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domingo, 7 de agosto de 2011

Bram Stocker-A Casa do Juiz-Conto Fantasmagórico

                   A CASA DO JUIZ

                                                                           Por:  Bram Stoker








Abraham "Bram" Stoker (Dublin, 8 de Novembro de 1847 — Londres, 20 de Abril de 1912) foi um escritor irlandês bastante conhecido por ter sido o autor de Drácula[1], a principal obra no desenvolvimento do mito literário moderno do vampiro. Sempre estudando em Dublin, escreveu seu primeiro ensaio aos 16 anos e, em 1875 recebeu seu mestrado. Conseguiu se tornar crítico de teatro, sem remuneração, no jornal Dublin Eventing Mail. Em 1878 Stoker casou-se com Florence Balcombe, cujo ex-pretendente foi Oscar Wilde[2]. Com a mulher, mudou-se para Londres, onde passou a trabalhar na companhia teatral Irving Lyceum, assumindo várias funções e permanecendo nela por 27 anos. Em 31 de Dezembro de 1879 nasceu seu único filho, Irving Noel Thornley Stoker. Trabalhando para o ator Henry Irving, Stoker viajou por vários países, apesar de nunca ter visitado a Europa Oriental, cenário de seu famosos romance[3]. Enquanto esteve no Lyceum Theatre de Londres, começou a escrever romances e fez parte da equipe literária do jornal londrino Daily Telegraph, para o qual escreveu ficção e outros gêneros[4]. Antes de escrever Dracula, Stoker passou vários anos pesquisando folclore europeu e as histórias mitológicas dos vampiros. Depois de sofrer uma série de derrames cerebrais, Stoker faleceu em Londres em 1912. Alguns biógrafos atribuem a um processo desencadeado por uma sífilis terciária como causa de sua morte.

      Quando se aproximou a data de seu exame, Malcolm Malcolmson de-
cidiu ir para algum lugar onde pudesse ler em paz. Ele receava os atrativos
da praia e também um isolamento completo no campo, pois há muito co-
nhecia   seus   encantos,   e  então   resolveu   encontrar   alguma   cidadezinha   mo-
desta onde não houvesse nada que o distraísse. Absteve-se de pedir suges-
tões a quaisquer de seus amigos, pois julgava que todos recomendariam al-
gum lugar que ele já conhecia e onde já tinha conhecidos. Tanto quanto de-
sejava evitar amigos, Malcolmson não queria de modo algum se sobrecarre-
gar com a atenção de amigos e, assim, resolveu procurar uma casa. Encheu
uma maleta com algumas roupas e todos os livros de que precisava e depois
comprou   passagem   para   o   primeiro   nome   no   quadro   de   horários   que   ele
não conhecesse.
      Quando ao cabo de uma viagem de três horas desembarcou em Ben-
church,   sentiu-se   satisfeito   por   ter   apagado   seus   rastos   e   garantido   assim
uma oportunidade de entregar-se a seus estudos em paz. Dirigiu-se imedia-
tamente à única pousada que aquele lugar sossegado possuía e acomodou-se
para a noite. Benchurch era uma cidade comercial e uma vez a cada três se-
manas   ficava   excessivamente   populosa,   mas nos   restantes vinte   e  um   dias
era atraente como um deserto. Malcolmson procurou nos arredores, no dia
seguinte   a   sua  chegada,   refúgios   mais   isolados   ainda  do  que   uma pousada
tranqüila como o “Bom Viajante”. Apenas um único lugar cativou-o, e cer-
tamente excedia até mesmo suas idéias mais extravagantes no que diz respei-

                                    

to   a   tranqüilidade;   na   verdade,   tranqüilidade   não   era   a   palavra   adequada   a
qualificá-lo — solidão era o único termo que conviria a seu isolamento. Era
uma velha casa de estilo  jacobino, irregular, sólida, com caixilhos e janelas
pesados, circundada por um muro alto e compacto de tijolos. Apesar de ser
construída com altura maior do que o usual era excepcionalmente pequena.
Com efeito, a um olhar mais atento, parecia-se mais a uma casa fortificada
do   que   a   uma   morada   comum.   Mas   todas   essas   coisas   agradaram   a   Mal-
colmson. “Aqui”, pensou ele, “está exatamente o canto que eu estava pro-
curando, e se tiver a oportunidade de usá-lo, ficarei satisfeito.” Sua alegria
aumentou quando percebeu que ela, indubitavelmente, não estava habitada
no momento.
      Na agência do correio ele obteve o nome do corretor, que raramente
era surpreendido pelo surgimento de alguém interessado em alugar parte da
velha casa. O sr. Carnford, o advogado local e corretor, era um velho cava-
lheiro amável e confessou abertamente sua alegria em saber que alguém de-
sejava viver na casa.
      “Para ser sincero”, disse ele, “eu ficaria muitíssimo feliz, em nome dos
proprietários, em isentar qualquer um do aluguel pelo período de anos, ape-
nas para acostumar as pessoas daqui a vê-la habitada. Faz tanto tempo que
está vazia que se criou algum tipo de prevenção contra ela, e isso somente
sua ocupação poderá eliminar — ainda mais”, acrescentou ele com um olhar
furtivo para Malcolmson, “por um letrado como o senhor, que deseja tran-
qüilidade durante algum tempo.”
      Malcolmson   julgou   desnecessário   interrogar  o  corretor  sobre  a  “pre-
venção   absurda”;   ele   sabia   que   poderia   conseguir   mais   informações,   caso
quisesse, em outros cantos. Pagou o aluguel de três meses, pegou o recibo e
o nome de uma velha senhora que provavelmente se encarregaria de “ajeitá-
lo”  e foi embora com as chaves no bolso. Foi então até a proprietária   da
hospedaria, que era uma pessoa alegre e muito gentil, e lhe pediu conselhos
quanto   aos   víveres   e   provisões   de   que   provavelmente   necessitaria.   Ela   le-
vantou as mãos em espanto quando ele lhe contou onde iria se instalar.


