Ed. L&PM.
Capítulo um Fonte: “O Caso de Charles Dexter Ward”. Ed. L&PM.
Um resultado e um prólogo
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E UM HOSPITAL particular para doentes mentais, nas proximidades de Providence, em
DRhode Island, desapareceu há pouco tempo uma pessoa extraordinariamente singular.
Chamava-se Charles Dexter Ward e fora internado com grande relutância do pai, o qual, pesaroso,
vira sua aberração transformar-se de mera excentricidade numa lúgubre obsessão que implicava a
possibilidade de tendências assassinas e uma mudança peculiar de sua estrutura mental. Os médicos
confessam-se bastante desconcertados com seu caso, pois apresenta singularidades de caráter
fisiológico geral e, ao mesmo tempo, psicológico.
Em primeiro lugar, o paciente parecia estranhamente mais velho do que atestavam seus vinte
e seis anos. É verdade que uma perturbação mental faz uma pessoa envelhecer depressa, mas o rosto
desse jovem assumira uma aparência grácil que só os muito idosos normalmente adquirem. Em
segundo lugar, seus processos orgânicos mostravam uma certa estranheza de proporções que não
encontrava paralelo na experiência médica. A respiração e o funcionamento cardíaco tinham uma
desconcertante falta de simetria, a voz sumira, a ponto de lhe ser impossível emitir qualquer som
mais alto do que um sussurro, a digestão era incrivelmente prolongada e reduzida ao mínimo, e as
reações nervosas aos estímulos comuns não tinham qualquer relação com tudo o que, normal ou
patológico, fora antes registrado no passado. A pele era morbidamente fria e a estrutura celular do
tecido parecia exageradamente áspera e frouxa. Até uma marca de nascença, grande e cor de oliva
sobre o quadril direito, havia desaparecido e, ao mesmo tempo, formara-se sobre seu peito uma
verruga muito peculiar, uma mancha enegrecida, da qual não havia sinal antes. Em geral, todos os
médicos concordam que em Ward os processos metabólicos estavam retardados num grau
inusitado.
Do ponto de vista psicológico, Charles Ward era singular. Sua loucura não tinha nenhuma
afinidade com qualquer caso já registrado, inclusive nos tratados mais recentes e abrangentes, e se
combinava a uma energia mental que o tornaria um gênio ou um líder não tivesse degenerado em
formas estranhas e grotescas. O doutor Willett, o médico da família Ward, afirma que toda a
capacidade mental do paciente, a julgar por sua reação às questões externas à esfera de sua
insanidade, em realidade aumentara desde que adoecera. Ward, em verdade, sempre fora um
estudioso e um apreciador de antiguidades; mas mesmo suas obras anteriores mais brilhantes não
mostravam o prodigioso domínio e a profundidade revelados durante os exames a que os psiquiatras
o submeteram. Em realidade, foi difícil conseguir sua internação legal no hospital, tão poderosa e
lúcida parecia a mente do jovem, e somente as provas apresentadas por outras pessoas e a
quantidade de lacunas anormais em seu cabedal de informações, em contraposição à sua
inteligência, permitiram que ele fosse por fim internado. Na época de seu desaparecimento era um
ávido leitor e um conversador tão grande quanto sua fraca voz lhe permitia, e observadores agudos,
incapazes de prever sua fuga, prognosticavam que ele não demoraria muito a obter a autorização
para sair do hospital.
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Somente o doutor Willett, que trouxera ao mundo Charles Ward e acompanhara o
desenvolvimento de seu corpo e espírito, parecia alarmado com a idéia de sua futura liberdade. Ele
tivera uma terrível experiência e fizera uma terrível descoberta que não ousava revelar aos colegas
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céticos. Em realidade, Willett guarda para si um pequeno mistério em seu envolvimento com o
caso. Ele foi a última pessoa a ver o paciente antes da fuga e saiu daquela derradeira entrevista num
estado de horror misturado a alívio lembrado por muitos ao ser conhecida a fuga de Ward, três
horas mais tarde. A fuga em si é um dos mistérios não solucionados do hospital do doutor Waite.
Uma janela aberta sobre uma abrupta queda de vinte metros não a explicaria; contudo, após aquela
conversa com Willett, o jovem inegavelmente desaparecera. O próprio Willett não tem explicações
satisfatórias para oferecer, embora estranhamente seu espírito pareça mais aliviado do que antes da
fuga. Muitos, em realidade, acham que ele gostaria de dizer mais coisas se acreditasse que um
número considerável de pessoas lhe daria crédito. Encontrara Ward em seu quarto, mas, pouco
depois que o médico saíra, os atendentes bateram em vão à porta. Ao abri-la, constataram que o
paciente não estava lá e só encontraram a janela aberta através da qual uma brisa gélida de abril
trouxe para dentro uma nuvem de fino pó cinza-azulado que quase os sufocou. É verdade que os
cães uivaram algumas vezes antes, mas isto foi enquanto Willett ainda estava presente; os animais
não pegaram nada e em seguida se acalmaram. O pai de Ward foi informado imediatamente por
telefone, contudo pareceu mais entristecido do que surpreso. Quando o doutor Waite foi visitá-lo
pessoalmente, o doutor Willett já havia conversado com ele e ambos negaram qualquer
conhecimento ou cumplicidade na fuga. Só foi possível obter algumas indicações de poucos amigos
íntimos de Willet e de Ward pai, e mesmo estas eram extremamente fantásticas para que se lhes
pudesse dar crédito. O único fato concreto é que até o momento não foi descoberto nenhum vestígio
do louco desaparecido.
Charles Ward amava as coisas antigas desde a infância e indubitavelmente adquirira essa
predileção por causa da antiguidade da cidade em que vivia e pelas relíquias do passado que
enchiam cada canto da velha mansão dos pais em Prospect Street, no cume da colina. Com o passar
dos anos, sua paixão pelas coisas antigas aumentava de forma que história, genealogia e o estudo da
arquitetura, do mobiliário e da arte colonial acabaram por ocupar totalmente sua esfera de
interesses. É importante lembrar estas predileções ao analisar sua loucura, pois muito embora não
constituam absolutamente seu cerne, desempenham um papel proeminente em sua forma
superficial. As lacunas de informação detectadas pêlos psiquiatras estavam todas relacionadas a
assuntos modernos e invariavelmente eram contrabalançadas por um correspondente e excessivo,
embora exteriormente disfarçado, conhecimento de assuntos do passado, revelado porém por um
hábil interrogatório: de modo que se poderia imaginar que o paciente literalmente se transferira para
uma época anterior por alguma obscura espécie de auto-hipnose. O estranho era que Ward não
parecia mais interessado pelas coisas antigas que conhecia tão bem. Aparentemente, perdera o
apreço por elas por causa da mera familiaridade, e todos os seus esforços recentes estavam
obviamente voltados para o domínio dos fatos comuns do mundo moderno que se haviam apagado
de maneira tão completa e inequívoca de seu cérebro. E ele se esforçava para esconder tal
aniquilação, mas era claro para quem o observava que todo o seu programa de leituras e
conversações era determinado por um frenético desejo de sorver os conhecimentos de sua própria
vida e da formação cultural e prática comum do século XX que ele deveria possuir pelo fato de ter
nascido em 1902 e de ter sido educado nas escolas do nosso tempo. Os psiquiatras perguntam-se
agora, tendo em vista a destruição total de seu cabedal de informações, como o paciente fugitivo
conseguira fazer frente ao complexo mundo dos nossos dias; e a opinião comum é que estaria se
escondendo numa função humilde e discreta até que seu cabedal de informações modernas pudesse
voltar ao nível normal.
O início da loucura de Ward constitui matéria de debate entre os psiquiatras. O doutor
Lyman, a eminente autoridade de Boston, situa-o entre 1919 e 1920, o último ano que o rapaz
cursara na Escola Moses Brown, quando subitamente se desviou do estudo do passado para o do
oculto e recusou preparar-se para a universidade, alegando que tinha pesquisas pessoais muito mais
importantes a realizar. Com certeza, isto foi uma decorrência da alteração dos hábitos de Ward na
época, principalmente de sua busca contínua, nos registros da cidade e entre antigos cemitérios, de
certa sepultura aberta em 1771: o túmulo de um ancestral chamado Joseph Curwen, do qual alegara
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ter encontrado certos papéis atrás dos lambris de uma casa muito antiga de Olney Court, em
Stampers Hill, em que notoriamente Curwen havia vivido.
É inegável que no inverno de 1919-20 houve uma grande mudança em Ward; de fato, ele
parou de repente suas atividades de antiquário, empreendendo uma investigação profunda no campo
do ocultismo em seu país e no exterior, alternando-a apenas à busca estranhamente obstinada do
túmulo do seu antepassado.
O doutor Willett, contudo, discorda substancialmente dessa opinião, baseando seu parecer
no prolongado conhecimento íntimo do paciente e em algumas pesquisas e descobertas assustadoras
feitas a seu respeito. Essas pesquisas e descobertas deixaram nele uma marca tão profunda que ao
falar nelas sua voz treme e treme-lhe a mão ao escrever sobre elas. Willett admite que a mudança
ocorrida em 1919-20 parece marcar o início de uma decadência progressiva que culminou na
horrível, triste e misteriosa alienação mental de 1928, mas acredita, baseado na observação pessoal,
que é preciso fazer uma distinção mais nítida. Reconhecendo que o rapaz sempre teve um
temperamento pouco equilibrado e propenso a uma suscetibilidade e a um entusiasmo excessivos
em suas reações aos fenômenos que o cercavam, ele se recusa a admitir que as primeiras mudanças
marcam a passagem da razão à loucura; ao contrário, prefere acreditar na própria afirmação de
Ward, de que descobrira ou redescobrira algo cujo efeito sobre o pensamento humano seria
provavelmente maravilhoso e profundo.
A loucura verdadeira, ele tem certeza disso, apareceu com uma mudança posterior, depois
do descobrimento do retrato e dos velhos papéis de Curwen; após uma viagem a estranhos lugares
no exterior, após recitar certas terríveis invocações em estranhas e secretas circunstâncias; depois de
obter claramente certas respostas a essas invocações e de redigir urna carta em condições
angustiantes e inexplicáveis; depois da onda de vampirismo e dos infaustos boatos em Pawtuxet; e
depois que a memória do paciente começou a excluir as imagens contemporâneas ao mesmo tempo
em que sua voz falhava e seu aspecto físico ia sofrendo a sutil modificação que tantas pessoas mais
tarde notaram.
Somente nessa época, salienta Willett com grande agudeza, o clima de pesadelo passou a ser
inquestionavelmente associado a Ward e o médico, estremecendo de pavor, está seguro de que
existem provas bastante concretas corroborando a afirmação do rapaz quanto à sua descoberta
crucial. Em primeiro lugar, dois trabalhadores muito inteligentes viram os velhos papéis de Joseph
Curwen quando ele os descobriu. Em segundo, o rapaz uma vez lhe mostrou tais papéis e uma
página do diário de Curwen, e cada um dos documentos tinha toda a aparência de autenticidade. O
buraco onde Ward afirmou tê-los encontrado é uma realidade visível e Willett tivera oportunidade
de vê-los pela última vez e de modo bastante convincente num local em que ninguém acreditaria ou
cuja existência talvez jamais seria provada. Depois havia os mistérios e as coincidências das outras
cartas de Orne e Hutchinson e o problema da caligrafia de Curwen e daquilo que os detetives
trouxeram à luz a respeito do doutor Allen; essas coisas e a terrível mensagem em cursivo medieval
encontrada no bolso de Willett quando recuperou a consciência após sua experiência chocante.
E mais conclusivos do que tudo são os dois horrendos resultados obtidos pelo médico com
certas fórmulas durante suas investigações finais; resultados que praticamente comprovaram a
autenticidade dos papéis e de suas monstruosas implicações, ao mesmo tempo em que os tais papéis
foram subtraídos para sempre do conhecimento humano.
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É preciso considerar os primeiros anos da vida de Charles Ward como algo que pertence ao
passado e às antiguidades que ele amava tão ardentemente. No outono de 1918, com uma
considerável manifestação de entusiasmo pelo adestramento militar da época, ele ingressara no
primeiro ano da Escola Moses Brown, que fica bem próxima de sua casa. O antigo edifício
principal, erguido em 1819, sempre agradara seu gosto pelas coisas antigas; e o amplo parque no
qual se localiza a Academia atraía sua predileção pela paisagem. Suas atividades sociais eram
poucas e passava grande parte de seu tempo em casa, em caminhadas sem destino, nas aulas e
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deveres e na busca de dados arqueológicos e genealógicos na Prefeitura, na Assembléia Estadual, na
Biblioteca Pública, na Sociedade Científica, na Sociedade Histórica, nas bibliotecas John Carter
Brown e John Hay da Brown University e na Biblioteca Shepley, recentemente inaugurada em
Benefit Street. Ainda é possível retratá-lo como era naquele tempo: alto, magro, loiro, olhos atentos
e ligeiramente curvo, trajado de maneira um tanto negligente. A impressão predominante era de
inócua falta de jeito mais que de encanto pessoal.
Suas caminhadas eram sempre aventuras pelo mundo do passado, durante as quais ele
tentava recapturar as miríades de relíquias de uma fascinante cidade antiga, um retrato vivo e
coerente de outros séculos. Sua casa era uma grande mansão georgiana no topo da colina bastante
íngreme que se ergue a leste do rio, e das janelas posteriores ele olhava atordoado a multidão de
pináculos, cúpulas, telhados e topos de arranha-céus da cidade baixa até as colinas em tons violeta
nos campos distantes, ao fundo. Aqui ele nascera e do belo pórtico clássico na fachada de tijolos
entre as duas janelas salientes a babá o conduzia para o primeiro passeio de carrinho; em frente à
pequena casa branca da fazenda de duzentos anos, que há muito a cidade absorvera, em direção às
imponentes escolas ao longo da rua suntuosa, cujas antigas mansões quadradas de tijolos e casas
menores de madeira de pórticos estreitos com pesadas colunas dóricas pareciam sonhar, sólidas e
exclusivas em meio aos seus generosos parques e jardins.
Havia sido conduzido também ao longo da sonolenta Congdon Street, um patamar abaixo na
colina íngreme e com todas as suas casas a leste sobre altos terraços. As pequenas casas de madeira
em geral eram mais antigas aqui, pois ao crescer a cidade fora subindo por esta colina. Nesses
passeios ele absorvera um pouco da cor de uma pitoresca aldeia colonial. A babá costumava parar e
sentar-se nos bancos de Prospect Terrace para conversar com os guardas; e uma das primeiras
lembranças da criança era o imenso mar de nebulosos telhados, cúpulas, campanários e colinas
distantes a ocidente, que vira numa tarde de inverno daquele grande terraço com balaustrada, violeta
e místico contra um pôr-de-sol apocalíptico, de febris tons vermelhos, ouro, púrpura e curiosos
verdes. A imensa cúpula de mármore da Assembléia destacava-se com sua maciça silhueta, a
estátua do topo aureolada fantasticamente por um rasgo na camada de nuvens matizadas que
barravam o céu chamejante.
Quando ele cresceu, começaram suas famosas caminhadas; primeiro com a babá, arrastada
com impaciência, e depois sozinho em sonhadora meditação. Ele se aventurava cada vez mais
longe, descendo a colina quase perpendicular, alcançando os planos mais antigos e pitorescos da
cidade velha. Hesitava cautelosamente descendo a vertical Jenckes Street com seus muros
posteriores e frontões coloniais até a esquina da sombria Benefit Street, onde se erguiam dois
portões antigos com colunas jônicas; ao seu lado, um telhado pré-histórico com mansarda, as ruínas
de um primitivo quintal de fazenda e a imensa casa do juiz Durfee, com vestígios do fausto
georgiano. Isto aqui estava se tornando um cortiço, mas os olmos titânicos espalhavam uma sombra
restauradora sobre o lugar e o menino costumava dirigir-se para o sul — pelas longas fileiras de
casas da época pré-revolucionária com suas grandes chaminés centrais e portais clássicos. Do lado
oriental, elas se erguiam sobre porões com dois lances de degraus de pedra ladeados por balaústres
de ferro, e o jovem Charles as imaginava como eram quando a rua era nova e saltos vermelhos e
perucas adornavam os frontões pintados cujos sinais de deterioração já se tornavam tão visíveis.
A oeste, a colina despencava quase tão verticalmente como acima, até a velha "Town Street"
que os fundadores haviam projetado à beira do rio em 1636. Aqui estendiam-se inúmeras vielas
com casas amontoadas, apoiadas umas às outras, antiqüíssimas; embora fascinado, demorou muito
até ousar palmilhar sua arcaica verticalidade, temeroso de que não passassem de um sonho ou o
introduzissem a terrores desconhecidos. Achava muito menos ameaçador prosseguir por Benefit
Street em frente às grades de ferro que cercavam o escondido cemitério da Igreja St. John e a parte
posterior de Colony House, de 1761, e a massa da Golden Ball Inn, reduzida a ruínas, onde
Washington se hospedara. Em Meeting Street — chamada sucessivamente Gaol Lane e King Street
em outras épocas — ele costumava olhar para cima, em direção ao oriente, e contemplar os lances
curvos de degraus com os quais a estrada subia a encosta, e depois para baixo, a ocidente,
vislumbrando o antigo edifício colonial de tijolos da escola, que sorri do outro lado da rua sob a
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antiga tabuleta com a Cabeça de Shakespeare, onde o Providence Gazette and Country-Journal era
impresso antes da Revolução. Vinha então a bela Primeira Igreja Batista de 1775, faustosa, com seu
incomparável campanário de Gibbs, e ao seu redor os telhados georgianos e as cúpulas como que
suspensos no ar. Aqui e para o sul o bairro se tornava mais bonito, desabrochando finalmente num
maravilhoso grupo de mansões primitivas. Mas as vetustas vielas ainda conduziam ladeira abaixo a
oeste, espectrais no arcaísmo de suas inúmeras cúspides, mergulhando numa orgia de decadência
iridescente onde o antigo porto de odores repulsivos lembra os gloriosos tempos das índias
Orientais entre sordidez e vícios poliglotas, desembarcadouros podres, velaria indistinta e nomes de
ruas sobreviventes como Packet, Bullion, Gold, Silver, Coin, Doubloon, Sovereign, Guilder, Dollar,
Dime e Cent.
Às vezes, à medida que ia crescendo e se tornava mais afoito, o jovem Ward se aventurava
lá em baixo naquele turbilhão de casas trôpegas, bandeiras de janelas quebradas, degraus
arrebentado, balaustradas retorcidas, rostos trigueiros e odores indefiníveis; virando de South Main
para South Water, vasculhando as docas onde os vapores ainda atracavam na baía e voltando em
direção ao norte para este terraço inferior, passando pêlos armazéns de tetos muito inclinados de
1816 e a ampla praça na Great Bridge, aqui o edifício do Mercado de 1773 ainda se ergue firme
sobre seus antigos arcos. Naquela praça ele costumava parar para contemplar a fantástica beleza da
cidade velha sobre o penhasco oriental, coberta de cúspides georgianas e coroada pela imensa e
nova cúpula da Christian Science, assim como Londres é coroada pela cúpula de São Paulo.
Agradava-lhe extremamente chegar a este local no fim da tarde, quando os raios inclinados do sol
inundam de ouro o edifício do mercado e os antigos telhados e campanários na colina e mergulham
em sua magia os desembarcadouros sonolentos onde os navios de Providence, procedentes das
índias, costumavam fundear. Após uma longa contemplação sentia o atordoamento de sua paixão de
poeta por aquela paisagem, e então escalava a encosta em direção à sua casa, no crepúsculo,
passando pela antiga igreja branca, subindo pelas ruas íngremes onde brilhos amarelos começavam
a surgir nas janelas de pequenas vidraças e através das bandeiras das portas, lá no alto, sobre lances
duplos de escadas com curiosas balaustradas de ferro trabalhado.
Em outras épocas, e nos últimos anos, ele costumava procurar contrastes vivos; realizando
parte da caminhada pêlos bairros coloniais em ruínas a noroeste de sua casa, onde a colina desce
abruptamente até a elevação inferior de Stampers Hill com seu gueto e o bairro negro apertando-se
ao redor da praça da qual a diligência de Boston costumava partir antes da Revolução, e a outra
parte na graciosa região meridional das ruas George, Benevolent, Power e Williams, onde a velha
encosta guarda intocadas as belas propriedades e trechos de jardins cercados por muros e vielas
íngremes e verdes, nas quais perduram inúmeras e fragrantes memórias. Estas perambulações,
juntamente com os estudos diligentes que as acompanhavam, com certeza são responsáveis pela
quantidade de conhecimentos sobre arqueologia que no fim povoavam o mundo moderno na mente
de Charles Ward e mostram o terreno espiritual sobre o qual caíram, naquele inverno fatal de 1919-
20, as sementes brotadas daquela estranha e terrível fruição.
O doutor Willett está certo de que, até aquele malfadado inverno em que ocorreu a primeira
mudança, a paixão de Charles Ward pela arqueologia não tinha qualquer sinal de morbidez. Os
cemitérios não tinham para ele nenhuma atração particular além de seu exotismo e seu valor
histórico, e ele estava totalmente isento de tudo que se assemelhasse a violência ou instintos
selvagens. Foi então que, numa progressão insidiosa, pareceu desenvolver uma curiosa seqüela de
um dos seus triunfos genealógicos do ano anterior, quando descobrira entre seus ancestrais
maternos um indivíduo que teve vida muito longa, chamado Joseph Curwen, que para lá se mudara
vindo de Salem em março de 1692 e em torno do qual sussurra vá-se uma série de boatos
extremamente peculiares e inquietantes.
O tataravô de Ward, Welcome Potter, casara-se em 1785 com certa "Ann Tillinghast, filha
de Eliza, filha do capitão James Tillinghast", de cuja paternidade a família não preservara qualquer
vestígio. No final de 1918, examinando um volume de registros manuscritos originais da cidade, o
jovem genealogista encontrou um assentamento descrevendo uma mudança legal de nome, pelo
qual uma senhora Eliza Curwen, viúva de Joseph Curwen, retomava, juntamente com a filha Ann,
5
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tornara opróbrio público em razão do que se soubera após seu falecimento; confirmando um antigo
boato, que não deveria ser levado em conta por uma esposa leal enquanto não se comprovasse que
estava acima de qualquer dúvida". Este assentamento veio à luz pela separação acidental de duas
folhas cuidadosamente coladas uma à outra para parecerem uma só após uma trabalhosa verificação
dos números das páginas.
Ficou imediatamente claro para Charles Ward que havia de fato descoberto um tetravô até
então desconhecido. A descoberta o emocionou duplamente porque já havia ouvido vagas histórias
e observado alusões esparsas relacionadas a essa pessoa sobre a qual restavam tão poucos registros
publicamente disponíveis, além daqueles só conhecidos nos tempos modernos, que quase parecia
existir uma conspiração para apagá-la da memória. A descoberta, além disso, era de uma natureza
tão singular e excitante que não se poderia deixar de pensar no que os escrivães coloniais estavam
tão ansiosos por ocultar e esquecer, ou suspeitar que a passagem fora suprimida por razões
totalmente válidas.
Antes disso, Ward contentara-se em deixar adormecida sua fascinação pelo velho Joseph
Curwen; mas ao descobrir seu parentesco com esse personagem sobre o qual se preferia silenciar,
passou a perseguir da maneira mais sistemática possível tudo o que podia achar a seu respeito.
Nessa agitada busca, ele acabou alcançando um sucesso superior às suas expectativas mais ousadas,
pois velhas cartas, diários e pilhas de livros de memórias não publicadas encontrados nas águas-
furtadas cheias de teias de aranhas de Providence e de outros lugares continham muitas passagens
esclarecedoras que seus autores não haviam achado necessário destruir. Uma informação acidental
surgiu até mesmo num lugar tão distante como Nova Iorque, onde uma correspondência da época
colonial de Rhode Island estava guardada no Museu de Francês' Tavern. A coisa realmente crucial,
entretanto, e o que na opinião do doutor Willett constituiu a causa definida da desgraça de Ward, foi
o material encontrado em agosto de 1919 atrás dos lambris de madeira da casa semidestruída de
Olney Court. Foi aquilo, sem sombra de dúvida, que escancarou as visões negras cujo fim era mais
profundo do que o inferno.
Capítulo dois
Antecedente e horror
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Joseph Curwen, segundo revelaram as vagas lendas ouvidas ou descobertas por Ward, era
um indivíduo extremamente assombroso, enigmático, sombriamente horrível. Ele fugira de Salem
para Providence — o abrigo universal dos excêntricos, dos homens livres e dos dissidentes — no
início do grande pânico da bruxaria, temendo ser acusado por causa de seus hábitos solitários e de
suas curiosas experiências químicas e alquimistas. Era um homem de aspecto insignificante, de
cerca de trinta anos de idade; logo foi considerado digno de se tornar um cidadão de Providence;
adquiriu então um lote para habitação ao norte daquele de Gregory Dexter, aproximadamente no
início de Olney Court. Sua casa foi construída em Stampers Hill a oeste de Town Street, na parte
que mais tarde se chamaria Olney Court, e em 1761a substituiu por outra maior, no mesmo local,
que ainda está de pé.
A primeira coisa estranha em Joseph Curwen era o fato de que ele não parecia mais velho do
que era na época de sua chegada. Ingressou no negócio dos transportes marítimos, adquiriu alguns
desembarcadouros nas proximidades de Mile-End Cove, ajudou a reconstruir a Great Bridge em
1713 e a Igreja Congregacional sobre a colina; mas sempre conservava o aspecto indefinível de um
homem não muito acima dos trinta ou trinta e cinco anos. Com o passar das décadas, esta
característica singular começou a despertar grande atenção, mas Curwen sempre a explicava
dizendo que descendia de antepassados vigorosos e levava uma vida simples que não o desgastava.
De que maneira tal simplicidade poderia se conciliar com as inexplicáveis idas e vindas do
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comerciante e com estranhos brilhos em suas janelas a todas as horas da noite não era muito claro
para as gentes da cidade, que estavam propensas a atribuir outras razões à sua perene juventude e
longevidade. A maioria acreditava que isto teria muito a ver com incessantes misturas e cocção de
substâncias químicas. Diziam os boatos que ele mandava vir estranhas substâncias de Londres e das
índias em seus navios ou as adquiria em Newport, Boston e Nova Iorque, e quando o velho doutor
Jabez Bowen chegou de Rehoboth e abriu sua loja de boticário do outro lado da Great Bridge com o
Unicórnio e o Almofariz na tabuleta sobre a porta, houve intermináveis falatórios a respeito das
drogas, ácidos e metais que o taciturno recluso continuamente comprava ou encomendava. Supondo
que Curwen possuísse uma assombrosa e secreta habilidade de médico, muitos que sofriam de
várias doenças recorriam a ele, mas embora parecesse encorajar sua convicção, ainda que de modo
cauteloso, e sempre lhes desse poções de cores estranhas para atendê-los, observava-se que as
coisas que ele ministrava aos outros raramente eram eficazes. Finalmente, quando mais de
cinqüenta anos haviam se passado desde a chegada do forasteiro, sem produzir uma mudança de
mais de cinco anos em seu rosto e físico, as pessoas começaram a murmurar de maneira ainda mais
insistente e atender quase totalmente ao desejo de isolamento que ele sempre manifestara.
Cartas pessoais e diários da época revelam também uma profusão de outras razões pelas
quais Joseph Curwen era olhado com estranheza, temido e, no fim, evitado como a peste. Sua
paixão pêlos cemitérios, nos quais era visto a todas as horas e com qualquer tempo, era notória,
embora ninguém tivesse presenciado qualquer ato de sua parte que pudesse de fato ser definido
como vampiresco. Ele possuía uma fazenda na Pawtuxet Road, na qual costumava morar durante o
verão e para a qual frequentemente podia ser visto dirigir-se a cavalo nas horas mais estranhas do
dia e da noite. Aqui, seus únicos empregados, trabalhadores braçais e guardas, eram dois taciturnos
índios da tribo Narragansett: o marido mudo e com curiosas cicatrizes, e a mulher com uma
expressão extremamente repulsiva, talvez devido a uma mistura com sangue negro. Num anexo
dessa casa ficava o laboratório onde era realizada a maior parte das experiências químicas.
Carregadores e carroceiros que entregavam garrafas, sacos ou caixas nas portas traseiras da casa
bisbilhotavam e trocavam relatos sobre os fantásticos frascos, crisóis, alambiques e fornalhas que
viam no quarto baixo cheio de prateleiras, e profetizavam em sussurros que o calado "quimista" —
querendo dizer "alquimista" — não demoraria a descobrir a Pedra Filosofal. Os vizinhos mais
próximos à sua fazenda — os Fenners, distantes um quarto de milha — tinham coisas ainda mais
fantásticas para contar a respeito de certos sons que, afirmavam, vinham da casa de Curwen à noite.
Eram gritos, diziam, e uivos prolongados, e eles não gostavam da grande quantidade de gado que
invadia os pastos, porque essa quantidade não era necessária para suprir um velho solitário e
pouquíssimos empregados com carne, leite e lã. A identidade do gado parecia mudar de semana a
semana quando novos rebanhos eram comprados dos fazendeiros de Kingstown. E depois também
havia algo extremamente detestável com relação a um grande edifício de pedra, pouco distante da
casa, com estreitas fendas em lugar das janelas.
Os desocupados da Great Bridge tinham muito para comentar sobre a casa de Curwen na
cidade, em Olney Street; não tanto a casa nova, bonita, construída em 1761, quando o homem devia
ter aproximadamente um século, mas a primeira, baixa, o telhado com água-furtada, sem janelas,
revestida de tábuas, cujo madeiramento ele tomou a peculiar precaução de queimar após a
demolição. Aqui havia menos mistério, é verdade, mas as horas nas quais as luzes eram vistas, o ar
furtivo dos dois forasteiros morenos que constituíam a única criadagem masculina, os horríveis e
indistintos murmúrios da governanta francesa incrivelmente velha, a grande quantidade de comida
que era vista entrar por uma porta atrás da qual viviam apenas quatro pessoas e a qualidade de
certas vozes ouvidas frequentemente em conversais abafadas em horas totalmente inadequadas,
tudo isto combinava com o que se sabia da fazenda Pawtuxet para conferir ao lugar uma péssima
fama.
Mesmo nos círculos mais seletos a residência de Curwen não deixava de ser comentada;
pois, à medida que o recém-chegado se introduzira na igreja e no ambiente dos negócios da cidade,
travara naturalmente conhecimento com pessoas da melhor espécie, cuja companhia e conversação
estava bastante apto a apreciar. Sabia-se que nascera de boa família, porque os Curwens de Salem
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não precisavam de apresentação na Nova Inglaterra. Soube-se que Joseph Curwen viajara muito na
juventude, que vivera um tempo na Inglaterra e fizera pelo menos duas viagens ao Oriente; e sua
conversação, quando se dignava usá-la, era a de um inglês instruído e culto. Mas, por alguma razão,
Curwen não se importava com a sociedade. Embora em realidade ele jamais recebesse mal um
visitante, sempre erguia um muro de reserva tão grande que poucos conseguiam dizer-lhe alguma
coisa que não soasse tola.
Em seu comportamento parecia haver sempre à espreita uma certa arrogância enigmática,
sardônica, como se, tendo convivido entre estrangeiros e homens mais poderosos, tivesse concluído
que todos os seres humanos eram obtusos. Quando o doutor Checkley, famoso por sua sabedoria,
chegou de Boston em 1738 para se tomar o reitor da King's Church, não deixou de visitar alguém a
cujo respeito tanto ouvira falar; mas saiu pouco depois por ter percebido algo sinistro nas conversas
de seu anfitrião. Charles Ward disse a seu pai, quando discutiam sobre Curwen numa noite de
inverno, que daria tudo para saber o que o misterioso velho teria dito ao brilhante clérigo, mas todos
os diários concordam quanto à relutância do doutor Checkley em repetir algo daquilo que ouvira. O
bom homem ficara terrivelmente chocado e jamais conseguira lembrar de Joseph Curwen sem
perder, de maneira evidente, a jovial cortesia que o tomara famoso.
No entanto, mais definida era a razão pela qual outro homem de refinamento e berço evitava o
arrogante ermitão. Em 1746, o senhor John Merritt, um idoso cavalheiro inglês, com tendências
literárias e científicas, chegou de Newport à cidade que já a superava rapidamente em prestígio e
construiu uma bela casa de campo no Neck, no que ê hoje o coração da zona residencial. Ele vivia
com considerável estilo e conforto, era proprietário da primeira carruagem e de criados de libré da
cidade, orgulhando-se grandemente de seu telescópio, microscópio e de sua seleta biblioteca de
livros ingleses e latinos. Ouvindo falar de Curwen como o proprietário da melhor biblioteca de
Providence, o senhor Merritt lhe fez logo uma visita e foi recebido de modo mais cordial do que
muitos outros visitantes da casa haviam sido. Sua admiração pelas amplas estantes do anfitrião, as
quais, ao lado dos clássicos gregos, latinos e ingleses exibiam uma notável bateria de obras
filosóficas, matemáticas e científicas, incluindo Paracelsus, Agrícola, Van Helmont, Sylvius,
Glauber, Boyle, Boerhaave, Becher e Stahl, levou Curwen a sugerir uma visita à casa da fazenda e
ao laboratório para onde jamais havia convidado quem quer que fosse antes; e os dois partiram
imediatamente na carruagem do senhor Merritt.
O senhor Merritt sempre confessou não ter visto nada de realmente horrível na casa da fazenda,
mas afirmou que os títulos dos livros da biblioteca especial sobre assuntos taumatúrgicos,
alquimistas e teológicos que Curwen mantinha numa sala da frente, foram suficientes para inspirar-
lhe uma aversão duradoura. Entretanto, foi talvez a expressão do rosto do proprietário ao exibi-los
que contribuiu em grande parte para esse preconceito. Essa bizarra coleção, além de uma miríade de
obras comuns que o senhor Merritt não se sentiu excessivamente alarmado em lhe invejar,
abrangiam quase todos os cabalistas, demonólogos e mágicos conhecidos, e era um reservatório de
tesouros do saber nos duvidosos reinos da alquimia e astrologia. Hermes Trismegisto na edição de
Mesnard, a Turba Philosopharum, o Líber Investigatianis de Geber; e A Chave da Sabedoria de
Artephous; estavam todos lá, com o cabalístico Zohar, a série Albertus Magnus de Peter Jamm, Ars
Magna et Ultima de Raymond Lully na edição de Zetzner, Thesaurus Chemicus de Roger Bacon,
Clavis Alchimiae de Fludd, De Lapide Philosophico de Tritêmio, um ao lado do outro. Os judeus e
árabes medievais estavam representados em profusão e o senhor Merritt ficou pálido quando, ao
retirar da estante um lindo volume com o título vistoso de Qanoon- é- Islam, descobriu tratar-se em
verdade do proibido Necronomicon do louco árabe Abdul Alhazred, a cujo respeito ouvira sussurrar
coisas monstruosas, alguns anos antes, após a descoberta de ritos abomináveis na estranha
aldeiazinha de pescadores de Kingsport, na Província de Massachusetts-Bay.
Mas, curiosamente, o digno cavalheiro confessou-se perturbado de modo mais indefinível por
um detalhe insignificante. Sobre a imensa mesa de mogno jazia virado para baixo um exemplar de
Borellus, gasto pelo uso, trazendo muitas notas misteriosas escritas à mão por Curwen ao pé da
página e entre as linhas. O livro estava aberto mais ou menos no meio e um parágrafo exibia riscos
tão grossos e trêmulos debaixo das linhas em místico gótico antigo que o visitante não resistiu à
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tentação de examiná-las atentamente. Ele não soube dizer se foi a natureza do trecho sublinhado ou
a forma febril dos traços com que estava marcado, mas algo nessa combinação o impressionou de
um modo muito profundo e peculiar. Lembrou-o até o fim da vida e o transcreveu de memória em seu
diário. Uma vez tentou recitá-lo ao seu amigo, doutor Checkley, até notar quão profundamente
aquilo perturbava o polido vigário. O trecho dizia:
"Os sais essenciais dos animais podem ser preparados e preservados de modo que um homem
engenhoso pode ter toda a Arca de Noé em seu próprio escritório e fazer surgir a bela forma de um animal
das cinzas deste a seu bel-prazer; e, pelo mesmo método, dos sais essenciais do pó humano, sem criminosa
necromancia, um filósofo pode fazer reviver a forma de qualquer ancestral falecido das cinzas em que seu
corpo se tomou".
Era, contudo, perto das docas, ao longo da parte meridional de Town Street, que se
murmuravam as piores coisas a respeito de Joseph Curwen. Os marujos são gente supersticiosa e os
calejados lobos-do-mar que constituíam a tripulação das inúmeras corvetas que traficavam com
rum, escravos e melado, dos esbeltos navios corsários e dos grandes brigues dos Browns, Crawfords
e Tillinghasts, todos faziam sinais estranhos e furtivos de esconjuro quando viam a figura magra e
enganadoramente jovem, com os cabelos amarelecidos, ligeiramente curva, entrando nos armazéns
Curwen em Doubloon Street ou conversando com capitães e comissários de bordo sobre os longos
molhes aos quais atracavam incessantemente os navios de Curwen. Os próprios capitães e caixeiros
de Curwen o odiavam e temiam e todos os seus marinheiros eram mestiços, um rebotalho da
Martinica, Santo Eustáquio, Havana ou Port Royal. De certo modo, era a freqüência com a qual
esses marujos eram substituídos que inspirava o aspecto mais concreto e mais agudo do medo que o
velho suscitava. Ocorria que uma tripulação tinha licença para ir à cidade e alguns de seus membros
eram encarregados de levar alguma encomenda; terminada a licença, quando a tripulação voltava a
se reunir, quase certamente um ou outro homem estaria faltando. Muitos não podiam deixar de
observar que diversas das encomendas diziam respeito à fazenda de Pawtuxet Road e que eram
poucos os marinheiros que haviam sido vistos voltar daquele local. Assim, com o tempo, ficou
extremamente difícil para Curwen manter aquela malta estranhamente sortida. Quase sempre muitos
desertavam tão logo ouviam os boatos nos molhes de Providence e sua substituição nas índias
Ocidentais tornou-se um problema cada vez maior para o comerciante.
Em 1760, Joseph Curwen era praticamente um proscrito, suspeito de vagos horrores e
demoníacas alianças que pareciam mais ameaçadoras pelo fato de não poderem ser definidas,
compreendidas ou mesmo comprovadas. A última gota foi talvez o caso dos soldados desaparecidos
em 1758, pois em março e abril daquele ano dois regimentos reais a caminho da Nova França
aquartelaram-se em Providence e inexplicavelmente registrou-se um número de deserções muito
superior à média. Os boatos insistiam na freqüência com a qual Curwen costumava ser visto
conversando com os estrangeiros de casaca vermelha; como vários deles começaram a desaparecer,
as pessoas pensaram em episódios semelhantes ocorridos com seus próprios marujos. Ninguém
pode dizer o que teria acontecido se os regimentos não tivessem recebido ordem de prosseguir.
Enquanto isso, os negócios do comerciante prosperavam em terra. Ele praticamente detinha o
monopólio do comércio da cidade em salitre, pimenta preta e canela, e ultrapassava qualquer outra
empresa de navegação, com exceção dos Browns, na importação de produtos de latão, índigo,
algodão, lã, sal, cordas, ferro, papel e artigos ingleses de todo gênero. Comerciantes como James
Green, no estabelecimento com a tabuleta do Elefante em Cheapside, os Russells, do
estabelecimento Águia Dourada, do outro lado da Great Bridge, ou Clark e Nightingale, de A
Frigideira e o Peixe, perto da Nova Casa de Café, dependiam quase totalmente dele para seus
estoques; e seus negócios com os destiladores locais, os fabricantes de laticínios, os criadores de
cavalos Narragansett e os fabricantes de velas de Newport tomavam-no um dos mais importantes
exportadores da Colônia.
