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domingo, 7 de agosto de 2011

Edith Wharton-Os Olhos-Conto Fantasmagórico

 OS OLHOS



                                                                     Por:   Edith Wharton





Edith Wharton (nascida Edith Newbold Jones; Nova York, 24 de janeiro de 1862 – Saint-Brice-sous-Forêt, 11 de agosto de 1937) foi uma escritora americana. Venceu o prémio Pulitzer, em 1921, pelo romance The Age of Innocence (A Idade da Inocência).


                                           I

      Um conto de Fred Murchard — a narrativa de uma aparição estranha
—, naquela noite, após um ótimo jantar em casa de nosso amigo Culwin,
nos predispusera à discussão sobre fantasmas.
      Vista através da fumaça de nossos charutos e à luz soporativa dos ti-
ções da lareira, a biblioteca de Culwin, com suas paredes de carvalho e anti-
gas guarnições escuras, compunha um bom cenário para tais invocações; e
uma vez que experiências pessoais de contactos com espectros, após a bri-
lhante introdução de Murchard,  eram as únicas bem-vindas para nós, pas-
samos a fazer um balanço de nosso grupo e a exigir contribuições de cada
um. Éramos oito, e sete conseguiram, de modo mais ou menos adequado,
cumprir   a   determinação.   Surpreendeu-nos   descobrir  que   podíamos   reunir
uma   tal   amostragem   de   impressões   sobrenaturais,   pois  nenhum   de   nós,   à
exceção do próprio Murchard e do jovem Phil Frenham — cuja história era
a mais superficial do grupo —, tinha o hábito de entregar nossas almas ao
invisível. E assim, tudo considerado, tínhamos  todos os motivos para  nos
orgulharmos de nossas sete “apresentações” e nenhum de nós teria jamais
sonhado em obter de nosso hóspede uma oitava.
      Nosso   velho   amigo,   o   sr.   Andrew Culwin,   que,   afundado   numa   pol-
trona, ouvia e piscava em meio aos anéis de fumaça com a condescendência
satisfeita de um sábio ídolo antigo, não era o tipo de homem que tais con-


tactos    provavelmente     escolheriam,     embora     tivesse  imaginação     suficiente
para desfrutar, sem inveja, dos altos privilégios de seus convidados. Por ida-
de   e   por   educação,   ele   pertencia   à  sólida   tradição   positivista,   e   sua   mente
fora formada nos dias da disputa heróica entre a física e a metafísica. Porém
ele fora, então e sempre, essencialmente um espectador, um observador dis-
tante e bem-humorado do espetáculo da variedade imensamente desnortea-
dora   da   vida,   escapulindo   de   seu   canto,   de   tempos   em  tempos,   para   um
mergulho na jovialidade imperante nos fundos da casa, mas  nunca, que se
soubesse, mostrando o mínimo desejo de saltar para o palco e pegar  uma
“deixa”.
      Entre seus contemporâneos, pairava uma vaga tradição de ter ele, em
época remota e em um clima romântico, sido ferido em um duelo; mas essa
lenda não se acordava mais ao que os mais jovens conheciam de sua perso-
nalidade   do   que   a  afirmação   de   minha   mãe   de   que   ele  fora  outrora  “um
homenzinho encantador, com belos olhos” correspondia a qualquer recons-
tituição possível de sua fisionomia seca e contrariada.
      “Sua   aparência   nunca   deve   ter   sido  diferente   de   um   feixe   de   varas”, 
dissera Murchard uma vez. “Ou melhor, de uma tora fosforescente”, corri-
giu alguém; e reconhecemos o acerto dessa descrição de seu tronco pequeno
e atarracado, com o piscar avermelhado dos olhos num rosto semelhante a
uma casca sarapintada. Ele  sempre desfrutara de um ócio que acalentara e
protegera em vez de dissipá-lo em vãs atividades. Suas horas cuidadosamen-
te preservadas haviam sido dedicadas ao cultivo de uma bela inteligência e
de uns poucos hábitos judiciosamente selecionados; e nenhuma das pertur-
bações comuns à experiência humana parecia ter cruzado seu Armamento.
Todavia,  sua inspeção impassível do universo não lhe  aumentara o apreço
por aquele experimento dispendioso, e seu estudo da raça  humana parecia
tê-lo levado à conclusão de que todos os homens eram supérfluos, e as mu-
lheres, necessárias apenas porque alguém tinha de cozinhar. Sobre a impor-
tância desse ponto, suas convicções eram absolutas, e a gastronomia era a
única ciência que ele reverenciava como a um dogma. Deve-se convir que
seus jantares íntimos constituíam um forte argumento em favor dessa opini-


ão, além de ser um motivo —  embora não o principal — da fidelidade de
seus amigos.
      Espiritualmente,   ele   exercia   uma   hospitalidade   menos   sedutora,   mas
não menos estimulante. Seu espírito era como um foro, ou algum lugar de
reuniões aberto para a troca de idéias: algo frio e exposto a correntes de ar,
mas elegante, espaçoso e pacífico — uma espécie de bosque acadêmico que
perdera   todas   as  folhas.   Nessa   área   privilegiada,   uns   doze   costumávamos
exercitar nossos músculos e abrir nossos pulmões;  e, como que para pro-
longar tanto quanto possível a tradição do que sentíamos ser uma instituição
em extinção, um ou dois neófitos eram vez por outra adicionados ao grupo.
      O jovem Phil Frenham era o último, o mais interessante desses nova-
tos e um bom exemplo da afirmação algo mórbida de que nosso velho ami-
go “gostava dos  suculentos”. O fato, indubitavelmente, é que Culwin, não
obstante toda a sua secura espiritual, apreciava as qualidades líricas da juven-
tude. Como ele era um epicurista bom demais para beliscar as flores da alma
que reunia em seu jardim, sua amizade não constituía uma influência deleté-
ria; pelo contrário, obrigava a idéia jovem a uma florescência mais robusta.
E em Phil Frenham ele encontrara um belo objeto de experimento. O rapaz
era   realmente   inteligente,   e   a   robustez  de   sua   natureza   era   como   a   massa
pura   sob   um   esmalte   delicado.   Culwin   pescara-o  da   densa   névoa   de   uma
família embotada e o empurrara a um cume em Darien; e a aventura absolu-
tamente não o ferira. Com efeito, a habilidade com que Culwin conseguira
estimular sua curiosidade sem privá-la das tenras flores da admiração pareci-
a-me uma resposta suficiente à imagem de bicho-papão que dele fazia Mur-
chard. Nada havia de febril na florescência de Frenham, e seu velho amigo
não encostara um dedo nas imbecilidades sagradas. Não havia melhor prova
disso do que o fato de Frenham ainda reverenciá-las em Culwin.
      “Existe um lado seu que vocês, meus caros, não vêem. Eu acredito na-
quela história do duelo!”, declarava ele; e era a própria essência dessa crença
que deve tê-lo induzido —  justamente quando nosso grupo estava se dis-
persando  —  a voltar-se   para   nosso anfitrião   com   a   absurda   exigência:  “E
agora você tem de nos contar sobre o seu fantasma!”