       “Não na Casa do Juiz!”, disse ela, empalidecendo. Ele explicou a loca-
lização da casa, dizendo que não sabia seu nome. Quando terminou, ela res-
pondeu:
       “Sim, é ela com certeza — com certeza é aquela! É sem dúvida a Casa
do Juiz.” Ele lhe pediu que falasse sobre a casa, por que era assim chamada
e o que havia contra ela. A velha lhe contou que era assim chamada na loca-
lidade porque fora, muitos anos antes — quanto tempo não sabia, uma vez
que   viera   de   outra   parte   do   país,   mas   julgava   ter   sido   há   dois   séculos   ou
mais —, a residência de um juiz que inspirava grande terror por causa   de
suas sentenças severas e sua hostilidade a prisioneiros em sessões de tribu-
nais superiores. Quanto ao que havia contra a casa em si, ela não sabia. Ela
muitas   vezes   perguntara,   mas   ninguém   pudera   dar-lhe   informações;   mas
havia um sentimento geral da existência de algo, e de sua parte nem todo o

                        1
dinheiro do banco  a convenceria a ficar na casa sozinha durante uma hora.
Depois ela se desculpou com Malcolmson por suas palavras perturbadoras.
       “É muito ruim de minha parte, senhor, e o senhor — além disso, um
jovem cavalheiro —, desculpe-me dizê-lo, está prestes a ir morar lá sozinho.
Se fosse meu filho —  e o senhor me perdoará dizê-lo —, não dormiria lá
nem   uma   noite,   nem   que   eu  tivesse   de   ir   lá   e   puxar   eu   mesma   a   grande
campainha que existe embaixo!” A boa criatura era tão claramente sincera e
tão gentis suas intenções que Malcolmson, apesar de divertido, ficou como-
vido. Disse-lhe amavelmente o quanto apreciava seu interesse por ele e a-
crescentou:
       “Mas,   minha   querida   sra.   Witham,   na   verdade   a   senhora   não   precisa
preocupar-se comigo! Um homem que está lendo para os exames de Mate-
mática Tripos2  tem muito em que pensar para ser perturbado por qualquer

  1 No original: and for her own part she would not take all the money in Drinkwater’s Bank and 

stay in the house an hour by herself. Peter Drinkwater‟s Bank, denominação de estabelecimento
bancário com origem no primeiro cotonifício de Manchester (UK) a ter os seus teares movidos a
vapor, ca. 1788 (N.E.).
  2
   Mathematical Tripos. Exame de graduação da Universidade de Cambridge (UK) dividido em
duas partes e destinado a estudantes de matemática. Utilizado até hoje (N.E.).


dessas „algumas coisas‟ misteriosas, e seu trabalho é de um tipo demasiado
exato e prosaico para permitir que ele reserve algum canto em seu espírito
para  mistérios   de   qualquer   espécie.   Progressão   harmônica,   permutações   e
combinações e funções elípticas já possuem mistério suficiente para mim!” 
A sra. Witham foi providenciar seus pedidos e  ele foi procurar pela velha
senhora que lhe havia sido recomendada. Quando retornou com ela à Casa
do Juiz, após um intervalo de algumas horas, encontrou a própria sra. Wi-
tham esperando com vários homens e meninos a carregar pacotes e um car-
pinteiro e estofador com uma cama numa carroça, pois, disse ela, embora as
mesas e as cadeiras pudessem estar em boas condições, uma cama que ainda
não fora arejada durante talvez cinqüenta anos não era adequada para o des-
canso de ossos jovens. Ela estava obviamente curiosa para ver o interior da
casa; e, não obstante, visivelmente tão receosa das “algumas coisas” que, ao
menor som, agarrava-se a Malcolmson, a quem não deixou nem por um mi-
nuto e que percorreu toda a casa.
      Depois de examinar a casa, Malcolmson decidiu ocupar a ampla sala de
jantar, que era grande o suficiente para atender a todas as suas necessidades;
e a sra. Witham, com a ajuda da arrumadeira, a sra. Dempster, continuou a
organizar tudo. Quando as canastras foram trazidas e abertas, Malcolmson
viu que, com uma previdência muito gentil, ela enviara de sua própria cozi-
nha provisões suficientes para uns poucos dias. Antes de partir, ela expres-
sou amavelmente seus votos de uma estada feliz; e à porta virou-se, dizen-
do:
      “E talvez, senhor, como o aposento é grande e exposto a correntes de
ar, seria conveniente ter uma daquelas cortinas grandes em volta de sua ca-
ma à noite —  embora, para dizer a verdade, eu morreria se tivesse de me
fechar assim,  com  todos  os  tipos  de...  de  „coisas‟,   que   põem   suas   cabeças
pelos lados, ou acima, e olham pata mim!” A imagem que ela invocara era
demais para os seus nervos e ela fugiu incontinenti.
      A sra. Dempster fungou de uma forma superior enquanto a proprietá-
ria desaparecia e observou que, de sua parte, não tinha medo nem de todos
os diabos do reino.


      “Vou lhe dizer o que é, senhor”, disse ela; “demônios é toda espécie e
tipos de coisas —  exceto demônios!” Ratos e camundongos e besouros; e
portas rangendo e telhas soltas e vidraças quebradas e maçanetas quebradas,
que saem quando são puxadas e então caem no meio da noite. Veja os lam-
bris da sala! São velhos — têm cem anos! O senhor pensa que não há ratos
e besouros lá? E imagina, senhor, que não vai ver nenhum deles? Ratos são
demônios, isso sim, e demônios são ratos; e não comece a pensar outra coi-
sa!”
      “Sra. Dempster”, disse Malcolmson gravemente, fazendo-lhe uma re-
verência  polida,  “a   senhora   sabe  mais   do   que   um  polemista   experiente!   E
digo-lhe   que,   como   sinal   de   estima   por   seu   coração   e   mente   inquestiona-
velmente sãos, quando eu me for, dar-lhe-ei a posse desta casa e a deixarei
ficar aqui sozinha pelos dois últimos meses de meu período como inquilino,
pois quatro semanas me serão suficientes.”
      “Muito obrigada, senhor!”, respondeu ela, “mas eu não poderia dormir
fora de minha casa sequer uma noite. Moro no asilo de Greenhow e se eu
dormir uma noite fora  de meus aposentos perco tudo de que preciso para
viver.   As   regras   são   muito   estritas   e   há   muita   gente   esperando   uma   vaga,
para que possa me arriscar.  Mas, mesmo assim, vou ficar contente em vir
aqui e servir o senhor durante sua estada.”
      “Minha boa mulher”, disse Malcolmson apressadamente, “vim para cá
em busca de solidão; e, acredite-me, estou tão grato ao falecido Greenhow
por ter assim disposto seu ato de caridade admirável — seja ele qual for —
que me sinto obrigado a recusar a oportunidade de cair em tal tipo de tenta-
ção! O próprio Santo Antônio não poderia ser mais rigoroso sobre isso!”
      A   velha  senhora  deu  uma  gargalhada.  “Ah!,   meu   jovem   cavalheiro”,
disse, “o senhor não precisa temer nada; e talvez consiga a solidão que quer
aqui”. Ela posse a trabalhar na limpeza; e ao cair da noite, quando Malcolm-
son   retornou   de   seu   passeio —  sempre   carregava   um   de   seus   livros   para
estudar enquanto caminhava —, encontrou o quarto varrido e arrumado, a
velha lareira acesa e a mesa posta para o jantar, com a comida da excelente
sra. Witham. “Isso é que é conforto”, disse ele, esfregando as mãos.