Embora fosse posto no ostracismo, não lhe faltava certo espírito cívico. Quando a Colony
House foi destruída por um incêndio, ele contribuiu generosamente para as loterias graças às quais a
nova casa de tijolos, que ainda existe na antiga Main Street, pôde ser construída em 1761. Naquele
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mesmo ano, ele contribuiu ainda para a reconstrução da Great Bridge depois do furacão de outubro.
Adquiriu muitos livros para a biblioteca pública para substituir os que haviam sido consumidos no
incêndio da Colony House e fez vultosa contribuição para a loteria que permitiu pavimentar com
grandes pedras redondas e uma calçada central ou "passeio" a enlameada Market Parade e a Town
Street, cheias de sulcos profundos. Por volta dessa época, também, construiu a nova casa, simples
porém excelente, cujo portão constitui uma obra-prima de entalhes em madeira. Quando os
partidários de Whitefield romperam com a igreja do doutor Cotton, sobre a colina, em 1743, e
fundaram a igreja Deacon Snow, do outro lado da Great Bridge, Curwen fora com eles, embora seu
zelo e freqüência logo diminuíssem. Agora, entretanto, mais uma vez dava mostras de devoção,
como para dissipar as sombras que o haviam atirado no isolamento e que em breve, se não fossem
prontamente detidas, começariam a arruinar o sucesso dos seus negócios.
A vista desse homem estranho, pálido, que no aspecto mal tocava a meia-idade, embora
certamente não contasse menos de um século, tentando finalmente emergir de uma nuvem de medo
e abominação, demasiado vaga para ser definida ou analisada, era uma coisa ao mesmo tempo
patética, dramática e desprezível. Tal é, entretanto, o poder da riqueza e dos gestos exteriores que,
na verdade, a visível aversão a seu respeito diminuiu um pouco; principalmente depois que os
repentinos desaparecimentos dos seus marinheiros cessaram abruptamente. Do mesmo modo,
começou talvez a usar de extremo cuidado e sigilo em suas expedições aos cemitérios, porque
nunca mais foi apanhado nessas peregrinações, ao passo que diminuíam proporcionalmente os
comentários sobre os sons e manobras misteriosas em sua fazenda de Pawtuxet. O volume do
consumo de alimentos e a substituição do gado continuaram anormalmente elevados; mas jamais
até os tempos modernos, quando Charles Ward examinou uma pilha de contas e f aturas na
Biblioteca Shepley, ocorreu a alguém — salvo talvez a um jovem angustiado — fazer tenebrosas
comparações entre o grande número de negros da Guiné que ele importara até 1766 e a quantidade
perturbadoramente pequena daqueles para os quais ele podia apresentar notas de venda a
comerciantes de escravos da Great Bridge ou aos plantadores de Narragansett Country. Com
certeza, a astúcia e engenhosidade desse detestado personagem eram misteriosamente profundas
quando se convenceu da necessidade de utilizá-las.
Mas é claro que o efeito dessa tardia regeneração foi necessariamente leve. Curwen continuava
a ser evitado e detestado, como, em realidade, o simples fato de mostrar constantemente um aspecto
jovem numa idade avançada bastaria para justificar; e ele percebia que seu sucesso provavelmente
acabaria sendo prejudicado por isso. Seus estudos e experiências elaboradas, quaisquer que fossem,
exigiam aparentemente uma vultosa renda para serem realizados; e como uma mudança de
ambiente o privaria da posição que alcançara com seus negócios, não seria vantajoso para ele, a essa
altura, começar de novo num lugar diferente. O bom senso exigia que ele melhorasse de algum
modo suas relações com os cidadãos de Providence, de modo que sua presença deixasse de ser
motivo de conversas a meia voz, de evidentes desculpas de serviços a fazer em outro lugar e de uma
atmosfera geral de embaraço e mal-estar. Seus empregados, reduzidos agora a um rebotalho inepto
e indigente que ninguém mais contrataria, davam-lhe muitas preocupações; e só conservava seus
capitães e imediatos pela astúcia, tentando ganhar algum tipo de ascendência sobre eles — uma
hipoteca, uma nota promissória ou uma informação muito útil para seu bem-estar. Em muitos casos,
os autores dos diários registraram com certo espanto, Curwen mostrava quase o poder de um bruxo
desenterrando segredos de família para utilizá-los de modo questionável. Nos últimos cinco anos de
sua vida, parecia que só uma conversa direta com os defuntos poderia fornecer as informações que
ele exibia com tanta facilidade.
Mais ou menos nessa época, o astuto estudioso encontrou um último desesperado expediente
para reconquistar sua posição na comunidade. Até então um completo ermitão, resolveu contrair um
vantajoso matrimônio, tomando como esposa alguma dama cuja posição indiscutível tornasse
impossível qualquer forma de ostracismo contra seu lar. Talvez ele também tivesse razões mais
profundas para desejar uma aliança, razões tão alheias à esfera cósmica conhecida que somente os
papéis encontrados um século e meio após sua morte alguém suspeitaria delas; mas jamais será
possível saber algo seguro a esse respeito. Naturalmente, ele tinha consciência do horror e da
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indignação com os quais um cortejamento de sua parte seria recebido, portanto, procurou uma
candidata provável sobre cujos pais ele pudesse exercer uma pressão adequada. Descobriu que não
era fácil encontrar tais candidatas, pois ele tinha exigências muito particulares em matéria de beleza,
habilidades e posição social. Finalmente, sua pesquisa se restringiu à casa de um dos seus melhores
e antigos capitães, um viúvo de berço e reputação sem mácula chamado Dutie Tillinghast, cuja
única filha Eliza parecia dotada de todas as virtudes concebíveis, salvo a perspectiva de se tomar
uma herdeira. O capitão Tillinghast era totalmente dominado por Curwen e consentiu, após uma
tempestuosa entrevista em sua casa ornada por uma cúpula na colina de Power's Lane, em sancionar
a aliança blasfema.
Eliza Tillinghast tinha naquela época dezoito anos de idade e havia sido educada do modo mais
digno que as condições limitadas de seu pai permitiam. Freqüentada a escola Stephen Jackson, em
frente à Court House Parade, e havia sido diligentemente instruída pela mãe, antes que esta
morresse de varíola, em 1757, em todas as artes e refinamentos da vida doméstica. Um mostruário
de seus trabalhos, realizado em 1753, aos nove anos de idade, ainda pode ser visto nos salões da
Sociedade Histórica de Rhode Island. Após a morte da mãe, ela passara a dirigir a casa, auxiliada
apenas por uma velha negra. A discussão com o pai sobre a proposta de casamento de Curwen deve
ter sido bastante penosa, mas não existe qualquer registro dela. Certo é que seu noivado com o
jovem Ezra Weeden, imediato do paquete Enterprise de Crawford, foi devidamente desfeito e sua
união com Joseph Curwen realizada no dia 7 de março de 1763, na Igreja Batista, na presença de
uma das mais distintas assembléias de que a cidade podia se vangloriar; a cerimônia foi celebrada
pelo mais jovem dos Winsons, Samuel. O Gazette mencionou o evento muito brevemente e na
maioria das cópias remanescentes a nota em questão parece ter sido cortada ou rasgada. Ward
descobriu uma única cópia intacta, após muitas buscas, nos arquivos de um famoso colecionador
particular, observando com deleite a total inexpressão da polida linguagem:
"Na tarde da última segunda-feira, o senhor Joseph Curwen, dessa Cidade, Comerciante, casou-se com
a senhorita Eliza Tillinghast, filha do capitão Dutie Tillinghast, uma jovem que soma real merecimento a
uma bela Pessoa, para honrar o Estado conjugal e perpetuar sua Felicidade".
A correspondência Durfee-Arnold, descoberta por Charles Ward pouco depois de sua primeira
suposta crise de loucura na coleção particular de Melville F. Peters, de George Street, referente a
este período e a outro um pouco anterior, lança viva luz sobre o ultraje perpetrado contra o
sentimento público por essa união disparatada. A influência social dos Tillinghasts, entretanto, não
podia ser negada; e mais uma vez Joseph Curwen viu sua casa freqüentada por pessoas que de outra
forma ele jamais poderia induzir a transpor-lhe os umbrais. Jamais, porém, ele foi completamente
aceito, e sua esposa sofria socialmente pela forçada união; mas, em todo caso, reduzira-se
significativamente a possibilidade de maior ostracismo. No tratamento para com a esposa o estranho
noivo maravilhava a ela e à comunidade mostrando uma delicadeza e consideração extremas. A
nova casa em Olney Court agora estava livre de manifestações perturbadoras e embora Curwen se
ausentasse muitas vezes para ir à fazenda Pawtuxet, que sua esposa jamais visitou, parecia um
cidadão normal mais do que em qualquer outro momento de seus longos anos de residência. Apenas
uma pessoa conservava uma aberta inimizade com ele, o jovem oficial da marinha cujo noivado
com Eliza Tillinghast havia sido tão abruptamente rompido. Ezra Weeden jurara vingança e,
embora de temperamento em geral pacífico e calmo, tinha agora um propósito pertinaz, inspirado
pelo ódio, que não pressagiava nada de bom para o marido e usurpador.
No dia 7 de maio de 1765 nasceu Ann, a única filha de Curwen, e foi batizada pelo reverendo
John Graves da King's Church, da qual marido e mulher haviam-se tomado membros-pouco depois
do casamento a fim de chegar a um compromisso entre suas respectivas filiações às igrejas
Congregacional e Batista. O registro desse nascimento, bem como o do casamento dois anos antes,
foi apagado da maioria das cópias da igreja e dos anais da cidade onde deveria constar, e Charles
Ward o localizou com a maior dificuldade depois que a descoberta da mudança do nome da viúva
lhe revelara seu próprio parentesco, fazendo despontar o interesse febril que culminara com sua
loucura. Em realidade, a anotação do nascimento foi encontrada, curiosamente, através da
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correspondência com os herdeiros do legalista doutor Graves, que levara consigo uma cópia dos
registros quando deixara seu cargo de pastor ao eclodir a Revolução. Ward tentara essa fonte porque
sabia que sua trisavó, Ann Tillinghast Potter, havia pertencido à Igreja Episcopal.
Pouco depois do nascimento da filha, acontecimento ao que parece por ele recebido com um
entusiasmo enormemente contrastante com sua frieza habitual, Curwen resolveu posar para um
retrato. Este foi pintado por um escocês de grande talento chamado Cosmo Alexander, então
residente em Newport e posteriormente famoso por ter sido o primeiro professor de Gilbert Stuart.
O retrato teria sido executado sobre um painel da parede da biblioteca da casa de Olney Court, mas
nenhum dos dois velhos diários que o mencionam fornecia qualquer indicação de seu paradeiro
final. Nesse período, o excêntrico estudioso mostrava sinais de abstração incomum e passava a
maior parte do tempo na fazenda de Pawtuxet Road. Segundo diziam, ele parecia viver num estado
de excitação ou ansiedade reprimidas, como se aguardasse algo fenomenal ou estivesse prestes a
fazer alguma estranha descoberta. A química ou a alquimia pareciam desempenhar um papel
significativo a esse respeito, porque levou da casa para a fazenda o maior número de livros sobre o
assunto.
Sua afetação de interesse cívico não diminuiu e ele não perdia a oportunidade de ajudar líderes
como Stephen Hopkins, Joseph Brown e Benjamin West em seus esforços visando elevar o nível
cultural da cidade, na época bastante inferior ao de Newport no patrocínio das belas-artes. Ele
ajudara Daniel Jenckes a abrir sua livraria em 1763, tornando-se a partir de então seu melhor
cliente. Estendeu sua ajuda também à Gazette, que lutava com dificuldades e saía todas as quartas-
feiras na oficina sob a tabuleta da Cabeça de Shakespeare. No campo da política, ele apoiava
fervorosamente o governador Hopkins contra o partido de Ward, cuja maior força estava em
Newport, e seu discurso realmente eloqüente em Hacher's Hall, em 1765, contra o estabelecimento
de North Providence como cidade autônoma com um voto a favor de Ward na Assembléia Geral,
contribuiu mais do que qualquer outra coisa para acabar com o preconceito contra ele próprio. Mas
Erza Weeden, que o mantinha sob uma vigilância cerrada, escarnecia de toda essa atividade exterior
e afiançava que não passava de uma fachada para algum tipo de tráfico inominável com os mais
negros abismos do Tártaro. O jovem, determinado a se vingar começou um estudo sistemático do
homem e de seus atos sempre que se encontrava no porto; passava horas à noite pêlos cais com um
pequeno barco a remos de prontidão quando via luzes nos armazéns de Curwen e seguia a pequena
embarcação que — vez por outra — se afastava ou chegava furtivamente na baía. Também vigiava
tanto quanto possível a fazenda Pawtuxet e uma vez foi gravemente mordido pêlos cachorros que o
velho casal de índios soltara em cima dele.
2
Em 1766 verificou-se a mudança final em Joseph Curwen. Ocorreu repentinamente e obteve
ampla notoriedade entre os curiosos cidadãos, pois o ar de suspense e expectativa caiu como uma
capa velha, dando imediatamente o lugar a uma mal disfarçada exaltação de perfeito triunfo.
Curwen parecia ter dificuldades em frear o impulso de fazer arengas públicas sobre aquilo que
havia descoberto, aprendido ou feito; mas aparentemente a necessidade de sigilo era maior do que o
desejo de compartilhar seu regozijo, pois jamais ofereceu qualquer explicação. Foi após essa
transição, ocorrida ao que parece no início de julho, que o sinistro sábio começou a espantar as
pessoas com a posse de informações que somente seus ancestrais, há muito falecidos, poderiam
fornecer.
Mas as febris atividades secretas de Curwen não cessaram absolutamente com essa mudança.
Ao contrário, tenderam a aumentar; de modo que uma parte cada vez maior de seus negócios
marítimos passou a ser gerida pêlos capitães que agora prendia a si pêlos laços do medo, tão
poderosos quanto haviam sido os do temor da bancarrota. Abandonara de todo o tráfico de escravos,
alegando que seus lucros caíam continuamente. Passava todos os momentos disponíveis na fazenda
Pawtuxet; entretanto, de vez em quando surgiam boatos sobre sua presença em lugares que, embora
de fato não estivessem próximos de cemitérios, de modo tal localizavam-se em relação aos
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cemitérios que as pessoas atentas se perguntavam se os hábitos do velho comerciante haviam
realmente mudado. Embora seus períodos de espionagem fossem necessariamente breves e
intermitentes por conta de suas viagens marítimas, Ezra Weeden conservava uma persistência
vingativa que a maioria das pessoas práticas da cidade e do campo não possuía e mantinha os
negócios de Curwen sob uma vigilância a que jamais haviam sido submetidas antes.
Muitas das curiosas manobras dos barcos do estranho comerciante eram consideradas
corriqueiras, levando em conta os tempos conturbados, quando todos os colonos pareciam
determinados a resistir às disposições da Lei do Açúcar que obstaculizavam um tráfico vultoso.
Contrabando e evasão eram a regra na baía de Narragansett e os desembarques noturnos de cargas
ilícitas eram constantes e notórios. Mas Weeden, noite após noite, seguia as barcas ou pequenas
chalupas que saíam furtivamente dos armazéns de Curwen nas docas de Town Street e logo teve a
certeza de que não eram apenas os navios armados de Sua Majestade que o sinistro covarde estava
ansioso por evitar. Antes da mudança de 1766 esses barcos continham na maior parte negros
acorrentados, que eram transportados através da baía e desembarcados num ponto indefinido da
costa, um pouco ao norte de Pawtuxet; em seguida, eram levados sobre as rochas e pêlos campos
até a fazenda Curwen, onde eram trancafiados num enorme edifício de pedra que tinha apenas altas
e estreitas fendas como janelas. No entanto, depois daquela mudança, todo o programa foi alterado.
A importação de escravos cessou imediatamente e por algum tempo Curwen abandonou as
travessias noturnas. Então, aproximadamente na primavera de 1767, um novo método foi adotado.
Mais uma vez as barcas eram vistas partir das silenciosas e negras docas, e agora desciam pela baía,
chegando provavelmente até Nanquit Point, onde encontravam estranhos navios de considerável
tamanho e de aparências as mais variadas cuja carga recebiam. Os marinheiros de Curwen então
desembarcavam essa carga no local costumeiro na costa e a transportavam por terra até a fazenda,
onde era guardada no mesmo misterioso edifício de pedra no qual anteriormente eram colocados os
negros. A carga consistia quase exclusivamente em caixas e caixotes, grande parte dos quais era
oblonga e pesada e se assemelhava de modo perturbador a caixões de defunto.
Weeden sempre vigiava a fazenda com incansável assiduidade, visitando-a todas as noites por
longos períodos e raramente deixava passar uma semana sem fazer uma visita, salvo quando a seve
que cobria o chão poderia revelar suas pegadas. Mesmo então ele chegava o mais perto possível
pela estrada ou caminhando sobre o gelo do rio próximo, para observar as marcas que outros
poderiam ter deixado. Como seus períodos de vigilância eram interrompidos pelas obrigações
náuticas, ele contratou um companheiro de taberna, chamado Eleazer Smith, para que continuasse
vigiando durante sua ausência; os dois poderiam espalhar boatos fantásticos. Só não faziam isto
porque sabiam que essa publicidade chamaria a atenção de quem vigiavam, tornando impossível
qualquer progresso. Ao contrário, pretendiam saber algo definitivo antes de agir. O que eles
descobriram deve ter sido realmente assustador, pois Charles Ward comentou muitas vezes com os
pais seu pesar por Weeden, no fim, ter queimado seus apontamentos. Tudo o que se pode dizer a
respeito de suas descobertas é o que Eleazer Smith anotou apressadamente em um diário não muito
coerente e que outros, em diários e cartas, repetiram timidamente a partir das declarações que os
dois no fim fizeram, segundo as quais a fazenda não passava da fachada de uma vasta e revoltante
ameaça, de um alcance e profundidade demasiado grandes e tangíveis para uma compreensão
menos que nebulosa.
Conclui-se que Weeden e Smith logo se convenceram de que debaixo da fazenda existia uma
imensa rede de túneis e catacumbas, habitados por um número bastante significativo de pessoas
além do velho índio e sua mulher. A casa era uma antiga ruína dos meados do século XVII, com o
teto pontudo, uma enorme chaminé e janelas de rótula, sendo que o laboratório se localizava numa
ala acrescentada na face norte, cujo telhado chegava quase até o chão . Era um edifício isolado, no
entanto, a julgar pelas diferentes vozes ouvidas nas horas mais estranhas em seu interior, e devia ser
acessível por meio de passagens subterrâneas secretas. Essas vozes, antes de 1766, eram meros
resmungos e sussurros de negros, gritos frenéticos juntamente com curiosas declamações e
invocações. Após esta data, porém, alcançaram uma gama terrível e muito singular, percorrendo
toda a escala desde sussurros de obtusa aquiescência até explosões de fúria selvagem, ruídos de
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conversas e choramingos de súplica, arquejamentos ansiosos e gritos de protesto. Pareciam ser
línguas diferentes, todas conhecidas de Curwen, cujos ásperos acentos eram frequentemente
ouvidos num tom de resposta, reprovação ou ameaça.
Às vezes parecia que várias pessoas deviam estar na casa: Curwen, alguns prisioneiros e os
seus guardas. Havia vozes de uma natureza tal que nem Weeden nem Smith jamais haviam ouvido
antes não obstante seus vastos conhecimentos de portos estrangeiros e muitas que aparentemente
poderiam atribuir a essa ou aquela nacionalidade. A natureza das conversas parecia sempre unta
espécie de interrogatório, como se Curwen estivesse arrancando algum tipo de informação de
prisioneiros aterrorizados ou rebeldes.
Weeden anotara em seu caderno muitos trechos de conversas ouvidas furtivamente, porque o
inglês, o francês e o espanhol, línguas que ele conhecia, eram frequentemente empregados; mas
nenhum se salvou. No entanto, ele dizia que, à parte alguns diálogos macabros referentes aos
antigos negócios das famílias de Providence, a maioria das perguntas e respostas que ele conseguiu
entender eram históricas ou científicas, às vezes relacionadas a lugares épocas muito remotos. Certa
ocasião, por exemplo, um personagem ora enfurecido, ora calado, foi interrogado em francês sobre
o massacre do Príncipe Negro em Limoges, em 1370, como se houvesse alguma razão oculta que
ele devesse conhecer. Curwen perguntou ao prisioneiro — se é que se tratava de um prisioneiro —
se a ordem de matar havia sido dada por ter sido encontrada a Marca do Bode sobre o altar na antiga
cripta romana debaixo da catedral, ou se o Homem Negro da Congregação das Bruxas da Alta
Viena havia falado as Três Palavras. Não conseguindo obter respostas, o inquisidor aparentemente
recorrera a meios extremos, pois se ouviu um grito agudo e terrível seguido pelo silêncio, por
murmúrios e um baque surdo.
Nenhum desses colóquios jamais foi testemunhado por alguém, porque as janelas eram sempre
protegidas por pesadas cortinas. Certa vez, contudo, durante uma conversa numa língua
desconhecida, foi vista uma sombra sobre a cortina que assustou extremamente Weeden,
lembrando-lhe uma marionete vista numa representação no outono de 1764, em Hatcher's Hall. Um
sujeito de Germantown, Pensilvânia, montara um engenhoso espetáculo mecânico anunciado como
"Vista da Famosa Cidade de Jerusalém, na qual são representados Jerusalém, o Templo de Salomão,
seu Trono Real, as Torres famosas e ás Colinas, bem como os padecimentos do Nosso Salvador
desde o Jardim de Getsemani até a Cruz sobre o Monte Gólgota; Peça Artística que os curiosos não
podem deixar de ver". Nessa ocasião o ouvinte, que se aproximara sorrateiramente à janela da sala
da frente de onde saía a conversa, teve um sobressalto que acordou o velho casal de índios, os quais
soltaram os cachorros em cima dele. Depois disso não se ouviram mais conversas na casa e Weeden
e Smith concluíram que Curwen havia transferido seu campo de ação para locais subterrâneos.
Que estes existissem de verdade, parecia bastante evidente por muitos indícios. Gritos fracos e
gemidos saíam indiscutivelmente vez por outra do que parecia ser solo compacto em lugares
distantes de qualquer construção; enquanto se escondia no matagal na ribanceira do rio, atrás, onde
o morro despencava abruptamente até o vale do Pawtuxet, encontrou uma porta de carvalho com
umbrais e verga de pesada alvenaria, obviamente a entrada de uma caverna no interior do morro.
Quando ou como essas catacumbas poderiam ter sido construídas, Weeden era incapaz de dizer;
mas frequentemente salientou como seria fácil para turmas de trabalhadores chegar sem ser vistas
até o local pelo rio. Joseph Curwen, realmente, usava das maneiras mais variadas seus marujos
mestiços. Durante as pesadas chuvas da primavera de 1769, os dois espiões vigiaram atentamente a
íngreme margem do rio para ver se alguns dos segredos subterrâneos seriam trazidos à luz e foram
recompensados pelo aparecimento de uma profusão de ossos humanos e animais em pontos em que
profundas valas haviam sido escavadas na ribanceira. Naturalmente, poderia haver explicações
plausíveis para estas coisas na área de uma fazenda de gado e numa localidade em que eram
comuns antigos cemitérios índios, mas Weeden e Smith tiraram suas próprias conclusões.
Foi em janeiro de 1770, enquanto Weeden e Smith ainda estavam debatendo em vão o que
pensar ou fazer a respeito de todo o desconcertante negócio, que ocorrei: o incidente do Fortaleza.
Exasperada pelo incêndio da corveta Liberty, do serviço aduaneiro, em Newport, no verão anterior,
a frota da aduana, sob o comando do almirante Wallace, reforçara a vigilância das embarcações
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estrangeiras; e nessa ocasião a escuna armada Cygnet, de Sua Majestade, comandada pelo capitão
Harry Leshe, capturou, uma manhã muito cedo, após uma breve perseguição, a chata espanhola
Fortaleza, de Barcelona, comandada pelo capitão Manuel Arruda, procedente, de acordo com o
diário de bordo, do Grande Cairo, Egito, com destino a Providence. Vasculhado sob suspeita de
contrabando, o navio revelou o fato espantoso de que sua carga consistia exclusivamente de múmias
egípcias, consignadas a "Marujo A.B.C.", que viria retirar suas mercadorias numa barca ao largo de
Nanquit Point e cuja identidade o capitão Arruda estava obrigado, por razões de honra, a não
revelar. O Tribunal do Vice-Almirantado de Newport, sem saber o que fazer, pois se de um lado a
natureza da carga não poderia ser considerada contrabando, do outro, o sigilo da mercadoria era
ilegal, adotou uma solução de compromisso por recomendação do coletor Robinson, liberando o
navio mas proibindo-o de ancorar em qualquer porto nas águas de Rhode Island. Surgiram
posteriormente boatos de que teria sido visto no porto de Boston, embora nunca tivesse entrado
abertamente no porto bostoniano.
Este incidente extraordinário não podia deixar de ser muito comentado em Providence e foram
poucos os que duvidaram da existência de alguma relação entre a carga de múmias e o sinistro
Joseph Curwen. Como seus estudos exóticos e suas curiosas importações de natureza química eram
de conhecimento público e sua predileção por cemitérios uma suspeita geral, não era necessária
muita imaginação para atribuir-lhe os esquisitos itens importados que evidentemente não poderiam
se destinar a nenhuma outra pessoa da cidade. Como se estivesse consciente dessa convicção
natural, Curwen tomou o cuidado de falar casualmente, em várias ocasiões, do valor químico dos
bálsamos encontrados nas múmias, pensando talvez que assim poderia fazer com que a coisa
parecesse menos anormal, sem contudo admitir sua participação. Weeden e Smith, é claro, não
tinham qualquer dúvida quanto à importância do fato, e aventavam as mais tresloucadas teorias a
respeito de Curwen e de suas monstruosas atividades.
Na primavera seguinte, como na do ano anterior, caíram fortes chuvas e os espiões vasculharam
cuidadosamente a margem do rio atrás da fazenda de Curwen. Grandes trechos foram levados pelas
águas e uma certa quantidade de ossos ficou descoberta, mas nem sombra de qualquer câmara ou
cova subterrânea. No entanto, alguns rumores se espalharam na aldeia de Pawtuxet, cerca de uma
milha rio abaixo, onde o rio despenca por quedas d água sobre um terraço de pedra até chegar à
plácida enseada protegida. Lá, onde velhos e esquisitos sobrados subiam morro acima desde a ponte
rústica e barcos de pesca ficavam ancorados em seus cais sonolentos, correram vagos boatos de
coisas que flutuavam rio abaixo e podiam ser vistas por um instante ao passar pela queda d'agua. E
verdade que o Pawtuxet é um rio extenso que vai serpeando por muitas regiões povoadas onde os
cemitérios são numerosos, e que as chuvas da primavera haviam sido muito pesadas, mas os
pescadores perto da ponte não gostaram do olhar desvairado de uma das coisas ao precipitar na água
tranqüila lá em baixo, ou do modo como outra gritou, embora seu estado fosse bastante diferente
daquele dos objetos que normalmente gritam. Esse boato fez Smith correr — pois Weeden se
encontrava no mar naquele momento — para a margem do rio atrás da fazenda, onde seguramente
existiriam os sinais de uma enorme caverna. No entanto, não havia indício algum de uma passagem
para o interior da margem escarpada, pois a minúscula avalanche havia deixado para trás uma sólida
parede de terra misturada com os arbustos do topo. Smith tentou até fazer uma escavação a título
experimental, mas foi dissuadido pelo insucesso — ou talvez pelo temor do possível sucesso. É
interessante especular sobre aquilo que o persistente e vingativo Weeden teria feito se se
encontrasse em terra na ocasião.
3
No outono de 1770, Weeden decidiu que era chegado o momento de falar aos outros sobre suas
descobertas, pois ele tinha uma grande quantidade de fatos para relacionar e uma segunda
testemunha ocular para refutar a possível acusação de que o ciúme e o desejo de vingança haviam
estimulado sua imaginação. Como seu primeiro confidente ele escolheu o capitão James
Mathewson, do Enterprise, que de um lado o conhecia o bastante para não duvidar de sua
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veracidade, e do outro era suficientemente influente na cidade para ser ouvido, por sua vez, com
respeito. O colóquio realizou-se num quarto em cima da Taberna de Sabin, perto das docas, com
Smith presente para corroborar praticamente todas as afirmações. Percebia-se que o capitão
Mathewson estava terrivelmente impressionado. Como quase todo mundo na cidade, ele também
alimentava suas próprias obscuras suspeitas a respeito de Joseph Curwen; por isso bastou apenas
essa confirmação e um número maior de dados para convencê-lo completamente. No final da
conferência, ele tinha um ar muito grave e recomendou rigoroso silêncio aos dois jovens. Disse que
transmitiria a informação separadamente a uns dez dos cidadãos mais instruídos e destacados de
Providence, indagando suas opiniões e seguindo qualquer conselho que eles pudessem oferecer. O
sigilo provavelmente seria aconselhável em todo caso, pois não se tratava de um assunto que as
autoridades policiais ou os milicianos da cidade pudessem resolver, e, acima de tudo, a multidão
excitável deveria ser mantida na ignorância, para que nesses tempos, por si já conturbados, não se
repetisse o pânico assustador ocorrido em Salem, menos de meio século antes, que trouxera Curwen
para Providence.
As pessoas que convinha informar da situação seriam, achava ele, o doutor Benjamin West,
cujo trabalho sobre a tardia morte de Vênus revelara um estudioso e agudo pensador; o reverendo
James Manning, diretor do College, que acabara de mudar-se de Warren e estava temporariamente
hospedado no novo edifício da escola em King Street, aguardando a conclusão de sua construção
sobre a colina acima de Presbyterian Lane; o ex-governador Stephen Hopkins, que havia sido
membro da Sociedade Filosófica de Newport e era um homem do mais amplo discernimento; John
Cárter, editor do Gazette; os quatro irmãos Brown, John, Joseph, Nicholas e Moses,
reconhecidamente os magnatas locais, sendo que Joseph era um cientista amador de algum talento;
o velho doutor Jabez Bowen, cuja erudição era considerável e tinha bastante conhecimento em
primeira mão das estranhas aquisições de Curwen; e o capitão Abraham Whipple, um pirata de
audácia e energia fenomenais, com quem se poderia contar para chefiar qualquer operação
necessária. Caso se mostrassem favoráveis, esses homens poderiam se unir para uma deliberação
conjunta e a eles caberia a responsabilidade de decidir se deveriam ou não informar o governador da
Colônia, Joseph Wanton, de Newport, antes de agir.
A missão do capitão Mathewson teve um sucesso superior às suas expectativas pois embora
uma ou duas das pessoas de confiança a quem fez suas revelações se mostrassem céticas devido ao
possível aspecto fantástico da história de Weeden, não houve nenhuma que não achasse necessário
empreender uma ação secreta e coordenada. Estava claro que Curwen constituía uma vaga ameaça
potencial para o bem-estar da cidade e da Colônia e devia ser eliminado a todo custo. No final de
dezembro de 1770, um grupo de eminentes cidadãos reuniu-se na casa de Stephen Hopkins e
debateu várias medidas a serem tomadas. As anotações de Weeden, que ele entregara ao capitão
Mathewson, foram lidas cuidadosamente e ele e Smith foram convidados a apresentar seu
testemunho em certos detalhes. Algo muito próximo do medo apoderou-se de toda a assembléia
antes que a reunião se concluísse, embora ao medo se misturasse uma inflexível determinação que
as rudes e retumbantes blasfêmias do capitão Whipple expressavam do modo melhor. Eles não
notificariam o governador, porque parecia necessária uma conduta mais do que legal. Com os
poderes ocultos de alcance desconhecido de que aparentemente dispunha, Curwen não era um
homem a quem se pudesse pedir que deixasse a cidade sem riscos. Represálias inomináveis
poderiam decorrer e, mesmo que a sinistra criatura concordasse, a mudança não iria além da
transferência de um problema imundo para outro lugar. Eram tempos em que a ilegalidade imperava
e os homens que há anos escarneciam das forças da alfândega real não recusariam medidas mais
duras se o dever os obrigasse a isso. Curwen deveria ser surpreendido em sua fazenda de Pawtuxet
pela incursão de um grande destacamento de calejados piratas e lhe seria oferecida uma chance
decisiva de se explicar. Se ficasse comprovado que ele era louco, divertindo-se com estrepitosas e
imaginárias conversações em vozes diferentes, seria convenientemente internado num asilo. Se algo
mais grave viesse à luz e se de fato os horrores subterrâneos se revelassem reais, ele e todos que
estavam com ele deveriam perecer. A coisa poderia ser feita sem alarde e mesmo a viúva e seu pai
não precisariam ser informados da maneira como aquilo iria acontecer.
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Enquanto essas sérias medidas estavam sendo discutidas, ocorreu na cidade um incidente tão
terrível e inexplicável que, por algum tempo, não se comentou outra coisa por milhas e milhas ao
redor. No meio de uma noite enluarada de janeiro, quando espessa camada de neve cobria o chão,
ressoou sobre o rio e sobre a colina uma série chocante de gritos que atraiu às janelas muitas
cabeças sonolentas e as pessoas perto de Weybosset Point viram uma grande coisa branca
mergulhar desvairadamente no espaço em frente à Cabeça do Turco. Ouviu-se um latir de cachorros
na distância, que cessou assim que o clamor da cidade desperta se tornou audível. Grupos de
homens com lanternas e mosquetes precipitaram-se para fora para ver o que acontecia, mas suas
buscas foram infrutíferas. Na manhã seguinte, porém, um corpo musculoso, gigantesco, totalmente
nu, foi encontrado sobre os montões de gelo ao redor dos molhes meridionais da Great Bridge, onde
as Longas Docas se estendiam ao lado da destilaria Abbott, e a identidade desse objeto tomou-se
assunto de infindáveis especulações e murmúrios. Não eram tanto os mais jovens quanto os mais
velhos que murmuravam, pois somente nos patriarcas o rosto rígido cujos olhos horrorizados saíam
das órbitas despertava vagas lembranças. Balançando a cabeça, eles trocavam furtivos sussurros de
espanto e medo; pois naqueles traços enrijecidos e horrendos havia uma semelhança tão assombrosa
que se tornava quase uma identidade total — e essa identidade era com um homem que havia
morrido uns bons cinqüenta anos antes.
Ezra Weeden estava presente na descoberta e, lembrando o latir da noite anterior, dirigiu-se por
Weybosset Street, do outro lado de Muddy Dock Bridge, de onde o som viera. Tinha uma curiosa
expectativa e não ficou surpreso quando, chegando ao fim da zona habitada, onde a rua
desembocava na Pawtuxet Road, deparou com umas curiosas marcas no chão. O gigante nu havia
sido perseguido por cães e muitos homens de botas e as marcas dos animais e seus donos no
caminho de volta se distinguiam facilmente. Eles haviam desistido da perseguição ao chegar
demasiado perto da cidade. Weeden sorriu de modo sinistro e, como se se tratasse de um detalhe
insignificante, seguiu as pegadas até o seu ponto de origem. Era a fazenda Pawtuxet de Joseph
Curwen, como ele sabia muito bem; e teria dado qualquer coisa para que o terreno não estivesse
pisoteado de maneira tão confusa. Por outro lado, não ousou se mostrar tão interessado à plena luz
do dia. O doutor Bowen, que Weeden procurou imediatamente com seu relato, fez uma autópsia do
estranho cadáver e descobriu peculiaridades que o deixaram absolutamente aturdido. O aparelho
digestivo do homenzarrão parecia nunca ter sido usado, enquanto toda a sua pele tinha uma textura
áspera e frouxa impossível de explicar. Impressionado com aquilo que os velhos murmuravam a
respeito da semelhança do cadáver com o ferreiro Daniel Green, falecido há muito tempo, e cujo
bisneto Aaron Hoppin era comissário de bordo aos serviços de Curwen, Weeden fez algumas
perguntas aparentemente casuais até descobrir onde Green estava enterrado. Naquela noite, um
grupo de dez homens visitou o antigo Cemitério Norte, do outro lado de Herrenden's Lane, e abriu
um túmulo. Descobriram que estava vazio, precisamente como esperavam.
Enquanto isso, haviam sido feitos acordos com os funcionários da diligência a fim de
interceptar a correspondência de Joseph Curwen e, pouco antes do incidente com o corpo nu, foi
encontrada uma carta de um tal Jedediah Orne, de Salem, que deixou os cooperativos cidadãos
profundamente preocupados. Trechos da missiva, copiados e conservados nos arquivos particulares
da família onde Charles Ward a encontrou, diziam:
"Alegro-me que o senhor continue no estudo de Antigos Casos com seu método e não penso que melhor
tenha sido feito na casa do senhor Hutchinson, na vila de Salem. Certamente, nada havia senão o mais vivo
horror no que H. evocou daquilo que só pudemos compreender apenas em parte. O que o senhor enviou não
funcionou, ou porque alguma coisa estava faltando, ou porque as palavras que eu pronunciei ou que o senhor
copiou não estavam certas. Sozinho fico sem saber. Não possuo as artes químicas para imitar Borellus e
confesso que fiquei confuso com o VII Livro do Necronomicon que o senhor recomenda. Mas gostaria que
observasse o que nos foi dito a respeito de quem chamar, pois o senhor tem conhecimento do que o senhor
Mather escreveu nos Marginalia de ______, e pode julgar quão fielmente a Horrenda Coisa está relatada.
Recomendo-lhe novamente que não evoque ninguém que não possa mandar de volta; com isso quero dizer,
ninguém que por sua vez possa chamar algo contra o senhor, contra o qual seus mais poderosos artifícios não
seriam de uso algum. Chame os menores para que os maiores não desejem responder e sejam mais poderosos
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do que o senhor. Fiquei assustado quando li que o senhor sabe o que Ben Zaristnatmik tem em sua Caixa de
Ébano, pois estou ciente de quem lhe deve ter contado. E novamente peco-lhe que me escreva como Jedediah
e não como Simon. Nessa comunidade um homem pode não -viver por muito tempo e o senhor conhece meu
Plano, pelo qual voltei como meu Filho. Desejaria que me fizesse conhecer o que o Homem Negro aprendeu
com Sylvanus Cocidius na cripta debaixo do muro romano e ficaria agradecido se me emprestasse o
manuscrito de que o senhor fala."
Outra carta não assinada de Filadélfia provocou igual preocupação, principalmente pelo
seguinte trecho:
"Observarei o que o senhor diz com respeito ao envio das contas unicamente por seus navios, mas não
pode saber ao certo quando deverá esperá-las. Quanto ao assunto de que fala, quero apenas mais uma coisa,
mas desejo ter certeza de que o entendo perfeitamente. O senhor me informa que nenhuma parte deve estar
faltando para que se obtenham os melhores efeitos, mas o senhor deve saber quão difícil é ter certeza. Parece
muito perigoso e uma tarefa muito pesada levar toda a caixa, e na cidade (ou seja, na Igreja de São Pedro,
São Paulo, Santa Maria e na Igreja de Cristo) isto não pode ser feito. Mas sei das imperfeições daquele que
foi retirado em outubro passado e quantos espécimes vivos o senhor foi obrigado a empregar antes de chegar
ao método certo no ano de 1766; portanto, seguirei suas orientações em todas as questões. Aguardo com
impaciência seu brigue e indago todos os dias no cais do senhor Biddle".