                                    

      A porta de saída fechara-se depois de Murchard e os demais; restáva-
mos apenas Frenham e eu; e o solícito criado que supervisionava as Parcas
de Culwin, após trazer um novo suprimento de água gasosa, fora laconica-
mente dispensado.
      A   sociabilidade   de   Culwin   era   uma   flor   noturna,   e   sabíamos   que   ele
aguardava  que o núcleo de seu grupo se fechasse a sua volta após a meia-
noite. Mas o pedido de Frenham pareceu desconcertá-lo de modo cômico, e
ele se levantou da cadeira na qual acabara de se sentar após suas despedidas
no vestíbulo.
      “Meu   fantasma?   Você   acha   que   sou   tolo   o   bastante   para   me   dar   ao
trabalho de ter um, quando há tantos outros encantadores nos armários de
meus amigos? — Tome mais um charuto”, disse ele, voltando-se para mim
com uma risada.
      Frenham riu também, aproximando sua figura alta e delgada da cornija
da lareira enquanto voltava o rosto para seu amigo baixo e eriçado.
      “Ah!”, disse ele, “você nunca estaria disposto a compartilhá-lo, se en-
contrasse um de que realmente gostasse.”
      Culwin mergulhara de volta em sua poltrona, a cabeça lanosa encaixa-
da no espaldar em seu buraco habitual, os olhinhos luzindo fracamente so-
bre um charuto novo.
      “Gostasse... gostasse? Deus meu!”, rosnou.
      “Ah!, então você tem!”, atirou-lhe Frenham no mesmo instante, com
um olhar triunfante de soslaio para mim; mas Culwin escondeu-se como um
gnomo  em suas almofadas, dissimulando-se numa nuvem protetora de fu-
maça.
      “De   que   adianta   negá-lo?   Você   viu   tudo,   e   portanto   obviamente   viu
um fantasma!”, insistiu seu jovem amigo, falando intrepidamente com a nu-
vem. “Ou, se você não viu um, é apenas por que viu dois!”
      A forma de desafio pareceu atingir nosso anfitrião. Ele lançou sua ca-
beça   para  fora   da   névoa  com   um  movimento   esquisito  semelhante   a  uma
tartaruga que por vezes fazia e piscou aprovadoramente para Frenham.


      “Sim”, ele subitamente arremessou-se para nós, com uma gargalhada
aguda; “apenas porque vi dois!”
      As palavras foram tão inesperadas que caíram num silêncio impenetrá-
vel  enquanto   continuávamos   a   nos   fitar   com   olhos   arregalados   acima   da
cabeça de Culwin, e Culwin fitava seus fantasmas. Por fim, Frenham, sem
dizer uma palavra, lançou-se à cadeira do outro lado da lareira e inclinou-se
para frente com seu sorriso de ouvinte...

                                            II

      “Ah!, é claro que não são apenas fantasmas de espetáculos — um cole-
cionador nunca teria muita consideração por eles... Não despertemos suas
esperanças...  seu único mérito é sua força numérica: o fato excepcional de
serem dois. Mas, contra isso, estou pronto a admitir que em qualquer ins-
tante poderia provavelmente tê-los exorcizado a ambos, pedindo uma recei-
ta a meu médico, ou pedindo óculos ao meu oculista. Somente que, como
eu nunca poderia me decidir a ir ou ao médico ou ao oculista — indeciso
quanto   a   estar   sofrendo   de   uma   ilusão   óptica  ou   digestiva —,   deixei   que
continuassem   sua   interessante   vida   dupla,  embora   por  vezes   tornassem   a
minha extremamente desconfortável...
      “Sim  —  desconfortável;   e   vocês   sabem   como   odeio   o   desconforto!
Mas isso era parte de meu tolo orgulho, quando a coisa começou: não admi-
tir que eu poderia ser perturbado pela questão trivial de ver dois...
      “E também não tinha nenhum motivo, realmente, para supor que esti-
vesse  doente. Tanto quanto soubesse, eu estava apenas entediado — terri-
velmente  entediado. Mas fazia parte de meu tédio —  lembro-me —  estar
me sentindo tão incomumente bem, e não sabia como diabos gastar minha
energia excedente. Eu chegara de uma longa viagem — à América do Sul e
ao México — e me estabelecera, para o inverno, perto de Nova York, com
uma velha tia que conhecera Washington Irving e se correspondia com N.P.