      Depois de terminar seu jantar e levar a bandeja para a outra extremida-
de da mesa de jantar antiga de carvalho, pegou novamente seus livros, colo-
cou novas toras no fogo, ajustou seu lampião e acomodou-se para um perí-
odo de trabalho realmente duro. Ele prosseguiu sem pausa até cerca de onze
horas, quando interrompeu seu trabalho para ajeitar o fogo e o lampião e
fazer uma xícara de chá. Ele sempre fora dado a um chá e durante sua vida
acadêmica trabalhava e tomava chá até tarde da noite. O resto constituía um
grande luxo para ele e, assim, desfrutou dele com uma sensação de tranqüi-
lidade deliciosa, voluptuosa.  O fogo renovado estalava e brilhava e lançava
sombras singulares através da grande e antiga sala; e enquanto ele sorvia seu
chá quente deleitou-se com a sensação de isolamento. Foi então que come-
çou a notar, pela primeira vez, como era grande o barulho que os ratos esta-
vam fazendo.
      “Seguramente”, pensou, “não estavam a fazê-lo todo o tempo em que
eu lia. Se tivessem feito, com certeza eu o teria notado!” Depois, quando o
ruído aumentou, ele se convenceu de que era realmente novo. Era evidente
que de início os ratos estavam amedrontados pela presença de um estranho
e pela luz do fogo e do candeeiro; mas com o passar das horas haviam se
tornado mais ousados e estavam agora se divertindo à vontade.
      Como   estavam   ocupados!   E   que   estranhos   ruídos!   Para   cima   e   para
baixo, atrás dos velhos lambris, sobre o forro do  teto e sob o soalho eles
corriam, roíam e arranhavam! Malcolmson sorriu consigo ao recordar a fra-
se da sra. Dempster, “Demônios são ratos, e ratos são demônios!”  O chá
começou a exercer seus efeitos estimulantes sobre o intelecto e os nervos;
ele anteviu com alegria um outro período de trabalho antes do fim da noite
e,   com   a   sensação   de   segurança   que   isso   lhe   proporcionou,   permitiu-se   o
luxo de uma boa olhada em torno da sala. Pegou seu lampião com uma das
mãos   e   caminhou   em   volta,   perguntando-se   por   que   uma   casa   antiga   tão
singular e bela fora abandonada por tanto tempo. O entalhe do carvalho nas
esquadrias dos lambris era primoroso, e acima e em volta das portas e das
janelas   ele   era   belo   e   de   grande   valor.   Havia   alguns   quadros  nas   paredes,
mas estavam cobertos de tanta poeira e sujeira que ele não conseguia distin-

                                        
guir   seus   pormenores,   embora   levantasse   seu   lampião   à   altura   da   cabeça.
Aqui e lá, à medida que ele caminhava em volta da sala, viu uma rachadura
ou buraco tapado no momento pela cara de um rato, com seus olhos bri-
lhantes   piscando   na   luz,   mas   num   instante   ele   se   fora   e   seguiram-se   um
guincho e ruído de patas a correr.
      O que mais o chocou, contudo, foi o cordão da grande campainha do
teto, que pendia em um canto da sala, à direita da lareira. Ele empurrou para
perto da lareira uma grande cadeira de carvalho entalhado de espaldar alto e
sentou-se para sua última xícara de chá. Depois, avivou o fogo e voltou para
o trabalho, sentado a uma extremidade da mesa, com o fogo à sua esquerda.
Durante certo tempo, os ratos o perturbaram um pouco com suas passadas
incessantes, mas ele se habituou ao ruído como fazemos com o tique-taque
de um relógio ou com o bramir de águas em movimento; e mergulhou tão
profundamente   em   seu   trabalho  que   tudo   no   mundo,   exceto   o   problema
que estava tentando resolver, lhe passava ao largo.
      Ele subitamente levantou os olhos, seu problema ainda por solucionar,
e havia no ar aquela sensação da hora antes do amanhecer, que é tão aterra-
dora a uma vida incerta. O ruído dos ratos havia cessado. Na verdade, pare-
ceu-lhe que cessara apenas há pouco e que foi o súbito cessar que o pertur-
bara. O fogo baixara, mas ainda lançava uma luz vermelho vivo. Quando ele
olhou, deu um pulo, apesar de seu sangue frio.
      Sentado na grande cadeira de carvalho de espaldar alto, ao lado direito
da lareira, estava um rato enorme, encarando-o fixamente com olhos malé-
volos.   Ele  fez   um   movimento   em   sua   direção   como   que   para   expulsá-lo,
mas ele não se mexeu. Então, ele fez o movimento de atirar algo. Ainda as-
sim ele não se mexeu, mas mostrou raivosamente seus grandes dentes bran-
cos, e seus olhos cruéis brilharam à luz do lampião com o acréscimo de uma
expressão vingativa.
      Malcolmson espantou-se e, agarrando o atiçador da lareira, correu para
ele   a  fim  de   matá-lo.   Antes  porém que   pudesse  atingi-lo,   o  rato,   com  um
guincho que  soou como a condensação do ódio, pulou para o chão e, su-
bindo pelo cordão da campainha, desapareceu nas trevas, para além do raio