Uma terceira carta suspeita estava escrita num língua desconhecida e inclusive num alfabeto
desconhecido. No diário de Smith encontrado por Charles Ward, uma única combinação de
caracteres várias vezes repetida está copiada desajeitadamente e as autoridades da Brown University
declararam tratar-se do alfabeto amárico ou abissínio, embora não compreendessem uma palavra.
Nenhuma dessas missivas jamais foi entregue a Curwen, embora o desaparecimento de Jedediah
Orne, de Salem, relatado pouco depois, demonstrasse que os homens de Providence haviam tomado
medidas secretas. Também a Sociedade Histórica da Pensilvânia possui uma curiosa carta recebida
pelo doutor Shippen referente à presença de um personagem abominável em Filadélfia. Mas
medidas mais decisivas estavam no ar e é nas reuniões noturnas e secretas de calejados marujos
juramentados e velhos e fiéis piratas nos armazéns Brown que devemos procurar os principais
frutos das revelações de Weeden. Lenta e firmemente foi se desenvolvendo o plano de uma
campanha que não deixaria traço dos funestos mistérios de Joseph Curwen.
Este, apesar de todas as precauções, aparentemente sentia que havia algo no ar, pois agora
podia-se perceber seu olhar inusitadamente preocupado. Sua carruagem era vista a todas as horas
pela cidade e na Pawtuxet Road e ele havia abandonado aos poucos o ar de forçada jovialidade com
o qual ultimamente tentara combater o preconceito da cidade. Os vizinhos mais próximos à sua
fazenda, os Fenners, uma noite notaram um grande feixe de luz projetar-se no céu de alguma
abertura do telhado daquele misterioso edifício de pedra de altas janelas excessivamente estreitas;
acontecimento que de imediato comunicaram a John Brown em Providence. O senhor Brown
tornara-se o chefe do seleto grupo resolvido a eliminar Curwen e informara os Fenners de que
estava prestes a ser tomada alguma medida. Achara isto necessário, visto ser impossível que a
família não testemunhasse a incursão final e justificou seu procedimento afirmando que Curwen era
um notório espião dos funcionários da alfândega de Newport, contra a qual aberta ou
clandestinamente todo marujo, negociante e fazendeiro de Providence conspirava. Não se sabe ao
certo se os vizinhos que haviam visto tantas coisas estranhas aceitaram a justificativa; em todo caso,
os Fenners estavam propensos a atribuir todo mal a um homem de hábitos tão curiosos. A eles o
senhor Brown confiou a tarefa de observar a casa da fazenda de Curwen e de relatar regularmente
todo fato que lá ocorresse.
4
A probabilidade de que Curwen estivesse em guarda e tentando coisas inusitadas, como
sugeria o estranho feixe de luz, por fim precipitou a ação tão cuidadosamente planejada pelo grupo
de homens de bem. Segundo o diário de Smith, uma companhia de cerca de cem homens encontrou-
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se às dez da noite na sexta-feira, 12 de abril de 1771, na sala grande da Taberna de Thurston, ao
Leão Dourado, em Weybosset Point, do outro lado da ponte. Do grupo de vanguarda composto de
homens proeminentes, além do líder, John Brown, estavam presentes o doutor Bowen, com sua
valise de instrumentos cirúrgicos, o diretor Manning, sem a grande peruca (a maior das Colônias)
pela qual se distinguia, o governador Hopkins, envolto em seu manto escuro e acompanhado por
seu irmão Eseh, homem do mar incluído no último momento com a permissão dos restantes, John
Cárter, o capitão Mathewson e o capitão Whipple, que chefiaria o grupo invasor. Esses chefes
conferenciaram separadamente num cômodo de trás, depois do que o capitão Whipple dirigiu-se
para a sala grande e, fazendo-os jurar fidelidade, deu aos marujos reunidos as últimas instruções.
Eleazer Smith ficou com os chefes durante a reunião no aposento posterior, aguardando a chegada
de Ezra Weeden, cuja tarefa consistia em vigiar Curwen e informar a saída de sua carruagem rumo
à fazenda.
Por volta de dez e meia um ruído prolongado e surdo foi ouvido sobre a Great Bridge,
seguido por aquele de uma carruagem na rua adiante; àquela hora não havia necessidade de esperar
Weeden para saber que o homem condenado se pusera a caminho para sua última noite de iníquas
bruxarias. Um instante mais tarde, enquanto o ruído da carruagem que se afastava soava fracamente
sobre Muddy Dock Bridge, Weeden apareceu e os invasores se alinharam silenciosamente em
ordem militar na rua, tendo aos ombros seus mosquetes, espingardas de caça ou arpões para a caça
às baleias que traziam consigo. Weeden e Smith estavam com o grupo e do pessoal do conselho
estavam presentes para tomar parte da ação o capitão Whipple, o chefe, o capitão Eseh Hopkins,
John Cárter, o diretor Manning, o capitão Mathewson e o doutor Bowen, juntamente com Moses
Brown, que apareceu às onze horas, embora estivesse ausente da sessão preliminar na taberna.
Todos esses cidadãos e sua centena de marujos iniciaram a longa marcha sem delongas,
determinados e um tanto apreensivos ao deixar Muddy Dock atrás de si, subindo pelo suave aclive
de Broad Street em direção a Pawtuxet Road. Logo atrás da Igreja de Elder Snow, alguns deles
viraram-se para lançar um olhar de despedida a Providence que se espalhava debaixo das estrelas do
início da primavera. Torres e frontões erguiam-se negros e bem delineados, e a brisa salobra
soprava gentilmente da enseada ao norte da ponte. Vega subia sobre a grande colina, do outro lado
do rio, onde o contorno das árvores era quebrado pela linha dos telhados do edifício inacabado do
College. Ao pé daquela colina e ao longo das estreitas ruelas que trepavam por seus flancos, a velha
cidade dormia; Old Providence, em nome de cuja segurança e salvação moral uma blasfema tão
monstruosa e colossal estava prestes a ser eliminada.
Uma hora e um quarto mais tarde, os invasores chegaram, conforme havia sido previamente
combinado, à casa da fazenda Fenner, onde ouviram o último relato sobre sua futura vítima. Ele
havia chegado à sua fazenda há mais de meia hora, em seguida a estranha luz apontara para o céu,
mas não havia luzes em nenhuma janela visível. Ultimamente era quase sempre assim. E no mesmo
instante em que essa notícia estava sendo dada, outro grande clarão subiu ao sul e o grupo se deu
conta de que de fato se aproximava do cenário de terríveis e monstruosos prodígios. O capitão
Whipple então ordenou à tropa que se separasse em três grupos; um de vinte homens sob o
comando de Eleazer Smith para atacar do lado da praia e guardar o local de desembarque contra
possíveis reforços para Curwen, até ser convocado por um mensageiro como recurso extremo; um
segundo de vinte homens, sob o comando do capitão Eseh Hopkins, para descer até o vale do rio
atrás da fazenda de Curwen e derrubar com machados ou pólvora a porta de carvalho da margem
íngreme e elevada; e o terceiro, para cercar a casa e os edifícios adjacentes. Um terço desse grupo
seria conduzido pelo capitão Mathewson até o misterioso edifício de pedra com altas janelas
estreitas, outro terço seguiria o próprio capitão Whipple até a casa principal da fazenda e o restante
formaria um círculo ao redor de todo o grupo de edifícios até ser chamado por um último sinal de
emergência.
O grupo do rio derrubaria a porta na encosta do morro ao ouvir soar um único apito, com
ordens de aguardar e capturar tudo o que emergisse das regiões subterrâneas. Ao soarem dois
apitos, avançaria pela abertura para fazer frente ao inimigo ou se uniria ao restante do contingente
invasor. O grupo postado no edifício de pedra obedeceria, de modo análogo, a esses respectivos
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sinais, forçando a entrada ao primeiro e ao segundo descendo por qualquer passagem que viesse a
ser descoberta no terreno para se unir à escaramuça geral ou local que, esperava-se, ocorreria nas
cavernas. Um terceiro sinal, esse de emergência, de três apitos, convocaria a reserva destacada para
a tarefa de vigilância geral, seus vinte homens se dividiriam em número igual e penetrariam nas
profundezas desconhecidas tanto pela casa da fazenda quanto pelo edifício de pedra. O capitão
Whipple tinha a convicção absoluta de que existiam catacumbas e não levou em consideração
nenhuma alternativa ao fazer seus planos. Ele trazia consigo um apito muito potente e de som muito
agudo e não temia qualquer equívoco ou confusão dos sinais. O último contingente de reserva, no
desembarcadouro, é claro, estava fora do alcance do apito, e exigiria um mensageiro especial se sua
ajuda fosse necessária. Moses Brown e John Cárter foram com o capitão Hopkins para a margem do
rio, enquanto o diretor Manning era destacado com o capitão Mathewson para o edifício de pedra. O
doutor Bowen, com Ezra Weeden, permaneceu no grupo do capitão Whipple que deveria tomar de
assalto a casa da fazenda. O ataque deveria iniciar assim que um mensageiro do capitão Hopkins
alcançasse o capitão Whipple para notificá-lo de que o destacamento do rio estava de prontidão. O
chefe então sopraria urna única vez o apito e os vários destacamentos de vanguarda começariam seu
ataque simultâneo a três pontos. Pouco antes de uma da manhã, os três grupos deixaram a casa da
fazenda Fenner; um para guardar o desembarcadouro , outro rumando para o vale do rio e a porta na
encosta do morro, e o terceiro para dividir-se e cuidar dos edifícios da fazenda Curwen.
Eleazer Smith, que acompanhara o grupo de guarda na praia, registra em seu diário uma
marcha calma e uma longa espera sobre o penhasco da baía, interrompida a certa altura por aquilo
que pareceu o som distante do apito de advertência e de novo por uma mistura abafada e peculiar de
estrondos e gritos e uma explosão que pareciam vir da mesma direção. Mais tarde, um homem
acreditou ter ouvido tiros distantes, e mais tarde ainda o próprio Smith escutou o reboar de palavras
titânicas e trove-jantes ressoando a grande altura. Foi pouco antes do amanhecer que surgiu um
único mensageiro transtornado de olhar desvairado e com um odor horrendo e desconhecido
exalando de suas roupas, dizendo que o destacamento dispersasse e voltasse silenciosamente para as
respectivas casas e jamais pensasse ou mencionasse os feitos da noite ou daquele que havia sido
Joseph Curwen. Algo no comportamento do mensageiro revelava uma convicção que suas simples
palavras jamais conseguiriam transmitir, pois embora fosse um marujo conhecido por muitos deles,
havia algo obscuramente perdido ou conquistado em sua alma que o tornaria para sempre diferente
dos outros. O mesmo ocorreu quando, mais tarde, eles encontraram outros velhos companheiros que
haviam penetrado naquela zona de horror. A maioria deles havia perdido ou conquistado algo
imponderável e indescritível. Haviam visto, ouvido ou sentido algo que não era para criaturas
humanas e jamais poderiam esquecer. Deles jamais partiu um comentário, pois mesmo para o mais
comum dos instintos mortais existem limites terríveis. E aquele único mensageiro incutiu no grupo
da praia um pavor indizível que quase selou seus lábios. Foram pouquíssimos os boatos espalhados
por qualquer um deles e o diário de Eleazer Smith é o único registro escrito sobrevivente de toda a
expedição que partira do estabelecimento do Leão Dourado sob as estrelas.
No entanto, Charles Ward descobriu outras vagas informa coes incidentais na
correspondência de Fenner encontrada em Nova Londres, onde sabia ter residido outro ramo da
família. Parece que os Fenners, de cuja casa a fazenda condenada era visível à distância, haviam
observado as colunas de incursores pôr-se em marcha e haviam ouvido com muita clareza o raivoso
latido dos cães de Curwen, seguido pelo primeiro som agudo do apito que precipitou o ataque. O
primeiro apito havia sido seguido por outro grande feixe de luz saindo do edifício de pedra, e mais
tarde, após o rápido ecoar do segundo sinal ordenando uma invasão geral, ouviu-se um pipocar
atenuado de tiros de mosquete e depois um horrível bramido que o missivista Luke Fenner
representara em sua epístola com as letras "Uaaaahrrrr-R'uaaahrrr". Esse grito, porém, era de tal
natureza que seria impossível traduzi-lo em simples caracteres impressos e o missivista menciona
que sua mãe perdeu completamente os sentidos àquele som. Mais tarde foi repetido, com menor
força, seguindo-se outros ruídos mais abafados de tiros, juntamente com urna explosão muito forte
na direção do rio. Cerca de uma hora mais tarde, todos os cães começaram a latir assustadoramente
e ouviram-se vagos sons surdos e prolongados vindos da terra, tão acentuados que os castiçais se
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agitaram sobre a lareira. Foi notado um forte odor de enxofre e o pai de Luke Fenner declarou ter
ouvido o terceiro apito, o de emergência, embora os outros não o tivessem percebido. Novo barulho
surdo de disparos de mosquetes, seguido por um grito menos lancinante, mas mais horrível ainda do
que os precedentes; uma espécie de tosse gutural ou de gorgolejo, desagradavelmente plástica, cuja
semelhança com um grito devia-se talvez mais à sua continuidade e impacto psicológico do que à
sua qualidade acústica.
Então a coisa chamejante apareceu subitamente num ponto em que deveria se encontrar a
fazenda de Curwen e ouviram-se gritos de homens desesperados e apavorados. Os mosquetes
faiscaram e crepitaram e a coisa chamejante caiu ao solo. Uma segunda coisa chamejante apareceu
e distinguiu-se claramente um grito agudo de choro humano. Fenner escreveu que conseguiu até
compreender algumas palavras vomitadas como num delírio: "Todo-poderoso, protege teu
cordeiro!" Então, houve mais tiros e a segunda coisa chamejante caiu. Depois disso fez-se o silêncio
por cerca de três quartos de hora, no fim do qual o pequeno Arthur Fenner, irmão de Luke,
exclamou que vira "uma névoa vermelha" subindo da fazenda maldita até as estrelas, à distância.
Ninguém, com exceção da criança, poderia provar isso, mas Luke admite uma coincidência
significativa no pânico de um terror quase convulsivo que, no mesmo instante, fez com que os três
gatos que se encontravam na sala arqueassem o dorso e eriçassem o pêlo.
Cinco minutos mais tarde, começou a soprar um vento gélido e o ar ficou impregnado de um
fedor tão intolerável que somente a forte brisa do mar impediu que fosse percebido pelo grupo da
praia ou por alguma das almas vigilantes na aldeia de Pawtuxet. Esse fedor não se assemelhava a
nada que os Fenners conhecessem e provocou uma espécie de pavor avassalador, amorfo, muito
pior do que o do túmulo ou do cemitério. Logo em seguida ouviu-se a voz pavorosa que nenhum
infeliz ouvinte jamais poderá esquecer. Ela ribombava do céu como uma condenação e as janelas
tremeram enquanto seus ecos se perdiam. Era profunda e musical; possante como a de um órgão,
mas maligna como os livros Proibidos dos árabes. Homem algum pode saber o que ela dizia, porque
falava numa língua desconhecida, mas isto é o que Luke Fenner transcreveu para reproduzir os
demoníacos sons: "DEES MEES - JESHET - BONEDOSEFEDUVEMA - ENTTEMOSS". Foi
somente no ano de 1919 que alguém relacionou essa transcrição tosca com algum tipo de
conhecimento mortal, mas Charles Ward empalideceu ao reconhecer o que Mirandola denunciara
estremecendo como o mais pavoroso horror das feitiçarias da magia negra.
Um grito inconfundivelmente humano ou um grito profundo e coral pareceu responder a esse
prodígio maligno que vinha da fazenda de Curwen, em seguida o fedor desconhecido se tornou mais
pesado ao acrescentar-se um odor igualmente intolerável. Lamentos distintamente diferentes de
gritos irrompiam agora e prolongavam-se em uivos com paroxismos ascendentes e descendentes.
Às vezes eram quase articulados, embora ouvinte algum pudesse captar palavras definidas; a certa
altura, pareciam elevar-se até se tornarem quase risadas diabólicas e histéricas. Depois, um bramido
de definitivo e absoluto terror, e a loucura total arrebentou de dezenas de gargantas humanas; um
bramido que soou forte e claro apesar da profundeza da qual deve ter jorrado; após o que a
escuridão e o silêncio dominaram todas as coisas. Espirais de fumaça acre subiram apagando as
estrelas, embora não aparecessem chamas e no dia seguinte não se visse nenhum edifício destruído
ou danificado.
Perto da madrugada, dois mensageiros apavorados, com cheiros monstruosos e indescritíveis
saturando suas vestimentas, bateram à porta dos Fenners e pediram um barrilete de rum pelo qual
pagaram muito bem. Um deles disse à família que o caso de Joseph Curwen estava encerrado e que
os acontecimentos da noite nunca mais deveriam ser mencionados. Por mais arrogante que a ordem
pudesse parecer, o aspecto daquele que a dava era tal que não provocou nenhum ressentimento e
emprestou-lhe uma terrível autoridade; de modo que somente as furtivas missivas de Luke Fenner,
que ele instou o parente de Connecticut a destruir, restam para contar o que foi visto e ouvido. O
não-atendimento desse parente, graças ao qual as cartas foram salvas apesar de tudo, foi a única
coisa que impediu que o assunto caísse num piedoso esquecimento. Charles Ward tinha outro
detalhe a acrescentar como resultado de uma cuidadosa investigação sobre as tradições ancestrais
junto aos habitantes de Pawtuxet. O velho Charles Slocum daquela aldeia disse que seu avô soubera
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de um curioso boato referente a um corpo carbonizado e retorcido, encontrado nos campos uma
semana depois do anúncio da morte de Joseph Curwen. O que gerou o boato foi a constatação de
que esse corpo, pelo que se podia depreender dos restos queimados e contorcidos, não podia ser
considerado nem totalmente humano nem podia ser atribuído a nenhum animal que o povo de
Pawtuxet jamais tivesse visto ou conhecido por leituras.
5
Nenhum dos participantes daquela terrível incursão jamais seria induzido a pronunciar palavra
a seu respeito e qualquer fragmento das vagas informações remanescentes vem de pessoas estranhas
ao grupo que realizara o combate final. Há algo aterrador no cuidado com o qual os verdadeiros
invasores destruíram os fragmentos que traziam a menor alusão ao assunto.
Oito marinheiros foram mortos, mas embora seus corpos não fossem apresentados, suas
famílias se contentaram com a declaração de que ocorrera um choque com funcionários da
alfândega. O mesmo serviu para justificar os numerosos casos de ferimentos, todos eles cuidados e
tratados pelo doutor Jabez Bowen, que acompanhara o grupo. O mais difícil foi explicar o odor
indescritível que impregnava todos os invasores, fato discutido durante semanas. Dos cidadãos no
comando, o capitão Whipple e Moses Brown foram os mais gravemente feridos e algumas cartas de
suas esposas comprovam o espanto provocado por sua reticência e excessivo cuidado em relação
aos curativos. Psicologicamente, cada um dos participantes mostrou-se abalado, amadurecido, de
certo modo envelhecido, mais moderado. Por sorte, eram todos homens de ação, fortes e simples,
religiosos ortodoxos, pois se fossem dotados de uma introspecção mais sutil e de maior
complexidade mental teriam se saído muito mal. O diretor Manning ficou mais perturbado do que
todos, mas ele também venceu as mais negras trevas e sufocou as lembranças na oração. Todos
aqueles chefes desempenhariam papéis ativos nos anos seguintes e talvez tenha sido bom que isso
se desse. Pouco mais de doze meses depois, o capitão Whipple liderou a multidão que incendiou o
barco Gaspee, das autoridades da alfândega, e nesse ato audacioso podemos per
ceber uma tentativa de apagar perniciosas imagens.
À viúva de Joseph Curwen foi entregue um caixão de chumbo lacrado, de feitio curioso,
obviamente encontrado pronto no local, no qual lhe foi dito encontrar-se o corpo do marido. Foi
explicado que ele havia sido morto num choque com a milícia da alfândega a respeito do qual não
seria conveniente buscar detalhes. Mais do que isso língua alguma nada jamais pronunciou sobre o
fim de Joseph Curwen e Charles Ward dispunha de uma única indicação com a qual construir uma
teoria. Esta indicação era um simples fio — um traço tremido sublinhando um trecho da carta de
Jedediah Orne a Curwen que havia sido confiscada e copiada em parte à mão por Ezra Weeden. A
cópia foi encontrada com um dos descendentes de Smith e a nós cabe decidir se Weeden a deu ao
seu companheiro depois do fim, como um mudo indício da anormalidade que havia ocorrido, ou se,
como é mais provável, Smith a obtivera antes, e ele próprio acrescentara o grifo a partir daquilo que
conseguira extrair de seu amigo por meio de inteligentes conjeturas e hábeis perguntas. O trecho
sublinhado é este:
"Digo-lhe novamente, não evoque ninguém que não possa mandar de volta; quero dizer ninguém que
por sua vez chame algo contra o senhor e contra o qual seus recursos mais poderosos não possam ter eficácia
alguma. Busque os menores, para que os maiores não desejem responder e tenham mais poder do que o
senhor".
À luz desse trecho e refletindo sobre que aliados inomináveis um homem derrotado pode tentar
convocar em seu mais funesto transe, Charles Ward pode ter se perguntado se algum cidadão de
Providence não teria assassinado Joseph Curwen.
A destruição total de toda lembrança do morto da vida e dos anais de Providence foi
amplamente corroborada pela influência dos chefes da invasão. De início, eles não pretendiam ser
tão radicais e, por outro lado, a viúva, seu pai e filha foram deixados na ignorância dos fatos reais;
mas o capitão Tillinghast era um homem astuto e logo teve conhecimento de boatos suficientes para
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aguçar seu horror e exigir que sua filha e neta mudassem o nome, queimassem a biblioteca e todos
os papéis restantes e raspassem a inscrição da lápide de ardósia sobre o jazigo de Joseph Curwen.
Ele conhecia bem o capitão Whipple e provavelmente obteve mais indícios daquele rude marinheiro
do que de qualquer outra pessoa sobre o fim do amaldiçoado bruxo.
A partir daquela época, a eliminação da memória de Curwen se tornou cada vez mais rigorosa,
estendendo-se inclusive, por consenso comum, até os registros da cidade e os arquivos do Gazette.
Só pode ser comparada pelo espírito ao silêncio que envolveu o nome de Oscar Wilde por toda uma
década depois que ele caíra em desgraça e, pela extensão, somente ao destino do pecaminoso rei de
Runagur na história de lorde Dunsany, a respeito do qual os deuses decidiram que não só deveria
cessar de existir como se deveria negar que tivesse existido.
A senhora Tillinghast, como a viúva passou a ser conhecida a partir de 1772, vendeu a casa de
Olney Court e residiu com o pai em Power's Lane até sua morte, em 1817. A fazenda de Pawtuxet,
evitada por todas as criaturas, foi abandonada, caindo em ruínas com o passar dos anos e
aparentemente deteriorou-se com indizível rapidez. Por volta de 1780, só permaneciam de pé as
paredes de pedra e tijolos e em 1800 estas também haviam se transformado em ruínas disformes.
Ninguém se aventurava a olhar no matagal espesso na margem do rio, atrás do qual poderia existir a
porta da encosta do morro, e jamais tentou formar uma imagem definida dos fatos em meio aos
quais Joseph Curwen desaparecera junto com os horrores por ele mesmo criados.
Somente o velho e robusto capitão Whipple foi ouvido, vez por outra, por pessoas atentas
murmurar de si para si: "Que aquele____ morresse de sífilis, ele não tinha que rir enquanto gritava.
Era como se o excomungado ____tivesse um trunfo na manga. Por meia coroa eu botaria fogo em
sua____ casa".
Capítulo três
Uma pesquisa e uma evocação
1
Charles Ward, como vimos, soube apenas em 1918 que descendia de Joseph Curwen. Não
admira que imediatamente mostrasse profundo interesse por tudo o que dizia respeito ao antigo
mistério; pois todos os vagos boatos que ouvira a respeito de Curwen agora se tornavam algo vital
para ele, em cujas veias corria o sangue de Curwen. Nenhum estudioso de genealogia dotado de
agudeza e imaginação agiria de modo diferente e ele empreendeu então uma ávida e sistemática
coleta de informações sobre o antepassado.
Nas suas primeiras pesquisas não houve a menor tentativa de sigilo; de modo que mesmo o
doutor Lyman hesita em datar a loucura do jovem em qualquer período anterior ao final de 1919.
Ele conversava abertamente sobre o fato com a família — embora a mãe, em particular, não
estivesse satisfeita em possuir um antepassado como Curwen — e com os funcionários dos vários
museus e bibliotecas por ele visitados. Ao apelar para famílias de particulares em sua busca de
registros que supostamente possuiriam, ele não ocultava seu objetivo e compartilhava do mesmo
ceticismo bem-humorado com o qual eram vistos os relatos dos antigos autores de diários e cartas.
Frequentemente expressava profunda curiosidade por aquilo que de fato ocorrera um século e meio
antes naquela casa de Pawtuxet, cujo local tentara em vão encontrar, e por aquilo que Joseph
Curwen havia sido na realidade.
Quando descobriu o diário e os arquivos de Smith e encontrou a carta de Jedediah Orne,
decidiu visitar Salem e investigar as primeiras atividades de Curwen bem como suas relações lá na
cidade, o que fez nas férias da Páscoa de 1919. No Instituto Essex, que ele conhecia bem de estadas
anteriores na fascinante e antiga cidade de frontões puritanos em ruínas e aglomeração de telhados
com mansardas, comprimindo-se uns ao lado dos outros, foi gentilmente recebido e lá descobriu
uma quantidade considerável de informações sobre Curwen. Averiguou que seu ancestral nascera
em Salem-Village, hoje Danvers, a sete milhas da cidade, no dia 18 de fevereiro de 1662-63 e que
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fugira para fazer-se ao mar à idade de quinze, só aparecendo nove anos mais tarde, quando
regressou com a fala, as roupas e as maneiras de um inglês nativo e se estabeleceu na própria cidade
de Salem. Na época, ele tinha poucas relações com a família, mas passava a maior parte do seu
tempo debruçado sobre os livros curiosos adquiridos na Europa e as estranhas substâncias químicas
que chegavam para ele em navios procedentes da Inglaterra, França e Holanda. Certas viagens dele
para o interior eram objeto de muita curiosidade local e eram associadas, à boca pequena, a vagos
relatos de fogueiras sobre as colinas, à noite.
Os únicos amigos próximos a Curwen haviam sido um certo Edward Hutchinson, de Salem-
Village, e certo Simon Orne, de Salem. Com estes homens frequentemente era visto pelo parque e
as visitas entre eles eram bastante freqüentes. Hutchinson possuía uma casa fora da cidade, na
direção dos bosques, e as pessoas sensíveis não gostavam dela por causa dos sons ouvidos lá à
noite. Dizia-se que ele recebia estranhos visitantes e as luzes de suas janelas não eram sempre da
mesma cor. O conhecimento que ele demonstrava ter a respeito de pessoas há muito tempo falecidas
e de fatos há muito ocorridos era considerado totalmente blasfemo. Desapareceu aproximadamente
na época em que começou o pânico da bruxaria e nunca mais se ouviu falar nele. Naquele tempo,
Joseph Curwen também partiu, mas logo se soube que se estabelecera em Providence. Orne viveu
em Salem até 1720, quando o fato de não mostrar sinais visíveis de envelhecimento começou a
chamar a atenção das pessoas. Então ele desapareceu, embora, trinta anos mais tarde, seu sósia,
denominando-se seu filho, aparecesse para reclamar a propriedade. A procedência da reclamação
foi reconhecida com base em documentos lavrados por Simon Orne cuja caligrafia era conhecida, e
Jedediah Orne continuou a morar em Salem até 1771, quando certas cartas de cidadãos de
Providence endereçadas ao reverendo Thomas Barnard e a outros tiveram como resultado sua
silenciosa mudança para local desconhecido.
Documentos sobre todos esses estranhos fatos estavam disponíveis no Instituto Essex, no
Tribunal e no Cartório Civil e incluíam coisas comuns e inócuas como títulos de terras, escrituras de
venda de terras e fragmentos secretos de uma natureza mais estimulante. Havia quatro ou cinco
alusões inequívocas a eles nos registros dos processos de bruxaria: certo Hepzibah Lawson jurou,
no dia 10 de julho de 1692, no Tribunal de Oyer e Terminen presidido pelo juiz Hathorne, que
"quarenta bruxas e o Homem Negro foram vistos reunir-se nos bosques atrás da casa do senhor
Hutchinson", e certa Amity How declarou, numa sessão de 8 de agosto, perante o juiz Gedney, que
"o senhor C. B. (George Burroughs) naquela noite colocou a Marca do Diabo em Bridget S.,
Jonathan A., Simon O., Deliverance W., Joseph C., Susan P., Mehitable C., e Deborah B". Depois,
havia um catálogo da misteriosa biblioteca de Hutchinson como fora encontrada após seu
desaparecimento e um manuscrito inacabado em sua caligrafia, numa linguagem cifrada que
ninguém conseguia ler. Ward mandou fazer uma cópia fotostática desse manuscrito e começou a
trabalhar casualmente no código assim que lhe foi entregue. Depois do mês de agosto seguinte, seu
trabalho no código se tornou intenso e febril e, a partir daquilo que ele dizia e de seu
comportamento, existem razões para se acreditar que conseguira decifrar o código antes de outubro
ou novembro. Contudo, ele jamais afirmou se conseguira ou não.
Mas de maior interesse imediato era o material de Orne. Foi preciso pouco tempo para que
Ward provasse, graças à caligrafia, uma coisa que já havia estabelecido a partir do texto da carta
endereçada a Curwen, ou seja, que Simon Orne e seu suposto filho eram a mesma pessoa. Como
Orne dissera ao seu missivista, não era seguro viver por muito tempo em Salem, daí ele ter
resolvido se mudar por trinta anos para o exterior, só voltando para reclamar suas terras como
representante de uma nova geração. Orne aparentemente havia tomado o cuidado de destruir a
maior parte de sua correspondência, mas os cidadãos que agiram em 1771 descobriram e
preservaram algumas cartas e papéis que estimularam sua curiosidade. Havia fórmulas e diagramas
enigmáticos escritos em sua caligrafia e na de outras pessoas, que Ward agora copiou com cuidado
ou fotografou, e uma carta extremamente misteriosa numa caligrafia que o pesquisador reconheceu
por certos registros contidos no Cartório Civil como sendo positivamente de
Joseph Curwen.
24
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Essa carta de Curwen, embora não datada em relação ao ano, não foi evidentemente aquela em
resposta à escrita por Orne e que fora apreendida; por certas evidências Ward a atribuiu a uma data
não muito posterior a 1750. Talvez não seja fora de propósito apresentar seu texto integral, como
amostra do estilo de alguém cuja história foi tão obscura e terrível. Seu destinatário é chamado
"Simon", mas existe um traço (não foi possível a Ward estabelecer se de autoria de Curwen ou de
Orne) riscando a palavra.
Providence, 1º de maio
Irmão: —
Meu honrado e velho amigo, meus devidos respeitos e sinceras saudações àquele que servimos para seu
eterno poder. Acabo de descobrir aquilo que o senhor deve saber, referente ao funesto transe e ao que é
preciso fazer a respeito. Não estou disposto a segui-lo e partir por causa de minha idade, pois Providence não
possui a agudeza do latido na perseguição de coisas in-comuns e em seu julgamento. Estou atarefado com
navios e mercadorias e não poderia fazer como o senhor, além do mais, debaixo de minha fazenda em
Pawtuxet está aquilo que o senhor sabe não esperaria que eu voltasse como outra pessoa.
Mas eu estou disposto a enfrentar tempos difíceis, como lhe disse, e tenho trabalhado muito sobre a
maneira de reaver o que perdi. Na noite passada, descobri as palavras que evocam YOGGE-SOTHOTHE e
vi pela primeira vez aquele rosto de que fala Ibn Schacabac no _____________. E ELE disse que o III Salmo
no Liber-Damnatus tem a Clavícula. Com o Sol na V casa, Saturno na tríade, desenhe o Pentagrama do Fogo
e pronuncie e nono verso três vezes. Repita esse verso na véspera do dia da Cruz e de Todos os Santos e a
coisa se multiplicará nas esferas exteriores.
E da semente do velho nascerá Um que olhará para trás embora não saiba o que busca.
Isto de nada servirá se não houver um herdeiro e se os sais, ou a maneira de fazer os sais, não estiverem
à mão. E nesse caso admito que não tomei as medidas necessárias nem descobri muito. O processo é danado
de difícil de funcionar e utiliza tamanha multiplicidade de espécies que tenho dificuldades em encontrá-las
em quantidade suficiente, não obstante os marinheiros das índias que eu tenho. O povo por aqui é curioso,
mas eu consigo enganá-lo. Os senhores de boa família são piores do que a população, pois possuem mais
informações e as pessoas respeitam mais o que eles dizem. Temo que o pastor e o senhor Merritt tenham
comentado algo, mas até o momento não há perigo. As substâncias químicas são fáceis de se conseguir,
havendo dois bons boticários na cidade, o doutor Bowen e Sam Carew. Estou seguindo o que Borellus diz e
disponho do auxílio do VII Livro de Abdul Al-Hazred. O que eu obtiver, o senhor terá também. E no meio
tempo não deixe de usar as palavras que dei aqui. Elas estão certas, mas se desejar vê-lo, empregue o que
escrevi no pedaço de ___________, que estou enviando nesse pacote. Diga os versos na véspera de cada dia
da Cruz e de Todos os Santos e se sua linhagem não acabar, nos anos por vir aparecerá aquele que olhará
para trás e usará os saís ou a mat éria dos sais que tu lhe deixares. Jó, XIV, 14.
Alegro-me que o senhor esteja novamente em Salem e espero poder vê-lo em breve. Tenho um bom
garanhão e estou pensando em comprar uma carruagem, pois já há uma (a do senhor Merritt) em Providence,
embora as estradas sejam más. Se estiver disposto a viajar não deixe de me visitar. De Boston, pegue a
estrada da diligência passando por Dedham, Wrentham e Attleborough, em todas estas cidades há boas
tabernas. Hospede-se na do senhor Bolcom, em Wrentham, onde as camas são melhores do que na do senhor
Hatch, mas coma no outro estabelecimento, pois seu cozinheiro é melhor. Vire na direção de Providence na
altura das corredeiras de Patucket e pegue a estrada depois da taberna do senhor Sayles. Minha casa fica em
frente à taberna do senhor Epenetus Olney, saindo de Town Street, a primeira do lado norte de Olney Court.
A distância de Boston Store é cerca de 44 milhas.
Declaro-me, senhor, seu velho e sincero amigo e criado em Almonsin-Metraton.
Josephus C.
Ao Senhor Simon Orne,
William's-Lane, Salem.
Foi essa carta, estranhamente, que pela primeira vez forneceu a Ward a localização exata da
casa de Curwen em Providence, pois nenhum dos registros encontrados até aquele momento havia
sido totalmente específico. A descoberta era duplamente sensacional porque descrevia como sendo
a nova casa de Curwen, construída em 1761 no local da antiga, a construção semidestruída que
ainda se encontrava em Olney Court, bastante familiar a Ward em suas perambulações em busca de
antiguidades em Stampers Hill. O lugar de fato ficava a poucas quadras de distância de sua casa, no
25
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ponto mais elevado da grande colina, e agora era habitada por uma família de negros muito
procurada para serviços ocasionais, como lavagem de roupa, limpeza doméstica e manutenção de
fornalhas. Encontrar na longínqua Salem uma prova tão inesperada da importância desse conhecido
casebre na história de sua própria família foi algo muito emocionante para Ward, que resolveu
explorar imediatamente o lugar à sua volta. Os trechos mais misteriosos da carta, que interpretou
como uma forma extravagante de simbolismo, francamente o desafiavam; embora observasse com
um frêmito de curiosidade que a passagem bíblica referida — Jó, XIV, 14 — era o conhecido
versículo, "Se um homem morre, deverá viver novamente? Todos os dias do tempo que me foi
destinado eu esperarei, até que venham me soerguer".
2
O jovem Ward voltou para casa num estado de agradável excitação e passou o sábado seguinte
num longo e exaustivo estudo da casa de Olney Court. A construção, atualmente em ruínas devido à
idade, jamais havia sido uma mansão; mas era uma modesta casa de madeira de dois andares e uma
água-furtada do tipo colonial comum em Providence, com um teto pontiagudo, ampla chaminé
central, porta artisticamente entalhada e bandeira semicircular com raios, frontão triangular e
elegantes colunas dóricas. Sofrera poucas alterações externamente e Ward teve a sensação de estar
olhando algo muito próximo ao sinistro objeto de sua investigação.
Os atuais moradores negros eram seus conhecidos, e o velho Asa e sua gorda mulher Hannah
mostraram-lhe muito gentilmente o interior. Aqui as alterações eram maiores do que parecia
externamente e Ward observou com tristeza que uma boa metade das belas cornijas das lareiras
lavradas com motivos de volutas e umas e os entalhes em forma de conchas sobre os armários
haviam desaparecido, enquanto a maior parte dos belos lambris de madeira e respectivas molduras
estava arranhada, gasta, arrancada, ou coberta totalmente de papel de parede barato. De modo geral,
a pesquisa não rendeu a Ward muito mais do que esperava, mas pelo menos foi emocionante
encontrar-se entre as paredes ancestrais que haviam hospedado um homem horroroso como Joseph
Curwen. Ele notou com um arrepio que o monograma havia sido cuidadosamente apagado da antiga
aldrava de latão.
Desde aquele momento até o encerramento do curso, Ward passou todo o tempo debruçado
sobre a cópia fotostática do código de Hutchinson e acumulando dados sobre Curwen no local. O
código ainda se mostrava renitente, mas ele obteve tantos dados e tantos indícios em outras partes,
que se predispôs a empreender uma viagem a Nova Londres e Nova Iorque, a fim de consultar
antigas cartas cujas presença estava indicada naqueles lugares. Essa viagem foi muito frutífera, pois
resultou nas cartas de Fenner com sua terrível descrição da incursão à casa de Pawtuxet e as cartas
da correspondência Nightingale-Talbot, nas quais ele ficou sabendo do retrato pintado no painel da
biblioteca de Curwen. A questão do retrato interessou-o de modo particular, pois teria da do tudo
para saber como era exatamente Joseph Curwen; e decidiu realizar uma segunda busca na casa de
Olney Court para ver se não haveria algum vestígio das feições antigas debaixo das demãos da
pintura posterior ou das camadas de papel de parede bolorento.
A busca foi empreendida no início de agosto e Ward percorreu cuidadosamente as paredes de
cada cômodo cujas dimensões fossem suficientes para ter abrigado a biblioteca do perverso criador.
Dedicou particular atenção aos amplos painéis sobre as lareiras que ainda restavam e ficou
profundamente emocionado quando, após cerca de uma hora, num largo espaço sobre a lareira de
uma sala espaçosa do andar térreo, teve a certeza de que a superfície trazida à luz ao arrancar várias
camadas de tinta era sensivelmente mais escura do que a pintura de interior comum ou do que a
madeira de baixo deveria ser. Após algumas outras tentativas mais cuidadosas com uma faca fina,
teve a certeza de ter descoberto um retrato a óleo de grandes dimensões. Com a prudência de um
autêntico estudioso, o jovem não arriscou o dano que uma tentativa imediata de descobrir com a
faca a pintura oculta poderia perpetrar, mas simplesmente retirou-se do cenário de sua descoberta a
fim de recrutar a ajuda de um especialista. Três dias mais tarde, voltou com um artista de longa
experiência, o senhor Walter Dwight, cujo estúdio se encontra ao pé de College Hill, e aquele
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provecto restaurador de quadros pôs-se ao trabalho imediatamente, com métodos e substâncias
químicas adequadas. O velho Asa e a esposa ficaram, é claro, curiosos a respeito de seus estranhos
visitantes e foram adequadamente indenizados por essa invasão de seu lar.