Willis. Ela vivia, não muito longe de Irvington, numa villa gótica úmida, cir-
cundada por abetos noruegueses, e na forma exata de ma cabeleira na forma
de um emblema memorial. Sua aparência pessoal era semelhante a essa ima-
gem, e sua própria cabeleira —  da qual pouco restara —  poderia ter sido
sacrificada à manufatura do emblema.
       “Eu havia chegado ao fim de um ano agitado, com dívidas considerá-
veis em dinheiro e emoções a compensar; e teoricamente parecia que a hos-
pitalidade indulgente de minha tia seria tão benéfica aos meus nervos quan-
to à minha bolsa. Mas o diabo é que, assim que me senti seguro e abrigado,
minhas energias começaram a renascer, e como lhes dar expansão dentro de
um   emblema   memorial?  Eu tinha,   àquela   época,   a   doce  ilusão   de  que   um
esforço   intelectual   contínuo  podia   ocupar   todas   as   atividades   de   um   ho-
mem; e decidi escrever um grande livro — não lembro sobre o quê. Minha
tia, sensibilizada com meu plano, cedeu-me  sua biblioteca gótica, cheia de
clássicos com capas negras e daguerreótipos de celebridades desaparecidas,
e   sentei-me   à   minha   escrivaninha   para   conquistar   um  lugar   entre   elas.   E,
para facilitar minha tarefa, ela cedeu-me uma prima para copiar meu manus-
crito.
       “A prima era uma boa moça, e na minha idéia uma boa moça era justa-
mente  o   que   necessitava   para   restaurar   minha   fé   na   natureza   humana  —
principalmente em mim mesmo. Ela não era nem bonita nem inteligente —
pobre Alice Norwell! —, mas despertava-me o interesse ver qualquer mu-
lher satisfeita em ser tão desinteressante e queria descobrir o segredo de sua
satisfação. Mas eu o fiz de forma bastante cruel e estraguei tudo — ah, por
um   momento   apenas!   Não   há  presunção   em   dizê-lo,   pois   a   pobre   garota
jamais vira senão primos...
       “Muito bem, eu lamentava o que fizera, é claro, e tolamente me preo-
cupei em encontrar um meio de consertá-lo. Ela estava hospedada na casa e
uma   noite,  após   minha   tia   ter-se  retirado   para   dormir,   desceu   à biblioteca
para apanhar um livro que colocara no lugar errado, como qualquer heroína
inexperiente, nas  prateleiras atrás  de nós. Ela estava com o nariz rosado e
agitada, e subitamente ocorreu-me que seus cabelos, embora fossem abun-


dantes e bonitos, iriam parecer exatamente com os de minha tia quando en-
velhecesse. Fiquei contente por tê-lo notado, pois isso me tornava mais fácil
fazer o que era certo; e, quando encontrei o livro que ela não havia perdido,
contei-lhe que partiria para a Europa naquela semana.
      “A Europa era terrivelmente distante naqueles dias, e Alice imediata-
mente soube o que eu queria dizer. Ela não o tomou absolutamente como
eu esperava — teria sido mais fácil se o tivesse feito. Segurou seu livro com
muita força e virou-se por um instante para aumentar a chama do lampião
em   minha   escrivaninha  —  que  possuía   uma   redoma   de   vidro   fosco   com
folhas de videira e pingentes de vidro em volta da extremidade, lembro-me.
Então   ela   voltou,   estendeu   a   mão  e  disse:  „Adeus‟. E   enquanto   o  dizia  o-
lhou-me com olhos sinceros e me beijou. Eu nunca sentira nada tão puro,
tímido e valente quanto  seu beijo. Era pior do que qualquer reprimenda e
me fez sentir vergonha por merecer dela uma censura. Disse a mim mesmo:
„Caso-me com ela, e quando minha tia morrer ela nos deixará esta casa, e
então sentar-me-ei aqui, à escrivaninha, e continuarei meu livro; e Alice sen-
tar-se-á ali, com seu bordado, e olhará para mim como está olhando agora.
E a vida continuará assim por muitos anos‟. A perspectiva me amedrontou
um pouco, mas, na ocasião, não tanto quanto fazer algo que a ferisse, e dez
minutos mais tarde ela tinha meu anel de selo em seu dedo e minha promes-
sa de que, quando viajasse para o exterior, ela iria comigo.
      “Vocês   podem  estar   se perguntando   por  que   me   estendo   nesse  inci-
dente familiar. É porque a noite em que isso ocorreu foi justamente aquela
em que primeiro tive a visão estranha de que falei. Como eu era, naquela
época, um crente fervoroso na seqüência necessária entre causa e efeito, na-
turalmente tentei fazer algum tipo de ligação entre o que acabara de me a-
contecer   na   biblioteca   de  minha   tia   e   o   que   estava   por   acontecer  naquela
mesma noite, algumas horas mais tarde; e portanto a coincidência dos dois
eventos sempre permaneceu em meu espírito.
      “Subi para o quarto com o coração bastante apertado, pois me curvara
ao peso da primeira boa ação que jamais  cometera conscientemente e, jo-
vem, compreendera a gravidade de minha situação. Não imaginem por isso

                                       

que eu fora até então um instrumento de destruição. Eu era simplesmente
um jovem inofensivo, que seguira sua inclinação e declinara de qualquer co-
laboração com a Providência. Agora, pusera-me a promover a ordem moral
do   mundo   e   sentia-me  exatamente   como   o   espectador   confiante   que   deu
seu relógio de ouro ao prestidigitador e não sabe em que estado ele o rece-
berá de volta quando o truque  acabar... No entanto, um brilho de retidão
mitigava   meus   receios,   e   disse   a   mim  mesmo,   enquanto   me   despia,   que,
quando me habituasse a ser bom, isso provavelmente não me faria tão ner-
voso quanto no início. Já na cama, depois de assoprar a chama do candeeiro,
senti que realmente estava me acostumando com  a idéia e que, até aquele
ponto do caminho, a sensação não diferia de afundar em um dos colchões
de lã mais macios de minha tia.
      “Com essa imagem, fechei os olhos, e o momento em que os abri deve
ter sido bem mais tarde, pois meu quarto ficara frio e a noite estava extre-
mamente silenciosa. Fui despertado subitamente pelo sentimento que todos
conhecemos — o sentimento de que havia algo perto de mim que não esti-
vera   lá   antes,   quando  adormecera.   Sentei-me   e   perscrutei   a   escuridão.   O
quarto   estava   escuro   como  breu,  e a   princípio   nada   vi;   mas   gradualmente
uma   luminosidade   fraca   e   indistinta  aos   pés   da   cama   transformou-se   em
dois olhos que me encaravam. Não consegui ver o rosto que os continha —
em   virtude   da   escuridão,   imaginei  —,   mas,   enquanto  olhava,   os   olhos   se
tornaram cada vez mais distintos: eles emanavam uma luz própria.
      “A sensação de ser assim objeto de um olhar fixo estava longe de a-
gradável, e vocês podem imaginar que meu primeiro impulso teria sido pu-
lar da cama e me arremessar contra a figura invisível presa aos olhos. Mas
não foi — meu impulso foi simplesmente ficar deitado imóvel... Não sei se
isso se deveu à certeza de que, se eu pulasse da cama, me lançaria ao nada...
ou meramente ao efeito paralisante dos olhos em si. Eram os olhos mais vis
que jamais vira: os olhos de um homem — mas que homem! Meu primeiro
pensamento foi que ele devia ser terrivelmente velho. As órbitas eram fun-
das, e as pálpebras grossas e estriadas de vermelho pendiam sobre os globos
oculares   como   cortinas   cujos   cordões   estão   quebrados. Uma   pálpebra   era