                                        

de   luz   esverdeado   do   lampião.  Nesse   instante,   estranhamente,   o   ruído   de
passos dos ratos nos lambris começou novamente.
      A essa altura, o espírito de Malcolmson já se distanciara do problema,
e quando um agudo canto de galo lá fora lhe anunciou a aproximação   da
manhã, ele foi para a cama dormir.
      Dormiu tão profundamente que não foi despertado nem mesmo pela
chegada  da   sra.   Dempster   para   arrumar   sua   sala.   Foi   somente   quando   ela
havia limpado o lugar e aprontado seu café da manhã e bateu de leve na tela
que envolvia sua cama que ele acordou. Ainda estava cansado, após sua noi-
te de trabalho pesado, mas uma xícara de chá forte logo o recompôs e, pe-
gando seu livro, saiu para a caminhada matinal, levando consigo alguns san-
duíches, para não ter de retornar até a hora do jantar. Encontrou uma aléia
tranqüila entre   altos olmos um pouco além da  cidade e lá passou a maior
parte do dia estudando seu Laplace. Quando retornou, procurou a sra. Wi-
tham para agradecer-lhe a gentileza. Quando ela o viu chegando, através da
janela de vidros facetados de seu quarto particular, veio ao seu encontro  e
convidou-o a entrar. Lançando-lhe um olhar interrogativo, balançou a cabe-
ça enquanto dizia:
      “Não deve exagerar, senhor. Está mais pálido esta manhã do que deve-
ria. Ficar acordado até muito tarde e sobrecarregar o cérebro com trabalho
muito pesado não é bom para ninguém! Mas diga-me, senhor, como passou
a noite?vBem, espero? Mas, do fundo do coração, senhor, fiquei feliz quan-
do a sra. Dempster me contou esta manhã que o senhor estava bem e dor-
mindo profundamente quando ela chegou.”
      “Ah!, tudo correu bem para mim”, respondeu ele, sorrindo, “as „algu-
mas coisas‟ não me perturbaram, até agora. Apenas os ratos; e eles tinham
um circo, francamente, por todos os cantos. Houve um malvado, que pare-
cia um diabo velho que sentou-se em minha própria cadeira ao lado da larei-
ra e não queria ir  embora, até que eu peguei o atiçador, e então ele subiu
correndo pelo cordão da campainha e entrou por algum buraco na parede
ou no teto — não consegui ver por onde, estava muito escuro.”

                                      

      “Cruzes”, disse a sra. Witham, “um diabo velho e sentado em uma ca-
deira ao lado da lareira! Tome cuidado, senhor! Tome cuidado! Muita ver-
dade é dita em tom de brincadeira.”
      “O que quer dizer? Juro que não entendi.”
      “Um velho diabo! O velho diabo, talvez. Ora, senhor, não deve rir!”,
pois Malcolmson dera uma sonora gargalhada. “Vocês, jovens, pensam que
é fácil rir de coisas que fazem tremer os mais velhos. Não faz mal, senhor!
Não faz mal! Deus queira que o senhor ria sempre. É tudo que eu lhe dese-
jo!” E a boa senhora iluminou-se toda com a simpatia e a alegria demons-
trada por ele; seus temores desapareceram por um instante.
      “Ah!, perdoe-me!” disse Malcolmson depois. “Não me tome por mal-
educado; mas a idéia foi demais para mim — que o próprio velho diabo es-
teve na cadeira a noite passada!” E tal pensamento o fez rir novamente. En-
tão ele foi para casa jantar.
      Naquela noite, as corridas dos ratos começaram mais cedo; na verdade,
já aconteciam antes de sua chegada e somente cessaram quando a novidade
de sua presença os perturbou. Após o jantar, ele sentou-se ao lado do fogo
por um tempo e fumou; e, depois de tirar a mesa, começou a trabalhar co-
mo antes. Essa noite os ratos perturbaram-no mais do que na noite anterior.
Como corriam para cá e para lá, para cima e para baixo! Como guinchavam
e arranhavam e roíam! Como, tornando-se mais audaciosos, aproximavam-
se da abertura de seus buracos, das frestas e das rachaduras dos lambris até
que   seus   olhos   brilhassem   como  lampadazinhas   à   medida   que   o  fogo  au-
mentava ou diminuía. Mas para Malcolmson, agora sem dúvida acostumado
a eles, seus olhos não eram malignos; ele apenas sentia seu espírito brinca-
lhão. Por vezes, o mais ousado fazia incursões pelo chão  ou ao longo das
molduras dos lambris. De quando em quando, sentindo-se perturbado, Mal-
colmson fazia um som para amedrontá-los, batendo na mesa com a mão ou
emitindo um ameaçador “Fora, fora!” para que fugissem imediatamente pa-
ra seus buracos.
      E   assim   passou   a   primeira   parte   da   noite;   e   apesar   do   barulho   Mal-
colmson absorveu-se outra vez em seu trabalho.

                                      

      De repente ele parou, como na noite  anterior, tomado de uma súbita
sensação de silêncio. Não havia o menor ruído de roedura, arranhadura ou
guincho. O  silêncio era tumular. Ele lembrou-se da estranha ocorrência da
noite   anterior   e instintivamente   olhou   para   a   cadeira   próxima   à   lareira.   E
então um sentimento estranhíssimo atravessou-o.
      Lá, na grande e velha cadeira de espaldar alto de carvalho entalhado ao
lado da lareira, estava sentado o mesmo rato enorme, encarando-o fixamen-
te com olhos malévolos.
      Instintivamente ele pegou o que estava mais próximo de sua mão, um
livro  de logaritmos, e atirou-o em sua direção. Não acertou a pontaria e o
rato não se mexeu, e assim o blefe da noite anterior repetiu-se; e novamente
o   rato,   caçado   de  perto,   fugiu   pelo   cordão   da   campainha.   Estranhamente
também, a partida desse rato foi instantaneamente acompanhada do ressur-
gimento   do   barulho   pela  comunidade   geral   dos   ratos.   Nessa   hora,   assim
como na noite anterior, Malcolmson não conseguiu ver em que parte da sala
o rato desaparecera, pois a luz verde de seu candeeiro deixava a parte supe-
rior na escuridão, e o fogo estava baixo.
      Ao olhar para seu relógio, ele descobriu que era perto da meia-noite; e,
nada triste pela interrupção, acendeu o fogo e fez sua chaleira de chá notur-
no. Ele trabalhara durante um bom tempo e sentiu-se merecedor de um ci-
garro; e, assim, sentou-se na grande cadeira de carvalho entalhado diante do
fogo e desfrutou dele. Enquanto fumava, começou a pensar que gostaria de
saber por onde o rato desaparecera, pois tinha algumas idéias para o dia se-
guinte,   não   inteiramente  desligadas   de   uma   ratoeira.   E   assim,   ele   acendeu
outro lampião e colocou-o de modo a que brilhasse bem dentro do canto
direito   da   parede   ao   lado  da   lareira.  Pegou   todos os   livros   que   trouxera   e
colocou-os   à   mão   para   atirá-los   ao   vilão.   Por  fim,   levantou   o   cordão   da
campainha e pôs sua extremidade sobre a mesa, prendendo-a sob o lampião.
Enquanto   o   manipulava,   não   pôde   deixar   de   observar  como   era   flexível,
especialmente para um cordão tão forte e sem uso. “É possível enforcar um
homem  com   ele”,   pensou   consigo.   Quando   completou   seus  preparativos,
olhou em volta e disse complacentemente:


       “E   agora,   meu   amigo,   acho   que   fisgaremos   você,  desta   vez!” Ele   re-
começou seu trabalho, e embora, como antes, de início o ruído dos ratos o
perturbasse, logo mergulhou nas suas proposições e em seus problemas.
      Novamente   o   ambiente   próximo   chamou-lhe   de   repente   a   atenção.
Desta vez poderia não ter sido o súbito silêncio apenas; houve um ligeiro
movimento   do  cordão,   e   o  lampião   mexeu-se.   Sem fazer   um   movimento,
olhou para ver se sua pilha de livros estava ao alcance e então correu os o-
lhos pelo cordão. Enquanto olhava, viu o grande rato cair do cordão para a
poltrona de carvalho e sentar-se lá, encarando-o. Ele levantou um livro com
o braço direito e, fazendo pontaria, atirou-o no rato. Este, com um movi-
mento rápido pulou para o lado e esquivou-se do projétil. Pegou um outro
livro,   um   terceiro   e   atirou-os   um   após   outro   no   rato,  mas   todas   as   vezes
sem sucesso. Por fim, como ele estivesse com um livro na mão para atirar, o
rato guinchou e pareceu amedrontado. Isso fez com que Malcolmson ficas-
se mais do que nunca impaciente por atingi-lo, e o livro voou e atingiu o
rato com uma pancada que ressoou. Ele deu um guincho de terror e, devol-
vendo ao seu perseguidor um olhar de terrível malignidade, subiu o espaldar
da cadeira, deu um grande salto para o cordão da campainha e subiu como
um   raio.   O lampião  balançou   com o puxão   súbito,  mas   era   pesado   e não
virou.   Malcolmson  seguiu   o   rato   com   os   olhos   e viu-o,   à   luz  do  segundo
candeeiro, saltar para a moldura dos lambris e desaparecer por um buraco
em um dos grandes quadros que pendiam da parede, obscurecido e invisível
pela camada de sujeira e de poeira.
       “Procurarei a morada de meus amigos pela manhã”, disse o estudante,
enquanto reunia seus livros. “O terceiro quadro a partir da lareira; não vou
me   esquecer.”  Pegou   os   livros   um   a   um,   fazendo   comentários   sobre   eles
enquanto os levantava. “Com o Secções Cônicas ele não se importa, nem Osci-
lações Cicloidais, nem  o  Principia, nem   os Quatérnios,  nem   a  Termodinâmica. E
aqui está o livro que o afugentou!” Malcolmson pegou-o e olhou para ele.
Quando o fez, foi tomado de espanto e uma súbita palidez espalhou-se pelo
rosto.   Olhou   em  volta   inquieto   e  estremeceu   ligeiramente,   enquanto   mur-
murava consigo:


      “A  Bíblia que   minha   mãe   me   deu!   Que   extraordinária   coincidência!”
Sentou-se para   trabalhar   novamente,   e   os   ratos  nos   lambris   recomeçaram
seus jogos. Eles não o perturbaram, contudo: de certo modo, sua presença
deu-lhe uma sensação de companheirismo. Mas não conseguiu concentrar-
se no trabalho e, após tentar dominar o assunto de que se ocupava, desistiu
e foi para a cama enquanto a primeira réstia do amanhecer entrava pela jane-
la leste.
      Ele   caiu   em   um   sono   pesado,   mas   inquieto   e   dormiu   durante   muito
tempo; e, quando a sra. Dempster despertou-o na manhã já bem avançada,
pareceu pouco à vontade e por alguns minutos não parecia perceber exata-
mente onde estava. Seu primeiro pedido surpreendeu a criada.
      “Sra. Dempster, enquanto eu estiver fora hoje, gostaria que a senhora
pegasse  a   escada   e   espanasse   aqueles   quadros,   especialmente   o   terceiro   a
partir da lareira. Quero ver como são.” No fim da tarde, Malcolmson traba-
lhou em seus livros na aléia sombreada, e a alegria do dia anterior retornou-
lhe à medida que transcorria o dia, e ele descobriu que sua leitura estava in-
do a bom passo. Conseguira solucionar  satisfatoriamente todos os proble-
mas que até então o frustravam e estava em um estado tão eufórico que fez
uma   visita   à   sra.   Witham   no  “Bom Viajante”.   Encontrou um   estranho na
aconchegante sala de estar com a proprietária, que lhe foi apresentado como
dr. Thornhill. Ela não estava muito à vontade, e esse fato, associado ao dilú-
vio  de perguntas da parte do dr. Thornhill, levou Malcolmson à conclusão
de que sua presença não era um acidente e portanto, sem formalidades, ele
disse:
      “Dr. Thornhill, com prazer responderei a qualquer pergunta que o se-
nhor quiser me fazer se me responder primeiro a uma.”
      O     doutor   pareceu    surpreso,    mas   sorriu   e  respondeu     de   imediato.
“Combinado! E qual é ela?”
      “A sra. Witham pediu-lhe que viesse, encontrasse-me e me aconselhas-
se?”