À medida que o trabalho avançava, dia após dia, Charles Ward acompanhava com crescente
interesse as linhas e sombras que gradativamente iam-se revelando após um longo esquecimento.
Dwight começara na parte inferior do retrato; por isso, tendo o quadro a proporção de três por um, o
rosto não apareceu por algum tempo. No meio tempo via-se que o sujeito era um homem magro, de
boas proporções, com um casaco azul-escuro, colete bordado, calções de cetim preto e meias de
seda branca, sentado numa cadeira entalhada contra uma janela com desembarcadouros e navios
aparecendo ao longe. Quando surgiu a cabeça, observou-se que tinha uma peruca Albemarle bem
arranjada e possuía um rosto fino, calmo, comum, de certo modo familiar a Ward e ao artista. No
entanto, somente no fim o restaurador e seu cliente ficaram espantados diante dos detalhes do rosto
magro, pálido, reconhecendo com um certo horror a dramática brincadeira pregada pela
hereditariedade. Pois foi preciso o último banho de óleo e o último toque da delicada raspadeira
para revelar totalmente a expressão que os séculos haviam ocultado e comparar o perplexo Charles
Dexter Ward, amante do passado, aos seus próprios traços vivos retratados no semblante de seu
horrível tetravô.
Ward levou os pais para ver a maravilha que havia descoberto e seu pai imediatamente
determinou a aquisição do quadro, embora fosse pintado sobre painéis fixos. Para o rapaz, a
semelhança era maravilhosa, apesar de aparentar uma idade avançada, e era possível constatar que,
graças a um artificioso ardil do atavismo, os traços físicos de Joseph Curwen haviam encontrado
uma cópia perfeita um século e meio mais tarde. A semelhança da senhora Ward com o seu
antepassado não era muito acentuada, embora ela lembrasse de parentes que tinham algumas das
características fisionômicas de seu filho e do falecido Curwen. Ela não gostou da descoberta e disse
ao marido que seria melhor que ele queimasse o retrato em vez de levá-lo para casa. Afirmou que
havia algo pernicioso nele, não apenas no aspecto intrínseco, mas na própria semelhança com
Charles. O senhor Ward, contudo, era um prático e poderoso homem de negócios — um fabricante
de tecidos de algodão com grandes tecelagens em Riverpoint e no vale do Pawtuxet — e não era
pessoa de dar ouvidos a escrúpulos femininos. O quadro o impressionara enormemente pela
semelhança com o filho e achou que o rapaz o merecia como presente. Não é preciso dizer que
Charles concordou calorosamente com a idéia; poucos dias mais tarde o senhor Ward localizou o
dono da casa — um sujeito baixo com o aspecto de um roedor e um acento gutural — e conseguiu
todo o painel e a peça sobre a qual ficava o quadro por um preço rapidamente acordado que acabou
com a torrente ameaçadora de untuosos regateios.
Restava agora retirar o painel e levá-lo para a residência dos Wards, onde foram adotadas todas
as providências para sua completa restauração e instalação junto com uma lareira elétrica de
imitação na biblioteca-escritório de Charles, no terceiro andar. A Charles foi deixada a tarefa de
supervisionar a remoção e, no dia 28 de agosto, ele acompanhou dois técnicos da firma de
decorações Crooker até a casa de Olney Court, onde o painel e toda a peça com o retraio foram
despregados com grande cuidado e precisão e transportados no caminhão da empresa. Restou
descoberto um espaço de tijolos deixando à mostra a parede, da chaminé e nesta o jovem Ward
observou um vão quadrado, aproximadamente da largura de um pé, que devia ficar diretamente
atrás da cabeça do retrato. Curioso com o que aquele vão poderia significar ou conter, o jovem
aproximou-se, olhou em seu interior e descobriu, debaixo das espessas camadas de pó e fuligem,
alguns papéis soltos, amarelados, um rústico e grosso caderno e alguns fiapos bolorentos que
haviam sido talvez a fita prendendo o todo. Soprou o grosso do pó e das cinzas e pegou o livro
olhando a inscrição em grossas letras negras da capa. Estava escrita numa caligrafia que ele
aprendera a reconhecer no Instituto Essex e dizia que o volume era o Diário e Notas de Jos.
Curwen, Gent., das Plantações de Providence, anteriormente de Salem.
Emocionado ao extremo com sua descoberta, Ward mostrou o livro aos dois trabalhadores
curiosos ao seu lado. O testemunho destes quanto à natureza e autenticidade da descoberta é
absoluto; e o doutor Willett baseia-se neles para estabelecer sua teoria de que o jovem não era louco
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quando começou a exibir suas maiores excentricidades. Todos os outros papéis também estavam
escritos na caligrafia de Curwen e um deles parecia especialmente assombroso, por causa de sua
inscrição: "Àquele que virá depois, e como elepoderá voltar no tempo e nas esferas". Outro estava
em código, o mesmo, esperava Ward, de Hutchinson, que até o momento o frustrara. Um terceiro, e
aqui o pesquisador se regozijou, parecia ser a chave do código, enquanto o quarto e quinto eram
endereçados respectivamente "ao Gentilhomem Edw: Hutchinson" e "Ao Cavalheiro Jedediah
Orne", "ou Seu Herdeiro ou Herdeiros, ou a quem os Represente". O sexto e último tinha a
inscrição: "Joseph Curwen, sua vida e viagens entre os anos 1678 e 1687: para onde viajou, onde
viveu, quem viu e o que aprendeu".
3
Chegamos agora ao momento ao qual a escola mais acadêmica de psiquiatras data a loucura de
Charles Ward. Após a descoberta, o jovem folheara imediatamente as páginas internas do livro e
dos manuscritos e evidentemente viu algo que o impressionou de modo fantástico. Em verdade, ao
mostrar os títulos aos trabalhadores, ele pareceu resguardar o texto com cuidado peculiar e mostrar
um estado de perturbação que mesmo a importância arqueológica e genealógica da descoberta não
justificava. Ao voltar para casa, ele deu a notícia com um ar quase embaraçado, como se desejasse
transmitir uma idéia de sua suprema importância, sem contudo exibir a prova. Sequer mostrou os
títulos aos pais, mas simplesmente disse-lhes que havia encontrado alguns documentos escritos na
caligrafia de Joseph Curwen, "a maior parte em código", que teriam de ser estudados com muito
cuidado para revelar seu significado verdadeiro. E improvável que ele tivesse mostrado o que
mostrou aos trabalhadores não fosse pela curiosidade indisfarçada daqueles. Sem dúvida, pretendia
evitar qualquer demonstração de uma reticência peculiar que aumentaria as discussões em torno do
assunto.
Naquela noite, Charles Ward ficou sentado em seu quarto lendo o livro e os papéis recém-
descobertos e quando clareou o dia não desistiu. As refeições, conforme seu urgente pedido quando
a mãe foi falar com ele para ver o que estava ocorrendo, foram levadas para o quarto e, à tarde, ele
apareceu muito rapidamente quando os homens foram instalar o retrato de Curwen e o painel da
lareira em seu escritório. Na noite seguinte, dormiu a curtos intervalos, de roupa, enquanto lutava
febrilmente para decifrar o manuscrito em código. Pela manhã, a mãe viu que ele estava
trabalhando na cópia fotostática do código de Hutchinson, que várias vezes lhe havia mostrado
antes; mas respondendo à sua interrogação, ele disse que a chave de Curwen não lhe podia ser
aplicada. Naquela tarde, abandonou seu trabalho e observou fascinado os homens enquanto
terminavam a instalação do quadro com sua estrutura de madeira sobre um tronco de árvore elétrico
engenhosamente realista, colocavam a imitação de lareira e o painel um pouco afastados da parede
norte, como se atrás existisse uma chaminé, e encaixavam nos lados lambris combinando com o
quarto. O painel da frente com a pintura foi serrado e montado, deixando um espaço para um
armário atrás. Assim que os homens se foram, transferiu seu trabalho para o escritório e sentou à
sua frente com um olho no código e outro no retrato, que lhe devolvia o olhar como um espelho que
o envelhecia ou evocava séculos passados. Os pais, lembrando mais tarde seu comportamento nesse
período, forneceram interessantes detalhes referentes aos subterfúgios por ele adotados para
disfarçar sua atividade. Diante dos empregados, raramente escondia algum papel que estava
estudando, pressupondo, com razão, que a intrincada e arcaica caligrafia de Curwen seria demais
para eles. Com os pais, no entanto, era mais circunspecto, e a não ser que o manuscrito em questão
fosse em código, ou um amontoado de símbolos misteriosos e ideogramas desconhecidos (como
aquele intitulado "Àquele que vier depois, etc." parecia), cobria-o com um papel até que a visita
saísse do quarto. À noite, mantinha os papéis trancados a chave numa antiga papeleira sua, onde
também os colocava sempre que saía do quarto. Logo retomou horários e hábitos razoavelmente
regulares, com a exceção de que seus longos passeios e outros interesses externos pareciam ter
cessado. A reabertura da escola, onde agora iniciava o último ano, aparentemente o aborreceu e
afirmou muitas vezes sua determinação de nunca mais retomar o curso. Dizia ter importantes
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pesquisas sociais a fazer, que lhe abririam mais caminhos para o conhecimento e as ciências
humanas do que qualquer universidade de que o mundo podia se vangloriar.
É claro que só uma pessoa que sempre havia sido mais ou menos estudiosa, excêntrica e
solitária poderia adotar esse comportamento durante muitos dias sem chamar a atenção. No entanto,
Ward era por constituição um estudioso e um ermitão; daí seus pais ficarem menos surpresos do que
magoados com a rígida reclusão e o sigilo que ele adotar a. Ao mesmo tempo, tanto o pai quando a
mãe achavam estranho que ele não lhes mostrasse nenhum fragmento de seu valioso achado, nem
lhes fizesse um relato sobre as informações decifradas. Ele justificava essa reticência atribuindo-a a
um desejo de aguardar até poder anunciar algo pertinente, mas, como as semanas passavam sem
maiores revelações, começou a surgir entre o jovem e a família uma espécie de constrangimento
intensificado no caso da mãe, por sua manifesta desaprovação de todas as pesquisas referentes a
Curwen.
No mês de outubro, Ward começou a visitar novamente as bibliotecas, porém não mais pelo
interesse arqueológico dos primeiros dias. Bruxaria e magia, ocultismo e demonologia era o que
buscava agora; e quando as fontes de Providence se revelaram infrutíferas, tomou o trem para
Boston para haurir da riqueza da biblioteca de Copley Square, da Biblioteca Widener de Harvard ou
da Biblioteca de Pesquisa Zion em Brookline, onde se encontravam certas obras raras sobre temas
bíblicos. Comprou muitos livros e montou toda uma nova estante em seu escritório para as obras
recém-adquiridas sobre temas sobrenaturais; durante as férias de Natal, fez uma série de viagens
fora da cidade, inclusive uma para Salem, a fim de consultar alguns registros do Instituto Essex. .
Aproximadamente em meados de janeiro de 1920, acrescentou-se ao comportamento de Ward
um ar de triunfo que ele não explicou; já não era visto trabalhar no código de Hutchinson. Ao
contrário, adotou duas linhas de investigação: a pesquisa química e a análise de registros. Montou
para a primeira um laboratório na mansarda da casa que não era usada e para a segunda vasculhou
todas as fontes de dados vitais de Providence. Os comerciantes de drogas e de instrumentos
científicos da cidade, posteriormente interrogados, forneceram listas fantasticamente estranhas, sem
sentido, das substâncias e instrumentos por ele adquiridos; mas os funcionários da Assembléia
Estadual, da Prefeitura e de várias bibliotecas concordam quanto ao objetivo definido de seu
segundo interesse. Ele procurava intensa e febrilmente o túmulo de Joseph Curwen, de cuja lápide
uma geração mais antiga apagara tão sabiamente o nome.
Aos poucos, na família Ward foi crescendo a convicção de que algo estava errado. Charles já
tivera manias extravagantes, e mudanças de interesses menores antes, mas este sigilo e a absorção
cada vez maior em estranhas investigações eram contrários inclusive à sua índole. Suas atividades
na escola não passavam de pura simulação; e, embora passasse em todos os exames, era visível que
sua antiga aplicação havia desaparecido. Tinha outros interesses agora e, quando não estava em seu
laboratório com uma vintena de livros antiquados de alquimia, podia ser encontrado lendo
atentamente velhos registros funerários no centro da cidade ou colado aos seus volumes de ciências
ocultas em seu escritório, onde as feições espantosamente semelhantes — pode-se dizer cada vez
mais semelhantes — de Joseph Curwen olhavam-no de modo afável do grande painel sobre a lareira
na parede norte.
No fim de março, Ward acrescentou à sua busca nos arquivos uma série de vampirescas
perambulações pêlos vários cemitérios antigos da cidade. A causa foi revelada mais tarde, quando
se soube dos funcionários da Prefeitura que ele provavelmente havia encontrado um indício
importante. Sua investigação repentinamente desviara-se do túmulo de Joseph Curwen para o de
certo Naphthali Field; e a mudança foi explicada quando, ao examinar os arquivos por ele
pesquisados, os investigadores de fato encontraram um registro fragmentado do sepultamento de
Curwen que escapara da destruição geral e que dizia que o curioso caixão de chumbo havia sido
enterrado "dez pés ao sul e cinco pés a oeste do túmulo de Naphthali Field no______". A ausência
de um jazigo especificado no registro sobrevivente complicou enormemente a pesquisa e o túmulo
de Naphthali parecia tão indefinível quanto o de Curwen; no entanto, nesse caso não tinha havido
uma eliminação sistemática e seria razoável esperar encontrar a própria pedra tumular mesmo que
seu registro tivesse desaparecido. Daí as perambulações — das quais ficaram excluídos o cemitério
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de St. John (outrora King's) e o antigo cemitério congregacional no meio do cemitério de Swan
Point, uma vez que outros dados haviam demonstrado que o único Naphthali Field (falecido em
1729) cujo túmulo poderia estar indicado era batista.
4
Foi por volta de maio que o doutor Willett, por solicitação de Ward pai, e baseado em todos os
dados referentes a Curwen que a família havia obtido de Charles em épocas nas quais não se
preocupava com o sigilo, teve uma conversa com o jovem. A entrevista foi pouco valiosa e
conclusiva, pois Willett sentiu a todo momento que Charles estava totalmente dono de si e
consciente de assuntos de verdadeira importância; mas pelo menos obrigou o reservado jovem a
apresentar alguma explicação racional de seu comportamento recente. Com o rosto pálido,
impassível, sem mostrar embaraço, Ward pareceu bastante disposto a discutir suas investigações,
embora não a revelar seu objetivo. Afirmou que os papéis de seu antepassado continham notáveis
segredos do saber científico de tempos primitivos, na maior parte em código, de um alcance
comparável apenas às descobertas do frei Bacon e talvez mesmo superior a estas. No entanto, não
tinham qualquer importância, salvo se relacionadas a um corpo de conhecimentos hoje totalmente
ultrapassado; de modo que sua apresentação imediata a um mundo equipado unicamente com a
ciência moderna lhes tiraria toda a força e significado dramático. Para que pudessem ser
vividamente assimilados pela história do pensamento humano deveriam primeiramente ser
correlacionadas por alguém familiarizado com o ambiente no qual haviam evoluído e a essa tarefa
de correlação Ward se dedicava agora. Ele estava tentando adquirir tão rápido quanto possível o
saber negligenciado dos antigos, que um autêntico intérprete dos dados sobre Curwen deveria
possuir, e esperava fazer uma apresentação completa do maior interesse para a humanidade e o
mundo do pensamento em seu devido tempo. Nem mesmo Einstein, declarou, poderia revolucionar
de maneira mais profunda a atual concepção das coisas.
Quanto à sua pesquisa nos cemitérios, cujo objetivo admitiu abertamente, sem contar os
detalhes de seu progresso, disse que tinha razões para pensar que a pedra tumular mutilada de
Joseph Curwen continha certos símbolos mágicos — esculpidos segundo instruções contidas em
seu testamento e por ignorância poupadas por aqueles que haviam apagado o nome —
absolutamente essenciais à solução final de seu misterioso sistema cifrado. Ele acreditava que
Curwen desejara guardar com carinho seu segredo e, conseqüentemente, distribuíra as informações
de uma forma sobremaneira curiosa. Quando o doutor Willett pediu para ver os documentos
mágicos, Ward demonstrou muita relutância e tentou esquivar-se com evasivas, como as cópias
fotostáticas do código de Hutchinson e as fórmulas e os diagramas de Orne; mas finalmente
mostrou-lhe a capa de algumas das verdadeiras descobertas sobre Curwen — o Diário e Notas, o
código (título em código também) e a mensagem repleta de fórmulas "Àquele que virá depois"— e
deixou-o dar uma olhada nos papéis escritos em caracteres incompreensíveis.
Ele abriu também o diário numa página cuidadosamente escolhida por seu teor totalmente
inócuo e permitiu que Willett olhasse o manuscrito de Curwen em inglês. O médico observou com
atenção as letras ininteligíveis e complicadas e a aura do sécuIo XVII que pairava sobre a caligrafia
e o estilo, embora seu escritor sobrevivesse até o século XVIII, e teve imediatamente a certeza de
que o documento era autêntico. O próprio texto era relativamente trivial, e Willett lembrava apenas
um fragmento:
"Quarta-feira, dia 16 de outubro de 1754. Minha corveta Wahefal saiu hoje de Londres com XX
novos homens embarcados nas índias, espanhóis da Martinica e holandeses do Suriname. Os
holandeses estão propensos a desertar por terem ouvido falar um tanto mal desse empreendimento,
mas farei de modo a induzi-los a ficar. Para o senhor Knight Dexter no Bay and Book 120 peças de
chamalote, 100 peças sortidas de pêlo de camelo, 20 peças de lã azul, 50 peças de calamanta, 300
peças cada de algodão das índias e shendsoy. Para o senhor Green do Elefante, 50 panelas de um
galão, 20 panelas de aquecer, 15 fôrmas de assar, 10 tenazes de defumar. Para o senhor Perrigo, l
conjunto de sovelas. Para o senhor Nightingale, 50 resmas de papel de primeira. Recitei o
30
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SABBAOTH três vezes na noite passada mas ninguém apareceu. Preciso saber mais do senhor H.
na Transilvânia, embora seja difícil entrar em contato com ele e é muito estranho que ele não possa
me ensinar o uso daquilo que tem usado tão bem nesses cem anos. Simon não escreveu nessas V
semanas, mas espero ter notícias suas em breve".
Chegando a esse ponto, quando o doutor Willett virou a página, foi rapidamente impedido por
Ward, que quase arrancou o livro de suas mãos. Tudo o que o médico conseguiu ver na página
recém-aberta foram duas frases; mas estas, é estranho, permaneceram obstinadamente em sua
memória. Diziam: "Pronunciado o verso do Liber-Damnatus em V vésperas do dia da Cruz e IV
vésperas de Todos os Santos, espero que a coisa esteja se preparando fora das esferas. Ele trará
aquele que está para vir se eu puder ter certeza de que ele existirá e pensará as coisas passadas e
olhará para trás dos anos e para isto deverei ter os sais prontos ou o necessário para fazê-los".
Willett não viu mais nada, mas de alguma forma essa rápida olhada conferiu um novo e vago
terror às feições pintadas de Joseph Curwen, que olhava afavelmente de cima da lareira. Mesmo
depois, ele teve a curiosa fantasia — sua experiência médica, é claro, lhe garantiu não passar de
uma fantasia — de que os olhos do retrato tinham uma espécie de desejo, se não uma autêntica
tendência, a seguir Charles Ward enquanto este se deslocava pelo cômodo. Deteve-se antes de sair
para examinar de perto a pintura, assombrado com sua semelhança com Charles e memorizou cada
mínimo detalhe do rosto misterioso e sem cor, inclusive uma pequena cicatriz ou cova na testa lisa
sobre o olho direito. Cosmo Alexander, decidiu, era um pintor digno da Escócia que produziu
Raeburn e um mestre digno de seu ilustre pupilo Gilbert Stuart.
Assegurados pelo médico de que a saúde mental de Charles não estava em perigo, mas que, por
outro lado, o jovem estava envolvido em pesquisas que poderiam se revelar de importância real, os
Wards ficaram mais tolerantes do que de outro modo se riam quando, no mês de junho seguinte, ele
se recusou decididamente a freqüentar a escola. Alegou ter estudos de uma importância muito mais
vital a seguir e anunciou o desejo de ir para o exterior no ano seguinte, a fim de se valer de certas
fontes de informações inexistentes na América. O pai de Ward, embora recusasse atender a este
desejo por considerá-lo absurdo para um rapaz de apenas dezoito anos, concordou a respeito da
universidade. Assim, após uma conclusão não muito brilhante do curso na Escola Moses Brown,
seguiu-se para Charles um período de três anos de intensos estudos de ocultismo e pesquisas em
cemitérios. Ele passou a ser considerado um excêntrico e desapareceu de vista dos familiares e
amigos ainda mais completamente do que antes; debruçou-se sobre seu trabalho e apenas de vez em
quando viajava para outras cidades a fim de consultar misteriosos registros. Certa vez, foi ao sul
para conversar com um estranho velho mulato que vivia num pântano e a respeito do qual um jornal
escrevera um curioso artigo. Depois, procurou uma pequena aldeia nos montes Adirondack, de onde
haviam saído relatos de curiosas cerimônias. Mas ainda seus pais lhe proibiam a viagem tão
desejada ao Velho Mundo.
Ao chegar à maioridade, em abril de 1923, e tendo herdado do avô materno uma pequena
renda, Ward resolveu enfim realizar a viagem à Europa até então negada. Nada comentou a respeito
do itinerário pretendido, salvo que as necessidades de seus estudos o levariam a muitos lugares, mas
prometeu escrever aos pais um relato sincero e completo. Quando eles viram que não poderiam
dissuadi-lo, abandonaram toda a oposição e ajudaram-no na medida do possível; de modo que em
junho o jovem embarcava para Liverpool com as bênçãos do pai e da mãe, que o acompanharam até
Boston e acenaram para ele até o navio desaparecer do embarcadouro White Star, em Charlestown.
As cartas logo contaram que chegara são e salvo e que tomara boas acomodações em Great Russell,
em Londres, onde propunha-se a ficar, evitando todos os amigos da família, até esgotar os recursos
do Museu Britânico num determinado assunto. Escrevia pouco sobre sua vida de todos os dias, pois
havia pouco a escrever. Estudos e experimentos tomavam-lhe o tempo todo e mencionava um
laboratório que havia montado num dos cômodos. O fato de não falar de peregrinações
arqueológicas na antiga e fascinante cidade, com seu atraente horizonte de antigas cúpulas e
campanários e seu emaranhado de ruas e ruelas cujos meandros misteriosos e vistas inesperadas
alternadamente acenam e surpreendem, foi tomado por seus pais como um indício seguro do grau
em que seus novos interesses absorviam sua mente.
31
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Em junho de 1924, uma breve mensagem informou que ele partia rumo a Paris, cidade para a
qual havia feito antes duas ou três viagens em busca de material na Bibliotèque Nationale. Nos três
meses seguintes, enviou apenas cartões-postais, dando um endereço na rua St. Jacques e referindo-
se a uma pesquisa especial entre manuscritos raros na biblioteca de um colecionador cujo nome não
mencionou. Evitava fazer amizades e nenhum turista voltou contando tê-lo encontrado. Seguiu-se
então um período de silêncio e em outubro os Wards receberam um cartão de Praga dizendo que
Charles se encontrava naquela antiga cidade com o propósito de consultar um homem muito idoso,
supostamente o último detentor vivo de algumas informações medievais muito curiosas. Dava um
endereço na Neustadt e anunciava que lá permaneceria até janeiro do ano seguinte, quando mandou
vários cartões de Viena falando de sua passagem por aquela cidade a caminho de uma região mais
oriental, para a qual fora convidado por um de seus correspondentes e colegas de pesquisas do
oculto.
O próximo cartão era de Klausenburg, na Transilvânia, e falava dos progressos de Ward na
perseguição de seu objetivo. Ia visitar um certo barão Ferenczy, cuja propriedade ficava nas
montanhas a leste de Rakus, e a correspondência deveria ser endereçada a Rakus aos cuidados
daquele aristocrata. Outro cartão de Rakus, enviado uma semana mais tarde, dizia que a carruagem
de seu anfitrião havia ido ao seu encontro e que ele estava partindo da aldeia rumo às montanhas,
sendo esta a última mensagem durante um período considerável. Em realidade, não respondeu às
freqüentes cartas dos pais até maio, quando escreveu desaconselhando o projeto de sua mãe de
encontrá-lo em Londres, Paris ou Roma no verão, quando os Wards pretendiam viajar para a
Europa. Suas pesquisas, ele disse, eram de tal ordem que não podia deixar sua atual morada, e ao
mesmo tempo a localização do castelo do barão Ferenczy não favorecia visitas. Ficava num
penhasco nas sombrias montanhas cobertas de florestas e a região era tão evitada pêlos habitantes
dos campos que as pessoas normais não se sentiriam à vontade. Além disso, o barão não era uma
pessoa que pudesse agradar a gente de posição e conservadora da Nova Inglaterra. Seu aspecto e
comportamento tinham certas idiossincrasias e sua idade era tão avançada que chegava a inquietar.
Seria melhor, dizia Charles, que seus pais esperassem sua volta a Providence, o que não demoraria a
acontecer.
No entanto, ele só voltou em maio de 1925, quando, depois de alguns cartões anunciando sua
chegada, o jovem viajante desembarcou do Homeric sem alardes em Nova Iorque e percorreu as
longas milhas até Providence de ônibus, embebendo-se avidamente da visão das onduladas colinas
verdejantes dos fragrantes pomares em flor e das brancas cidadezinhas com campanário do
Connecticut primaveril; era seu primeiro contato em quase quatro anos com a Nova Inglaterra.
Quando o ônibus atravessou o Pawcatuck e entrou em Rhode Island no ar dourado e irreal de uma
tarde de fim de primavera, seu coração batia com mais força e o ingresso em Providence, pelas
avenidas Reservoir e Elmwood, foi uma coisa maravilhosa, de tirar o fôlego, apesar da
profundidade dos conhecimentos proibidos nos quais havia mergulhado. Na praça elevada onde as
ruas Broad, Weybosset e Empire se cruzam, ele viu à sua frente e mais abaixo, no incêndio do pôr-
do-sol, as casas aprazíveis de suas recordações e as cúpulas e campanários da cidade velha; e sua
cabeça rodou numa curiosa vertigem enquanto o veículo descia até o terminal atrás do Baltimore,
descortinando a visão da grande cúpula e do verde da folhagem macia, pontilhada de telhados, da
antiga colina do outro lado do rio e o alto pináculo colonial da Primeira Igreja Batista, pintada de
vermelho na mágica luz do crepúsculo destacando-se contra o fundo íngreme de fresca verdura
primaveril.
Velha Providence! Foram este lugar e as forças misteriosas de sua longa e contínua história
que o haviam feito nascer e o haviam atraído para maravilhas e segredos cujas fronteiras nenhum
profeta poderia delimitar. Aqui se encontravam os mistérios, fantásticos ou medonhos, para os quais
todos aqueles anos de viagens e estudos o haviam preparado. Um táxi levou-o rapidamente através
da praça do Correio com a vista rápida do rio, o antigo edifício do Mercado e a ponta da enseada,
subindo pela curva íngreme de Waterman Street até Prospect, onde a vasta cúpula resplandecente e
as colunas jônicas banhadas pelo poente da Igreja da Ciência Cristã acenavam ao norte. E, depois de
oito quadras, as belas mansões antigas que seus olhos de criança haviam conhecido, e as exóticas
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calçadas de tijolos tantas vezes percorridas por seus pés juvenis. E finalmente a pequena casa
branca da fazenda que havia sido invadida à direita, à esquerda a clássica varanda Adam e a
imponente fachada com as janelas salientes do casarão de tijolos onde havia nascido. Era o
crepúsculo, e Charles Ward estava de volta.
5
Uma corrente da psiquiatria, um pouco menos acadêmica do que a do doutor Lyman, atribui à
viagem de Ward à Europa o início de sua verdadeira loucura. Admitindo que o jovem fosse são ao
partir, ela acredita que sua conduta na volta implica uma mudança desastrosa. Mas o doutor Willett
recusa-se a concordar mesmo com esta afirmação. Algo ocorreu mais tarde, ele insiste, e atribui as
esquisitices do jovem nessa fase à prática de rituais aprendidos no exterior — coisas bastante
estranhas, em verdade, mas que absolutamente não implicam aberrações mentais por parte de seu
celebrante. O próprio Ward, embora visivelmente envelhecido e calejado, ainda era normal em suas
reações gerais e, em várias conversas com Willett, mostrara um equilíbrio que nenhum louco —
mesmo um louco incipiente — poderia fingir continuamente por muito tempo. O que suscitou a
idéia de insanidade nesse período foram os sons que provinham a todas as horas do laboratório de
Ward na mansarda, na qual ele permanecia pela maior parte do tempo. Eram recitações, repetições e
tonitroantes declamações em ritmos misteriosos; e embora esses sons fossem sempre na própria voz
de Ward, havia algo na qualidade daquela voz e nas entonações das fórmulas pronunciadas, que não
podia deixar de gelar o sangue de qualquer ouvinte. As pessoas observavam que Nig, o venerando e
adorado gato preto da casa, ficava sobressaltado e arqueava visivelmente as costas quando se
ouviam certos sons.
Os odores que ocasionalmente emanavam do laboratório eram do mesmo modo extremamente
estranhos. Ás vezes eram mefíticos, mas mais frequentemente aromáticos, com uma característica
obsedante e evanescente que parecia ter o poder de criar imagens fantásticas. As pessoas que os
aspiravam tinham a tendência a vislumbrar miragens momentâneas de paisagens enormes, com
estranhos montes ou avenidas intermináveis de esfinges e hipogrifos estendendo-se por uma
distância infinita. Ward não retomou as perambulações de outrora, mas se aplicou diligentemente
aos estranhos livros que trouxera para casa e a investigações igualmente estranhas em seus próprios
aposentos, explicando que as fontes européias haviam ampliado enormemente as possibilidades de
seu trabalho e prometendo grandes revelações nos próximos anos. Seu aspecto envelhecido
acentuou em grau espantoso sua semelhança com o retrato de Curwen na biblioteca e o doutor
Willett frequentemente se detinha ao lado deste depois de uma visita, espantando-se com a virtual
identidade e refletindo que agora só restava a pequena cova sobre o olho direito do retrato para
diferenciar o bruxo, há muito tempo falecido, do jovem vivo. Essas visitas de Willett, feitas a
pedido do casal Ward, eram curiosas. Em nenhum momento Ward repeliu o médico, mas este
percebia que jamais conseguiria apreender a psicologia íntima do jovem. Frequentemente observava
coisas peculiares à sua volta: pequenas imagens de cera de desenho grotesco sobre as estantes ou as
mesas e os restos semi-apagados de círculos, triângulos e pentagramas traçados com giz ou carvão
no espaço livre no centro do amplo aposento. E, à noite, sempre ressoavam aqueles ritmos e
encantamentos estrondosos, até que se tornou muito difícil manter os empregados ou acabar com os
comentários furtivos sobre a loucura de Charles.
Em janeiro de 1927, ocorreu um incidente peculiar. Certa vez, por volta da meia-noite,
enquanto Charles entoava um ritual cuja cadência irreal ecoava de modo desagradável pêlos andares
inferiores da casa, de repente soprou uma rajada de vento gélido da baía, e sentiu-se um ligeiro e
inexplicável tremor de terra que todos na vizinhança notaram. Ao mesmo tempo, o gato mostrou
sinais fenomenais de terror, enquanto os cães latiam em até uma milha de distância. Era o prelúdio
de uma violenta tempestade, anormal naquela estação, durante a qual ouviu-se um estalo tão forte
que o senhor e a senhora Ward pensaram que a casa tivesse sido atingida por um raio. Correram
para cima para ver os estragos, mas Charles os atendeu à porta da mansarda, pálido, resoluto e
sinistro, com uma mistura quase temível de triunfo e seriedade em seu rosto. Assegurou-os de que a
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casa não havia sido atingida e que a tempestade logo acabaria. Eles pararam e, ao olharem pela
janela, viram que o rapaz estava certo; os raios iam se distanciando, enquanto as árvores já não se
curvavam à estranha rajada gélida que vinha do mar. O trovão foi abrandando numa espécie de
resmungo abafado e finalmente cessou. As estrelas apareceram e a marca do triunfo no rosto de
Charles Ward cristalizou-se numa expressão bastante singular.
Durante dois meses ou mais, depois desse incidente, Ward manteve-se menos segregado em
seu laboratório do que de costume. Ele exibia um curioso interesse pelo tempo e fazia estranhas
perguntas a respeito da época do degelo da primavera. Uma noite, no fim de março, saiu de casa
após a meia-noite e só voltou perto do amanhecer, quando sua mãe, que estava acordada, ouviu o
ruído de um motor subir pela alameda. Podia-se distinguir palavrões abafados e a senhora Ward,
levantando-se e indo até a janela, viu quatro vultos escuros retirarem uma caixa comprida e pesada
de um caminhão sob a orientação de Charles, carregando-a ao interior da casa pela porta lateral. Ela
ouviu respirações arquejantes e passos pesados sobre as escadas e, finalmente, um baque surdo na
mansarda; depois disso os passos desceram, os quatro homens reapareceram fora da casa e partiram
em seu caminhão.
No dia seguinte, Charles retomou sua rígida reclusão na mansarda, descendo as cortinas
escuras das janelas do laboratório e aparentemente dedicando-se ao trabalho com alguma substância
metálica. Ele não abria a porta para ninguém e recusava peremptoriamente toda a comida que lhe
era oferecida. Perto de meio-dia ou viu-se uma pancada violenta seguida por um grito terrível e uma
queda, mas quando a senhora Ward bateu à porta o filho demorou a responder e, com voz fraca,
disse que não havia acontecido nada. Explicou que o fedor horrendo e indescritível que agora se
espalhava era absolutamente inócuo e infelizmente necessário, que o isolamento era o elemento
essencial e que desceria atrasado para o jantar. Naquela tarde, ao terminarem os estranhos sons
sibilantes que vinham de trás da porta trancada, Charles por fim apareceu, com um aspecto
extremamente perturbado e proibindo a quem quer que fosse o ingresso no laboratório, sob qualquer
pretexto. Este, em realidade, seria o começo de um novo período de sigilo; porque a partir de então
nunca mais nenhuma outra pessoa teria a permissão de visitar a misteriosa oficina na água-furtada
ou o quarto de despejo adjacente que ele limpara, mobiliando-o toscamente, e acrescentara, como
dormitório, ao seu domínio inviolavelmente privado. Ali ele viveu, com os livros trazidos da
biblioteca do andar de baixo, até que adquiriu um bangalô em Pawtuxet e para lá se mudou com
todos os seus pertences científicos.
À noite, Charles apoderou-se do jornal antes dos outros membros da família e rasgou uma
parte, aparentemente por acidente. Mais tarde, o doutor Willett, que descobriu a data pelas
declarações das várias pessoas da casa, pesquisou uma cópia intacta do jornal na redação do Journal
e descobriu, na parte destruída, o seguinte artigo:
Violadores Noturnos Surpreendidos no Cemitério Norte
Robert Hart, guarda-noturno do Cemitério Norte, descobriu esta manhã um grupo de homens com um
caminhão na parte mais antiga do cemitério, mas aparentemente assustou-os antes que concluíssem o que
pretendiam.
A descoberta ocorreu por volta das quatro horas da manhã, quando a atenção de Hart foi despertada
pelo ruído de um motor do lado de fora do seu abrigo. Ao fazer urna averiguação, viu um caminhão grande
na alameda principal, a muitas varas de distância, mas não conseguiu alcançá-lo porque o barulho dos seus
passos revelou sua presença. Os homens colocaram apressadamente uma grande caixa no caminhão e
rumaram para a rua antes que pudessem ser detidos; e como nenhum túmulo conhecido foi molestado, Hart
acredita que os homens pretendiam enterrar a própria caixa.
Os profanadores deviam estar cavando há muito tempo antes de serem surpreendidos, porque Hart
encontrou uma cova enorme aberta a uma distância considerável da alameda no setor de Armosa Field, onde
a maioria das antigas lápides desapareceu há muito tempo. O buraco, uma cova larga e profunda como um
túmulo, estava vazio; e não coincidia com nenhuma sepultura indicada nos registros do cemitério.
O sargento Riley, do Segundo Distrito de Polícia, vistoriou o local e opinou que o buraco foi cavado por
contrabandistas que, numa atitude revoltante e engenhosa, procuravam um esconderijo seguro para suas
bebidas num lugar que não seria molestado. Em resposta às perguntas que lhe foram feitas, Hart disse que
achava que o caminhão fugitivo rumara para a Rochambeau Avenue, embora não tivesse certeza disso.
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Nos dias seguintes, Charles Ward raramente foi visto pela família. Como anexara um cômodo
para dormir ao seu reino na mansarda, isolava-se em seus aposentos, ordenando que a comida fosse
levada até a porta e só a apanhava quando o empregado havia se retirado. O salmodiar de fórmulas
em tom monótono e a entoação de ritmos bizarros ocorria a intervalos, enquanto em outros
momentos ocasionais ouvintes poderiam distinguir o tinido de vidros, silvos de substâncias
químicas, o ruído de água corrente ou o reboar de chamas de gás. Odores dos mais indescritíveis,
totalmente diferentes de quaisquer outros notados antes, flutuavam às vezes nas proximidades da
porta; e um ar de tensão era observado no jovem recluso sempre que se aventurava brevemente para
fora, estimulando a especulação mais intensa. Uma vez ele realizou uma saída até o Ateneu para
buscar um livro de que precisava, e depois contratou um mensageiro para buscar um volume
totalmente desconhecido em Boston. Â situação não deixava pressagiar nada de bom e tanto a
família quanto o doutor Willett confessavam-se totalmente sem saber o que fazer ou pensar a
respeito.
6
Então, no dia 15 de abril, deu-se um fato estranho. Embora nada diferente ocorresse em gênero,
houve com certeza uma diferença realmente terrível em grau, e o doutor Willett de certa forma
atribui grande importância à mudança. Era a Sexta-Feira Santa, circunstância muito importante para
os empregados, mas que outros menosprezam por considerá-la uma coincidência irrelevante. No
fim da tarde, o jovem Ward começou a repetir certa fórmula num tom singularmente elevado,
queimando ao mesmo tempo alguma substância de cheiro tão penetrante que seus vapores se
expandiram por toda a casa. A fórmula era tão claramente audível no corredor, do outro lado da
porta trancada, que a senhora Ward não pôde deixar de memorizá-la enquanto esperava e ouvia
ansiosamente e mais tarde conseguiu escrevê-la a pedido do doutor Willett. Os especialistas
disseram ao doutor Willett que seu equivalente mais próximo podia ser encontrado nos escritos
místicos de "Eliphas Levi", aquele espírito misterioso que se insinuou por uma fenda da porta
proibida e teve um rápido vislumbre das terríveis visões do vazio além. Seu teor era o seguinte:
"Per Adonai Eloim, Adonai Jehova,
Adonai Sabaoth, Metraton Ou Agla Methon,
verbum pythonicum, mysterium salamandrae,
cenventus sylvorum, antra gnomorum,
daemonia Coeli God, Almonsin, Gibor,
Jehosua, Evam, Zariathnatmik, Veni, veni, veni".