mais caída do que a outra, e o efeito era do olhar de soslaio de um trapacei-
ro; e, entre essas duas dobras de carne flácida, com suas escassas cerdas de
cílios, os olhos em si, pequenos discos vítreos com um círculo semelhante à
ágata em volta das pupilas, olhava como seixos do mar nas garras de uma
estrelado-mar.
      “Mas a idade dos olhos não era seu traço mais desagradável. O que me
causou  repugnância   foi   sua   expressão   de   segurança   malévola.   Não   sei   de
que outra forma descrever o fato de me parecerem pertencer a um homem
que perpetrara muito mal em vida, mas sempre se mantivera rigorosamente
dentro das linhas de perigo. Não eram os olhos de um covarde, mas de al-
guém esperto demais para se arriscar;  e meu estômago se revirou ante seu
olhar de vil astúcia. Mas isso não era o pior; pois enquanto continuávamos a
nos inspecionar mutuamente, neles vi um traço  de leve derisão, e senti ser
eu mesmo seu objeto.
      “Diante disso, fui tomado de um impulso de ira que me catapultou pa-
ra fora da cama e me lançou diretamente contra a forma invisível, a seus pés.
Mas obviamente não havia nenhuma forma lá, e meus punhos golpearam o
vazio.  Envergonhado e gelado, tateei em busca de um fósforo e acendi os
candeeiros. O quarto estava exatamente como de costume — como eu sabia
que estaria; rastejei de volta para a cama e apaguei as luzes.
      “Logo que o quarto ficou novamente escuro, os olhos reapareceram; e
agora me esforço para explicá-los sob princípios científicos. De início jul-
guei que a ilusão poderia ter sido causada pelo brilho das últimas brasas no
fumeiro; mas a lareira estava do outro lado de minha cama e, nessa posição,
o fogo não poderia ser refletido no espelho de meu lavatório, que era o úni-
co espelho do quarto. Então me ocorreu que eu podia ter sido iludido pelo
reflexo das brasas em algum pedaço polido de madeira ou metal; e embora
não   conseguisse  descobrir   qualquer  objeto   desse   tipo   em   minha   linha   de
visão,   levantei-me   novamente,   tateei   meu  caminho   à   lareira   e   cobri   o   que
restava do fogo. Mas assim que voltei para a cama os olhos reapareceram a
seus pés.

                                  
       “Tratava-se de uma alucinação, então: isso estava claro. Mas o fato de
que não se devia a qualquer engano exterior não os tornavam nem um pou-
co mais agradáveis à vista. Pois, se era uma projeção de minha consciência
interior,   que   diabo   de  problema   havia   com   aquele   órgão?   Eu   mergulhara
suficientemente no mistério dos estados patológicos mórbidos para conce-
ber as condições sob as quais um espírito investigativo poderia ficar exposto
a   tais   admoestações   noturnas;   mas   não  conseguia   adequá-lo   ao   meu   caso
atual. Nunca me sentira mais normal, espiritual e fisicamente; e o único fato
incomum em minha situação —  o de haver garantido a felicidade de uma
moça afável — não parecia do tipo que convocasse espíritos impuros à vol-
ta de meu travesseiro. Mas lá estavam os olhos ainda a me fitar...
       “Fechei os meus e tentei evocar uma visão dos de Alice Norwell. Não
eram olhos excepcionais, mas eram tão saudáveis como água cristalina, e se
ela tivesse tido mais imaginação — ou cílios mais longos —  sua expressão
poderia ter sido mais interessante. Tais como eram, não evidenciavam muito
poder, e em poucos minutos percebi que se haviam misteriosamente trans-
formado nos olhos aos pés da cama. O que mais me exasperava era antes
senti-los a me fitar através de minhas  pálpebras fechadas do que vê-los, e
abri novamente os meus e olhei diretamente para seu odioso olhar fixo...
       “E assim foi durante a noite toda, e não consigo descrever-lhes aquela
noite, nem dizer quanto durou. Alguma vez  já se viram deitados na cama,
bem   despertos,  e   tentaram   manter   os   olhos   fechados,   sabendo   que   se   os
abrissem veriam algo que  temessem e detestassem? Parece fácil, mas é in-
fernalmente difícil. Aqueles olhos permaneciam lá e me atraíam. Tive a verti-
ge de  l’abîme, e suas pálpebras vermelhas eram a borda do meu abismo... Eu
vivera horas de aflição anteriormente: horas em que sentira o hálito do peri-
go   em   meu pescoço;  mas nunca   esse   tipo   de  tensão.  Não  é   que os   olhos
fossem tão terríveis; não possuíam a majestade dos poderes das trevas. Mas
tinham — como direi? — um efeito físico que era o equivalente de um mau
odor: seu olhar deixava uma mancha como a de uma lesma. E, de qualquer
modo, eu não compreendia o que tinham a ver comigo —  e eu fitava-os,
fitava-os, tentando descobrir...