                                    

      O dr. Thornhill por um instante ficou espantado, e a sra. Witham en-
rubesceu violentamente e saiu; mas o doutor era uma pessoa franca e direta
e respondeu imediata e abertamente:
      “Sim,   mas   não   queria   que   o   senhor   soubesse.   Acho   que   foi   minha
pressa desajeitada que o fez suspeitar. Ela me disse que não gostava da idéia
de o senhor ficar sozinho naquela casa e que julgava que o senhor tomava
muito chá. Na verdade, ela quer que eu o  aconselhe a, se possível, desistir
do chá muito tarde à noite. Fui um estudante dedicado em minha época, e
portanto imagino poder tomar a liberdade de um acadêmico e, sem ofendê-
lo, aconselhá-lo na qualidade de alguém não muito estranho.”
      Malcolmson, com um sorriso aberto estendeu a mão.  “Aperte, como
dizem na América!”, disse. “Devo agradecer-lhe pela gentileza e também à
sra. Witham, e sua gentileza merece um retorno de minha parte. Prometo
não tomar mais chá forte... nenhum chá até que o senhor me permita. E que
irei para a cama esta noite à uma hora, no mais tardar. Está bem assim?”
      “Muitíssimo bem”, disse o doutor. “Agora, conte-nos tudo que obser-
vou   na  velha   casa”,   e   assim   Malcolmson   ali   mesmo   contou   com   detalhes
tudo que acontecera nas duas últimas noites. Ele foi interrompido de quan-
do em quando por exclamações da sra. Witham, até que finalmente, quando
narrou o episódio da Bíblia, a emoção crescente da proprietária exprimiu-se
num grito; e não foi senão depois de um bom copo de conhaque com água
que ela se recompôs. O dr. Thornhill ouviu com fisionomia cada vez mais
soturna e, quando a narrativa terminou e a sra. Witham se recuperou, per-
guntou:
      “O rato subiu sempre pelo cordão da campainha?”
      “Sempre.”
      “Imagino que o senhor  saiba”, disse o doutor, após uma pausa, “que
cordão é esse”.
      “Não, não sei!”
      “É”, disse o doutor lentamente, “a mesma corda que o carrasco usava
para as vítimas do rancor jurídico do Juiz!” Aqui ele foi interrompido por
um outro grito da sra. Witham, e tiveram que providenciar sua recuperação.

                                

Malcolmson, após ter olhado para seu relógio e descoberto que estava perto
da hora do jantar, fora para casa antes do completo restabelecimento da sra.
Witham.
      Quando a sra. Witham conseguiu recompor-se, ela praticamente inves-
tiu contra o doutor com perguntas agressivas acerca do que ele quisera dizer
ao pôr idéias tão horríveis na cabeça do pobre jovem.  “Ele já tem o sufici-
ente lá para aborrecê-lo”, acrescentou ela. O dr. Thornhill replicou:
      “Minha cara senhora, meu propósito foi muito claro! Queria chamar a
atenção  dele   para   o   cordão   da   campainha   e   a   necessidade   de   mantê-la   lá.
Pode ser que ele  esteja realmente exausto e tenha se dedicado demais aos
estudos, embora eu possa dizer que parece ser o jovem mais forte e saudá-
vel, mental e fisicamente, que já vi.  Mas os ratos... e aquela insinuação do
diabo...” O doutor balançou a cabeça e continuou. “Eu queria oferecer-me
para ficar esta noite com ele, mas tive certeza  de que teria sido motivo de
ofensa. Ele pode, à noite, ser tomado de estranho medo ou alucinação; e se
ele o for, quero que ele puxe aquele cordão. Como ele está sozinho, isso nos
alertará   e   poderemos   chegar   a   tempo   de   socorrê-lo.   Ficarei  acordado   até
bem tarde esta noite e de ouvidos atentos. Não se assuste se Benchurch ti-
ver uma surpresa antes do amanhecer.”
      “Doutor, o que o senhor quer dizer? O que quer dizer?”
      “Quero dizer o seguinte: que é possível — não, mais provável — que
ouçamos a grande campainha da Casa do Juiz esta noite”, e a saída do dou-
tor foi tão significativa quanto se poderia imaginar.
      Quando Malcolmson chegou à casa, descobriu que era um pouco mais
tarde do que o habitual, e a sra. Dempster já se fora: as regras do asilo de
Greenhow não deveriam ser desobedecidas. Ele ficou feliz em ver o lugar
limpo e arrumado, com um fogo agradável e um lampião bem ajustado. A
noite estava mais fria do que se poderia esperar em abril, e um vento forte
soprava e sua força aumentava com tal rapidez que se podia prever com cer-
teza uma tempestade durante a noite. Por alguns minutos após sua entrada,
o ruído dos ratos cessou; mas, assim que eles se acostumaram à sua presen-
ça,   começaram   novamente.   Ele   ficou   contente   ao   ouvi-los,  pois   teve   uma

                                       
vez mais a sensação de companhia que o ruído lhe dava, e veio-lhe rápida e
novamente à mente o estranho fato de que eles apenas silenciavam para avi-
sar que o outro — o grande rato com olhos malévolos — entrava em cena.
Somente o lampião para leitura estava aceso, e sua sombra verde mantinha
no escuro o teto e a parte superior da sala, dando à luz agradável da lareira,
que se difundia sobre o chão e brilhava no tecido branco que recobria a ex-
tremidade da mesa, uma qualidade acolhedora e alegre. Malcolmson sentou-
se para jantar com bom apetite e espírito animado. Após o jantar e um  ci-
garro, ele sentou-se com o firme propósito de estudar, determinado a não
deixar que nada o perturbasse, pois se lembrava da promessa ao doutor, e
decidiu aproveitar ao máximo o tempo restante.
      Durante   mais   ou   menos   uma   hora,   ele   trabalhou   bem,   e   então   seus
pensamentos começaram a afastar-se de seus livros. As circunstâncias atuais
a sua volta, as exigências de sua atenção física e sua susceptibilidade nervosa
eram inegáveis. A essa altura, o vento transformara-se em ventania, e a ven-
tania, em tempestade. A velha casa, sólida que fosse, parecia tremer em suas
fundações,   e   a   tempestade  rugia   e   intensificava-se   através   de   suas   muitas
chaminés e suas bizarras torres antigas, produzindo sons estranhos, sobre-
naturais, nas salas e corredores vazios. Até mesmo a grande campainha no
teto deve ter sentido a força do vento, pois o cordão levantou-se e caiu ligei-
ramente, como se o sino fosse movido um pouco de tempos em tempos, e a
corda flexível caiu no assoalho de carvalho com um som forte e oco.
      Quando Malcolmson o ouviu, lembrou-se das palavras do doutor: “É a
corda que o carrasco usava para as vítimas do rancor jurídico do Juiz”. Diri-
giu-se ao canto da lareira e pegou-a para examiná-la. Dela emanava uma es-
pécie de atração irresistível, e enquanto esteve lá, ele perdeu-se por um mo-
mento em especulações acerca de quem eram essas vítimas e do desejo si-
nistro do Juiz de manter uma lembrança tão horrível sob seus olhos. En-
quanto estava lá, o balançar da campainha no teto ainda levantava a corda
de quando em quando; mas então veio uma nova sensação — uma espécie
de tremor na corda, como se algo estivesse a mover-se ao longo dela.