A recitação continuava há duas horas sem alteração ou interrupção quando se desencadeou por
toda a vizinhança um pandemônio de latidos de cachorros. A dimensão desses latidos pode ser
julgada pelo espaço que lhe foi dedicado pêlos jornais no dia seguinte, mas para as pessoas da
residência dos Wards foi sobrepujada pelo odor que instantaneamente se seguiu; um odor horrível,
que penetrou em toda parte, jamais sentido antes nem depois. Em meio a esse fluxo mefítico
apareceu uma luz muito nítida como a do relâmpago, que poderia ofuscar e impressionar não fosse
dia pleno; e então ouviu-se a voz que nenhum ouvinte jamais poderá esquecer por causa de seu
tonitroante tom distante, sua incrível profundidade e sua dissemelhança sobrenatural da voz de
Charles Ward. Abalou a casa e foi claramente ouvida pelo menos por dois vizinhos, apesar do uivo
dos cães. A senhora Ward, que ouvia desesperada fora da porta trancada do laboratório do filho,
ficou arrepiada ao reconhecer seu sentido diabólico, pois Charles lhe havia contado sua má fama
nos livros secretos e a maneira como reboara, segundo as cartas de Fenner, sobre a casa de
Pawtuxet condenada à destruição na noite do extermínio de Joseph Curwen. Não havia como
equivocar-se quanto à frase apavorante, pois Charles a havia descrito de modo muito vivo em outros
tempos, quando conversava com franqueza de suas investigações sobre Curwen. E no entanto era
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apenas um fragmento numa linguagem arcaica e esquecida: "DIES MIES JESCHET BOENE
DOESEF DOUVEMA ENITEMAUS".
Logo após esse reboar a luz do dia escureceu momentaneamente, embora o pôr-do-sol
demorasse ainda uma hora, e então seguiu-se uma lufada de outro odor, diferente do primeiro, mas
igualmente desconhecido e intolerável. Charles recitava de novo em tom monótono e sua mãe ouvia
as sílabas que soavam como "Yinash-Yog-Sothoth-he-lglb-fi-throdag" — acabando com um "Yah!"
cuja força desvairada subia num crescendo de arrebentar os tímpanos. Um segundo mais tarde,
todas as lembranças anteriores foram apagadas pelo grito lamentoso que irrompeu com uma
explosividade desvairada e gradativamente foi se transformando num paroxismo de risadas
diabólicas e histéricas. A senhora Ward, com aquela mistura de medo e coragem cega própria da
maternidade, aproximou-se e bateu alarmada à porta ocultadora, mas não obteve nenhum sinal de
reconhecimento. Bateu de novo, mas parou impotente quando um segundo grito se levantou, dessa
vez na voz inconfundível e familiar de seu filho, ao mesmo tempo em que a outra voz ria
desmedidamente. Em seguida, ela desmaiou e ainda é incapaz de lembrar a causa precisa e
imediata. A memória às vezes apaga piedosamente certas lembranças.
O senhor Ward voltou do trabalho às seis e quinze e, não encontrando a esposa no andar térreo,
foi informado pêlos empregados apavorados que provavelmente ela estava diante da porta de
Charles, da qual vinham sons mais estranhos do que nunca. Subindo de imediato as escadas, viu a
senhora Ward estirada no chão do corredor fora do laboratório e, ao perceber que ela havia
desmaiado, apressou-se a buscar um copo de água de uma jarra numa alcova próxima. Borrifou o
líquido frio em seu rosto e sentiu-se reanimado ao perceber uma reação imediata da parte dela;
observava-a enquanto seus olhos se abriam perplexos quando um calafrio o percorreu e ameaçou
reduzi-lo ao mesmo estado do qual ela estava se recobrando. Pois o laboratório não era tão
silencioso como parecia ser, mas emanava os murmúrios de uma conversação tensa e abafada, em
tons demasiado baixos para que fosse possível compreende-los e, contudo, de uma qualidade
profundamente perturbadora para a alma.
Evidentemente, não era uma novidade que Charles resmungasse fórmulas, mas esse resmungo
era definidamente diferente. Era claramente um diálogo, ou uma imitação de inflexões sugerindo
pergunta e resposta, afirmação e réplica. Uma voz era inconfundivelmente a de Charles, mas a outra
tinha uma profundidade e um timbre profundo e cavernoso que, apesar dos maiores poderes de
imitação, o jovem jamais havia conseguido reproduzir. Tinha algo de medonho, blasfemo e
anormal, e não fosse um grito de sua mulher que voltava a si, clareando sua mente e despertando
nele seu instinto de proteção, é muito provável que Theodore Howland Ward não conseguisse
manter por quase um ano ainda seu velho motivo de orgulho, o fato de jamais ter desmaiado. Pegou
a esposa nos braços e a carregou para baixo antes que ela pudesse perceber as vozes que o haviam
perturbado de modo tão horrível. Mesmo assim, porém, não foi suficientemente rápido para ele
mesmo deixar de captar algo que fez com que cambaleasse perigosamente com sua carga. Pois o
grito da senhora Ward evidentemente havia sido ouvido por outros além dele e em resposta vieram
de trás da porta trancada as primeiras palavras compreensíveis pronunciadas naquele colóquio
camuflado e terrível. Não passavam de uma excitada advertência na voz do próprio Charles, mas de
algum modo suas implicações produziram um terror indescritível no pai que as ouviu. A frase foi
apenas isto: "Sshh! - Escreva."
O senhor e a senhora Ward debateram longamente o caso após o jantar e o primeiro resolveu
ter uma conversa firme e séria com Charles naquela mesma noite. Não importava quão importante
fosse o objetivo, esse comportamento não seria mais permitido; pois os últimos acontecimentos
ultrapassavam todo limite da razão e constituíam uma ameaça à ordem e ao bem-estar de todos na
casa. O jovem devia de fato estar totalmente fora de si, pois só a loucura completa poderia provocar
gritos tão selvagens e conversações imaginárias em vozes simuladas como naquele dia. Tudo isto
deveria parar ou a senhora Ward adoeceria e se tornaria impossível conservar a criadagem.
O senhor Ward levantou-se no fim da refeição e começou a subir as escadas rumo ao
laboratório de Charles. No entanto, no terceiro andar, ele parou ao ouvir os sons procedentes da
biblioteca do filho, agora em desuso. Os livros, aparentemente, estavam sendo atirados pela sala e
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os papéis eram amassados de modo frenético, e ao chegar à porta o senhor Ward observou o jovem
no interior do cômodo, reunindo excitado uma enorme braçada de material literário de todos os
tamanhos e formatos. O aspecto de Charles era muito tenso e conturbado e ele largou tudo
sobressaltado ao som da voz do pai. À sua ordem sentou-se e por alguns momentos ouviu as
admoestações que há muito merecia. Não houve cenas. No final do sermão, concordou que o pai
estava certo e que as vozes, resmungos, fórmulas cabalísticas e odores químicos eram de fato
incômodos imperdoáveis. Concordou com métodos mais calmos, embora insistisse num
prolongamento de seu extremo isolamento. Grande parte de seu trabalho futuro, disse ele, em todo
caso consistiria exclusivamente em pesquisa em livros e poderia conseguir um alojamento em
algum outro lugar para realizar todos os rituais vocais necessários num outro estágio. Pelo medo e o
desmaio da mãe expressou sua mais profunda contrição e explicou que a conversação ouvida mais
tarde fazia parte de um elaborado simbolismo destinado a criar uma determinada atmosfera mental.
O emprego de abstrusos termos químicos confundiu um pouco o senhor Ward, mas a ultima
impressão ao despedir-se do filho foi de inegável sanidade mental e equilíbrio, apesar de uma
misteriosa tensão da maior gravidade. A entrevista, na realidade, foi de todo inconclusiva e,
enquanto Charles recolhia do chão sua braçada de livros e deixava o quarto, o senhor Ward não
sabia o que fazer com toda essa história. Era tão misteriosa quanto a morte do pobre velho Nig, cujo
corpo enrijecido, os olhos esbugalhados e a boca contorcida pelo medo, havia sido encontrado uma
hora antes no subsolo da casa.
Levado por um vago instinto de detetive, o confuso genitor agora fixava com curiosidade as
prateleiras vazias para ver o que seu filho havia levado para a mansarda. A biblioteca do jovem era
classificada de maneira simples e rígida, de modo que bastava uma olhada para saber que livros ou
pelo menos que tipo de livros haviam sido retirados. Nessa ocasião, o senhor Ward ficou espantado
ao verificar que nada que falasse de ocultismo ou arqueologia estava faltando, além daquilo que já
havia sido retirado. Os livros que acabava de retirar eram todos sobre assuntos modernos: história,
tratados científicos, geografia, manuais de literatura, obras filosóficas e alguns jornais e revistas
contemporâneos. Tratava-se de uma mudança muito curiosa no rumo recente das leituras de Charles
Ward e o pai se deteve num crescente turbilhão de perplexidade e na sensação avassaladora de algo
inexplicável. O inexplicável era uma sensação muito aguda e quase dilacerava seu peito enquanto se
esforçava por entender o que havia de errado ao seu redor. Alguma coisa em realidade estava
errada, tanto material quanto espiritualmente. Desde que penetrara nesse aposento sabia que algo
estava errado e finalmente se deu conta do que era.
Na parede norte ainda estava a antiga peça trabalhada de madeira da casa de Olney Court, mas
o óleo rachado e precariamente restaurado do grande retrato de Curwen sofrera um desastre. O
tempo e o calor desigual haviam enfim realizado o seu trabalho, e desde a última limpeza da peça o
pior havia acontecido. Com a madeira evidentemente descascada, cada vez mais empenada e por
fim esmigalhada com uma rapidez diabolicamente silenciosa, o retrato de Joseph Curwen
renunciara para sempre a vigiar o jovem ao qual se assemelhava de um modo tão estranho e agora
jazia espalhado sobre o solo transformado numa camada de fino pó cinza-azulado.
Capítulo quatro
Mutação e Loucura
1
Na semana que se seguiu àquela memorável Sexta-feira Santa, Charles Ward foi visto com
freqüência maior do que de costume e sempre carregando livros entre sua biblioteca e o laboratório
na mansarda. Seus atos eram calmos e racionais, mas ele tinha um olhar furtivo e atormentado que
não agradava absolutamente à mãe, e mostrava um apetite incrivelmente ávido, proporcional às
exigências que dera de fazer ao cozinheiro.
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O doutor Willett foi informado dos ruídos e acontecimentos daquela sexta-feira e na terça-feira
seguinte teve uma conversa com o jovem na biblioteca onde o quadro já não ficava vigiando. A
entrevista foi, como sempre, inconclusiva; mas Willett ainda está disposto a jurar que o jovem era
são e dono de si naquela ocasião. Fez promessas de uma próxima revelação e falou da necessidade
de montar um laboratório em algum outro lugar. A falta do retrato entristeceu-o singularmente
pouco, considerando seu primitivo entusiasmo pela peça, mas parecia encontrar certo humor
positivo em sua repentina desintegração.
Aproximadamente na segunda semana, Charles começou a se ausentar da casa por longos
períodos, e um dia, quando a boa e velha negra Hannah veio para ajudar na limpeza da primavera,
ela mencionou suas freqüentes visitas à velha casa de Olney Court, aonde ele costumava ir com
uma grande valise e realizar curiosas buscas no porão. O jovem era muito pródigo com ela e o velho
Asa, mas parecia mais preocupado do que costumava ser, o que muito a entristecia, porque cuidara
dele desde o nascimento.
Outro relato de suas ações veio de Pawtuxet, onde alguns amigos da família o haviam visto de
longe um número surpreendente de vezes. Ele parecia freqüentar o clube e a garagem dos barcos de
Rhodes-on-the-Pawtuxet e subseqüentes investigações do doutor Willett naquele local revelaram
que seu objetivo era conseguir o acesso à margem do rio protegida por cercas ao longo da qual
caminhava em direção ao norte, em geral só reaparecendo muito tempo depois.
No fim de maio houve uma retomada momentânea dos sons ritualísticos no laboratório da
mansarda que provocou uma severa reprovação do senhor Ward e uma promessa um tanto distraída
de Charles de que se emendaria. Aconteceu numa manhã e parecia uma continuação da conversa
imaginária ouvida naquela sexta-feira turbulenta. O jovem estava discutindo ou queixando-se
calorosamente consigo mesmo, pois repentinamente jorrou uma série perfeitamente compreensível
de gritos estrepitosos em tons diferenciados como perguntas e negativas alternadas, que fez a
senhora Ward subir as escadas e ficar ouvindo à porta. Não conseguiu apreender senão um
fragmento cujas únicas palavras nítidas foram "tem de ficar vermelho por três meses", e assim que
ela bateu à porta todos os sons cessaram de chofre. Quando o pai mais tarde inquiriu Charles, este
disse que existiam certos conflitos das esferas da consciência que somente com grande habilidade
poderia evitar, mas que tentaria transferir para outros domínios.
Por volta de meados de junho, ocorreu um estranho incidente notumo. À noitinha, ouviram-se
alguns ruídos e baques surdos em cima, no laboratório, e o senhor Ward estava pronto a verificar,
mas tudo subitamente se acalmou. À meia-noite, depois que a família se recolheu, o mordomo foi
trancar as portas da frente da casa quando, segundo declarou, Charles surgiu um pouco desajeitado
e inseguro ao pé das escadas com uma enorme mala, fazendo-lhe sinal de que desejava sair. O
jovem não pronunciou urna única palavra, mas o honrado cidadão de Yorkshire notou rapidamente
os olhos febris e tremeu sem motivo nenhum. Abriu a porta e o jovem Ward saiu, mas pela manhã o
mordomo comunicou à senhora Ward que pretendia se demitir. Ele disse que havia algo temível no
olhar que Charles pousara sobre sua pessoa. Não era a maneira de um jovem cavalheiro olhar um
homem honesto e ele não teria condições de suportar sequer outra noite daquelas. A senhora Ward
concordou com a saída do empregado, mas não deu muita importância à sua afirmação. Era ridículo
imaginar Charles alterado naquela noite, pois por todo o tempo em que ela permanecera acordada
ouvira sons fracos vindo do laboratório em cima; sons como de soluços e passos e um suspiro que
revelava o mais profundo desespero. A senhora Ward acostumara-se a ficar ouvindo à noite, pois os
mistérios de seu filho logo afastavam todas as outras preocupações de sua mente.
Na noite seguinte, como numa outra quase três meses antes, Charles Ward pegou o jornal
muito cedo e acidentalmente perdeu a seção principal. Este fato só foi lembrado mais tarde, quando
o doutor Willett começou a analisar os detalhes e a procurar os elos que estavam faltando. Na
redação ao Journal ele encontrou a seção que Charles havia perdido e marcou duas notas de
possível importância. Diziam o seguinte:
38
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Mais Escavações no Cemitério
Hoje pela manhã, o vigia notumo do Cemitério Norte, Robert Hart, descobriu que profanadores
voltaram a atacar na parte antiga do local. O túmulo de Ezra Weeden, nascido em 1740 e falecido em 1824,
segundo a pedra tumular arrancada e selvagemente despedaçada, foi escavado em profundidade e saqueado,
sendo que o trabalho foi evidentemente feito com uma pá roubada do depósito de utensílios adjacente.
Qualquer que fosse seu conteúdo após mais de um século, tudo havia desaparecido, com exceção de
umas poucas lascas de madeira apodrecida. Não havia marcas de rodas, mas a polícia analisou algumas
pegadas encontradas nas proximidades que indicam botas de uma pessoa refinada.
Hart está propenso a relacionar esse incidente com as escavações descobertas em março passado,
quando um grupo de homens utilizando um caminhão fugiu enquanto realizava uma profunda escavação;
mas o sargento Riley, da Segunda Delegacia, descarta essa teoria e assinala duas diferenças vitais nos dois
casos. Em março, a escavação foi feita num ponto em que reconhecidamente não existia nenhum túmulo;
dessa vez, foi pilhada uma tumba bem definida e cuidada, sendo que todas as evidências mostram tratar-se de
um objetivo deliberado e uma perversidade consciente expressa-se na laje despedaçada, a qual estava
intacta até o dia anterior.
Membros da família Weeden, notificados a respeito do acontecimento, expressaram sua surpresa e dor e
mostraram-se totalmente incapazes de pensar em um inimigo que tivesse interesse em violar o túmulo de seu
antepassado Hazard Weeden, morador do número 598 de Angell Street, lembrou de uma lenda da família
segundo a qual Ezra Weeden se envolvera em certas circunstâncias bastante peculiares, nada desonrosas para
sua pessoa, pouco antes da Revolução; mas ele ignora completamente qualquer inimizade ou mistério na
época atual. O inspetor Cunningham foi destinado ao caso, e espera descobrir alguns indícios valiosos no
futuro próximo.
Cães Barulhentos em Providence
Cidadãos residentes em Pawtuxet foram despertados por volta das três horas da manhã de hoje com um
fenomenal latido de cães que parecia provir do rio ao norte de Rhodes-on-the-Pawtuxet. O volume e a
qualidade dos latidos eram estranhamente descomunais, segundo a maioria das pessoas que os ouviram; e
Fred Lemdin, vigia noturno em Rhodes, declarou que o ruído se misturava aos gritos de um homem presa de
um terror e uma agonia mortal. Uma forte tempestade de curta duração, que parecia atingir um ponto nas
proximidades da margem do rio, pôr fim à alteração. Odores estranhos e desagradáveis, provavelmente
procedentes dos tanques de óleo ao longo da baía, estão sendo por todos relacionados a este incidente e
podem ter contribuído para excitar os cachorros.
O aspecto de Charles agora tornara-se muito conturbado e atormentado e todos concordaram
posteriormente que nesse período ele talvez desejasse prestar alguma declaração ou fazer uma
confissão das quais se abstinha por mero terror. O hábito mórbido da mãe de ficar ouvindo à noite
revelou que ele realizava saídas freqüentes, protegido pela escuridão, e a maioria dos psiquiatras
mais acadêmicos concorda atualmente em culpá-lo pêlos revoltantes casos de vampirismo que a
imprensa relatou de modo tão sensacionalista na época, mas cuja autoria ainda não pôde ser
concretamente apontada. Esses casos, tão recentes e comentados que dispensam detalhes,
envolveram vítimas de todas as idades e tipos e aparentemente concentraram-se em duas
localidades distintas: a colina residencial e o North End, perto da residência dos Wards, e os bairros
suburbanos do outro lado da linha Cranston perto de Pawtuxet. Notívagos e pessoas que dormiam
de janelas abertas foram igualmente atacados, e as que sobreviveram para contar a história foram
unânimes em descrever um monstro magro, ágil, que pulava, com olhos de fogo, que cravava seus
dentes na garganta ou no antebraço e se satisfazia sofregamente.
O doutor Willett, que se recusa a datar a loucura de Charles Ward até mesmo nesta época,
mostra-se cauteloso ao tentar explicar esses horrores. Ele afirma possuir certas teorias próprias e
limita suas declarações positivas a um tipo peculiar de negação. "Não pretendo", diz ele, "apontar
quem ou o que acredito tenha perpetrado esses ataques e assassinatos, mas declaro que Charles
Ward era inocente. Tenho razões para garantir que ele ignorava o gosto do sangue, como de fato seu
contínuo definhamento físico, em função da anemia, e uma crescente palidez comprovam mais do
que qualquer argumento verbal. Ward se envolveu com coisas terríveis, mas pagou por isto, ele
jamais foi um monstro ou um vilão. Quanto ao que está acontecendo agora, nem gosto de pensar.
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Houve uma mudança e quero crer que o velho Charles Ward morreu com ela. Sua alma morreu, de
qualquer maneira, mas o corpo tresloucado que desapareceu do hospital de Waite tinha outra".
Willett fala com autoridade, pois frequentemente visitava a residência dos Wards para cuidar
da senhora Ward, cujos nervos começavam a ceder por causa da tensão. O hábito de ficar ouvindo
durante a noite gerara alucinações mórbidas que ela confiava com certa hesitação ao médico, o qual
as levava na brincadeira em suas conversas com ela, embora o fizessem meditar profundamente
quando estava sozinho. Esses delírios sempre diziam respeito aos sons fracos que imaginava ouvir
no laboratório e no quarto de dormir da mansarda, e enfatizavam a ocorrência de suspiros e soluços
abafados nas horas mais impossíveis. No início de julho, Willett ordenou que a senhora Ward
passasse uma temporada em Atlantic City por tempo indefinido a fim de se recuperar e recomendou
ao senhor Ward e ao tresloucado e esquivo Charles que escrevessem para ela somente cartas
confortadoras. É provavelmente a esta fuga forçada e relutante que ela deve sua vida e sua saúde
mental.
2
Não muito tempo depois da viagem da mãe, Charles Ward iniciou as negociações para adquirir
o bangalô de Pawtuxet. Era um edifício esquálido e pequeno de madeira, com uma garagem de
concreto, encarapitado no alto da margem do rio, escassamente habitada, pouco acima de Rhodes,
mas por alguma estranha razão o jovem só queria aquela. Não deu so ssego às corretoras de imóveis
até que uma delas o conseguiu para ele, a um preço exorbitante, de um proprietário um tanto
relutante. Assim que vagou, tomou posse da casa protegido pela escuridão, transportando num
grande caminhão fechado todos os apetrechos de seu laboratório da mansarda, inclusive os livros,
tanto os de magia quanto os modernos, que tomara emprestado para seus estudos. Mandou que o
caminhão fosse carregado às primeiras horas da negra madrugada e seu pai lembra apenas ter
ouvido, em meio ao sono, imprecações abafadas e ruído de passos na noite em que as coisas foram
retiradas. Depois disso, Charles voltou a ocupar seus aposentos no terceiro andar e nunca mais
voltou à mansarda.
Para o bangalô de Pawtuxet Charles transferiu todo o sigilo no qual cercara seus domínios da
mansarda, com a exceção de que agora aparentemente havia duas pessoas que compartilhavam seus
mistérios; um mestiço português de aspecto detestável, da zona do porto de South Main Street, que
exercia as funções de criado, e um estrangeiro magro, com o aspecto de um estudioso, óculos
escuros e barba curta que parecia tingida, provavelmente um colega. Os vizinhos tentaram em vão
manter alguma conversação com estas estranhas pessoas. O mulato Gomes falava muito pouco
inglês e o sujeito barbudo, que dissera chamar-se doutor Allen, seguia voluntariamente seu
exemplo. O próprio Ward tentou ser mais afável, mas só conseguiu provocar a curiosidade com
seus relatos desconexos a respeito de pesquisas químicas. Logo começaram a circular estranhas
histórias referentes a luzes acesas a noite toda, e um pouco mais tarde, depois que cessaram,
surgiram histórias mais esquisitas ainda sobre encomendas descomunais de carne no açougue e
gritos, entoações abafadas, recitações rítmicas e berros supostamente provenientes de algum local
subterrâneo e profundo debaixo da casa. E evidente que a nova e estranha residência era
profundamente detestada pela honesta burguesia da vizinhança, e não é de estranhar se foram
levantadas terríveis suspeitas ligando seus habitantes à atual epidemia de ataques vampirescos, em
particular devido ao fato de que o raio de ação parecia agora restringir-se totalmente a Pawtuxet e às
ruas adjacentes de Edgewood.
Ward passava a maior parte de seu tempo no bangalô, mas ocasionalmente dormia em casa e
ainda era reconhecido como residente na casa do pai. Duas vezes ausentou-se da cidade em viagens
que duraram toda uma semana, cuja destinação ainda não foi descoberta. Foi ficando cada vez mais
pálido e emaciado do que antes e já não mostrava a mesma segurança ao repetir ao doutor Willett
sua velhíssima história a respeito de pesquisas de importância vital e de futuras revelações. Willett
frequentemente seguia-o sem ser visto até a casa do pai, pois o senhor Ward estava muito
preocupado e perplexo e desejava que o filho fosse vigiado na medida do possível, em se tratando
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de um adulto tão misterioso e independente. O médico ainda insiste que o jovem era são de mente
mesmo nessa época e aduz muitas conversações para comprovar essa convicção.
Por volta de setembro, o vampirismo declinou, mas, em janeiro do ano seguinte, Ward quase se
envolveu em problemas sérios. Havia algum tempo as chegadas e partidas noturnas de caminhões
no bangalô de Pawtuxet eram motivo de comentários e a essa altura um acontecimento imprevisto
revelou a natureza de pelo menos uma das suas cargas. Num local solitário, perto de Hope Valley,
ocorreu uma das freqüentes e sórdidas emboscadas a caminhões por obra de assaltantes visando
carregamentos de uísque, mas dessa vez os bandidos estavam destinados a levar um enorme choque.
Pois, ao serem abertas, as longas caixas roubadas revelaram um conteúdo extremamente asqueroso,
em realidade tão asqueroso que a coisa não pôde ser abafada entre os membros do submundo. Os
ladrões enterraram precipitadamente o que haviam descoberto, mas, quando a polícia do estado foi
informada do caso, empreendeu-se uma cuidadosa busca. Um vagabundo preso havia pouco tempo,
em troca da garantia de isenção de acusações adicionais, consentiu por fim em conduzir um grupo
de milicianos até o local e no esconderijo improvisado foi descoberta uma coisa absolutamente
asquerosa e vergonhosa. Não ficaria bem para o senso de decoro nacional — ou mesmo
internacional — se o público viesse a saber o que foi descoberto por aquele grupo horrorizado. Não
havia dúvidas, mesmo para policiais sem muito preparo; vários telegramas foram enviados a
Washington com febril rapidez.
As caixas eram endereçadas a Charles Ward em seu bangalô de Pawtuxet e agentes estaduais e
federais imediatamente fizeram-lhe uma visita com propósitos enérgicos e sérios. Encontraram-no
pálido e preocupado com seus dois estranhos companheiros e receberam dele o que lhes pareceu
uma explicação válida e provas de inocência. Ele necessitara de certos espécimes anatômicos como
parte de um programa de pesquisa cuja profundidade e autenticidade qualquer um que o conhecesse
na última década poderia comprovar, e encomendara tipo e número exigidos a certas agências que
ele julgara tão legítimas quanto este tipo de coisas poderia ser. Da identidade dos espécimes ele não
sabia absolutamente nada e ficou muito chocado quando os inspetores aludiram às conseqüências
monstruosas para o sentimento público e a dignidade nacional que o conhecimento do assunto
produziria. Em sua declaração ele foi firmemente apoiado por seu colega barbudo, o doutor Allen,
cuja estranha voz abafada tinha mais convicção mesmo do que o tom nervoso de Charles; de modo
que no fim os agentes não adotaram nenhuma medida, mas cuidadosamente tomaram nota do nome
e endereço de Nova Iorque que Ward lhes forneceu como base para uma averiguação que não
resultou em nada. Apenas é justo acrescentar que os espécimes foram rápida e silenciosamente
devolvidos aos seus devidos lugares e o grande público jamais saberá de sua sacrílega perturbação.
No dia 9 de fevereiro de 1928, o doutor Willett recebeu uma carta de Charles Ward que ele
considera de extraordinária importância e a respeito da qual frequentemente discutiu com o doutor
Lyman. Este acredita que a carta contém provas positivas de um caso avançado de dementia
praecox; Willett, por outro lado, considera-a a última manifestação perfeitamente sã do infeliz
jovem. E chama atenção especialmente para á característica normal da caligrafia que, embora
mostrando indícios de nervos em frangalhos, é nitidamente a caligrafia do próprio Ward. O texto
integral é o seguinte:
Prospect St., 100,
Providence, R.I.,
8 de março de 1928.
Caro Doutor Willett,
Acho que finalmente chegou o momento de fazer as revelações que há tanto tempo lhe prometi e pelas
quais o senhor insistiu em tantas ocasiões. A paciência que o senhor mostrou em esperar, e sua confiança em
minha mente e integridade, são coisas que jamais deixarei de apreciar.
E agora que estou pronto para falar, devo admitir humilhado que jamais alcançarei o triunfo com o qual
tanto sonhei. Em vez do triunfo encontrei o terror e minha conversa com o senhor não será o alarde da
vitória, mas um apelo de ajuda e conselhos capazes de me salvar e de salvar o mundo de um horror além de
toda a imaginação ou previsão humanas. O senhor lembra do que diziam as cartas de Fenner a respeito do
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grupo que invadiu Pawtuxet. Tudo aquilo precisa ser feito de novo—e depressa. De nós depende muito mais
do que simples palavras poderiam exprimir — toda a civilização, toda lei natural, talvez mesmo o destino do
sistema solar e do universo. Eu trouxe à luz uma anormalidade monstruosa, mas o fiz em nome do
conhecimento. Agora, em nome de toda a vida e natureza, o senhor deve ajudar-me a rechaçá-lo de volta às
trevas.
Deixei aquele lugar em Pawtuxet para sempre e nós devemos extirpar tudo o que nele existe, vivo ou
morto. Não voltarei para lá e o senhor não deve acreditar se ouvir dizer que estou lá. Quando nos
encontrarmos, contarei ao senhor por que digo isto. Voltei para casa definitivamente e gostaria que o senhor
reservasse umas cinco ou seis horas seguidas para ouvir o que tenho a dizer. Precisarei de todo esse tempo —
e acredite em mim quando lhe digo que o senhor nunca teve um dever mais autenticamente profissional do
que este. Minha vida e minha razão são a coisa menos importante nisso tudo.
Não ouso falar com meu pai, ele não entenderia todo o alcance da questão. Mas eu lhe falei do perigo
que estou correndo e ele contratou quatro detetives de uma agência para vigiar a casa. Não sei até que ponto
poderão ajudar, pois têm contra si forças que nem mesmo o senhor poderia imaginar ou reconhecer. Portanto,
venha logo se quiser me ver vivo e ouvir de que modo poderá ajudar a salvar o cosmos do inferno total.
Venha quando quiser — não sairei da casa. Não telefone de antemão, pois não é preciso dizer quem ou
o que poderá tentar interceptá-lo. E rezemos a todos os deuses existentes para que nada impeça esse
encontro.
Com a maior gravidade e desespero,
Charles Dexter Ward
P.S.: Atire no doutor Allen sem aviso e dissolva seu corpo em ácido. Não o queime.
O doutor Willett recebeu esta mensagem por volta das dez e meia da manhã e imediatamente
tratou de reservar todo o fim da tarde e a noite para a grave conversa, deixando que se estendesse
noite adentro tanto quanto fosse necessário. Pretendia chegar por volta das quatro da tarde e durante
todo o tempo ficou tão mergulhado em toda espécie de desenfreadas especulações que executou a
maior parte de seu trabalho de forma totalmente mecânica. Embora a carta pudesse parecer
desvairada a um estranho, Willett tinha testemunhado tantas esquisitices de Charles Ward que não
poderia menosprezá-la como mera loucura. Tinha certeza de que algo muito sutil, antigo e horrível
pairava no ar e a referência ao doutor Allen era quase compreensível, considerando os boatos em
Pawtuxet a respeito do enigmático colega de Ward. Willett nunca vira o homem, mas ouvira muito
sobre seu aspecto e comportamento e só podia ficar imaginando que tipo de olhos aqueles
comentados óculos escuros poderiam ocultar.
Solicitamente, às quatro horas, o doutor Willett apresentou-se à residência de Ward, mas
constatou, para sua contrariedade, que Charles não cumprira sua determinação de permanecer em
casa. Os guardas lá estavam, mas disseram que o jovem parecia ter perdido em parte sua timidez.
Naquela manhã ele discutira muito, em tom aparentemente assustado, e protestara pelo telefone,
disse um dos detetives, respondendo a uma voz desconhecida com frases como "Estou muito
cansado e preciso descansar um pouco", "Não posso receber ninguém por um certo tempo, precisa
me desculpar", "Por favor, adie as decisões até que possamos chegar a alguma forma de
compromisso", ou "Sinto muito, mas preciso tirar férias prolongadas de tudo; falarei com o senhor
mais tarde". Depois, como que ganhando coragem com a meditação, escapuliu de modo tão
silencioso que ninguém o viu sair ou sabia que ele havia saído até que voltou perto de uma hora da
manhã e entrou em casa sem uma palavra. Subira as escadas, onde seu medo pareceu ter voltado,
pois ouviram-no gritar alto e aterrorizado ao entrar em sua biblioteca, terminando numa espécie de
arquejo sufocado. No entanto, quando o mordomo foi investigar o que estava acontecendo, ele
apareceu à porta exibindo uma expressão atrevida e, sem falar, mandou o homem embora com um
gesto que o aterrorizou de modo indescritível. Depois evidentemente ele fez alguma nova
arrumação das estantes, pois ouviu-se um grande fragor, pancadas surdas e rangidos, após o que
reapareceu e saiu imediatamente. Willett perguntou se havia deixado algum recado, mas responder
am-lhe que não havia nada. O mordomo parecia estranhamente perturbado com alguma coisa no
aspecto físico de Charles e em seu comportamento e perguntou solícito se havia esperança de cura
para seus nervos abalados.
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Durante quase duas horas, o doutor Willett esperou em vão na biblioteca de Charles Ward,
observando as prateleiras cobertas de poeira com grandes espaços vazios de onde haviam sido
retirados os livros e sorrindo severamente para o painel da chaminé na parede norte, de onde um
ano antes as feições afáveis de Joseph Curwen olhavam com ar benigno para baixo. Dentro em
pouco, as sombras começaram a se adensar e a alegria do pôr-do-sol cedeu o lugar a um vago e
crescente terror pairando como uma sombra no anoitecer. O senhor Ward finalmente chegou e
mostrou-se muito surpreso e zangado com a ausência do filho, depois de todos os cuidados que
haviam sido tomados para vigiá-lo. Ele não havia sido informado do encontro marcado por Charles
e prometeu notificar Willett quando o jovem voltasse. Ao desejar boa-noite ao médico, expressou
toda a sua perplexidade sobre a doença do filho e instou o visitante a fazer todo o possível para
devolver o equilíbrio ao rapaz. Willett ficou feliz em fugir daquela biblioteca, pois algo assustador e
anormal parecia assombrá-la, como se o quadro desaparecido tivesse deixado atrás de si uma
herança diabólica. Ele nunca gostara do quadro e mesmo agora, embora seus nervos fossem fortes,
do painel vazio emanava algo que o fazia sentir a urgente necessidade de sair para o ar puro o mais
depressa possível.
3
Na manhã seguinte, Willett recebeu um bilhete do pai de Ward dizendo que Charles continuava
ausente. O senhor Ward mencionava que o doutor Allen lhe telefonara para dizer que Charles
permaneceria em Pawtuxet por mais algum tempo e não deveria ser incomodado. Isto se tornara
necessário porque o próprio Allen precisara partir por um período indeterminado, deixando as
pesquisas à supervisão constante de Charles. Charles enviava saudações e lamentava por todo
aborrecimento que sua abrupta mudança de planos havia causado. Ao ouvir a mensagem, o senhor
Ward escutou pela primeira vez a voz do doutor Allen e esta pareceu despertar alguma lembrança
vaga e fugaz que não poderia identificar, mas que o perturbou até o terror.
Diante desses relatos desconcertantes e contraditórios, o doutor Willett ficou francamente sem
saber o que fazer. Não era possível negar a desesperada intensidade do bilhete de Charles, contudo,
o que pensar da imediata violação do compromisso assumido por seu próprio autor? O jovem Ward
havia escrito que suas investigações haviam se tornado blasfemas e ameaçadoras, que estas e seu
colega barbudo deviam ser eliminados a todo custo e que ele próprio nunca mais voltaria àquele
cenário; no entanto, segundo informações mais recentes, esquecera tudo isto e voltara a mergulhar
no mistério mais impenetrável. O bom senso pedia que o jovem fosse deixado com suas
extravagâncias, no entanto, um instinto mais profundo não permitia que a impressão provocada por
aquela carta desvairada aplacasse. Willett a releu e não conseguia fazer com que sua essência soasse
tão vazia e insana quanto seu palavrório bombástico e sua falta de cumprimento dos compromissos
poderiam sugerir. Seu terror era demasiado profundo e real e, junto com aquilo que o médico já
sabia, evocava sugestões demasiado vívidas de monstruosidade, além do tempo e do espaço, para
permitir uma explicação cínica. Horrores inomináveis estavam por toda parte e ainda que muito
pouco fosse possível fazer para atingi-los, era preciso estar preparado para todo tipo de ação, a
qualquer momento.
Por mais de uma semana, o doutor Willett ponderou sobre o dilema que aparentemente lhe
havia sido imposto e cada vez mais sentiu-se inclinado a fazer uma visita a Charles no bangalô de
Pawtuxet. Nenhum amigo do jovem jamais se aventurara a invadir esse refúgio proibido e mesmo o
pai só conhecia seu interior pelas descrições que ele fazia; mas Willett achou que se fazia necessária
uma conversa direta com seu paciente. O senhor Ward vinha recebendo do filho bilhetes
datilografados sucintos e cautelosos e disse que a senhora Ward, em seu refúgio em Atlantic City,
não recebera maiores informações. Então, por fim, o médico resolveu agir e, apesar de uma curiosa
sensação inspirada pelas antigas lendas sobre Joseph Curwen e pelas revelações e advertências mais
recentes de Charles Ward, partiu rumo ao bangalô sobre o penhasco acima do rio.
Willett visitara o local numa ocasião anterior movido por mera curiosidade, embora, é claro,
jamais tivesse entrado na casa ou anunciado sua presença, portanto, sabia exatamente que caminho
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tomar. Rumando pela Broad Street no início da tarde no final de fevereiro, em seu carrinho, ele
pensava estranhamente sobre o implacável grupo que havia tomado aquele mesmo caminho cento e
cinqüenta e sete anos atrás, com uma terrível missão que ninguém jamais poderá compreender.
O percurso pelas cercanias decadentes da cidade foi curto e a bem cuidada Edgewood e a
sonolenta Pawtuxet estendiam-se à frente. Willett virou à direita descendo Lockwood Street e
seguiu a estrada rural até onde lhe foi possível, depois desceu do carro e caminhou em direção ao
norte até o ponto em que o penhasco dominava as belas e sinuosas curvas do rio e a linha dos
baixios cobertos de névoa lá em baixo. As casas eram ainda escassas aqui e não havia como não
avistar o bangalô isolado, com sua garagem de concreto num ponto elevado à sua esquerda.
Subindo rapidamente o caminho de cascalho mal conservado, bateu à porta com mão firme e falou
sem tremer ao maldoso mulato português que a entreabriu milimetricamente.
Disse que precisava conversar imediatamente com Charles Ward sobre assuntos de importância
vital. Não aceitaria nenhuma desculpa e uma recusa significaria apenas um relatório completo ao
senhor Ward pai. O mulato ainda hesitava e empurrou a porta quando Willett tentou abri-la; mas o
médico simplesmente levantou a voz e renovou seu pedido. Então, do interior escuro ouviu-se um
murmúrio áspero que gelou o ouvinte por completo, embora não soubesse a razão do pavor. "Deixe-
o entrar, Tony", dizia, "temos de falar de uma vez por todas." Mas por mais perturbador que fosse o
murmúrio, o pavor maior viria logo em seguida. O assoalho rangeu e o sujeito que havia falado se
mostrou — o dono daqueles sons estranhos e ressoantes não era senão Charles Dexter Ward.