      “Não sei que efeito eles estavam tentando produzir; mas seu efeito real
foi me fazer arrumar minha mala e correr para a cidade na manhã seguinte.
Deixei um bilhete para minha tia, explicando que estava doente e fora ver
meu   médico;   de  fato,  eu   me  sentia realmente   muito   mal —  parecia   que   a
noite esvaíra todo o meu  sangue. Mas quando cheguei à cidade não fui ao
consultório médico. Fui até os aposentos de um amigo, atirei-me numa ca-
ma e dormi por dez horas celestiais. Quando acordei, era o meio da noite, e
gelei diante do pensamento do que poderia estar me esperando. Sentei-me,
tremendo,   e   perscrutei   a   escuridão;   mas   nenhuma  mudança   havia   em   sua
abençoada superfície, e, quando vi que os olhos não estavam lá, caí nova-
mente em outro longo sono.
      “Eu não deixara nenhum bilhete para Alice quando fugira, porque pre-
tendia voltar na manhã seguinte. Mas na manhã seguinte eu estava exausto
demais para me mover. À medida que o dia passava, a exaustão aumentou,
em vez de ceder como a lassidão deixada por uma noite comum de insônia:
o efeito dos olhos parecia ser acumulativo, e o pensamento de vê-los nova-
mente tornou-se intolerável. Durante dois dias lutei com meu pavor; mas na
terceira   noite   me   recompus   e  decidi   voltar   na   manhã   seguinte.   Senti-me
muito mais feliz assim que tomei a decisão, pois sabia que meu súbito desa-
parecimento e a estranheza por não receber  nenhuma carta minha deviam
ter sido muito dolorosos para a pobre Alice. Naquela noite, fui para a cama
com o espírito tranqüilo e adormeci quase imediatamente; mas no meio da
noite acordei, e lá estavam os olhos...
      “Bem, eu simplesmente não conseguia encará-los; e em vez de voltar
para a casa de minha tia amontoei algumas coisas em uma mala e saltei para
o   primeiro  vapor   para   a   Inglaterra.   Estava   tão  exausto   quando   cheguei   a
bordo que me arrastei para meu beliche e dormi quase todo o caminho, e
não tenho palavras para descrever  a felicidade que sentia ao despertar da-
quelas longas estiradas de sono sem sonhos  e olhar confiantemente para a
escuridão, sabendo que não veria os olhos...
      “Permaneci no exterior durante um ano, e depois mais um, e durante
esse tempo nunca os vi sequer de relance. Era um motivo suficiente para

                                    

prolongar minha estada, ainda que fosse em uma ilha deserta. Um outro era,
obviamente, que eu viera a perceber com a máxima clareza, durante a via-
gem, a loucura, a  completa impossibilidade, de meu casamento com Alice
Norwell. O fato de ter demorado tanto a fazer essa descoberta aborreceu-
me e me fez desejar evitar  explicações. A felicidade  de escapar ao mesmo
tempo dos olhos e desse outro embaraço deu a minha liberdade um sabor
extraordinário; e quanto mais eu a saboreava mais apreciava seu gosto.
      “Os   olhos haviam   cavado   um   tal   buraco   em   minha   consciência   que,
durante um longo tempo, me pus a deslindar a natureza da aparição e a me
perguntar nervosamente se ela um dia retornaria. Mas, à medida que o tem-
po passava, perdi esse medo e retive apenas a precisão da imagem. E depois
até mesmo essa desapareceu.
      “O   segundo   ano   encontrou-me   estabelecido   em   Roma,   onde   estava
planejando, creio eu, escrever outro grande livro — uma obra definitiva so-
bre   as  influências   etruscas   na   arte   italiana.   De   qualquer   forma,   encontrara
um pretexto desse tipo para alugar um apartamento ensolarado na Piazza di
Spagna e perambular indefinidamente pelo Forum; e lá, uma manhã, apro-
ximou-se de mim um jovem encantador. Sob a cálida luz, esbelto, imberbe e
jacintino, ele poderia ter descido de um altar em ruínas — a Antínoo, diga-
mos —, mas, em vez disso, viera de Nova York, com uma carta (justamente
ela!) de Alice Norwell. A carta — a primeira que dela recebera desde nosso
rompimento — era simplesmente uma linha, apresentando seu jovem primo,
Gilbert Noyes, e solicitando que o ajudasse. Parece que o pobre rapaz „tinha
talento‟  „desejava   escrever‟;   e,   como   uma   família  empedernida   insistira   em
que   sua   caligrafia   tomasse   a   forma   de   escrituração   por  partidas   dobradas,
Alice interviera para lhe obter seis meses de sursis, durante os quais ele deve-
ria viajar com uma mesada insignificante e de alguma forma provar sua ha-
bilidade fundamental em aumentá-la com sua pena. De início, impressiona-
ram-me   as   condições   singulares   do   teste:   elas   me   pareciam   quase   tão  pe-
remptórias quanto um „ordálio‟ medieval. Depois, comoveu-me o fato de ela
tê-lo encaminhado a mim. Eu sempre desejara prestar-lhe algum favor, an-

                                       

tes para reabilitar-me aos meus próprios olhos do que aos dela; e ali estava
uma bela concretização de minha oportunidade.
      “Bem, imagino poder estabelecer o princípio geral de que gênios pre-
destinados geralmente apareçam a alguém sob o sol de primavera, no Fo-
rum, sob a forma de um dos deuses banidos. De qualquer modo, o pobre
Noyes não era um gênio predestinado. Mas tinha uma bela aparência e era
também uma companhia encantadora. Foi somente quando ele começou a
falar sobre literatura que meu coração fraquejou. Eu conhecia tão bem os
sintomas — as coisas que ele tinha „dentro de si‟ e as coisas fora dele que se
intrometiam! Eis o verdadeiro teste,  afinal. Era sempre —  marcadamente,
inevitavelmente, com a inexorabilidade de uma lei mecânica — a coisa erra-
da   que   o  afligia.   Acabei   por sentir   uma   fascinação mórbida   em  decidir   de
antemão exatamente que coisa errada ele escolhera; e adquiri uma habilidade
espantosa no jogo...
      “O   pior  era   que   sua  bêtise não   era   do   tipo  muito   óbvio.  As senhoras
que o encontravam em piqueniques julgavam-no um intelectual; e até mes-
mo em jantares ele passava por um jovem talentoso. Eu, que o tinha sob o
microscópio,   imaginava  de   quando   em   quando   a   possibilidade   de   que   ele
desenvolvesse algum tipo de  talento superficial, algo que ele poderia fazer
„render‟ e com que prosperar; e não era esse, afinal, meu ofício? Ele era tão
encantador —  continuou a ser tão encantador —  que reclamava todos os
meus sentimentos caridosos em defesa desse argumento; e durante os pri-
meiros poucos meses eu realmente acreditei que havia uma possibilidade...
      “Aqueles     meses    foram    deliciosos.  Noyes     estava  sempre    comigo,    e
quanto mais eu o via, mais gostava dele. Sua obtusidade constituía uma gra-
ça inata —  era tão bonita, na verdade, quanto seus cílios. E era tão alegre,
tão afetuoso e tão feliz comigo que lhe dizer a verdade teria sido quase tão
prazeroso quanto cortar a garganta de um animal indefeso. A princípio, eu
costumava me perguntar o que pusera naquela radiante cabeça a ilusão de-
testável de que ela continha um cérebro. Depois comecei a ver que isso era
simplesmente um mimetismo protetor —  um artifício instintivo para fugir
da vida familiar e de uma mesa de escritório. Não  que Gilbert —  querido