                                     

      Olhando   instintivamente   para   cima,   Malcolmson   viu   o   grande   rato
descendo lentamente em sua direção, encarando-o fixamente. Ele largou a
corda e pulou para trás, resmungando uma maldição, e o rato, virando-se,
subiu novamente pela corda e desapareceu; no mesmo instante Malcolmson
percebeu que o ruído dos ratos, que havia cessado por um certo tempo, re-
começou.
      Tudo isso o pôs a pensar, e ocorreu-lhe que não investigara a toca do
rato ou  examinado os quadros, como pretendia. Acendeu o outro lampião
sem copa e, erguendo-o, dirigiu-se para o terceiro quadro ao lado da lareira,
no lado direito onde vira o rato desaparecer na noite anterior.
      Assim que olhou, ele deu um salto para trás tão de repente que quase
deixou  cair   o   lampião,   e   uma   palidez   mortal   espalhou-se   pelo   seu   rosto.
Seus joelhos tremeram, grossas gotas de suor desceram-lhe pela testa e ele
estremeceu como um álamo. Mas ele era jovem e corajoso, e recompôs-se;
após uma pausa de alguns segundos, deu novamente alguns passos à frente,
levantou o lampião e examinou o quadro, que fora espanado e lavado e ago-
ra estava bem visível.
      Era de um juiz, vestido com sua toga púrpura e arminho. Seu rosto era
duro e cruel, mau, astucioso e vingativo, com uma boca sensual, nariz adun-
co e rubincundo, com a forma do bico de uma ave predadora. O restante do
rosto era de cor  cadavérica. Os olhos possuíam um brilho singular e uma
expressão terrivelmente maligna. Ao olhar para eles, Malcolmson gelou, pois
enxergou ali a própria imitação dos olhos do grande rato. O candeeiro quase
caiu de sua mão, ele viu o rato com seus olhos malévolos espiando através
do buraco no canto do quadro e notou o súbito cessar do ruído dos outros
ratos. Contudo, ele se recompôs e continuou a examinar o quadro.
      O Juiz estava sentado em uma grande cadeira de carvalho com espal-
dar   alto,  no   lado   direito   de   uma   grande   lareira   de   pedra,   onde,   no   canto,
pendia uma corda desde o teto, a extremidade enrolada no chão. Com uma
sensação   de   algo  semelhante   a   horror,   Malcolmson   reconheceu   a   cena   da
sala   como   estava   e   olhou  em   volta,   tomado   de   pavor,   como   se   esperasse

                                       
encontrar alguma estranha presença atrás de si. Então ele olhou para o can-
to da lareira — e com um grito deixou o lampião cair-lhe da mão.
      Lá, na cadeira do Juiz, com a corda pendendo atrás, estava sentado o
rato com os olhos malévolos do Juiz, agora intensificados e com laivos de-
moníacos. Salvo pelo rugido da tempestade, lá fora era tudo silêncio.
      O lampião caído despertou Malcolmson. Felizmente era de metal e, as-
sim, o óleo não espirrara. Todavia, a necessidade prática de cuidar dele ime-
diatamente  acalmou   o   seu   nervosismo.   Quando   ele   o   apagou,   enxugou   a
fronte e pensou por um instante.
      “Isso não vai bem”, disse consigo. “Se continuar assim, tornar-me-ei
um tolo insensato. Isso deve acabar! Prometi ao doutor que não tomaria chá.
De fato, ele tinha toda razão! Devo estar ficando doente dos nervos. Estra-
nho que não o notasse. Nunca me senti melhor em toda a minha vida. Mas
está tudo bem agora, e não me comportarei como um tolo novamente.”
      Então ele misturou um copo bem forte de conhaque e água e resoluta-
mente sentou-se para trabalhar.
      Era quase uma hora quando levantou os olhos do livro, perturbado pe-
lo súbito silêncio. Lá fora, o vento uivava e rugia mais alto do que nunca, e a
chuva atingia pesadamente as janelas, batendo como granizo no vidro; mas
dentro não se ouvia um som sequer, exceto o eco do vento, quando ele ru-
gia na grande chaminé, e de quando em quando silvavam uns poucos pingos
de chuva que desciam pela chaminé quando a tempestade amainava. O fogo
baixara   e   deixara   de   arder,   embora  lançasse   um   brilho   avermelhado.   Mal-
colmson prestou atenção e então ouviu um ruído leve, um guincho muito
fraco. Ele vinha do canto da sala onde pendia a corda, e ele julgou que fosse
o arrastar da corda no assoalho, ao balançar da campainha, que a levantava e
baixava. Ao olhar para cima, contudo, viu, iluminado vagamente, o grande
rato agarrado à corda e a roê-la. A corda já estava quase partida — ele podia
ver a cor mais clara onde as fibras estavam descobertas. Enquanto olhava, o
trabalho completou-se, e a extremidade cortada da corda caiu com estrépito
sobre   o   assoalho   de   carvalho,   enquanto,   por   um   instante,  o   grande  rato
permanecia   como   um   puxador   ou   uma   boda   no   fim   da   corda,   que   agora