A precisão com a qual o doutor Willett recordou e transcreveu a conversa daquela tarde deve-
se à importância que atribui a esse período particular. Pois finalmente ele reconhece uma mudança
vital na mentalidade de Charles Dexter Ward e acredita que o jovem agora se expressava com um
cérebro irremediavelmente alienado em relação àquele cujo desenvolvimento havia acompanhado
por vinte e seis anos. A controvérsia com o doutor Lyman o impeliu a ser muito específico e ele
data definitivamente a loucura de Charles Ward no período em que os bilhetes datilografados
começaram a chegar aos seus pais. Esses bilhetes não têm o estilo normal de Ward nem mesmo o
estilo daquela última e desvairada carta endereçada a Willett. Ao contrário, são estranhos e arcaicos,
como se o convulsionamento da mente do seu autor tivesse liberado um fluxo de tendências e
impressões captadas inconscientemente pela paixão pela arqueologia na adolescência. Existe um
óbvio esforço de ser moderno, mas o espírito e ocasionalmente a linguagem são os do passado.
O passado também era evidente em cada palavra e gesto de Ward ao receber o médico naquele
bangalô cheio de sombras. Ele inclinou a cabeça, indicou a Willett um lugar para sentar e começou
a falar abruptamente naquele estranho sussurro que tratou de explicar no início da conversa.
"Fiquei tísico", começou, "com o amaldiçoado ar desse rio. Deve desculpar minha maneira de
falar. Suponho que o senhor veio a mando de meu pai para ver o que me aflige e espero que não
diga nada que o possa alarmar."
Willett estudava esse tom arranhado, mas estudava com mais atenção ainda o rosto do locutor.
Alguma coisa, ele sentia, estava errada e pensou naquilo que a família lhe contara a respeito do
medo do mordomo de Yorkshire naquela noite. Desejou que não estivesse tão escuro, mas não
pediu para erguer as cortinas. Ao contrário, simplesmente perguntou a Ward por que não cumprira o
prometido na carta desesperada de pouco mais de uma semana antes.
"Estava justamente para falar nisso", replicou o anfitrião. "O senhor deve saber que meus
nervos estão em muito má situação e que falo e faço coisas esquisitas sem me dar conta. Como lhe
disse frequentemente, estou prestes a conseguir grandes coisas e sua grandeza me faz delirar.
Qualquer pessoa ficaria apavorada com aquilo que descobri, mas não devo demorar muito tempo
agora. Fui um asno em pedir os guardas e ficar em casa; tendo chegado aonde cheguei, meu lugar é
aqui. Meus vizinhos bisbilhoteiros falam mal de mim e talvez tenha me deixado levar pela fraqueza
ao acreditar naquilo que eles dizem de mim. O que eu faço não traz prejuízos a ninguém, desde que
seja bem-feito. Tenha a bondade de esperar seis meses e eu lhe mostrarei algo que compensará
muito bem sua paciência.
"O senhor certamente sabe que tenho meios de aprender matérias antigas de fontes mais
seguras do que os livros e o senhor poderá julgar a importância da minha contribuição à história, à
44
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filosofia e às artes em razão dos meios aos quais tenho acesso. Meu antepassado possuía tudo isto
quando aqueles estúpidos bisbilhoteiros vieram aqui e o assassinaram. Agora eu estou próximo de
obtê-lo em parte, de modo muito imperfeito. Dessa vez nada deverá acontecer e muito menos por
causa dos meus temores idiotas. Peço que esqueça tudo o que lhe escrevi, senhor, e não tenha medo
desse lugar nem de qualquer um aqui. O doutor Allen é uma pessoa muito preparada e devo-lhe
desculpas por aquilo que de mal fadei a seu respeito. Gostaria de não ter de dispensá-lo, mas ele
tinha coisas a fazer em outro lugar. Seu zelo é igual ao meu em todas essas matérias e suponho que
quando eu temia o trabalho temia a ele também, meu maior colaborador".
Ward parou e o médico não sabia o que dizer ou pensar. Sentia-se quase um tolo diante desse
calmo repudio da carta, e contudo persistia para ele o fato de que embora o discurso atual fosse
estranho, curioso e indubitavelmente louco, a carta também era trágica por sua naturalidade e
afinidade ao Charles Ward que ele conhecera. Willett agora tentou conduzir a conversa sobre outros
assuntos e lembrar ao jovem algum acontecimento passado que restabelecesse um clima familiar,
mas por esse processo obteve apenas os resultados mais grotescos. O mesmo aconteceria com todos
os psiquiatras mais tarde. Partes importantes da massa de imagens mentais de Charles Ward,
principalmente aquelas que diziam respeito aos tempos modernos e à sua vida pessoal, haviam sido
inexplicavelmente eliminadas, enquanto toda a paixão pela arqueologia acumulada na juventude
brotava de um profundo subconsciente que tragava o contemporâneo e o individual. Os enormes
conhecimentos que ele possuía sobre antiguidades eram anormais e blasfemos e ele tentava de todas
as formas ocultá-los. Quando Willett mencionava algum tema predileto de seus estudos
arqueológicos da adolescência, ele frequentemente fornecia, por mero acidente, informações que
nenhum mortal normal poderia possuir e o médico arrepiava enquanto o jovem ia falando com
desenvolta fluência.
Não era normal saber que a peruca do gordo xerife despencara enquanto ele se debruçava
durante a apresentação da peça na Academia Histriônica do senhor Douglass em King Street, no dia
11 de fevereiro de 1762, uma quinta-feira; ou que os atores amputaram de um modo tão lamentável
o texto da peça O Amante Consciente, de Steele, que as pessoas quase se alegraram quando o
legislativo, dominado pêlos batistas, fechou o teatro quinze dias mais tarde. Que a diligência de
Boston de Thomas Sabin era "danada de desconfortável" era algo que velhas cartas poderiam ter
perfeitamente mencionado; mas que arqueólogo normal poderia lembrar que o rangido da nova
tabuleta do estabelecimento de Epenetus Olney (a vistosa coroa colocada depois que ele começou a
chamar sua taberna de Café da Coroa) fosse exatamente como as primeiras notas da nova peça de
jazz que todas as rádios de Pawtuxet estavam tocando?
No entanto, Ward não se deixaria interrogar por muito tempo dessa maneira. Os assuntos
modernos e pessoais ele os descartava sumariamente, enquanto com respeito a questões antigas
mostrava logo o mais evidente enfado. O que ele pretendia claramente era apenas satisfazer seu
visitante o bastante para que fosse embora sem a intenção de voltar. Com esta finalidade, ofereceu-
se para mostrar a Willett toda a casa e imediatamente conduziu o médico por todos os aposentos,
desde o porão até a mansarda. Willett olhava atentamente, mas notou que os livros visíveis eram
muito poucos e triviais em relação aos amplos espaços vazios deixados nas prateleiras na casa de
Ward, e que o medíocre, assim chamado, "laboratório" era a mais inconsistente fachada.
Evidentemente, havia em outro lugar uma biblioteca e um laboratório, mas onde exatamente era
impossível dizer. Essencialmente derrotado em sua busca de algo que não conseguia definir, Willett
voltou à cidade antes do anoitecer e contou ao senhor Ward tudo que havia acontecido. Eles
concordaram que o jovem deveria estar definitivamente fora do seu juízo, mas decidiram que
naquele momento não deveria ser tomada nenhuma medida drástica. Acima de tudo, a senhora
Ward deveria ser mantida no mais completo desconhecimento, na medida em que os estranhos
bilhetes datilografados do filho o permitissem.
O senhor Ward agora estava determinado a se encontrar com o filho numa visita de surpresa. O
doutor Willett levou-o em seu carro uma noite, guiando-o até as proximidades do bangalô, e
esperou pacientemente sua volta. A sessão foi longa e o pai saiu num estado muito contristado e
perplexo. Sua recepção foi muito parecida à de Willett, com a exceção de que Charles levara um
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tempo excessivamente longo para aparecer depois que o visitante forçara a entrada no saguão e
afastara o português com uma ordem imperiosa; e no comportamento do filho, tão mudado, não
havia nenhum sinal de afeto filial. A luz estava fraca, mas mesmo assim o jovem se queixou de que
o ofuscava excessivamente. Ele não falara de modo algum em voz alta, afirmando que sua garganta
estava em péssimas condições, mas em seu rouco sussurro havia algo tão vagamente perturbador
que o senhor Ward não conseguiu afastá-lo da mente.
Agora, definitivamente aliados para fazer todo o possível para salvar a mente do jovem, o
senhor Ward e o doutor Willett começaram a reunir todas as informações disponíveis. Os boatos
que corriam em Pawtuxet foram a primeira coisa que estudaram, e foi relativamente simples coligi-
los, pois ambos tinham amigos na região. O doutor Willett conseguiu levantar a maior parte dos
comentários porque as pessoas conversavam com mais franqueza com ele do que com o pai do
personagem central e, a partir de tudo que ouviu, chegou à conclusão de que a vida do jovem Ward
se tornara de fato bastante estranha. Os comentários não dissociavam sua casa do vampirismo do
verão passado, enquanto as idas e vindas noturnas dos caminhões contribuíam para as lúgubres
especulações. Os comerciantes locais falavam das estranhas encomendas feitas pelo mulato mal-
encarado e particularmente das quantidades imoderadas de carne e sangue fresco fornecidas pêlos
dois açougues da vizinhança mais próxima. Para uma casa de apenas três pessoas, as quantidades
eram totalmente absurdas.
Depois havia a questão dos sons debaixo da terra. Os relatos sobre essas coisas eram mais
difíceis de definir, mas todos os vagos indícios correspondiam em alguns pontos essenciais.
Ouviam-se ruídos como de rituais e, às vezes, quando o bangalô estava escuro. Evidentemente,
poderiam vir do porão; mas os boatos insistiam que havia criptas mais profundas e mais extensas.
Lembrando as antigas lendas sobre as catacumbas de Joseph Curwen e partindo do pressuposto de
que o atual bangalô havia sido escolhido por causa de sua localização sobre a antiga fazenda de
Curwen, conforme este revelara em um outro documento encontrado atrás do quadro, Willett e o
senhor Ward prestaram muita atenção a tais boatos e procuraram várias vezes, sem sucesso, a porta
na margem do rio mencionada pelo antigo manuscrito. Quanto à opinião popular sobre os vários
habitantes do bangalô, logo ficou claro que o português era detestado, o barbudo doutor Allen,
escondido atrás dos seus óculos, temido, e o jovem pálido estudioso, profundamente antipatizado.
Era óbvio que nas duas últimas semanas Ward mudara muito; abandonara as tentativas de se
mostrar afável e falava apenas em sussurros ásperos mas estranhamente repelentes nas poucas
ocasiões nas quais se aventurava a sair.
Estes foram os fragmentos e os pedaços reunidos aqui e ali, e o senhor Ward e o doutor Willett
dedicaram-lhes prolongadas e graves conferências. Esforçavam-se para exercitar ao máximo a
dedução, a indução e a imaginação construtiva e para correlacionar todos os fatos conhecidos sobre
a vida recente de Charles, inclusive a carta desesperada que o médico agora mostrou ao pai, com as
escassas provas documentais disponíveis referentes ao velho Joseph Curwen. Eles dariam tudo para
poder olhar rapidamente os papéis que Charles havia encontrado, pois estava claro que a chave da
loucura do jovem se encontrava naquilo que ele havia aprendido a respeito do antigo bruxo e de
suas atividades. E contudo, no fim, não foi por iniciativa do senhor Ward ou do doutor Willett que
se deu o próximo passo desse caso singular. O pai e o médico, repelidos e confusos por uma sombra
demasiado informe e intangível para ser combatida, com certo embaraço haviam feito uma pausa
enquanto os bilhetes datilografados do jovem Ward se tornavam cada vez mais raros. Então veio o
primeiro dia do mês com os acertos financeiros usuais e os funcionários de certos bancos
começaram a balançar sua cabeça e a telefonar um para o outro. Os que conheciam Charles Ward de
vista foram até o bangalô para perguntar por que todos os seus cheques que chegavam ao banco na
ocasião não passavam de uma desajeitada falsificação e se sentiram muito menos tranqüilizados do
que deveriam quando o jovem explicou com voz roufenha que sua mão há pouco tempo ficara tão
afetada por um choque nervoso que escrever normalmente se tornara impossível. Disse que só
conseguia formar caracteres escritos com grande dificuldade e podia comprová-lo pelo fato de ter
sido obrigado a datilografar todas as suas últimas cartas, mesmo aquelas endereçadas ao pai e à
mãe, os quais corroborariam sua afirmação.
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O que fez os investigadores pararem confusos não foi apenas esta circunstância, pois não era
algo incomum ou fundamentalmente suspeito, nem mesmo os boatos em Pawtuxet, alguns dos quais
haviam chegado até eles. Foi o discurso confuso do jovem que os deixou perplexos, pois implicava
uma perda praticamente total da memória no que dizia respeito a importantes assuntos monetários
com os quais ele costumava lidar com extrema facilidade apenas um mês ou dois antes. Havia
algum problema, pois, apesar da aparente coerência e racionalidade de seu discurso, não poderia
existir uma razão normal para este mal disfarçado esquecimento sobre pontos vitais. Além disso,
embora nenhuma dessas pessoas conhecesse bem Ward, não puderam deixar de observar a mudança
de sua linguagem e modos. Haviam ouvido dizer que ele gostava de arqueologia, mas mesmo o
arqueólogo mais obcecado não faz uso de uma fraseologia e de gestos obsoletos. De modo geral,
essa combinação de rouquidão, mãos paralisadas, má memória, fala e comportamento alterados,
indicava alguma perturbação ou doença de real gravidade, a qual, indubitavelmente, era responsável
pêlos boatos na maior parte estranhos. Depois de sair, os funcionários decidiram que a conversa
com o pai de Ward se tornara imperativa.
Assim, no dia 6 de março de 1928, houve uma longa e grave reunião no escritório do senhor
Ward, após a qual o pai, totalmente desorientado, convocou o doutor Willett com uma espécie de
desamparada resignação. Willett examinou as assinaturas forçadas e desajeitadas nos cheques e
comparou-as mentalmente à caligrafia daquela última carta desesperada. Com certeza a mudança
fora radical e profunda, mas havia algo detestavelmente familiar na nova letra. Tinha tendências
ininteligíveis e arcaicas, de um tipo bastante curioso, e parecia um traço totalmente diferente
daquele que o jovem sempre usara. Era estranho — onde ele a havia visto antes? Era óbvio que
Charles estava louco. Não havia dúvidas quanto a isso. E como parecia improvável que pudesse
administrar seus bens ou continuar lidando com o mundo exterior por mais tempo, era preciso agir
de pronto para que fosse vigiado e possivelmente tratado. Nesse momento é que foram chamados os
psiquiatras, o doutor Peck e o doutor Providence, e o doutor Lyman, de Boston, aos quais o senhor
Ward e o doutor Willett forneceram o relato mais exaustivo possível do caso. Eles conferenciaram
longamente na biblioteca, agora em desuso, de seu jovem paciente, examinando os livros e papéis
que haviam sido deixados a fim de obter alguma outra noção sobre sua estrutura mental habitual.
Depois de examinar este material e estudar a carta enviada pelo jovem a Willett, todos eles
concordaram que os estudos de Charles Ward haviam sido suficientes para deformar ou pelo menos
perturbar qualquer intelecto comum, e expressaram o desejo de ver seus volumes e documentos
mais íntimos; mas eles sabiam que isto só lhes seria possível após uma intervenção no bangalô.
Willett então analisou novamente todo o caso com energia febril e foi nessa oportunidade que
obteve as declarações dos trabalhadores, que haviam visto Charles encontrar os documentos de
Curwen, e que ele estudou os incidentes descritos nos artigos dos jornais destruídos, procurando-os
na redação ao Journal.
Na quinta-feira, dia 8 de março, os doutores Willett, Peck, Lyman e Waite, acompanhados pelo
senhor Ward, fizeram ao jovem uma solene visita, não ocultando seu propósito e interrogando com
extrema minúcia aquele que agora era reconhecidamente seu paciente. Embora demorasse
excessivamente para receber os visitantes e ainda rescendesse aos estranhos e insalubres odores do
laboratório quando finalmente apareceu agitado, Charles reve
lou-se um paciente nada recalcitrante; e admitiu abertamente que sua memória e equilíbrio haviam
ficado um pouco afetados com a constante aplicação a estudos abstrusos. Não ofereceu nenhuma
resistência quando insistiram em transferi-lo para outro local e, em realidade, pareceu mostrar um
elevado grau de inteligência além da memória prodigiosa. Seu comportamento teria feito com que
seus entrevistadores se retirassem frustrados, não
fosse a persistente tendência arcaizante de sua fala e a inquestionável substituição de idéias
modernas por idéias antigas em sua consciência, que o marcavam como um indivíduo longe da
normalidade. A respeito de seu trabalho não declarou ao grupo de médicos mais do que
anteriormente dissera à família e ao doutor Willett, e definiu a carta desesperada do mês anterior
como um simples problema nervoso e histeria. Insistiu que aquele sombrio
bangalô não possuía nenhuma biblioteca ou laboratório além dos que eram visíveis e tornou-se
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abstruso ao explicar a razão pela qual os odores que nesse momento saturavam suas roupas não
eram percebidos na casa. Atribuiu os boatos da vizinhança a invencionices baratas, fruto de
curiosidade frustrada. A respeito do para
deiro do doutor Allen, disse que não poderia falar de modo definitivo, mas assegurou aos seus
visitantes que o sujeito barbudo de óculos voltaria se fosse necessário. Ao despedir e pagar o
impassível português que resistira a todas as indagações feitas pêlos visitantes e ao fechar o bangalô
que parecia conter segredos tão profundos, Ward não mostrou nenhum sinal de nervosismo, com
exceção de uma tendência quase imperceptível a se deter como para ouvir algo muito tênue. Parecia
animado por uma calma resignação filosófica, como se sua internação fosse um incidente transitório
que provocaria menos problemas se fosse facilitado e resolvido de uma vez por todas. Era evidente
que confiava na agudeza obviamente intocada de sua inteligência absoluta para superar todos os
embaraços que lhe haviam sido criados pela memória deformada, a perda da voz e da capacidade de
escrever por seu misterioso e excêntrico comportamento. Concordaram que sua mãe não seria
informada da mudança e o pai mandaria as cartas datilografadas em seu nome. Ward foi levado ao
hospital do doutor Waite, num local calmo e pitoresco, em Conanicut Island, na enseada, e foi
submetido aos mais minuciosos exames e interrogatórios por todos os médicos ligados ao caso.
Então foram notadas as singularidades físicas, o retardo do metabolismo, a alteração da pele e as
desproporcionais reações neurais. O doutor Willett era o mais perturbado dos vários examinadores,
pois havia cuidado de Ward durante toda a sua vida e podia verificar com terrível intensidade a
gravidade de sua desorganização física. Até a marca familiar em forma de azeitona sobre o quadril
havia desaparecido, enquanto em seu peito havia uma grande massa negra carnosa ou uma cicatriz
que jamais havia existido naquele lugar e que levou o doutor Willett a pensar se o jovem teria em
algum momento se submetido a alguns daqueles rituais para receber a "marca das bruxas", imposta,
segundo se acreditava, em certas reuniões noturnas em lugares selvagens e ermos. O médico não
conseguia afastar de sua mente certo registro transcrito de um julgamento de bruxas de Salem, que
Charles Ward lhe mostrara nos velhos tempos em que não se cercava de segredos, e que dizia: "O
senhor G.B. naquela noite pôs a Marca do Diabo em Bridget S., Jonathan A., Simon O.,
Deliverance W. Joseph C., Susan P., Mehitable C. e Deborah B." O rosto de Ward também o
preocupava terrivelmente, até que a certa altura descobriu de repente por que ficara tão horrorizado.
Sobre o olho direito do jovem havia algo que jamais havia notado antes — uma pequena cicatriz ou
cova exatamente como aquela do re-trato pulverizado do velho Joseph Curwen, talvez revelando
alguma horrenda inoculação ritual à qual ambos haviam se submetido em certo estágio de suas
carreiras ocultas.
Enquanto o próprio Ward intrigava todos os médicos do hospital, toda a correspondência
endereçada a ele ou ao doutor Allen, que o senhor Ward ordenara fosse entregue na residência da
família, estava sendo estritamente vigiada. Willett previra que muito pouco seria encontrado, pois
toda comunicação de natureza vital provavelmente seria realizada por mensageiro; mas, no final de
março, chegou de fato uma carta de Praga para o doutor Allen que deixou o médico e o pai muito
preocupados. Estava escrita numa letra muito arcaica e indecifrável e, embora claramente não fosse
o resultado do esforço de um estrangeiro, mostrava uma diferença tão singular em relação ao inglês
moderno quanto a fala do próprio jovem Ward. Dizia:
Kleinstrasse, 11
Altstadt, Praga,
11 de fevereiro de 1928.
Irmão em Almousin-Metraton!_________
Recebi hoje seu relato do que saiu dos sais que eu lhe enviei. Estava errado e significa claramente que
as pedras tumulares haviam sido mudadas quando Barnabus me mandou o espécime. Isto ocorre com
freqüência, como deve ter percebido pela coisa que recebeu do cemitério de King' Chapel em 1769 e por
aquela que recebeu do Cemitério Velho em 1690, que poderia acabar com ele. Eu obtive coisa semelhante no
Egito, há 75 anos, de onde apareceu aquela cicatriz que o menino viu em mim em 1924. Como lhe disse há
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muito tempo, não evoque aquilo que não puder mandar de volta quer pêlos sais mortos quer pelas esferas do
além. Tenha sempre prontas as palavras para mandar de volta todas as vezes e não espere para ter certeza
quando tiver alguma dúvida de Quem você tem. As lápides estão todas mudadas agora em nove túmulos de
cada dez. Nunca terá certeza enquanto não perguntar. Hoje recebi notícias de H., que teve problemas com os
soldados. É provável que ele lamente o fato de a Transilvânia ter passado da Hungria para a Rumênia e
mudaria sua sede se o castelo não estivesse tão cheio daquilo que nós sabemos. Mas sem dúvida ele lhe
escreveu a este respeito. Na minha segunda remessa, haverá algo de um túmulo da colina do leste que muito
lhe agradará. Enquanto isso, não esqueça que desejo B.F. se você puder chamá-lo para mim. Você conhece
G. em Filadélfia melhor do que eu. Chame-o você em primeiro lugar se quiser, mas não o use demais; ele
será difícil, terei de falar com de no fim.
Yogg-Sothotf Neblod Zin
Simon O.
Para o senhor J.C. em
Providence.
O senhor Ward e o doutor Willett pararam num caos completo diante dessa aparente amostra de
absoluta insanidade. Só aos poucos conseguiram assimilar o que ela parecia implicar. Então o ausente doutor
Allen, e não Charles Ward, era o espírito dominante em Pawtuxet? Isto explicaria a violenta referência e a
desvairada determinação da última carta desesperada do jovem. E o que dizer do fato de a carta ser remetida
ao estrangeiro de óculos e barba como "Senhor J.C."? Não havia como escapar à conclusão, mas existem
limites a possíveis monstruosidades. Quem era "Simon O."? O velho que Ward visitara em Praga há quatro
anos? Talvez, mas séculos antes havia existido outro Simon O. — Simon Orne, também Jedediah, de Salem,
que desaparecera em 1771, e cuja caligrafia peculiar o doutor Willett agora reconhecia inconfundivelmente
como a das cópias fotostáticas das fórmulas de Orne que Charles certa vez lhe mostrara. Que horrores e
mistérios», que contradições e contravenções da natureza voltavam após um século e meio para atormentar a
velha Providence com seus inúmeros campanários e cúpulas?
O pai e o velho médico, praticamente sem saber o que fazer ou pensar, foram visitar Charles no hospital
e perguntaram-lhe da maneira mais delicada possível a respeito do doutor Allen, da visita a Praga e daquilo
que ele havia aprendido de Simon ou Jedediah Orne, de Salem. Diante de todas estas perguntas o jovem se
mostrou polidamente reservado, limitando-se a responder de maneira esganiçada, com seus sussurros
ásperos, que descobrira que o doutor Allen tinha um notável relacionamento espiritual com certos espíritos
do passado e que o correspondente do barbudo em Pinga deveria ter iguais poderes. Quando saíram, o senhor
Ward e o doutor Willett deram-se conta de que, para seu desapontamento, eles é que haviam sido
investigados e que, sem fornecer nenhuma informação vital, o jovem internado havia astutamente extraído
deles tudo o que a carta de Praga continha.
Os doutores Peck, Waite e Lyman não estavam inclinados a atribuir grande importância à estranha
correspondência do companheiro do jovem Ward, pois conheciam a tendência de indivíduos excêntricos e
monomaníacos a constituírem grupos entre si, e acreditavam que Charles ou Allen haviam simplesmente
descoberto um colega expatriado — quem sabe alguém que havia visto a caligrafia de Orne e a copiara na
tentativa de posar como reencarnação do finado personagem. O próprio Allen era talvez um caso semelhante
e poderia ter persuadido o jovem a aceitá-lo como um avatar de Curwen há muito tempo falecido. Essas
coisas já eram conhecidas e, com o mesmo argumento, os obstinados doutores liquidaram a crescente
inquietação de Willett no que dizia respeito à atual caligrafia de Charles Ward, contida nas amostras obtidas
por vários artifícios. Willett acreditava ter identificado enfim a razão de sua estranha familiaridade, pois ela
se assemelhava vagamente à caligrafia do falecido velho Joseph Curwen; mas os outros médicos
consideraram isto um fenômeno de imitação previsível neste tipo de loucura e recusaram-se a atribuir-lhe
alguma importância, a favor ou não. Ao constatar essa atitude prosaica em seus colegas, Willett aconselhou o
senhor Ward a guardar a carta que chegara para o doutor Allen no dia 2 de abril de Rakus, na Transilvânia,
numa letra tão intensa e fundamentalmente idêntica à do código de Hutchinson que tanto o pai quanto o
médico se detiveram apavorados antes de violar o selo. A carta dizia:
Castelo Ferenczy
7 de março de 1928,
49
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Caro C. —
Apareceu um esquadrão de vinte milicianos por causa dos boatos do povo. Preciso cavar mais fundo e
manter menos gado. Esses rumenos incomodam horrivelmente, são intrometidos e detalhistas, enquanto era
possível comprar um magiar com bebida e comida. No mês passado M. me mandou o sarcófago das cinco
esfinges da Acrópole onde aquele que eu evoquei me disse que estaria, e tive três conversas com aquilo que
estava inumado em seu interior. Irá diretamente para S. O. em Praga e de lá para o senhor. É obstinado, mas
o senhor sabe como agir. O senhor mostrou sabedoria em ter menos do que antes, pois não havia necessidade
de manter os guardas em forma e comendo tanto, e muito poderia ser encontrado em caso de problemas,
como os senhores bem sabem. Agora o senhor pode se mudar e trabalhar em outro lugar sem o inconveniente
de matar, se necessário, embora espere que nada o obrigue tão cedo a uma medida tão incômoda. Folgo que
não esteja traficando muito com os de fora, pois nisso sempre houve um perigo mortal e o senhor sabe o que
ele fez quando pediu proteção de alguém que não estava disposto a dá-la. O senhor me supera em conseguir
as fórmulas para que um outro o possa dizê-las com sucesso, mas Borellus imaginou que seria assim,
bastando ter as palavras certas. O rapaz as usa frequentemente? Sinto que ele esteja se tornando
excessivamente melindroso, como eu temia quando esteve aqui há cerca de quinze meses, mas percebo que o
senhor sabe como lidar com ele. O senhor não pode fazê-lo voltar com as fórmulas, pois aquilo só funciona
com aqueles que as fórmulas chamam dos sais, mas o senhor ainda tem mãos fortes, faca, pistola e túmulos
não são difíceis de cavar, nem os ácidos difíceis de queimar. O. diz que o senhor lhe prometeu B.F. Eu
preciso tê-lo depois. B. irá para o senhor logo e poderá lhe dar o que o senhor deseja daquela coisa negra
debaixo de Memphis. Tenha cuidado com aquilo que evocar e cuidado com o menino. Daqui a um ano será o
momento de convocar as legiões das profundas e então não haverá limites ao nosso poder. Confie no que eu
digo, pois o senhor sabe que O. e eu tivemos esses 150 anos mais que o senhor para estudar tais assuntos.
Nephreu — Ka nai Hadoth
Edw:H.
Para o Cavalheiro J. Curwen,
Providence
Mas embora Willett e o senhor Ward não mostrassem essa carta aos psiquiatras, não deixaram de, em
seguida, agir por conta própria. Não havia douto sofisma capaz de contestar o fato de que o estranho doutor
Allen, com seus óculos e barba, de quem a desesperada carta de Charles falara como de uma ameaça tão
monstruosa, mantinha uma íntima e sinistra correspondência com duas inexplicáveis criaturas que Ward
havia visitado em suas viagens e que claramente afirmavam ser sobreviventes ou avatares dos velhos colegas
de Curwen, em Salem. Que ele se considerava a reencarnação de Joseph Curwen e que cultivava — ou pelo
menos havia sido aconselhado a cultivar — mortais desígnios contra um "menino" que não poderia ser senão
Charles Ward. O Horror organizado estava agindo e, quem quer que o tivesse começado, o ausente Allen a
esta altura estava na origem de tudo. Portanto, agradecendo aos céus por Charles agora estar a salvo no
hospital, o senhor Ward não perdeu tempo e contratou imediatamente detetives para que descobrissem tudo a
respeito do misterioso doutor barbudo, se informassem de onde ele vinha e o que Pawtuxet sabia sobre ele, e
se possível descobrissem seu atual paradeiro. Entregou-lhes uma das chaves do bangalô que eram de Charles
e recomendou-lhes que explorassem o quarto vazio de Allen identificado quando haviam sido empacotados
os pertences do paciente e colhessem todos os indícios possíveis dos objetos pessoais que ele porventura
tivesse deixado por lá. O senhor Ward conversou com os detetives na antiga biblioteca do filho e eles se
sentiram bastante aliviados quando por fim saíram do aposento sobre o qual parecia pairar um vago fluido
diabólico. Talvez tivessem ouvido falar do abominável velho bruxo cujo quadro outrora espiava de cima do
painel sobre a lareira, talvez fosse algo diferente e irrelevante; de qualquer maneira, todos eles sentiram um
intangível miasma que emanava daquele vestígio entalhado de uma morada mais antiga e que chegava quase
à intensidade de uma emanação material.
Capítulo cinco
Pesadelo e cataclismo
1
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Logo em seguida deu-se a horrenda experiência que deixou uma marca indelével de terror na
alma de Marinus Bicknell Willett e envelheceu de uma década a aparência de um homem cuja
juventude já então andava muito distante. O doutor Willett conferenciou longamente com o senhor
Ward e chegou a um consenso com ele em vários pontos que, na opinião de ambos, os psiquiatras
achariam ridículos. Eles se davam conta de que existia no mundo um terrível movimento cuja
ligação direta com uma necromancia mais antiga ainda do que as bruxarias de Salem era algo acima
de qualquer dúvida. Que pelo menos dois homens vivos — e outro no qual não ousavam pensar —
detinham o domínio absoluto de mentes ou personalidades que haviam existido já em 1690 ou
mesmo antes, como estava quase inquestionavelmente comprovado, mesmo contra todas as leis
naturais conhecidas. O que estas terríveis criaturas — bem como Charles Ward — estavam fazendo
ou tentando fazer parecia bastante claro pelas suas cartas e por todo vislumbre de luz antigo e novo
que filtrara sobre o caso. Eles estavam saqueando túmulos de todos os tempos, inclusive os dos
maiores e mais sábios homens do mundo, na esperança de recuperar das vetustas cinzas algum
vestígio da ciência e do saber que outrora os animara e informara.
Um tráfico hediondo desenrolava-se entre estes vampiros de pesadelo, e ossos ilustres eram
barganhados com a atitude calculista e calma de meninos de escola trocando livros entre si; por
aquilo que era possível arrancar dessa poeira secular anteviam-se um poder e uma sabedoria
superiores a tudo o que o cosmos jamais vira concentrado num só homem ou grupo. Eles haviam
encontrado meios blasfemos de manter vivos seus cérebros, no mesmo corpo ou em corpos
diferentes, e, evidentemente, haviam descoberto uma maneira de extrair a consciência dos mortos
que eles conseguiam obter. Aparentemente, existia um fundo de verdade no velho e quimérico
Borellus, quando escreveu a respeito do modo de preparar, mesmo para os restos mais antigos,
certos "sais essenciais" dos quais era possível evocar a sombra de um ser há muito falecido. Havia
uma fórmula para evocar essa sombra e outra para fazê-la voltar, e agora havia sido tão
aperfeiçoada que podia ser ensinada com sucesso. Era preciso ter muito cuidado com essas
evocações, pois as lápides das tumbas antigas nem sempre são precisas.
Willett e o senhor Ward estremeciam ao passar de conclusão em conclusão. As coisas —
presenças ou vozes — podiam ser evocadas de lugares desconhecidos bem como do túmulo e nesse
processo também era preciso ter muito cuidado. Joseph Curwen indubitavelmente evocara muitas
coisas proibidas, e quanto a Charles — o que se podia pensar dele? Que forças "fora das esferas"
haviam chegado a ele dos tempos de Joseph Curwen fazendo sua mente voltar-se para coisas
esquecidas? Ele fora levado a descobrir certas instruções e as usara. Conversara com o homem do
horror em Praga e vivera muito tempo com a criatura nas montanhas da Transilvânia. Por fim,
encontrara o túmulo de Joseph Curwen. O artigo do jornal e aquilo que sua mãe ouvira aquela noite
eram demasiado importantes para serem desprezados. Então ele chamara algo e este algo viera.
Aquela voz possante nas alturas, na Sexta-feira Santa, e aqueles tons diferentes no laboratório da
mansarda trancada—Arqueie assemelhavam com sua profundidade e cavernosidade? Não haveria
neles um horrível prenúncio do temido estrangeiro, o doutor Allen, com seu tom baixo espectral?
Sim, era isso que o senhor Ward havia percebido com um vago horror em sua única conversa com o
homem pelo telefone — se é que se tratava de um homem.
Que consciência ou voz infernal, que mórbida sombra ou presença respondera aos secretos ritos
de Charles Ward atrás daquela porta trancada? Aquelas vozes ouvidas numa discussão — "é preciso
que fique vermelho três meses" — Bom Deus! Não. Aquilo acontecera pouco antes de começar a
onda de vampirismo? O saque do antigo túmulo de Ezra Weeden e mais tarde os gritos em
Pawtuxet — que mente planejara a vingança e redescobrira a sede das mais antigas blasfêmias, por
todos evitada? E depois o bangalô e o estrangeiro barbudo, os boatos e o terror. A loucura final de
Charles não podia ser explicada nem pelo pai nem pelo médico, mas eles tinham certeza de que a
mente de Joseph Curwen voltara novamente à terra e estava seguindo suas antigas tendências
mórbidas. A possessão demoníaca era realmente uma possibilidade? Allen tinha algo a ver com isso
e os detetives tinham de descobrir mais a respeito de um indivíduo cuja existência ameaçava a vida
do jovem. Enquanto isso, como a existência de alguma enorme cripta debaixo do bangalô parecia
praticamente indiscutível, era preciso fazer alguma tentativa de encontrá-la. Willett e o senhor
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Ward, conscientes da atitude cética dos psiquiatras, resolveram durante sua conferência final
empreender uma exploração conjunta de uma minúcia sem igual e combinaram encontrar-se no
bangalô na manhã seguinte com valises, instrumentos e material adequados à pesquisa arquitetônica
e à exploração subterrânea.
A manhã do dia 6 de abril surgiu clara e ambos os exploradores estavam no bangalô às dez
horas. O senhor Ward tinha a chave, entraram e realizaram uma busca rápida. Pela desordem do
quarto do doutor Allen era óbvio que os detetives já haviam estado lá, e os novos exploradores
esperaram que tivessem encontrado algum indício valioso. Evidentemente, o negócio principal
ficava no porão; portanto, desceram sem muita demora, percorrendo de novo o trajeto que cada um
deles havia feito anteriormente na presença do jovem e maníaco proprietário. Por algum tempo
sentiram-se frustrados, cada polegada do chão de terra e das paredes de pedra tinha um aspecto tão
sólido e inócuo que era impossível imaginar uma abertura escancarada. Willett refletiu que como o
porão original fora escavado sem que se soubesse da existência de uma catacumba debaixo dele, o
início da passagem seria justamente a escavação recente do jovem Ward e seus sócios, à procura do
antigo subterrâneo cuja existência lhes poderia ter sido revelada por meios não-normais.
O médico tentou colocar-se no lugar de Charles para entender como um explorador começaria,
mas não conseguiu obter muita inspiração com este método. Então, decidiu optar por aquele da
eliminação e percorreu cuidadosamente toda a superfície subterrânea, vertical e horizontal, tentando
estudar cada polegada separadamente. Logo restringiu substancialmente sua área de interesse e por
fim só restava a pequena plataforma diante da tina de lavar roupa, que ele já havia experimentado.
Tentando agora de todos os modos possíveis, e aplicando força redobrada, finalmente descobriu que
a tampa de fato girava e deslizava horizontalmente sobre um eixo no canto. Debaixo dela havia uma
superfície lisa de concreto com uma tampa de ferro, para a qual o senhor Ward se dirigiu
imediatamente, excitado em seu zelo. A tampa não era difícil de levantar e o pai a havia quase
removido quando Willett notou que seu aspecto ficara estranho. Ele vacilava e agitava a cabeça
atordoado e, na lufada de ar pestilento que saiu do poço negro lá em baixo, o médico logo descobriu
a causa.
Num instante, o doutor Willett deitou no chão o companheiro que desmaiara e o ajudou a voltar
a si com água fria. O senhor Ward reagiu fracamente, mas percebia-se que a lufada de ar mefítico
da cripta de alguma forma o deixara num profundo mal-estar. Ansioso por não correr riscos, Willett
saiu apressadamente em busca de um táxi em Broad Street e logo despachou o doente para casa,
apesar de seus fracos protestos; depois, pegou uma lanterna a pilha, cobriu o nariz com uma
bandagem de gaze esterilizada e desceu mais uma vez para espiar as profundezas recém-
descobertas. O ar empestado diminuíra ligeiramente e Willett pôde vasculhar com sua lanterna o
abismo infernal. Observou que havia uma queda exatamente cilíndrica de cerca de três metros e
meio, com paredes de concreto e uma escada de ferro; depois disso, o buraco parecia dar num lance
de antigos degraus de pedra, originalmente, devia emergir um pouco ao sul do edifício atual.
Willett admite francamente que por um instante a lembrança das velhas lendas sobre Curwen o
impediu de descer sozinho na voragem malcheirosa. Não podia deixar de pensar naquilo que Luke
Fenner contara a respeito da última noite monstruosa. Então, o dever predominou e ele se decidiu,
carregando urna grande valise para levar algum papel que se revelasse de suprema importância.
Lentamente, como convinha a uma pessoa de sua idade, desceu a escada e alcançou os degraus
limosos em baixo. Era uma construção antiga, de tijolos, conforme a lanterna desvendava, e, sobre
as paredes gotejantes, viu o musgo doentio dos séculos. Os degraus desciam, desciam, não em
espiral, mas em três abruptas curvas, e eram tão estreitos que dois homens passariam com
dificuldade. Contara cerca de trinta quando ouviu um som muito fraco e depois disso não teve mais
disposição para contar.