rapaz! — não acreditasse em si mesmo. Não havia vestígio de hipocrisia em
sua ficção. Ele estava seguro de que sua „vocação‟ era irresistível, ao passo
que para mim a graça salvadora de sua situação dramática era não o ser,  e
que um pouco de dinheiro, um pouco de ócio, um pouco de prazer o teriam
transformado num preguiçoso inofensivo. Infelizmente, contudo, não havia
esperança   de   dinheiro,   e   com   a   alternativa   sombria   da   mesa   de   escritório
diante dele ele não podia adiar suas tentativas na literatura. O material que
produziu era deplorável, e vejo agora que eu o sabia desde o início. Mesmo
assim, o despropósito  de decidir todo o destino de um homem com base
numa primeira tentativa parecia justificar o adiamento de meu veredicto e
talvez até mesmo um pouco de estímulo, pelo motivo de que a planta hu-
mana geralmente precisa de calor para florescer.
      “De   qualquer   modo,   continuei   a   agir   sob   esse   princípio   e   cheguei   a
conseguir-lhe uma extensão de seu prazo de sursis. Quando deixei Roma, ele
foi   comigo   e   gastamos  um  delicioso   verão   entre   Capri   e   Veneza.   Disse   a
mim mesmo: „Se ele tiver algo dentro de si, isso surgirá agora; e de fato sur-
giu.   Ele   nunca   esteve   mais   encantador  e   encantado.   Havia   momentos   em
nossa peregrinação em que a beleza nascida de um som murmurante parecia
realmente atravessar seu rosto —  mas apenas para resultar numa corrente
rasa da mais pálida das tintas...
      “Bem, chegara a hora de fechar a torneira; e eu sabia que não havia se-
não minha mão para fazê-lo. Voltáramos a Roma, e eu o acolhera em meu
apartamento, pois não   queria   deixá-lo   sozinho na   horrível pensão  quando
tivesse de enfrentar a necessidade de renunciar a sua ambição. Ele, é claro,
não confiara unicamente em meu próprio julgamento para decidir aconse-
lhá-lo a abandonar a literatura. Enviara seu material a várias pessoas — edi-
tores e críticos —, e eles sempre o haviam devolvido com a mesma depri-
mente ausência de comentários. Não havia, realmente, absolutamente nada
que se pudesse dizer sobre aquilo...
      “Confesso que nunca me senti mais vil do  que no dia em que decidi
esclarecer tudo com Gilbert. Era passável dizer a mim mesmo que era meu
dever estraçalhar as esperanças do pobre rapaz — mas que ato de crueldade


gratuita não se justificara  sob esse pretexto? Sempre me repugnou usurpar
as funções da Providência, e quando tenho de exercê-las prefiro indiscuti-
velmente que não seja em uma missão de destruição. Além disso, em última
instância, quem era eu para decidir, mesmo  após uma tentativa de um ano,
se o pobre Gilbert era capaz ou não?
      “Quanto mais eu olhava o papel que resolvera representar, menos gos-
tava dele; e gostava ainda menos quando Gilbert se sentava diante de mim,
com sua cabeça a refletir a luz do lampião, exatamente como a de Phil ago-
ra... Eu estivera examinando seu último manuscrito, e ele o sabia, ele sabia
que   seu futuro   dependia   de meu veredicto —  concordáramos   tacitamente
nisso. O manuscrito jazia entre nós, em minha mesa —  um romance, seu
primeiro romance, por favor! —, e ele estendeu o braço, pôs a mão sobre
ele e olhou-me com um olhar que continha toda a sua vida.
      “Levantei-me   e   pigarreei,   tentando   manter   os   olhos   afastados   de  seu
rosto e sobre o manuscrito.
      “ „O fato é, meu caro Gilbert‟, comecei...
      “Vi que ele ficara pálido, mas num instante pôs-se em pé e me fitou.
      “ „Ora vamos, não fique tão preocupado, meu caro amigo! Não sou tão
tremendamente crítico assim!‟ Suas mãos estavam sobre meus ombros, e ele
estava rindo para mim, do alto de sua estatura, com uma espécie de júbilo
terrivelmente afetado que senti como uma facada.
      “Ele era tão maravilhosamente corajoso que não pude prosseguir com
qualquer  lengalenga   sobre   meu   dever.   E   subitamente   me   ocorreu   que   eu
magoaria outros ao magoá-lo: a mim próprio, primeiramente, uma vez que
mandá-lo para casa significava perdê-lo; porém mais especialmente à pobre
Alice Norwell, a quem eu tão ansiosamente almejava provar minha boa-fé e
meu   imenso  desejo  de   servir-lhe.  De   fato,   decepcionar   Gilbert  equivaleria
quase a decepcioná-la duas vezes...
      “Mas minha intuição era semelhante àqueles clarões de relâmpago que
abarcam o horizonte por inteiro, e no mesmo instante vi no que eu poderia
estar   me   enredando  se   não   lhe   dissesse   a   verdade.   Disse   a   mim   mesmo:
„Vou ficar com ele para a vida toda — e jamais vira alguém, homem ou mu-