                                       

começava a balançar para cá e para lá. Malcolmson sentiu por um momento
uma outra fisgada de terror enquanto pensou que agora a possibilidade de
chamar o mundo exterior em seu  socorro estava eliminada, mas uma raiva
intensa tomou seu lugar e, agarrando o livro que estivera lendo, arremessou-
o contra o rato. O golpe foi certeiro, mas antes que o projétil o alcançasse, o
rato caiu e atingiu o chão com um baque surdo. Malcolmson imediatamente
atirou-se em sua direção, mas ele safou-se e desapareceu na escuridão das
sombras da sala. Malcolmson  sentiu que seu trabalho havia terminado na-
quela noite, e decidiu, lá e então, variar a monotonia das ações por uma caça
ao rato e tirou a copa verde do lampião  para prover uma iluminação mais
ampla. Quando o fez, a penumbra da parte superior da sala se desfez, e ao
novo fluxo de luz, grande em comparação à escuridão anterior, os quadros
na parede mostraram-se claramente. De onde estava, Malcolmson viu exa-
tamente na parte oposta àquela em que estava o terceiro quadro na parede, à
direita da lareira. Esfregou os olhos surpreso e então um grande medo co-
meçou a tomá-lo.
      No centro do quadro, havia um grande remendo irregular de tela mar-
rom, tão novo como quando fora esticado na moldura. O fundo estava co-
mo antes, com a cadeira, o canto da chaminé e a corda, mas a figura do Juiz
desaparecera.
      Malcolmson,   quase   paralisado   num arrepio   de   horror,   virou-se  lenta-
mente   e  então   começou   a   sacudir-se   e   a   tremer  como   alguém   tomado   de
paralisia. Suas forças pareciam tê-lo abandonado, e  estava incapaz de ação
ou movimento e mal podia até mesmo pensar. Ele conseguia apenas ver e
ouvir.
      Lá, na grande cadeira de carvalho com espaldar alto, estava sentado o
Juiz, em sua toga escarlate com arminho, com seus olhos malévolos olhando
vingativamente   e   um   sorriso   de   triunfo   na   boca   resoluta,   cruel,   enquanto
levantava  com as mãos um barrete negro. Malcolmson sentiu como se seu
sangue fugisse do coração, como alguém em momentos de prolongada ex-
pectativa. Uma cantiga soava em seus ouvidos. Fora, ele podia ouvir o rugi-
do e o troar da tempestade e, através dele, varrido pela tempestade, vinha o

                                     

soar da meia-noite pelos grandes sinos da praça do mercado. Ele permane-
ceu, por um espaço de tempo que lhe pareceu interminável, imóvel como
uma estátua e com olhos arregalados, aterrorizados, sem fôlego. Quando o
relógio bateu, o sorriso de triunfo no rosto do Juiz intensificou-se e ao últi-
mo toque da meia-noite ele colocou o barrete negro em sua cabeça. Lenta e
deliberadamente, o Juiz levantou-se de sua cadeira e apanhou o pedaço de
corda da campainha que jazia no chão, envolveu-o nas mãos como se lhe
agradasse seu toque e então, com determinação, começou a enrolar uma das
extremidades, dando-lhe a forma de um laço. Ele o apertou e testou com o
pé, puxando forte até ficar satisfeito e então fez um nó corrediço, que segu-
rou com a mão. Depois, ele começou a mover-se ao longo da mesa, no lado
oposto ao de Malcolmson, mantendo nele os olhos até passar por ele, quan-
do, com um movimento rápido, postou-se em frente à porta. Malcolmson
então começou a sentir que estava preso em uma armadilha e tentou pensar
no que poderia fazer. Havia algo de fascinante nos olhos do Juiz, dos quais
ele não conseguia desviar os seus, obrigando-o a encará-lo. Viu o Juiz apro-
ximar-se — ainda no meio do caminho entre ele e a porta — levantar o laço
e jogá-lo em sua direção como que para prendê-lo. Com um grande esforço
ele fez um movimento rápido para o lado e viu a corda cair a seu lado e ou-
viu-a bater contra o assoalho de carvalho. Novamente o Juiz levantou o laço
e tentou apanhá-lo, mantendo sempre seus olhos malévolos fixos nele, e a
cada   vez,   com   um   enorme   esforço, o   estudante  mal   conseguiu   desviar-se.
Assim foi por muitas vezes, o Juiz aparentemente nunca disposto a desistir e
a perder a calma, mas brincando como um gato com um rato. No clímax do
desespero, Malcolmson lançou um rápido olhar a sua volta. A luz do lampi-
ão parecia ter reavivado e havia luz bastante na sala. Nos muitos buracos de
rato e nas frestas e rachaduras dos lambris, ele viu os olhos dos ratos; e esse
aspecto, que era puramente físico, deu-lhe um vislumbre de consolo. Olhou
em volta e viu que a corda da grande campainha estava cheia de ratos. Cada
centímetro dela estava coberto e cada vez mais uma multidão deles escorria
do   pequeno  buraco   circular   no   forro,   de   onde   ela   saía,   de   tal   forma   que,
com seu peso, o sino começava a balançar.

                                     

      Ouça! Ela balançara até que o badalo tocou o sino. O som era muito
fraco, mas o sino estava apenas começando a balançar e aumentaria.
      Ao som, o Juiz, que estivera com os olhos fixos em Malcolmson,  o-
lhou para  cima e um repente de ira diabólica espalhou-se sobre seu rosto.
Seus olhos faiscaram como brasas ardentes e ele bateu os pés com um som
que   parecia   fazer   tremer   a  casa.   Um   terrível   troar   de   relâmpago   rebentou
acima quando ele levantou novamente a corda, enquanto os ratos continua-
vam a correr para cima e para baixo da corda, como que correndo contra o
tempo. Desta feita, em vez de atirá-la, ele aproximou-se de sua vítima e a-
briu o laço. Enquanto ele se aproximava, parecia haver algo paralisante na
sua própria presença, e Malcolmson permaneceu rígido como um cadáver.
Ele sentiu os dedos gelados tocarem sua garganta ao ajustar a corda. O laço
apertava cada vez mais. Então o Juiz, tomando em seus braços a forma rígi-
da do estudante, levantou-o e colocou-o sentado na cadeira de carvalho e,
subindo ao seu lado, estendeu a mão e agarrou a ponta da corda balouçante
da  campainha.   Quando   levantou   sua   mão,   os   ratos   fugiram   guinchando   e
desapareceram no buraco do teto. Tomando a ponta do laço que estava em
volta do pescoço de Malcolmson, atou-a à corda balouçante do sino e então,
descendo, empurrou para longe a cadeira.

                                          * * *

      Quando o sino da Casa do Juiz começou a soar, muita gente acatou ao
chamado. Luzes e tochas de diversos tipos surgiram e logo uma multidão
silenciosa correu ao local. Bateram com força à porta, mas não houve res-
posta. Arrombaram a porta e invadiram a grande sala de jantar, com o dou-
tor à frente.
      Na ponta da corda da grande campainha pendia o corpo do estudante
e, no rosto do Juiz, no quadro, havia um sorriso maligno.

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