Era um som perverso; o som daqueles insidiosos e graves ultrajes da natureza que não
deveriam existir. Chamar aquilo um gemido surdo, um queixume prolongado fatal ou um uivo
desesperado de uma angústia coral e uma carne aflita sem cérebro não definiria sua repugnância
essencial e seu tom aterrorizante. Seria isso que Ward parecia ouvir naquele dia em que foi
internado? Era a coisa mais chocante que Willett jamais ouvira e continuava de um ponto
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indeterminado enquanto o médico chegava ao fim dos degraus e movia a luz da lanterna à sua volta
sobre as elevadas paredes do corredor encimadas por abóbadas ciclópicas e recortadas por inúmeros
arcos negros. Õ saguão no qual ele se encontrava talvez tivesse mais de quatro metros de altura no
centro da abóbada e mais de três metros de largura. Seu assoalho era formado de largas lajes
entrecortadas e suas paredes e teto eram de tijolos lisos. Não poderia imaginar seu comprimento,
pois estendia-se adiante indefinidamente na escuridão. Alguns dos arcos tinham portas do antigo
tipo colonial de seis painéis, enquanto outros não.
Vencendo o horror provocado pelo cheiro e pêlos uivos, Willett começou a explorar esses arcos
um por um; encontrou atrás deles cômodos com tetos de pedra com nervuras, cada um de tamanho
médio e aparentemente reservados para usos bizarros; a maioria deles tinha lareira, sendo que a
parte superior das chaminés poderia permitir um interessante estudo de engenharia. Jamais ele vira,
ou viu depois disso, tais instrumentos ou sugestões de instrumentos que apareciam aqui por todos os
lados entre o pó e as teias de aranha de um século e meio, em muitos casos evidentemente
estilhaçados, quem sabe pêlos antigos invasores. Muitos dos cômodos pareciam não ter sido
visitados em tempos recentes e deviam representar as primeiras e mais ultrapassadas fases das
experiências de Joseph Curwen. Finalmente, apareceu um quarto obviamente moderno, ou pelo
menos de ocupação recente. Havia fogareiros, prateleiras e mesas, cadeiras e gabinetes, e uma
escrivaninha com enormes pilhas de papéis de variados graus de antiguidade e contemporâneos.
Castiçais e lampiões espalhavam-se por vários lugares e, encontrando à mão uma caixa de fósforos,
Willett acendeu todos os que estavam prontos para o uso.
Na luminosidade agora mais plena via-se que esse apartamento não era senão o último estúdio
ou biblioteca de Charles Ward. O médico havia visto muitos daqueles livros antes e boa parte da
mobília viera claramente da mansão de Prospect Street. Aqui e ali havia uma peça bem conhecida
para Willett e a sensação de familiaridade se tomou tão grande que quase esqueceu o cheiro
nauseabundo e os uivos, ambos mais fracos aqui do que ao pé dos degraus. Seu primeiro dever,
como havia longamente planejado, era descobrir e recolher todos os papéis que fossem
considerados de importância vital, principalmente aqueles monstruosos documentos encontrados
por Charles há tanto tempo, atrás do quadro em Olney Court. Enquanto procurava deu-se conta de
que espantosa tarefa seria decifrar todo o mistério; pois cada arquivo estava repleto de papéis em
curiosas caligrafias e com desenhos curiosos, de modo que meses ou talvez mesmo anos seriam
necessários para uma decifração e compilação completa. Em certo momento, descobriu grandes
pacotes de cartas com selos de Praga e Rakus numa caligrafia claramente reconhecível como de
Orne e Hutchinson; tudo isso ele carregou consigo junto com as coisas a serem levadas na valise.
Por fim, num gabinete de mogno trancado a chave, que outrora adornava a casa de Ward, Willett
descobriu o lote de velhos papéis de Curwen, reconhecendo-os graças ao olhar relutante que
Charles lhe permitira tantos anos antes. O jovem evidentemente os havia conservado juntos da
mesma maneira como estavam quando os descobrira, pois todos os títulos lembrados pêlos
operários estavam lá, com exceção dos papéis endereçados a Orne e Hutchinson e o código com sua
explicação. Willett colocou todo o lote em sua mala e continuou a examinar os arquivos. Como a
doença imediata do jovem Ward era a principal questão em jogo, a pesquisa mais cuidadosa foi
realizada entre o material mais obviamente recente, e nessa abundância de manuscritos
contemporâneos observou uma curiosidade desconcertante. Essa singularidade era a limitada
quantidade de coisas escritas na caligrafia normal de Charles, entre as quais indubitavelmente não
havia nada mais recente do que dois meses antes. Por outro lado, havia literalmente resmas e resmas
de símbolos e fórmulas, apontamentos históricos e comentários filosóficos, numa caligrafia
intrincada absolutamente idêntica à escritura antiga de Joseph Curwen, embora inegavelmente com
datas modernas. Era evidente que uma parte do programa dos últimos dias havia sido uma diligente
imitação da caligrafia do velho bruxo, em que Charles parecia ter conseguido uma perfeição
maravilhosa. De uma terceira caligrafia, que deveria pertencer a Allen, não havia traços. Se de fato
ele havia se tornado o chefe, devia ter obrigado o jovem Ward a servir-lhe de amanuense.
Nesse novo material, uma fórmula mística, ou melhor, duas fórmulas apareciam com tanta
freqüência que Willett a decorou antes de chegar à metade de sua investigação. Consistia em duas
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colunas paralelas, a da esquerda encimada pelo símbolo arcaico chamado "Cabeça do Dragão" e
usado em almanaques para indicar o nó ascendente, e a da direita encimada por um sinal
correspondente, o da "Cauda do Dragão", ou nó descendente. O aspecto da fórmula era algo
semelhante ao que está reproduzido abaixo e quase inconscientemente o doutor percebeu que a
segunda metade não era senão a primeira escrita com as sílabas invertidas, com exceção dos últimos
monossílabos e do estranho nome Yog-Sothoth, que ele aprendera a reconhecer em várias
ortografias por outras coisas que havia visto relacionadas a esse horrível assunto. As fórmulas eram
as seguintes — exatamente
Y'AI 'NG'NGAH,
YOG-SOTHOTH
H'EE - L'GEB
FAI THRODOG
UAAAH
OGTHROD AI'F
GEB'L - EE'H
YOG-SOTHOTH
'NGAH'NG AI'Y
ZHRO
como Willett pôde testemunhar abundantemente — e a primeira despertou uma curiosa sensação de
lembrança desconfortável e latente em sua mente, que reconheceu mais tarde ao rever os eventos
daquela horrível Sexta-Feira Santa do ano anterior. Eram tão obsedantes as fórmulas e ele as
encontrou tantas vezes que, antes de se dar conta, o médico as estava repetindo em voz baixa. A
certa altura, achando que tinha apanhado todos os papéis de interesse que poderia digerir no
momento, resolveu não examinar mais nada até que pudesse trazer os céticos psiquiatras en masse
para uma ampla e mais sistemática incursão. Ainda precisava encontrar o laboratório oculto, assim,
deixando a valise na sala iluminada, voltou a penetrar no negro corredor fétido cujas abóbadas
ressoavam incessantemente com aquele gemido surdo e horrendo.
Os poucos cômodos seguintes em que entrou estavam todos abandonados ou cheios apenas de
caixas semidestruídas e caixões de chumbo de aspecto sinistro, mas que o impressionaram
profundamente com a magnitude das operações originais de Joseph Curwen. Pensou nos escravos e
marujos desaparecidos, nos túmulos violados em todos os cantos do mundo e naquilo que o grupo
da invasão final provavelmente viu; e então decidiu que era melhor não pensar mais. A certa altura,
uma grande escadaria de pedra subia à sua direita e deduziu que deveria conduzir a um dos edifícios
de Curwen — talvez o famoso edifício de pedra com as altas janelas semelhantes a fendas — se os
degraus que ele subira iniciassem na casa da fazenda de teto muito inclinado. De repente, as paredes
pareceram desaparecer de vista mais à frente e o fedor e os gemidos se tornaram mais fortes. Willett
notou que chegara a um amplo espaço aberto, tão grande que a luz de sua lanterna não alcançava o
outro lado, e à medida que avançava descobria pilares aqui e ali sustentando os arcos do teto.
Depois de algum tempo, chegou a um círculo de pilares agrupados como os monolitos de
Stonehenge e um imenso altar esculpido sobre uma base de três degraus no centro; as esculturas
daquele altar eram tão curiosas que ele se aproximou para examiná-las com a lanterna, mas quando
viu o que representavam recuou estremecendo e não parou para investigar as marcas escuras que
borravam a superfície superior e haviam se espalhado pêlos lados em filetes aqui e ali. Em vez
disso, chegou até a parede distante e a percorreu enquanto ela se abria num círculo gigantesco
perfurado por negras portas esparsas que davam numa miríade de celas pouco profundas, com
grades de ferro e argolas para pulsos e tornozelos presas a correntes fixadas à pedra da parede de
tijolos do fundo. Essas celas estavam vazias, mas o horrível cheiro e os gemidos lúgubres
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persistiam, agora mais insistentes do que nunca, e, ao que parecia, variavam às vezes com uma
espécie de baques e escorregões.
2
A atenção de Willett já não conseguia se desviar do cheiro assustador e do ruído horrível.
Ambos eram mais nítidos e mais horrendos no grande saguão de pilares do que em qualquer outro
lugar e davam a vaga impressão de virem de baixo, mais abaixo ainda do que esse profundo e negro
mundo de mistérios subterrâneos. Antes de tentar procurar em algumas das escuras arcadas os
degraus que o levariam ainda mais para baixo, o médico dirigiu o jato de luz sobre o chão de pedras
perfuradas. Era pavimentado de modo muito desconexo e a intervalos irregulares notava-se uma laje
curiosamente perfurada com pequenos orifícios dispostos ao acaso; num lugar havia uma escada de
madeira muito comprida jogada no chão. Curiosamente, a esta escada parecia aderir uma boa parte
do cheiro assustador que impregnava tudo. Enquanto Willett se movia lentamente pelo local, de
repente se deu conta de que tanto o ruído quanto o odor pareciam mais fortes diretamente em cima
das lajes com as curiosas perfurações, como toscos alçapões levando a alguma região de horror
ainda mais profunda. Ajoelhando-se ao lado de uma delas, tentou levantá-la com as mãos e
verificou que conseguia fazê-la mover com extrema dificuldade. Com isso, o gemido lá em baixo
ficou mais forte e com uma agitação enorme o médico continuou a erguer a pesada pedra. Um fedor
indizível subia agora das profundezas e a cabeça de Willett começou a rodar vertiginosamente
enquanto apoiava a laje para trás e iluminava com a lanterna o negro espaço quadrado que acabava
de escancarar.
Se esperava um lance de escada conduzindo a algum imenso abismo de abominação total,
Willett estava destinado a se desapontar, pois entre o fedor e os gemidos entrecortados enxergou
apenas o topo revestido de tijolos de um poço cilíndrico de aproximadamente um metro e meio de
diâmetro, sem qualquer escada ou outros meios para a descida. Enquanto a luz iluminava lá em
baixo, os gemidos se tornaram de repente uma série de uivos horríveis junto com os quais vinha de
novo aquele ruído de movimentos desordenados e inúteis e surdos baques e escorregões. O
explorador tremeu, recusando-se inclusive a imaginar que coisa horrorosa poderia aguardar no
abismo; mas logo encontrou a coragem de espiar pela beirada toscamente recortada, deitado no
chão e segurando a lanterna com o braço esticado para ver o que poderia existir lá em baixo. Por um
segundo, não conseguiu distinguir nada, com exceção das paredes verdes e escorregadias de limo
que mergulhavam sem fim num miasma quase material de negridão, fedor e desesperado frenesi;
então viu alguma coisa escura pulando de modo desajeitado e frenético, para cima e para baixo, no
fundo da estreita abertura que ficava talvez a sete ou oito metros abaixo do chão de pedra sobre o
qual ele estava deitado. A lanterna tremeu em sua mão, mas ele olhou de novo para ver que espécie
de ser vivente estaria murado na escuridão daquele poço construído pelo homem e havia sido
deixado morrer de inanição pelo jovem Ward por um mês inteiro desde que os médicos o haviam
levado, evidentemente apenas um de um grande número de outros trancados em poços semelhantes
cujas tampas de pedra perfurada eram tão freqüentes no chão da grande caverna abobadada. O que
quer que fossem essas coisas, não podiam ficar deitadas em seus cubículos apertados, mas apenas
gemer e esperar, pulando fracamente por todas aquelas horríveis semanas desde que seu dono as
abandonara e negligenciara.
Mas Marinus Bicknell Willett arrependeu-se de olhar de novo, pois, embora fosse cirurgião e
veterano da sala de dissecação, não foi mais o mesmo a partir daquele momento. É difícil explicar
como a simples visão de um objeto concreto de dimensões mensuráveis poderia de tal modo abalar
e mudar um homem; podemos apenas dizer que certas figuras e entidades possuem um poder de
simbolismo e sugestão que agem de maneira assustadora sobre a visão de um pensador sensível e
sussurram terríveis sugestões de obscuras relações cósmicas e realidades indescritíveis por trás das
protetoras ilusões da visão comum. Naquela segunda olhada, Willett viu essa criatura ou entidade e
nos instantes seguintes, sem sombra de dúvida, enlouquecera como qualquer paciente da clínica
privada do doutor Waite. Deixou cair a lanterna da mão, da qual sumira toda força muscular ou
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coordenação nervosa, tampouco se preocupou com o barulho de dentes trincando algo, indicando o
destino daquela no fundo do poço. Ele gritou, gritou e gritou ainda numa voz cujo falsete provocado
pelo pânico nenhum amigo seu jamais reconheceria, e, não conseguindo erguer-se sobre os pés,
arrastou-se e rolou desesperadamente para longe sobre o chão úmido onde dezenas de poços
infernais deixavam escapar gemidos e uivos extenuados em resposta aos seus gritos insanos.
Esfolou as mãos sobre as pedras desconexas e ásperas e várias vezes machucou a cabeça contra os
numerosos pilares, mas mesmo assim continuou. Então, finalmente, aos poucos voltou a si em meio
à escuridão total e ao fedor, e tapou os ouvidos para não ouvir os gemidos surdos em que se
transformara a explosão de uivos. Estava banhado em suor e, sem ter como fazer luz, debilitado e
esgotado naquela negritude e naqueles horrores abissais, esmagado por uma lembrança que jamais
poderia apagar. Debaixo dele, dezenas daquelas coisas ainda viviam e a tampa de um dos poços
estava levantada. Sabia que o que ele vira jamais conseguiria subir pelas paredes escorregadias, no
entanto, estremecia à idéia de que pudesse existir algum ponto de apoio oculto.
Não conseguia compreender o que era aquele ser. Parecia-se com algumas das coisas
esculpidas no altar infernal, mas ainda estava viva. A natureza jamais a fizera com aquela forma,
pois era demasiado evidente que estava inacabada. As suas deficiências eram as mais
surpreendentes e as anomalias de suas proporções indescritíveis. Willett arrisca apenas dizer que
esse tipo de coisa devia representar entidades que Ward evocara de sais imperfeitos e que
conservava com propósitos servis ou rituais. Se não tivesse alguma importância, sua imagem não
teria sido gravada naquela maldita pedra. Não era a pior coisa representada na pedra — mas Willett
jamais abriu os outros poços. Naquele momento, a primeira idéia que ocorreu à sua mente foi um
parágrafo de algumas das anotações do velho Curwen que ele havia analisado muito tempo antes,
uma frase usada por Simon ou Jedediah Orne na impressionante carta apreendida, endereçada ao
falecido feiticeiro:
"Com certeza, não havia senão o mais vivo horror naquilo que H. evocou daquilo que havia
conseguido apenas em parte".
Então, para aumentar o horror da imagem em vez de afastá-la, surgiu a lembrança dos antigos e
persistentes boatos sobre a coisa queimada e retorcida que fora encontrada nos campos uma semana
após a incursão na fazenda de Curwen. Charles Ward certa vez contara ao médico o que o velho
Slocum falara a respeito daquilo: que não era totalmente humana, nem se assemelhava a qualquer
animal que o povo de Pawtuxet jamais tivesse visto ou a cujo respeito tivesse lido.
Essas palavras soavam na cabeça do doutor enquanto ele se agitava de lá para cá, agachado no
chão salitroso de pedra. Tentou afastá-las e repetiu mentalmente o Padre-Nosso e este acabou se
emendando a uma cantilena mnemônica como o moderno "Wates Land" de T.S. Eliot e enfim
voltou à dupla fórmula mencionada tão frequentemente, que encontrara na biblioteca subterrânea de
Ward: Y'ai 'ng'ngah, Yog- Sothoth' e assim por diante, até o "Zhro" final, sublinhado. Parecia
acalmá-lo e, cambaleando, depois de algum tempo, ficou de pé; lamentando amargamente a perda
da lanterna pelo horror, procurou com desespero à sua volta algum clarão de luz na pegajosa
escuridão negra como tinta daquele ar gélido. Não conseguia pensar, mas procurou com os olhos
em todas as direções em busca de um fraco vislumbre ou do reflexo da brilhante iluminação que
deixara na biblioteca. Após alguns momentos pensou ter captado uma tênue luminosidade a uma
distância infinita e nessa direção foi se arrastando com um cuidado angustiante sobre as mão se os
joelhos, entre o fedor e os uivos, sempre tateando à sua frente para não esbarrar nos inúmeros e
enormes pilares ou mergulhar no poço abominável que havia destampado.
Em certo momento, seus dedos trêmulos tocaram algo que sabia serem os degraus do altar
diabólico e afastou-se com repugnância desse local. Mais tarde, encontrou a laje perfurada que
havia removido e aqui seu cuidado se tornou quase patético. Mas o fato de esbarrar na horrenda
abertura não o fez parar. Aquilo que havia lá em baixo não produzia nenhum som nem se mexia.
Evidentemente, mastigar a lanterna que caíra não havia sido bom para ele. Cada vez que os dedos
de Willett apalpavam uma laje perfurada, ele estremecia. Sua passagem sobre a laje às vezes
aumentava os gemidos em baixo, mas em geral não produzia nenhum efeito, pois seus movimentos
não faziam qualquer barulho. Em vários momentos durante sua busca, o brilho à sua frente
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diminuiu perceptivelmente e ele se deu conta de que as velas e lampiões que havia deixado iam se
apagando, um a um. A idéia de estar perdido na escuridão total, sem fósforos, nesse mundo
subterrâneo de pesadelo com seus labirintos, impeliu-o a ficar de pé e correr, o que podia fazer sem
perigo agora que havia passado o poço aberto, pois sabia que se a luz apagasse, a única esperança
de se salvar e de sobreviver estaria na hipótese de o senhor Ward enviar um grupo em seu socorro,
algum tempo após seu desaparecimento. No entanto, conseguiu sair do espaço aberto penetrando no
corredor estreito e localizar definitivamente o brilho que vinha de uma porta à sua direita. Num
instante alcançou-o e encontrou-se mais uma vez na biblioteca secreta do jovem Ward, e, tremendo
aliviado, observou o extinguir-se do último lampião que o havia trazido para a salvação.
3
Em seguida, encheu os lampiões vazios com uma reserva de querosene que havia notado
anteriormente e, quando a sala ficou de novo iluminada, olhou à sua volta para ver se encontraria
uma outra lanterna que lhe permitisse uma ulterior exploração. Pois, embora aflito pelo horror, seu
propósito inabalável era maior do que tudo e ele estava firmemente determinado a tentar qualquer
coisa em sua busca dos fatos hediondos responsáveis pela bizarra loucura de Charles Ward. Não
conseguindo encontrar uma lanterna, escolheu o menor dos lampiões para carregar consigo. Encheu
também os bolsos de velas e fósforos e levou um galão de querosene com a intenção de guardá-lo
como reserva no laboratório oculto que porventura viesse a descobrir do outro lado do terrível
espaço aberto com o altar manchado e inomináveis fossas cobertas. Atravessar de novo aquele
espaço exigiria sua total fortaleza de espírito, mas sabia que aquilo tinha de ser feito. Felizmente,
nem o altar apavorante nem a laje aberta estavam perto da vasta parede com os buracos das celas
que circundava a área da caverna e cujas misteriosas abóbadas negras constituíam os próximos
alvos de uma busca lógica.
Assim, Willett voltou para o grande saguão cheio de pilares, em meio ao fedor e aos uivos
angustiantes, baixou a chama dos lampiões para evitar qualquer vislumbre longínquo do altar
infernal ou do poço descoberto com a laje de pedra perfurada virada ao seu lado. A maioria das
passagens levava apenas a pequenos cômodos, alguns vazios, outros evidentemente usados como
depósitos e, em vários destes, viu curiosas pilhas de objetos diversos. Um estava repleto de trouxas
de roupas podres e cobertas de pó e o explorador estremeceu ao se dar conta de que se tratava
inconfundivelmente de vestimentas de um século e meio antes. Em outro cômodo, encontrou
numerosas peças de vestuário moderno, co mo se aos poucos estivessem sendo feitas provisões para
equipar um vasto contingente de homens. Mas o que mais o desagradou foram as enormes bacias de
cobre espalhadas aqui e ali; estas e as sinistras incrustações que havia sobre elas. Desagradaram-lhe
ainda mais que as tigelas de chumbo com figuras fantasmagóricas, cujos restos continham depósitos
tão asquerosos e em torno das quais pairavam os repelentes odores perceptíveis mesmo sobre o
fedor geral da cripta. Quando completou quase metade da circunferência da parede, descobriu outro
corredor como aquele do qual viera, em que se abriam várias portas.
Começou a inspecioná-lo e, depois de entrar em três cômodos de dimensões médias cujo
conteúdo não tinha especial importância, chegou finalmente a um amplo apartamento oblongo cujos
tanques e mesas, fornalhas e instrumentos modernos, livros ocasionais e inumeráveis prateleiras
com jarros e garrafas de aspecto muito eficiente afirmavam sem sombra de dúvida tratar-se do há
muito procurado laboratório de Charles Ward — e, antes dele, indubitavelmente do velho Joseph
Curwen.
Após acender os três lampiões que encontrara já cheios e prontos, o doutor Willett examinou o
local e todos os seus acessórios com a mais ávida curiosidade, observando, pelas quantidades
relativas dos vários reagentes nas prateleiras, que o interesse dominante do jovem Ward devia ter
sido algum campo da química orgânica. Ao todo, pouco se podia depreender da aparelhagem
científica, que incluía uma mesa de dissecação de aspecto macabro, de modo que o cômodo em
realidade o desapontou. Entre os livros havia um antigo exemplar em frangalhos de Borellus em
letras góticas e foi fantasticamente interessante observar que Ward havia sublinhado o mesmo
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trecho que tanto perturbara o bom senhor Merritt na casas da fazenda de Curwen, há mais de um
século e meio. A cópia mais antiga, evidentemente, devia ter perecido junto com o restante da
oculta biblioteca de Curwen na incursão final. Três passagens em arco abriam-se fora do laboratório
e o médico procedeu à sua exploração, uma por uma. Em sua rápida pesquisa, viu que duas
conduziam simplesmente a pequenos depósitos que ele examinou com cuidado, notando as pilhas
de caixões em vários estágios de ruína, e estremeceu violentamente quando conseguiu decifrar duas
ou três das poucas placas sobre os caixões. Nesses cômodos havia também muita roupa armazenada
e várias caixas novas e cuidadosamente pregadas que não se deteve para examinar. O mais
interessante, talvez, eram alguns objetos esparsos que julgou serem fragmentos dos instrumentos de
laboratório do velho Joseph Curwen. Haviam sido danificados pelas mãos dos invasores, mas ainda
eram em parte reconhecíveis como a parafernália química do período georgiano.
A terceira passagem levava a uma sala de bom tamanho, totalmente revestida de prateleiras e
tendo ao centro uma mesa com dois lampiões. Willett os acendeu e à sua luz brilhante examinou as
intermináveis prateleiras que se estendiam à sua volta. Alguns dos níveis superiores estavam
totalmente vazios, mas a maior parte do espaço estava preenchida por pequenos jarros de chumbo
de formato estranho e de dois tipos: um alto e sem asas como lekythoi gregos ou jarros de óleo, e o
outro com uma única asa e proporcional, como um jarro de Faleros. Todos tinham tampas de metal
e estavam cobertos de símbolos de aspecto peculiar, em baixo-relevo. Num instante o médico
observou que estes jarros estavam classificados com extremo rigor; todos os lekythoi ficavam num
lado da sala com uma grande tabuleta de madeira em cima com a palavra "Custodes", e todos os
jarros de Faleros do outro, igualmente rotulados com uma tabuleta dizendo "Matéria". Cada um dos
vasos ou jarros, exceto alguns sobre as prateleiras de cima que estavam vazios, tinham uma placa de
papelão com um número que aparentemente se referia a um catálogo, e Willett resolveu procurá-lo.
Por enquanto, porém, estava mais interessado na natureza dos objetos expostos em geral, e abriu, a
título de experiência, vários lekythoi e Faleros ao acaso, tentando formar uma idéia geral. O
resultado era invariável. Ambos os tipos de jarros continham uma pequena quantidade de uma única
espécie de substância; um fino pó seco muito leve e de variadas nuanças de cor neutra e opaca. Não
existia um método aparente na disposição das cores, o único elemento de variação, nem uma
aparente distinção entre o conteúdo dos lekythoi e o dos Faleros. Um pó cinza-azulado estava ao
lado de um pó branco-rosado e qualquer um dos que estavam nos Faleros podia ter sua exata
contrapartida num lekythos. A característica mais peculiar dos pós era o fato de não serem
aderentes. Willett despejou um na mão e, ao colocá-lo de volta em seu jarro, constatou que não
permanecia nenhum resíduo na palma.
O significado das duas tabuletas o intrigava e ficou imaginando por que essa bateria de
substâncias químicas estava separada tão radicalmente daquelas nos jarros de vidro sobre as
prateleiras do laboratório. "Custodes" e "Matéria"; em latim significavam "Guardas" e "Matéria",
respectivamente — e então, num lampejo de memória, lembrou onde havia visto a palavra
"Guardas" antes, relacionada a este terrível mistério. Evidentemente, fora na recente carta
endereçada ao doutor Allen supostamente pelo velho Edward Hutchinson, e a frase dizia: "Não
havia necessidade de manter os guardas em forma comendo em demasia, com isto muitas coisas
poderiam ser descobertas em caso de problema, como o senhor muito bem sabe". O que significava
isto? Mas, um momento — não havia outra referência a "guardas" de que esquecera totalmente ao
ler a carta de Hutchinson? Na época em que ainda não fazia tanto mistério, Ward falara-lhe a
respeito do diário de Eleazer Smith, contando que Smith e Weeden espionavam a fazenda Curwen e
naquela horrível crônica eram mencionadas conversas ouvidas antes que o velho bruxo se
recolhesse totalmente debaixo da terra. Smith e Weeden insistiam que havia terríveis diálogos em
que figuravam Curwen, alguns prisioneiros seus e os guardas desses prisioneiros. Esses guardas,
segundo Hutchinson, ou seu avatar, "comiam demais", de modo que agora o doutor Allen não os
mantinha mais em forma. E se não em forma, como senão nos "sais" nos quais parece que esse
bando de bruxos tentava reduzir todos os corpos ou esqueletos humanos que podia?
Portanto, era isso que os lekythoi continham; o monstruoso fruto de rituais e ações iníquas,
presumivelmente vencidos ou intimidados até cederem a esta submissão para ajudar quando
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evocados por alguma magia infernal, em defesa de seu blasfemo mestre ou nos interrogatórios
daqueles que não estavam dispostos a ceder? Willett estremeceu à idéia daquilo que despejara em
suas mãos e, por um instante, sentiu o impulso de sair correndo em pânico da caverna com suas
horrendas prateleiras e suas silenciosas e quem sabe atentas sentinelas. Então pensou na "Matéria"
— na miríade de jarros de Faleros do outro lado do cômodo. Sais também — e se não eram os dos
"guardas", então os sais do quê? Meu Deus! Seria possível que aí se encontrassem os sais mortais
de metade dos grandes pensadores de todas as eras; roubados por supremos vampiros das criptas
onde o mundo os julgava em segurança, obedientes ao sinal de loucos que buscavam arrancar sua
sabedoria por alguma finalidade ainda mais desvairada cuja conseqüência última afetaria, como o
pobre Charles mencionara em seu bilhete desesperado, "toda a civilização, toda lei natural, quem
sabe mesmo o destino do sistema solar e do universo"? E Marinus Bicknell Willett deixara escorrer
seu pó em suas mãos!
Então observou urna pequena porta na extremidade do cômodo e, acalmando-se, aproximou-se
dela examinando a tosca inscrição esculpida sobre ela. Era apenas um símbolo, mas encheu seu
coração de um vago terror; pois, certa ocasião, um amigo seu, mórbido sonhador, o desenhara sobre
um pedaço de papel e dissera-lhe alguns dos seus significados no negro abismo do sono. Era o
símbolo de Koth, que os sonhadores vêem fixado sobre o arco de urna torre negra que se ergue
sozinha no crepúsculo — e Willett não gostara do que o amigo Randolph Carter lhe contara a
respeito de seus poderes. Mas um segundo mais tarde ele havia esquecido o símbolo ao sentir um
novo odor acre no ar fétido. Era um cheiro químico e não um cheiro animal, e vinha diretamente do
cômodo atrás da porta. Inconfundivelmente, era o mesmo cheiro que saturava as roupas de Charles
Ward no dia em que os médicos o haviam levado. Então era aqui que o jovem havia sido
interrompido pela intimação final? Ele fora mais sábio do que o velho Joseph Curwen, pois não
resistira. Willett, corajosamente determinado a penetrar em todos os mistérios e pesadelos que esse
reino subterrâneo pudesse conter, agarrou o pequeno lampião e cruzou o limiar. Uma onda de terror
indizível o envolveu, mas ele não cedeu e não condescendeu a nenhuma sensação. Não havia nada
de vivo aqui que pudesse fazer-lhe algum mal e nada o impediria de penetrar a nuvem tenebrosa
que tragara seu paciente.
O cômodo além da porta era de dimensões médias e não tinha mobília, com exceção de uma
mesa, uma única cadeira e dois grupos de curiosas máquinas com braçadeiras e rodas que Willett
reconheceu após um instante como instrumentos medievais de tortura. De um lado da porta havia
um suporte para chibatas bárbaras, acima do qual havia algumas prateleiras com fileiras vazias de
taças rasas de estanho providas de pé do formato de kylíkes gregos. Do outro lado estava a mesa,
com uma potente lâmpada de Argand, uma prancheta e um lápis e dois lekythoi tampados
semelhantes aos das prateleiras do outro cômodo, espalhados, como se deixados temporariamente
ou às pressas. Willett acendeu o lampião e olhou com cuidado a prancheta para ver que anotações o
jovem Ward teria rabiscado rapidamente quando fora interrompido; mas não descobriu nada mais
inteligível do que os seguintes fragmentos desconexos na caligrafia rabiscada de Curwen, que não
esclareciam em absoluto o caso:
"B. não feito. Fugiu dentro das paredes e encontrou lugar lá em baixo."
"Vi o velho V. dizer o Sabaoth e aprendi o caminho."
"Evoquei três vezes Yog- Sabaoth e no dia seguinte fui libertado."
"F. tentou apagar todo conhecimento para evocar os de fora."
Enquanto a forte lâmpada de Argand iluminava todo o cômodo, o médico viu que a parede
oposta à porta, entre os dois grupos de instrumentos de tortura nos cantos, estava coberta de
ganchos dos quais estavam penduradas vestimentas disformes de um branco amarelado um tanto
lúgubre. Mas muito mais interessantes eram as duas paredes vazias, ambas profusamente cobertas
de símbolos e fórmulas grosseiramente gravadas na pedra lisa. O chão úmido também trazia marcas
gravadas; mas com pouca dificuldade Willett decifrou um grande pentagrama no centro, com um
círculo simples de cerca de três pés de largura, entre este e cada um dos outros cantos. Num desses
quatro círculos, perto do qual uma veste amarelada havia sido atirada descuidadamente ao chão,
havia um kylix raso do mesmo tipo encontrado nas prateleiras em cima do suporte das chibatas, e
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imediatamente fora da periferia havia um jarro de Faleros das prateleiras do outro cômodo e seu
cartão tinha o número 118. Este não tinha tampa e, ao examiná-lo, constatou que estava vazio; mas
o explorador viu com um arrepio que o kylix não estava. Em sua concavidade rasa, e impedido de se
espalhar unicamente pela ausência de vento nessa caverna isolada, havia uma pequena quantidade
de pó seco, verde-opaco florescente, que devia pertencer ao jarro; e Willett quase cambaleou ao
atinar de repente com as implicações, enquanto pouco a pouco relacionava os vários elementos e os
antecedentes da cena. As chibatas e os instrumentos de tortura, o pó e os sais do jarro da "Matéria",
os dois lekythoi da prateleira dos "Custodes", as roupas, as fórmulas nas paredes, as anotações sobre
a prancheta, as indicações contidas nas cartas e lendas e as milhares de vagas sugestões, dúvidas e
suposições que atormentavam os amigos e pais de Charles Ward — tudo isto tragava o médico
como uma onda de horror enquanto ele olhava o esverdeado pó seco espalhado no kylix de chumbo
de pé alto sobre o chão.
No entanto, com algum esforço, Willett se recompôs e começou a examinar as fórmulas
gravadas nas paredes. Pelas letras manchadas e cheias de incrustações era óbvio que haviam sido
gravadas na época de Joseph Curwen, e o texto era vagamente familiar a alguém que havia lido
tanto material sobre Curwen ou mergulhado intensamente na história da magia. Uma fórmula o
médico reconheceu claramente como sendo aquela que a senhora Ward ouvira o filho recitar
naquela nefanda Sexta-Feira Santa um ano antes e que um especialista dissera tratar-se de uma
terrível invocação aos deuses secretos fora das esferas normais. Aqui não estava grafada exatamente
como a senhora Ward a repetira de memória, tampouco como o especialista a mostrara a ele nas
páginas proibidas de "Eliphas Levi", mas sua identidade era inconfundível e palavras como
Sabaoth, Metraton, Almonsin e Zariatnatmik provocaram um arrepio de medo no explorador que
havia visto e experimentado tanta abominação cósmica nas imediações do lugar.
Esta se encontrava na parede à esquerda de quem entrava. A parede à direita não estava menos
coberta de inscrições e Willett sentiu um sobressalto ao se dar conta de que se tratava das duas
fórmulas tão freqüentes nas recentes anotações encontradas na biblioteca. Eram, grosso modo, as
mesmas: com os antigos símbolos da "Cabeça do Dragão" e da "Cauda do Dragão" encabeçando-as,
como nos rabiscos de Ward. Mas a grafia era muito diferente daquela das versões modernas, como
se o velho Curwen tivesse uma maneira diferente de gravar sons, ou se estudos posteriores tivessem
gerado variações mais potentes e aperfeiçoadas das invocações em questão. O médico tentou
combinar a versão gravada com aquela que voltava insistentemente à sua cabeça, mas achou difícil.
O trecho que ele havia memorizado começava com "Y'ai 'ng'ngah, Yog- Sothoth", e esta epígrafe
começava com "Aye, cengehgah, Vogge-Sothotha", o que na sua opinião interferiria seriamente com
a escansão da segunda palavra.
Como o último texto estava profundamente gravado em sua consciência, a discrepância o
incomodava e ele se percebeu recitando a primeira das fórmulas em voz alta na tentativa de fazer
corresponder o som que concebera com as letras gravadas que acabava de descobrir. Sua voz soava
fantasmagórica e ameaçadora naquele abismo de antigas blasfêmias, suas cadências eram as de uma
cantilena sussurrada pela magia do passado e do desconhecido, ou pelo demoníaco exemplo
daqueles gemidos surdos, ímpios, dos poços, cuja frieza desumana subia e baixava ritmicamente,
em meio ao fedor e à escuridão.
"Y'AI'NG'NGAH
YOG-SOTHOTH
H'EE - L'GEB
FAI' THRODOG
UAAAH!
Mas o que era esse vento gélido que criara vida ao canto? Os lampiões bruxuleavam
tristemente e a escuridão tornara-se tão densa que as letras na parede se apagavam. Havia fumaça
também e um odor acre que quase sobrepujava o fedor dos poços distantes; um odor como aquele
que sentira antes, mas infinitamente mais forte e mais pungente. Desviou o olhar das inscrições,
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virou-se para o cômodo com seus objetos bizarros e viu que do kylix no chão, que continha o
sinistro pó florescente, se desprendia uma nuvem de espesso vapor negro-acinzentado de volume e
opacidade surpreendentes. Aquele pó — Deus Todo-poderoso! saíra da prateleira da "Matéria" —,
o que estava fazendo agora, o que o provocara? A fórmula que ele recitava — a primeira das duas
—, a Cabeça do Dragão, o nó ascendente —Jesus Bendito, poderia ser...
O médico teve uma vertigem e pela sua cabeça passaram aceleradamente trechos desconexos
de tudo aquilo que ele havia visto, ouvido e lido a respeito do espantoso caso de Joseph Curwen e
Charles Dexter Ward. "Digo-lhe novamente, não evoque ninguém que não possa mandar de volta...
Tenha as palavras prontas todas as vezes para mandar de volta e não se detenha para ter certeza
quando houver alguma dúvida de quem o senhor tem... Três conversas com Aquilo que estava
inumado..." Deus do Céu, o que era aquela forma atrás da fumaça que estava se dissipando?
4
Marinus Bicknell Willett não esperava nem um pouco que as pessoas acreditassem mesmo em
parte em seu relato, com exceção de algum amigo condescendente, portanto, não fez qualquer
tentativa de narrá-lo fora do círculo dos mais íntimos. Somente alguns estranhos a este círculo o
ouviram e a maioria destes ri e observa que, com certeza, o médico está ficando velho. Foi
aconselhado a tirar umas férias prolongadas e a evitar casos futuros de distúrbios mentais. Mas o
senhor Ward sabe que o velho médico diz uma horrível verdade. Acaso ele próprio não viu a
pestilenta abertura no porão do bangalô? Willett não o mandara para casa vencido e doente às onze
horas daquela agourenta manhã? Acaso não telefonou em vão ao médico naquela noite e novamente
no dia seguinte, e não foi de carro até o bangalô ao meio-dia encontrando o amigo inconsciente,
porém incólume, numa das camas do andar superior? Willett estertorava e abriu lentamente os olhos
quando o senhor Ward lhe deu um conhaque que buscara no carro. Então teve um calafrio e gritou,
"Aquela barba... aqueles olhos... Meu Deus, quem é você?" Algo muito estranho a ser dito a um
cavalheiro elegante, de olhos azuis, bem escanhoado, a quem ele conhecia desde a adolescência.
Na luminosidade do meio-dia o bangalô não havia mudado desde a manhã anterior. As roupas
de Willett não estavam desalinhadas, com exceção de algumas manchas, os joelhos um pouco
puídos, e um leve odor acre lembrou ao senhor Ward aquele que sentira em seu filho no dia em que
este fora levado ao hospital. A lanterna do doutor estava faltando, mas sua valise estava lá, inteira,
vazia como quando ele a trouxera. Antes de se delongar em explicações e obviamente com um
grande esforço moral, Willett cambaleava completamente tonto enquanto descia até o porão onde
tentou forçar a fatal plataforma diante da tina. Não cedia. Atravessou o local e foi ao lugar onde
havia deixado sua sacola de ferramenta, que não usara no dia anterior, pegou um formão e começou
a forçar as pranchas renitentes, uma por uma. Em baixo, o concreto liso ainda era visível, mas já
não havia sinal de qualquer abertura ou perfuração. Nada se escancarava dessa vez, aterrorizando o
pai desorientado que seguira o médico no porão; somente o concreto liso em baixo das pranchas —
nenhum poço fétido, nenhum mundo de horrores subterrâneos, nenhuma biblioteca secreta, nem
papéis de Curwen, nem poços dignos de pesadelos com fedores e uivos, nenhum laboratório ou
prateleiras ou fórmulas gravadas nas paredes, nada... O doutor Willett ficou pálido e se agarrou ao
homem mais jovem. "Ontem", perguntou em voz branda, "você o viu aqui... e sentiu o cheiro?" E
quando o próprio senhor Ward, petrificado pelo horror e pelo espanto, encontrou forças para acenar
afirmativamente, o médico emitiu um som quase um suspiro ou um estertor e acenou por sua vez.