                                     

lher, a quem eu estava tão seguro de desejar naqueles termos. Bem, esse im-
pulso de egoísmo me decidiu. Ele me envergonhou, e para fugir dele dei um
salto que me aterrissou diretamente nos braços de Gilbert.
      “ „A coisa está muito boa, e você completamente errado!‟ gritei para e-
le; e  enquanto ele me abraçava e eu ria e tremia em seu abraço incrédulo,
tive por um minuto o sentimento de autocomplacência que deve acompa-
nhar os passos do justo. Que se dane tudo o mais, tornar felizes as pessoas
possui seus encantos...
      “Gilbert, é claro, desejava festejar sua emancipação de alguma forma
espetacular; mas despachei-o sozinho para dar vazão a suas emoções e fui
para   a  cama   para   dormir   até   que   as   minhas  se   acalmassem.   Enquanto me
despia, comecei a imaginar qual seria seu sabor logo mais... muitos dos sa-
bores   mais   refinados   não perduram!   Mesmo   assim,   eu   não   o   lamentava   e
pretendia esvaziar a garrafa, ainda que ela acabasse por se revelar insípida.
      “Já na cama,   a lembrança de seus olhos me fez sorrir durante muito
tempo...  aqueles   olhos   felizes...  Então   caí   no   sono,   e   quando   despertei   o
quarto estava  extremamente frio e sentei-me de um pulo... e lá estavam os
outros olhos...
      “Fazia   três   anos   que   os   vira,   mas   pensava   neles   tão   freqüentemente
que   cheguei  a   imaginar   que   eles   nunca   poderiam   me   pegar   desprevenido
novamente. Agora, com seu olhar vermelho de escárnio sobre mim, eu sou-
be que jamais acreditara realmente em seu retorno e que eu estava tão inde-
feso contra eles quanto sempre estivera... Como antes, era o despropósito
insano de sua chegada que os tornava tão medonhos. Que diabos queriam,
para se arremessarem contra mim numa hora como aquela? Eu vivera mais
ou menos despreocupadamente nos anos que se haviam seguido à primeira
vez que os vira, embora minhas piores imprudências não fossem tenebrosas
o suficiente para provocar as inquirições de seu olhar fixo infernal; mas nes-
se momento em especial eu estava no que se poderia chamar um estado de
graça; e me é impossível descrever o quanto esse fato aumentava o  horror
que deles emanava...


      “Mas não basta dizer que eram tão malévolos quanto antes: eram mais.
Mais malévolos justamente na proporção do que eu aprendera sobre a vida
no intervalo de tempo; por todas as implicações execráveis que minha maior
experiência lia neles. Eu via agora o que não vira anteriormente: que eram
olhos de uma série de pequenas torpezas lentamente acumuladas através dos
anos laboriosos. Sim... ocorreu-me que o que os tornava tão maus era que
haviam se tornado maus tão lentamente...
      “Lá estavam eles na escuridão, suas pálpebras inchadas caídas sobre os
pequenos bulbos aquosos movendo-se frouxamente nas órbitas, e a protu-
berância de carne flácida, que produzia uma sombra turva abaixo... e, à me-
dida que seu olhar embaciado se movia junto com meus movimentos, dei-
me conta de sua cumplicidade tácita, de um profundo e oculto entendimen-
to entre nós que era pior do que o primeiro choque de sua estranheza. Não
que eu os compreendesse; mas que eles tornavam tão claro que algum dia eu
poderia... Sim, essa era a pior parte, sem sombra de dúvida; e foi esse senti-
mento que se tornou mais forte a cada vez que eles retornavam a mim...
      “Pois   eles   adquiriram   o   hábito   detestável   de   voltar.   Lembravam-me
vampiros com um gosto por carne jovem, pareciam do mesmo modo exul-
tar malignamente diante do gosto de uma consciência satisfeita. A cada noi-
te, durante um mês, eles vieram reivindicar seu bocado da minha: uma vez
que   eu   fizera   Gilbert   feliz,   eles  simplesmente   não   dariam   descanso   a seus
caninos. A coincidência quase me fez odiá-lo, pobre rapaz, não obstante a
considerasse fortuita. Pensei bastante sobre ela, mas não consegui encontrar
nenhuma hipótese de explicação, exceto na circunstância de sua associação
com   Alice   Norwell.   Por   outro   lado,   os olhos   tinham  me   deixado   no   mo-
mento em que a abandonara, portanto dificilmente poderiam ser os emissá-
rios de uma mulher desprezada, ainda que fosse possível imaginar a pobre
Alice encarregando tais espíritos de vingá-la. Isso me pôs a pensar e come-
cei a me perguntar se eles me deixariam se eu abandonasse Gilbert. A tenta-
ção era traiçoeira, e tive de resistir contra ela; mas realmente, querido rapaz!
Ele era por demais encantador para ser sacrificado a tais demônios. E assim,
afinal, nunca descobri o que eles queriam...”

                                    

                                            III

      A lenha desintegrou-se, enviando um clarão que pós em relevo o rosto
vermelho e sulcado do narrador sob a grisalha barba por fazer. Afundado na
concavidade   da poltrona   de   couro   escuro,   ele   sobressaiu   por   um   instante
como um  intaglio de pedra com veios vermelho-amarelados, com manchas
de esmalte como olhos; então o fogo apagou e, à luz sombreada da lâmpada,
ela se tornou novamente um borrão indistinto à Rembrandt.
      Phil Frenham, sentado numa cadeira de espaldar baixo no lado oposto
da lareira, um dos longos braços apoiado na mesa diante dele, a mão a sus-
tentar sua cabeça caída para trás e seus olhos imóveis e fixos no rosto de seu
velho amigo, não fizera um movimento desde que o conto iniciara. Ele con-
servou sua imobilidade silenciosa após Culwin ter cessado de falar, e fui eu
que, com uma vaga sensação de desapontamento diante do súbito término
da história, finalmente perguntei: “Mas por quanto tempo você continuou a
vê-los?”
      Culwin, tão afundado em sua poltrona que parecia uma pilha de suas
roupas  vazias,   agitou-se   um   pouco,   como   que   surpreso   diante  de   minha
pergunta. Ele parecia ter-se quase esquecido do que nos estivera contando.
      “Por   quanto   tempo?   Ah!,   durante   todo   aquele   inverno.   Foi   infernal.
Nunca me habituei a eles. Fiquei realmente mal.”
      Frenham   mudou   silenciosamente   sua   postura,   e   assim   que  o   fez   seu
cotovelo bateu contra um pequeno espelho numa moldura de bronze, em
cima da mesa diante de si. Ele virou-se e mudou ligeiramente seu ângulo;
então retomou sua postura anterior, a cabeça escura a pender para trás, so-
bre sua palma levantada, os  olhos concentrados no rosto de Culwin. Algo
em seu olhar fixo desconcertou-me e, como que para desviar dele a atenção
insisti em mais uma pergunta:
      “E você nunca tentou sacrificar Noyes?”
      “Ah!, não. Na verdade, não tive de fazê-lo. Ele o fez por mim, pobre
rapaz apaixonado!”