"Então vou lhe contar", ele disse.
Assim, durante uma hora, no cômodo mais ensolarado que conseguiram encontrar no andar de
cima, o médico sussurrou seu relato estarrecedor ao pai surpreso. Não havia nada a contar além
daquela forma que aparecera quando o vapor negro-esverdeado começou a se desprender do kylix e
Willett estava demasiado fatigado para perguntar a si mesmo o que em realidade acontecera. Os
dois homens desnorteados ficaram abanando a cabeça, num gesto inútil, e a certa altura o senhor
Ward arriscou uma sugestão num sussurro. "O senhor supõe que seria útil cavar?" O médico ficou
calado, pois parecia inadequado a qualquer espírito humano responder quando poderes e esferas
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desconhecidas haviam invadido de modo tão extraordinário esse lado do Grande Abismo. De novo
o senhor Ward perguntou: "Mas aonde foi? Ele trouxe o senhor aqui, o senhor sabe, e vedou de
alguma forma o buraco". E Willett de novo deixou o silêncio falar em seu lugar.
Mas, apesar de tudo, o assunto não estava encerrado. Pegando o lenço antes de se levantar para
ir embora, os dedos do doutor Willett agarraram no bolso um pedaço de papel que não estava lá
antes, junto com as velas e os fósforos que havia apanhado no subterrâneo desaparecido. Era uma
folha de papel comum, arrancada obviamente da prancha barata naquele fantástico cômodo dos
horrores, em algum ponto debaixo da terra, e o que estava escrito nele havia sido rabiscado com um
lápis comum — sem dúvida aquele mesmo que se encontrava ao lado da prancha. Estava dobrado
de qualquer jeito e, à parte o leve odor acre do cômodo misterioso, não trazia nenhum sinal ou
marca de algum outro mundo além desse. Mas, em realidade, o texto estava impregnado de
mistério, pois a caligrafia não pertencia a nenhuma época normal, mas os traços elaborados de
perversidade medieval, quase ilegíveis para o leigo que agora se esforçava em decifrá-lo, continham
combinações se símbolos vagamente familiares.
Essa era a mensagem rabiscada às pressas e seu mistério ofereceu um objetivo aos dois homens
bastante abalados, os quais sem demora se encaminharam decididos para o carro de Ward, pedindo
para serem levados primeiramente a um lugar tranqüilo a fim de almoçar e depois para a Biblioteca
John Hay, sobre a colina.
Na biblioteca foi fácil encontrar bons manuais de paleografia e os dois se debruçaram sobre
estes até que as luzes começaram a brilhar no grande lustre. No fim, encontraram aquilo de que
precisavam. Em realidade, as letras não eram uma invenção fantástica, mas a escritura normal de
um período obscuro. Tratava-se de um pontudo cursivo saxônio do século VIII ou IX e trazia
consigo as memórias de uma época misteriosa em que, sob o recente verniz cristão, agitavam-se
furtivamente crenças e ritos antigos e a pálida lua da Bretanha às vezes testemunhava estranhos
acontecimentos nas ruínas romanas de Caerleon e Hexhaus e perto das Torres ao longo da muralha
de Adriano agora em ruínas. As palavras eram num latim lembrado numa época bárbara —
"Corwinus necandus est. Cadáver aq(ua) forti dissolvendum, nec atiq(ui)d retinendum. Tace ut
potes." E podemos traduzi-las como: "Curwen deve ser morto. O corpo deve ser dissolvido em aqua
fortis e nada pode restar. Manter o maior silêncio possível".
Willett e o senhor Ward estavam mudos e perplexos. Haviam encontrado o desconhecido e
percebiam que não conseguiam reagir emocionalmente como, em modo vago, achavam que
deveriam. Willett, em particular, quase esgotara a capacidade de experimentar novas impressões de
horror; os dois homens ficaram sentados, imóveis e desamparados, sem saber o que fazer, até a hora
de fechar a biblioteca, quando foram obrigados a sair. Então, indiferentes, voltaram à mansão Ward
em Prospect Street e conversaram sobre coisas banais até tarde da noite. O médico foi descansar ao
amanhecer, mas não voltou para casa. E lá se encontrava ainda ao meio-dia do domingo quando os
detetives que haviam sido incumbidos de investigar o doutor Allen telefonaram.
O senhor Ward, que caminhava nervosamente para cima e para baixo de roupão, respondeu
pessoalmente e, ao ouvir que o relatório estava quase pronto, disse aos homens que aparecessem na
manhã seguinte cedo. Willett e ele ficaram contentes que esta fase do caso estivesse começando a
tomar forma, pois qualquer que fosse a origem da estranha mensagem manuscrita, parecia certo que
o "Curwen" a ser destruído não podia ser outra pessoa senão o estranho de barba e óculos. Charles
temia esse homem e havia dito na mensagem desesperada que ele deveria ser morto e dissolvido em
ácido. Além disso, Allen estava recebendo cartas dos estranhos bruxos da Europa usando o nome de
Curwen e claramente se considerava um avatar do falecido necromante. E agora, de uma fonte nova
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e desconhecida, surgia uma mensagem dizendo que "Curwen" devia ser morto e dissolvido em
ácido. A ligação era demasiado inconfundível para ser artificial; além disso, não estava Allen
planejando assassinar o jovem Ward por conselho da criatura chamada Hutchinson? Evidentemente,
a carta que eles haviam lido nunca chegara ao estrangeiro barbudo; mas, por seu conteúdo, eles
podiam constatar que Allen já havia feito planos de cuidar do jovem caso este ficasse demasiado
"melindroso". Sem dúvida, Allen devia ser detido e, mesmo que não fossem tomadas as medidas
mais drásticas, deveria ser posto em condições de não mais prejudicar Charles Ward.
Naquela tarde, esperando, contrariamente a todas as expectativas, extrair algum vislumbre de
informação sobre os mais profundos mistérios da única pessoa capaz de fornecê-la, o pai e o médico
desceram a baía e visitaram o jovem Charles no hospital. De modo simples e grave, Willett contou-
lhe tudo o que havia descoberto e se deu conta de que o jovem empalidecia a cada descrição que
comprovava a veracidade da descoberta. O médico empregou o máximo efeito dramático de que foi
capaz e ficou observando um estremecimento de Charles quando abordou o assunto dos poços
cobertos e dos hídricos inomináveis neles contidos. Mas Ward não se abalou. Willett parou e sua
voz soou indignada ao comentar que as coisas estavam morrendo de fome. Acusou o jovem de
mostrar uma chocante desumanidade e tremeu quando, em resposta, obteve apenas uma risada
sardônica. Pois Charles, desistindo de simular, visto que se tornara inútil, que a cripta não existia,
parecia considerar o caso uma pilhéria horrível e ria roucamente com algo que o divertia. Então
sussurrou, em tons duplamente terríveis por causa da voz áspera: "Malditos, eles comem mesmo,
mas não precisam disso! fato é que é curioso! Um mês, o senhor diz, sem comida? Deus, como o
senhor é modesto! Sabe, essa foi a piada para o pobre velho Whipple, com sua virtuosa
fanfarronice! Matar a todos era o que ele queria? Pois, diabo, ficou meio surdo com o ruído do
Além e não viu ou ouviu nada nos poços. Ele jamais sonhou que estavam lá! Que o diabo as
carregue, aquelas coisas malditas estão uivando lá em baixo desde que acabaram com Curwen, há
cento e cinqüenta e sete anos".
Mas Willett não conseguiu tirar mais do que isso do jovem. Horrorizado, contudo quase
convencido contra sua vontade, continuou seu relato na esperança de que algum incidente pudesse
despertar seu ouvinte da louca compostura que ele mantinha. Olhando para o rosto do jovem, o
médico não podia deixar de sentir uma espécie de terror com as mudanças que os últimos meses
haviam produzido. Em verdade, o rapaz chamara dos céus horrores indescritíveis, Quando o
cômodo com as fórmulas e o pó esverdeado foram mencionados, Charles mostrou o primeiro sinal
de animação. Um ar zombeteiro espalhou-se por seu rosto enquanto ouviu o que Willett havia lido
na prancheta e arriscou a fraca afirmação de que aquelas anotações eram antigas, sem nenhuma
eventual importância para ninguém que não fosse profundamente iniciado na história da magia.
"Mas", acrescentou, "se o senhor conhecesse as palavras para evocar aquele que eu tinha na taça,
não estaria aqui agora para me contar isto. Era o Número 118 e garanto que teria tremido se tivesse
visto minha lista no outro cômodo. Eu nunca o havia chamado, mas pretendia fazê-lo no dia em que
o senhor foi à minha casa para sugerir que eu viesse para cá."
Então Willett mencionou a fórmula que recitara e a fumaça negra-esverdeada que saíra e, ao
fazer isto, viu pela primeira vez o medo despontar no rosto de Charles Ward. "Ele veio e você está
vivo! " Enquanto Ward grasnava as palavras, sua voz parecia quase explodir, libertando-se do que a
prendia, e mergulhar em abismos cavernosos de sinistras ressonâncias. Willett, iluminado por uu
lampejo de inspiração, acreditou ter compreendido a situação e colocou em sua resposta uma
advertência contida numa carta que ele lembrava. "Número 118, você diz? Mas não esqueça que as
pedras foram todas mudadas agora em nove cemitérios em cada dez. Você nunca tem certeza se
não perguntai" E então, repentinamente, pegou a mensagem em gótico, colocando-a diante dos
olhos do paciente. Não poderia esperar uma reação maior, pois Charles Ward desmaiou em seguida.
Toda esta conversa, evidentemente, fora realizada em grande sigilo, para que os psiquiatras
residentes não acusassem o pai e o doutor de encorajar os delírios de um louco. Sem solicitar
qualquer ajuda também, o doutor Willett e o senhor Ward ergueram o jovem e o colocaram no divã.
Ao voltar a si, o paciente murmurou várias vezes que deveria dizer algo a Orne e Hutchinson
imediatamente; assim, quando pareceu recobrar de todo a consciência, o médico lhe disse que pelo
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menos uma daquelas estranhas criaturas era seu grande inimigo e aconselhara o doutor Allen a
assassiná-lo. Essa revelação não produziu um efeito visível e, antes mesmo que ela fosse feita os
visitantes puderam perceber que seu anfitrião já tinha o aspecto de um homem acuado. Depois
disso, não conversou mais e então Willett e o pai se despediram, deixando uma advertência contra o
barbudo Allen, à qual o jovem apenas replicou que este indivíduo estava sendo bem vigiado e não
poderia fazer mal a ninguém ainda que quisesse. Estas palavras foram pronunciadas com uma
risadinha quase maligna, dolorosa de se ouvir. Eles não se preocuparam com o que Charles poderia
escrever aos dois monstruosos indivíduos na Europa, porque sabiam que as autoridades do hospital
apreendiam toda a correspondência que saía e não deixariam passar nenhuma missiva desvairada ou
bizarra.
No entanto, há uma curiosa continuação da questão de Orne e Hutchinson, se é que eram de
fato estes os bruxos exilados. Movido por um vago pressentimento em meio aos horrores daquele
período, Willett conseguiu, de uma agência internacional de notícias, recortes sobre importantes
crimes e acidentes ocorridos recentemente em Praga e na Transilvânia oriental; depois de seis meses
acreditou ter descoberto duas coisas bastante significativas entre os variados artigos que recebeu e
mandou traduzir. Uma era a destruição completa de uma casa durante a noite, no bairro mais antigo
de Praga, e o desaparecimento do malvado velho chamado Josef Nadeh, que nela morava sozinho
desde há tempos imemoriais. Â outra foi uma explosão gigantesca nas montanhas da Transilvânia, a
oriente de Rakus, e o desaparecimento completo, com todos os seus habitantes, do famigerado
Castelo Ferenczy, a respeito de cujo dono tão mal falavam camponeses e soldados o qual, inclusive,
dentro em breve seria convocado em Bucareste para rigorosas investigações, se esse incidente não
acabasse com uma carreira que já se estendia muito anteriormente a toda lembrança comum. Willett
afirma que a mão que escrevera aquelas letras seria capaz de segurar armas muito mais fortes
também e que, embora ficasse incumbido de dar cabo de Curwen, o autor da mensagem sentia-se
capaz de encontrar e liquidar Orne e o próprio Hutchinson. O doutor esforça-se diligentemente em
não pensar em qual poderá ter sido o destino daqueles.
5
Na manhã seguinte, o doutor Willett dirigiu-se apressadamente para a residência dos Wards
para estar presente quando os detetives chegassem. A destruição ou prisão de Allen — ou de
Curwen, se se pudesse considerar válida a tácita declaração de reencarnação —, em sua opinião,
deveria ocorrer a qualquer custo e comunicou esta convicção ao senhor Ward enquanto esperavam a
chegada dos homens. Dessa vez estavam no andar térreo da casa, pois os andares superiores
começavam a ser evitados devido a uma peculiar atmosfera repugnante que parecia impregná-los
indefinidamente, repugnância que os criados mais antigos relacionavam a uma maldição deixada
pelo retrato desaparecido de Curwen.
Às nove horas, os três detetives se apresentaram e de pronto expuseram tudo o que tinham a
dizer. Infelizmente, não haviam localizado o português Tony Gomes como pretendiam, tampouco
haviam encontrado o menor indício da procedência do doutor Allen ou mesmo de seu atual
paradeiro, mas haviam conseguido descobrir um número considerável de impressões locais e de
fatos concernentes ao reticente estrangeiro. Allen era visto pelo povo de Pawtuxet como um ser
vagamente antinatural e a opinião geral era que sua espessa barba cor de areia fosse tingida ou
postiça — opinião definitivamente confirmada pela descoberta de uma barba postiça junto a um par
de óculos escuros em seu quarto no fatídico bangalô. Sua voz, nesse caso o senhor Ward poderia
testemunhar pela única conversa telefônica que tivera com ele, tinha um tom profundo e cavernoso
que não podia ser esquecido facilmente, e seu olhar parecia maldoso mesmo através de seus óculos
escuros de aro de tartaruga. Um comerciante, no decorrer de certas transações, havia visto uma
amostra de sua caligrafia e declarou que era muito estranha e cheia de garatujas, sendo isto
confirmado pelas notas a lápis, de um significado um tanto obscuro, encontradas em seu quarto e
identificadas pelo comerciante.
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Quanto aos boatos de vampirismo do verão anterior, a maioria dos comentários pressupunha
que Allen, e não Ward, era o verdadeiro vampiro. Declarações foram obtidas também dos policiais
que haviam visitado o bangalô após o desagradável incidente do roubo do caminhão. Eles não
haviam percebido nada de sinistro no doutor Allen, mas o haviam visto como a figura principal no
curioso e sombrio bangalô. O local estava demasiado escuro para que eles pudessem observá-lo
claramente, mas o reconheceriam se voltassem a vê-lo. Sua barba parecia estranha e eles achavam
que o personagem tinha uma pequena cicatriz sobre o olho direito coberto pêlos óculos escuros.
Quanto à busca no quarto de Allen, não revelou nada de definido, com exceção da barba e dos
óculos, e várias anotações escritas a lápis numa letra cheia de garatujas, que Willett percebeu
imediatamente ser idêntica à dos Manuscritos do velho Curwen e à do recente volume de anotações
do jovem Ward, descoberto nas catacumbas do terror agora desaparecidas.
O doutor Willett e o senhor Ward captaram uma sensação de profundo, sutil e insidioso terror
cósmico à medida que essas informações lhes eram apresentadas e quase tremeram ao perceberem a
vaga e louca idéia que aparecera simultaneamente na mente de ambos. A barba postiça e os óculos,
a caligrafia garatujada de Curwen — o antigo retrato com a minúscula cicatriz, o jovem perturbado
no hospital com a mesma cicatriz, a voz profunda e surda ao telefone — não foi disso que o senhor
Ward se lembrou quando seu filho pronunciou aquela espécie de latidos em tom esganiçado, aos
quais dizia estar reduzida agora sua voz? Quem alguma vez havia visto Charles e Allen juntos?
Sim, os policiais os haviam visto uma vez, mas quem mais a partir daí? Não fora quando Allen
partira que Charles de repente perdera seu medo crescente e começara a viver definitivamente no
bangalô? Curwen — Allen — Ward — em que fusão blasfema e abominável duas idades e duas
pessoas haviam se fundido? Aquela execrável semelhança do quadro com Charles — não costumara
observar insistentemente e seguir o rapaz pelo quarto com os olhos? Por que, então, Allen e Charles
copiavam a caligrafia de Joseph Curwen, mesmo quando sozinhos e sem necessidade de estar em
guarda? E depois o trabalho horroroso daquelas pessoas —, a cripta dos horrores agora
desaparecida, que fizera o médico envelhecer da noite para o dia; os monstros esfomeados nos
poços fedorentos; a horrível fórmula que provocara resultados tão indescritíveis; a mensagem em
cursivo encontrada no bolso de Willett; os papéis e cartas e toda aquela conversa sobre túmulos,
"sais" e descobertas — para onde levaria tudo aquilo? No fim, o senhor Ward fez a coisa mais
sensata. Sem se perguntar por que fazia aquilo, deu aos detetives algo para que o mostrassem aos
comerciantes de Pawtuxet que haviam conhecido o misterioso doutor Allen. Tratava-se de uma
fotografia do seu infeliz filho, na qual ele desenhara cuidadosamente à tinta o par de pesados óculos
e a barba negra e pontuda que os homens haviam trazido do quarto de Allen.
Por duas horas ele aguardou com o médico no ambiente opressivo da casa onde o medo e os
miasmas estavam lentamente se adensando, enquanto o painel vazio na biblioteca lá em cima
olhava e continuava a olhar sem interrupção. Então os homens voltaram. Sim, a fotografia retocada
assemelhava-se de modo passável ao doutor Allen. O senhor Ward ficou pálido e Willett limpou
com o lenço a testa subitamente molhada de suor. Allen — Ward — Curwen — tudo estava se
tornando demasiado horrendo para alguém poder pensar de modo coerente. O que o rapaz evocara
do vazio e o que aquilo fizera com ele? O que havia acontecido, em realidade, desde o princípio até
o fim? Quem era esse Allen que tentara matar Charles por considerá-lo demasiado "melindroso" e
por que sua vítima predestinada dissera no pós-escrito daquela carta desesperada que ele deveria ser
completamente dissolvido em ácido? Por que, também, a mensagem, em cuja origem nenhum dos
dois sequer ousava pensar, dissera que "Curwen" devia ser do mesmo modo destruído? Qual era a
mudança e quando ocorrera o estágio final? No dia em que chegara sua carta desesperada — ele
andara nervoso a manhã toda, então houve unia alteração. Esgueirara-se sem ser visto e voltara
passando atrevidamente pêlos guardas que haviam sido contratados para vigiá-lo. Fora naquela
hora, enquanto ele saíra. Mas não — ele não gritara de terror ao entrar no escritório — naquele
mesmo quarto? O que encontrara lá? Ou, esperem — o que o encontrara? Aquele simulacro que
entrara rápida e atrevidamente sem ser visto — seria uma sombra alienígena, um ser horripilante
introduzindo-se à força numa figura trêmula que jamais se fora totalmente? O mordomo não falara
por acaso de ruídos estranhos?
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Willett chamou o empregado e lhe fez algumas perguntas em voz baixa. Havia sido mesmo um
negócio muito feio. Houve muito barulho — gritos, estertores e uma espécie de algazarra, rangidos
ou baques surdos, ou tudo isto ao mesmo tempo. E o senhor Charles não era mais o mesmo quando
saiu a passos longos e silenciosos, sem pronunciar uma palavra. O mordomo estremecia ao falar e
cheirou o ar pesado que vinha de alguma janela aberta dos andares superiores. O terror estabelecera-
se definitivamente naquela casa e somente os diligentes detetives não se davam plenamente conta
disso. Mas até eles se mostravam inquietos, pois esse caso tinha como pano de fundo vagos
elementos que não lhes agradavam em absoluto. O doutor Willett estava pensando profunda e
rapidamente e seus pensamentos eram terríveis. Vez por outra ele quase desatou a resmungar
enquanto em sua mente analisava uma nova cadeia assustadora e cada vez mais conclusiva de
acontecimentos de pesadelo.
Então o senhor Ward fez um sinal para indicar que a conferência acabara e todos, menos ele e
o médico, saíram da sala. Já era meio-dia, mas as trevas, como se a noite estivesse próxima,
pareciam tragar a casa assombrada por fantasmas. Willett começou a conversar muito seriamente
com seu anfitrião e instou-o a confiar-lhe grande parte das futuras investigações. Previa que haveria
certos elementos detestáveis que um amigo toleraria melhor do que um parente. Como médico da
família, deveria ter liberdade de ação e a primeira coisa que exigiu foi que lhe permitisse passar
algum tempo sozinho e sem ser incomodado na biblioteca do andar de cima, onde a peça sobre a
lareira atraíra ao seu redor um horror deletério mais intenso do que quando as feições do próprio
Joseph Curwen miravam maliciosamente de cima do painel pintado.
O senhor Ward, confuso pela maré de grotesca morbidez e de sugestões inimagináveis e
enlouquecedoras que jorravam de toda as partes, só poderia concordar, e meia hora mais tarde o
médico era trancado na sala com o painel de Olney Court evitada por todos. O pai, escutando do
lado de fora, ouviu ruídos desajeitados de alguém remexendo e procurando enquanto o tempo
passava e, finalmente, um repuxão violento e um rangido, como se a porta de um armário
firmemente fechada tivesse sido aberta. Então ouviu-se um grito abafado, uma espécie de resfolego
sufocado e um bater apressado do que havia sido aberto. Quase imediatamente a chave tiniu e
Willett apareceu no saguão, com um ar perturbado e espectral, pedindo lenha para a lareira de
verdade na parede sul da sala. A fornalha não era suficiente, ele disse, e a lareira elétrica tinha
pouca utilidade prática. Ansioso, mas sem ousar fazer perguntas, o senhor Ward deu as ordens
necessárias e um criado trouxe grandes troncos de pinho, estremecendo ao entrar no ar corrompido
da biblioteca para colocá-los sobre a grade. Enquanto isso, Willett subira até o laboratório
desmantelado e trouxera para baixo algumas bugigangas deixadas para trás na mudança do mês de
julho. Estavam num cesto coberto e o senhor Ward nunca pode ver do que se tratava.
Então o médico voltou a se trancar na biblioteca e, pelas nuvens de fumaça que saíam da
chaminé e passavam em grandes rolos pela janela, percebeu-se que ele havia aceso o fogo. Mais
tarde, depois de muitos ruídos de jornais remexidos, ouviu-se novamente aquele curioso repuxão e
rangido, seguidos por um baque surdo que desagradou a todos os que estavam escutando. Então
ouviram-se dois gritos abafados de Willett e logo depois disso um sussurro sibilado de um som
indefinidamente detestável. Finalmente, a fumaça que o vento trazia para baixo da chaminé tornou-
se muito escura e acre, e todos desejaram que o tempo lhes poupasse esta asfixiante e venenosa
inundação de vapores estranhos. A cabeça do senhor Ward rodava vertiginosamente e todos os
criados formaram um grupo compacto para olhar a horrível fumaça negra arremeter para baixo.
Após o que pareciam séculos, os vapores começaram a clarear e ruídos indefinidos de alguém
raspando, varrendo e realizando outras operações menores foram ouvidos atrás da porta trancada.
Finalmente, após um bater de portas de algum armário no interior, Willett apareceu, triste, pálido e
com o semblante perturbado, carregando o cesto coberto com um pano que havia retirado do
laboratório em cima. Havia deixado a janela aberta e, naquela sala outrora amaldiçoada, penetrava
agora em profusão o ar puro e saudável misturando-se a um novo cheiro estranho de desinfetantes.
A velha peça continuava em seu lugar, mas agora parecia despida de sua malignidade e estava tão
calma e imponente em seus painéis brancos como se jamais tivesse exibido o retraio de Joseph
Curwen. A noite se aproximava, no entanto dessa vez suas sombras não estavam carregadas de
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terrores latentes, mas apenas de uma delicada melancolia. O médico jamais comentou a respeito do
que havia feito. Ele disse ao senhor Ward: "Não posso responder a nenhuma pergunta, direi apenas
que existem diferentes tipos de magia. Fiz uma grande purificação. Os habitantes dessa casa
dormirão melhor graças a isto".
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Que a "purificação" do doutor Willett consistiu uma provação quase tão enlouquecedora
quanto suas horrendas perambulações pela cripta agora desaparecida demonstra-o o fato de que o
velho médico desmaiou ao chegar em casa naquela noite. Durante três dias ele permaneceu
constantemente em seu quarto, embora os criados mais tarde comentassem que o ouviram após a
meia-noite da quarta-feira, quando a porta principal se abriu delicadamente e se fechou com
espantoso cuidado. Felizmente, a imaginação dos criados é limitada, caso contrário os comentários
poderiam se deixar influenciar por um artigo publicado na quinta-feira no Evening Bulletin, que
dizia o seguinte:
VAMPIROS DO CEMITÉRIO NORTE AGEM MAIS UMA VEZ
Após uma calmaria de dez meses, desde os covardes atos de vandalismo cometidos no jazigo da família
Weeden no Cemitério Norte, um gatuno notumo foi avistado nessa madrugada no mesmo cemitério por
Robert Hart, o vigia da noite. Olhando de sua guarita por volta das duas da manhã, Hart observou a luz de
uma lanterna de bolso não muito longe da ala norte e, ao abrir a porta, avistou a silhueta de um homem com
uma colher de pedreiro claramente recortada contra uma luz elétrica das proximidades. Imediatamente correu
em sua perseguição e viu a figura largar a toda pressa em direção da entrada principal, ganhando a rua e
desaparecendo na escuridão antes que ele pudesse se aproximar e agarrá-la.
Como o primeiro da série de vampiros que agiram no ano passado, esse invasor não provocou danos
reais antes de ser surpreendido. Una parte vaga do jazigo dos Wards mostrava sinais de escavação
superficial, mas nada que se assemelhasse às dimensões de um túmulo e, por outro lado, nenhum outro
túmulo foi molestado.
Hart, que pode apenas descrever o intruso como um homem baixo, provavelmente barbudo, acredita que
os três casos de violação de túmulos tenham uma origem comum; mas a polícia do Segundo Distrito tem
outra opinião, considerando a selvageria do segundo incidente, no qual foi levado um caixão antigo e sua
lápide foi violentamente despedaçada.
O primeiro dos incidentes, no qual acredita-se ter sido frustrada uma tentativa de enterrar algo, uma
coisa ocorreu um ano atrás, em março passado, e foi atribuída a contrabandistas que procuravam um
esconderijo para sua mercadoria. É possível, afirma o sargento Riley, que esse terceiro caso seja de natureza
semelhante. Policiais do Segundo Distrito estão tomando medidas especiais para capturar a gangue de
perversos indivíduos responsável por estas repetidas violações.
Durante toda a quinta-feira o doutor Willett descansou como para se recuperar de algo ou
preparando-se para algo futuro. À noite, escreveu um bilhete ao senhor Ward, que foi entregue na
manhã seguinte e fez com que o pai, pasmo, mergulhasse em longas e profundas meditações. O
senhor Ward não conseguia voltar ao trabalho desde o choque da segunda-feira, com seus descon
certantes relatos e sua sinistra "purificação", mas achou algo reconfortante a carta do médico, apesar
do desespero que parecia prometer e dos novos mistérios que parecia evocar.
Barnes St.,nº 10
Providence, R.I.,
12 de abril de 1928
Caro Theodore,
Acho que preciso dizer-lhe algo antes de fazer o que pretendo amanhã. Servirá para encerrar o terrível
caso que vivemos (pois penso que nenhuma pá no mundo conseguirá chegar até o lugar monstruoso que nós
conhecemos), mas temo que não aplacará seu espírito a não ser que eu o assegure expressamente de que será
uma ação definitiva.
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Você me conhece desde que era menino, portanto, acho que não me privará de sua confiança quando
sugiro que é melhor deixar alguns assuntos inconcluídos e inexplorados. É melhor que você não tente mais
nenhuma especulação a respeito do caso de Charles e é quase imperativo que não conte à mãe do rapaz mais
do que ela já suspeita. Quando eu for visitá-lo amanhã, Charles terá fugido. Isto é tudo o que as pessoas
devem saber. Ele era louco e fugiu. Pode contar com cuidado à sua mãe, e gradativamente, o episódio da
loucura quando deixar de enviar-lhe as cartas datilografadas em nome dele. Eu o aconselharia a ir para junto
dela, em Atlantic City, e tirar umas férias. Deus sabe que precisa depois desse choque, assim como eu. Irei
para o Sul por algum tempo para me acalmar e pôr a cabeça no lugar.
Portanto, não me faça nenhuma pergunta quando eu aparecer por aí. Pode ser que alguma coisa saia
errada, mas eu lhe durei caso isso aconteça. Não acredito que acontecerá. Não haverá mais nada para se
preocupar, porque Charles estará muito, muito seguro. Agora — ele está mais seguro do que você poderia
sonhar. Não precisa temer nada de Allen, nem de quem ou do que ele possa ser. Ele faz parte do passado
tanto quanto o quadro de Joseph Curwen e, quando eu tocar sua campainha, pode ter certeza de que essa
pessoa não existirá. E quem escreveu aquela mensagem em cursivo nunca mais perturbará a você ou aos
seus.
Mas você não pode se entregar à melancolia e deve preparar sua esposa para fazer o mesmo. Devo
dizer-lhe com franqueza que a fuga de Charles não significará que ele lhe será devolvido. Ele foi afetado por
uma doença peculiar, como deve ter percebido pelas sutis alterações físicas e mentais que ocorreram nele, e
não deve esperar vê-lo novamente. Tenha apenas este consolo — que ele jamais foi um espírito maligno ou
mesmo um louco de verdade, mas apenas um menino ambicioso, estudioso e curioso cujo amor pelo mistério
e pelo passado foi sua ruína. Ele descobriu coisas que nenhum mortal deveria conhecer e recuou no tempo
como nenhum outro homem e de todos esses anos saiu algo que o devorou.
E agora chegamos ao assunto a respeito do qual devo pedir-lhe que confie em mim acima de qualquer
coisa. Pois, em realidade, não teremos nenhuma incerteza sobre o destino de Charles. No prazo de mais ou
menos um ano, se o desejar, você poderá pensar, se desejar, num relato adequado do fim pois o rapaz não
existirá mais. Pode colocar uma lápide em seu jazigo no Cemitério Norte, exatamente a dez metros oeste do
seu pai, voltada na mesma direção, e ela marcará o verdadeiro local em que seu filho jaz. Não deve temer
porque não marcará nenhuma anormalidade ou o corpo de outra pessoa. As cinzas depositadas naquele
túmulo serão as dos seus próprios ossos e carne — do verdadeiro Charles Dexter Ward cujo
desenvolvimento espiritual você acompanhou desde a infância —, o verdadeiro Charles com a marca de
azeitona no quadril e sem a marca negra de bruxo no peito ou a cova na testa. O Charles que na verdade
nunca fez o mal e que terá pago com a vida por seus "melindres".
É tudo. Charles terá fugido e daqui a um ano você poderá instalar sua lápide. Não me pergunte nada
amanhã. E acredite que a honra de sua antiga família permanece imaculada, agora como sempre foi no
passado.
Com a mais profunda simpatia e exortando-o à fortaleza de ânimo, à calma e resignação, serei sempre
Seu sincero amigo
Marinus B. Willett
Assim, na manhã da sexta-feira, 13 de abril de 1928, Marinus Bicknell Willett fez uma visita
ao quarto de Charles Dexter Ward na clínica particular do doutor Waite em Conanicut Island. O
jovem, embora sem tentar furtar-se à visita, estava mal-humorado e não parecia disposto a iniciar a
conversação que Willett obviamente desejava. A descoberta da cripta e a monstruosa experiência do
médico em seu interior evidentemente criava um novo motivo de embaraço, portanto, ambos
hesitavam de modo perceptível após uma troca de tensas e escassas formalidades. Então surgiu um
novo fator de constrangimento, quando Ward pareceu ler no rosto rígido como uma máscara do
médico uma terrível determinação que jamais tivera. O paciente tremia, consciente de que desde a
ultima visita havia ocorrido uma mudança em conseqüência da qual o solícito médico de família se
transformara num impiedoso e implacável vingador.
De fato, Ward empalideceu e o médico foi o primeiro a falar. Ele disse:
— Mais coisas foram descobertas e devo adverti-lo honestamente de que se faz necessário um
ajuste de contas.
— Andou escavando de novo e descobriu outros pobres bichinhos morrendo de fome? — foi a
resposta irônica. Era evidente que o jovem pretendia exibir uma atitude de desafio até o fim.
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— Não — retrucou lentamente Willet —, dessa vez eu não precisei escavar. Mandamos alguns
homens vigiar o doutor Allen e eles descobriram a barba postiça e os óculos no bangalô.
— Excelente — comentou o anfitrião, inquieto, arriscando uma espirituosa agressão —, e
acredito que ficavam melhor do que a barba e os óculos que o senhor está usando agora!
— Eles ficariam bem melhor em você — foi a resposta tranqüila e estudada —, como de fato
pareciam ficar.
Enquanto Willett dizia isto, foi como se uma nuvem passasse sobre o sol, embora não houvesse
nenhuma mudança nas sombras do chão. Então Ward arriscou:
— E é isto que torna tão necessário um acerto de contas? Suponhamos que um sujeito ache
conveniente, vez por outra, ter duas personalidades?
— Não — disse Willett gravemente —, engana-se de novo. Não é da minha conta se um
sujeito procura uma dupla personalidade, desde que tenha algum direito a existir e desde que ele
não destrua o que o chamou de fora do espaço.
Ward agora teve um violento sobressalto.
— Bem, meu senhor, o que descobriu e o que quer de mim?
O médico esperou um pouco antes de responder, como se estivesse escolhendo as palavras para
dar uma resposta de efeito.
— Descobri — declarou finalmente — alguma coisa num armário atrás de um antigo painel
onde uma vez havia um retrato e a queimei e enterrei as cinzas no lugar em que deveria estar o
túmulo de Charles Dexter Ward.
O louco engasgou e pulou da cadeira na qual estava sentado:
— Desgraçado, a quem você contou — e quem acreditará que era ele após esses dois meses, se
eu estou vivo? O que pretende fazer?
Embora fosse um homem de baixa estatura, Willett assumiu nesse momento um ar majestático
de juiz, acalmando o paciente com um gesto.
— Não contei a ninguém. Esse não é um caso comum — é uma loucura fora do tempo, um
horror que vem de além das esferas e que nem a polícia nem os advogados, nem tribunais nem
psiquiatras poderiam compreender ou combater. Graças a Deus a sorte me deixou a luz da
imaginação, para que eu não me distraísse até resolver essa coisa. Você não pode me enganar,
Joseph Curwen, porque eu sei que sua maldita mágica é verdadeira!
"Eu sei que você preparou o encantamento que ficou aguardando todos estes anos e encarnou
em seu sósia e descendente; sei que você o arrastou para o passado e fez com que o trouxesse de
volta do seu detestável túmulo; sei que ele o manteve escondido em seu laboratório enquanto você
estudava coisas modernas e vagava à noite como um vampiro e que você mais tarde se mostrou com
barba e óculos para que ninguém desconfiasse de sua ímpia semelhança com ele; sei o que você
resolveu fazer quando ele recusou suas monstruosas violações dos túmulos de todo o mundo e o que
você planejou depois, e sei como você fez aquilo.
"Você abandonou barba e óculos e burlou os guardas em volta da casa. Eles pensaram que era
ele que entrava e pensaram que era ele que saía quando você o estrangulou e o escondeu. Mas você
não se deu conta dos diferentes contextos de duas mentes. Você foi um tolo, Curwen, em imaginar
que uma simples identidade física seria suficiente. Por que você não pensou na fala, na voz e na
caligrafia? Sabe, aquilo, no fim das contas, não funcionou. Você sabe melhor do que eu quem ou o
que escreveu aquela mensagem em cursivo, mas eu lhe afirmo que aquilo não foi escrito em vão.
Existem abominações e blasfêmias que devem ser aniquiladas e eu acredito que o autor daquelas
palavras cuidará de Orne e Hutchinson. Uma daquelas criaturas escreveu-lhe uma vez, 'não chame
nada que você não possa mandar de volta'. Você já foi destruído uma vez, talvez dessa mesma
maneira, e talvez sua própria magia maligna o destrua mais uma vez. Curwen, um homem não pode
interferir com a natureza além de certos limites e todo horror que você criou se erguerá para destruí-
lo".
Mas a essa altura o médico foi interrompido por um grito convulsivo da criatura à sua frente.
Irremediavelmente perdido, desarmado e consciente de que qualquer tentativa de violência física
atrairia uma dúzia de atendentes em socorro do médico, Joseph Curwen recorreu ao seu antigo
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aliado e começou uma série de gestos cabalísticos com seus indicadores, enquanto sua voz profunda
e cavernosa, agora sem a falsa rouquidão, berrava as palavras introdutórias de uma terrível fórmula.
"PER ADONAI ELOIM, ADONAI JEHOVA, ADONAI SABAOTH, METRATON..."
Mas Willett foi mais rápido do que ele. Enquanto os cães no quintal começavam a uivar e um
vento gélido repentinamente soprava da baía, o médico começou a solene e pausada recitação
daquilo que todo o tempo desejara pronunciar. Olho por olho — magia por magia —, que o
resultado mostre quão bem foi aprendida a lição dos abismos! Assim, em voz clara, Marinus
Bicknell Willett iniciou a segunda daquelas duas fórmulas, a primeira das quais levantara o autor
daquelas palavras em cursivo — a invocação misteriosa cujo cabeçalho era a Cauda do Dragão, o
signo do nó descendente
"OGTHROD A'TF
GEB'L - EE'H
YOG-SOTHOTH
'NGAH'NG Al'Y
ZHRO! ''
Quando a boca de Willett pronunciou a primeira palavra, a fórmula anteriormente iniciada pelo
paciente parou de chofre. Incapaz de falar, o monstro agitou violentamente os braços até que estes
também pararam. Quando o nome terrível de Yog-Sothoth foi mencionado, iniciou a horrenda
transformação. Não se tratava de uma simples dissolução, mas de uma transformação ou
recapitulação, e Willett fechou os olhos para não desmaiar antes que o resto do encantamento
pudesse ser pronunciado.
Mas ele não desmaiou e aquele homem de séculos profanos e segredos proibidos nunca mais
perturbou o mundo. A loucura do tempo cessara e o caso Charles Dexter Ward estava encerrado. Ao
abrir os olhos antes de sair cambaleando daquele quarto do horror, o doutor Willett viu que não
havia esquecido o que retivera na memória. Como ele previra, não houve necessidade de ácidos.
Pois, como seu amaldiçoado quadro um ano antes, Joseph Curwen agora jazia espalhado sobre o
chão como uma leve camada de fino pó cinza-azulado.
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Fontes:www.sitelovecraft.com
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