                                       

      “Ele o fez por você? O que quer dizer?”
      “Ele me cansou — cansou todo mundo. Continuou a jorrar sua lamen-
tável tagarelice e a apregoá-la por todos os cantos até que se tornou objeto
de aversão. Tentei curá-lo do vício de escrever — ah, sempre muito gentil-
mente, entendam-me, compartilhando-o com pessoas agradáveis, dando-lhe
a oportunidade de fazer-se notar, reconhecer o que realmente tinha a ofere-
cer. Eu previra essa solução desde o princípio — tinha certeza de que, uma
vez debelado o inicial entusiasmo pela profissão de escritor, ele encontraria
seu   lugar   como   um   encantador   parasita,   o  tipo   de   eterno   querubim   para
quem, nos grupos de velha cepa, há sempre um assento à mesa e um abrigo
atrás das saias das senhoras. Eu o vi tomar seu lugar como „o poeta‟: o poeta
que não escreve. Reconhece-se essa espécie em qualquer sala de estar. Viver
desse modo não custa muito — em minha mente, eu planejara tudo isso e
estava certo de que, com uma pequena ajuda, ele o conseguiria dentro  de
alguns poucos anos; e entrementes ele certamente se casaria. Eu o vi casado
com uma viúva, um tanto mais velha, com um bom cozinheiro e uma casa
bem administrada. E, com efeito, eu tinha em vista uma viúva... Enquanto
isso, fiz de tudo para facilitar a transição —  emprestei-lhe dinheiro para a-
calmar   sua  consciência,   apresentei-o   a   mulheres   atraentes   para   fazê-lo   es-
quecer-se de seus votos. Mas nada o satisfazia: tinha apenas uma única idéia
em sua bela e obstinada cabeça. Queria o laurel, não a rosa, e continuou a
repetir o  axioma de Gautier e a martelar e a desfilar sua prosa claudicante
até espalhá-la por Deus sabe quantas  milhares de páginas garatujadas. Vez
por   outra,   enviava   a  um  editor   um maço,   o qual,   obviamente,   era   sempre
devolvido.
      “De   início,   isso  não   importava  —      ele   julgava-se  „incompreendido‟.
Adotou  atitudes de gênio e, sempre que uma obra chegava a casa, escrevia
outra para fazer-lhe companhia. Então teve uma reação de desespero e acu-
sou-me de enganá-lo e Deus sabe mais o quê. Isso me enraiveceu e eu lhe
disse que ele próprio se enganara. Ele aproximara-se de mim determinado a
escrever, e eu fazia o possível para ajudá-lo. Fora esse meu grande crime, e
eu o cometera por causa de sua prima, não dele.

                                  

      “Isso pareceu atingi-lo, e por um instante ele não respondeu. Depois
ele disse: „Meu prazo acabou e meu dinheiro acabou. O que você acha que
eu deveria fazer?‟
      “ „Acho que você não deveria ser um imbecil‟, eu disse.
      “Ele enrubesceu e perguntou: „O que quer dizer com imbecil?‟
      “Peguei uma carta de minha escrivaninha e estendi-a para ele.
      “  „Quero   dizer   recusar   esta   oferta   da   sra.   Ellinger:   ser   seu   secretário
por um salário de cinco mil dólares. Isso pode envolver muito mais do que
essa quantia.‟
      “Ele lançou a mão repentinamente com uma violência que arrancou a
carta das minhas. „Ah!, sei muito bem o que isso envolve!‟, disse ele, escarla-
te até as raízes dos cabelos.
      “ „E qual é sua resposta, se é que você sabe?‟, perguntei.
      “Ele ficou em silêncio por um instante, mas virou-se lentamente para a
porta. Lá, com a mão no batente, parou para perguntar, quase em um sus-
surro: „Então você realmente julga que meu material não é bom?‟
      “Eu estava cansado e exasperado; dei uma risada. Não defendo minha
risada — foi de péssimo gosto. Mas é preciso levar em consideração que o
rapaz era um tolo e que eu me esforçara ao máximo em ajudá-lo... Eu real-
mente me esforçara.
      “Ele saiu da sala, fechando a porta silenciosamente atrás de si. Naquela
tarde parti para Frascati, onde prometera passar o domingo com alguns  a-
migos. Eu estava feliz por fugir de Gilbert e por isso, como descobri naque-
la noite, escapara também dos olhos. Caí no sono letárgico que me sobrevi-
era   anteriormente   quando  suas   aparições   cessavam;   e   quando   acordei   na
manhã   seguinte,   em   meu   tranqüilo  quarto   pintado,   acima   dos   azevinhos,
senti a completa exaustão e profundo alívio que sempre se seguiam àquela
dormência      reparadora.     Intercalei  duas   noites  abençoadas       em   Frascati   e,
quando voltei a meus aposentos em Roma, descobri que Gilbert se fora...
Ah!,   nada   de   trágico   acontecera  —  o   episódio   nunca   chegou  a   tanto.   Ele
simplesmente empacotara seus manuscritos e partira para a América — para
sua família e a mesa em Wall Street. Deixou um bilhete curto e sensato para


comunicar-me sua decisão e comportou-se de modo geral, dadas as circuns-
tâncias, da forma menos tola possível para um tolo...”

                                          IV

      Culwin silenciou novamente, e novamente Frenham permaneceu sen-
tado, imóvel, o contorno fosco de sua jovem cabeça refletido no espelho às
suas costas.
      “E o que foi feito de Noyes depois?”, eu finalmente perguntei, ainda
perturbado por uma sensação de incompletude, pela necessidade de algum
fio de ligação entre as linhas paralelas da história.
      Culwin contraiu os ombros. “Ah!, ele não deu em nada — porque tor-
nou-se nada. Não poderia haver nada de  „feito‟ nisso. Ele vegetou num es-
critório, creio eu, e finalmente conseguiu um cargo num consulado e fez um
casamento lamentável na China. Vi-o uma vez em Hong Kong, anos depois.
Estava gordo e a barba por  fazer. Soube que bebia. Ele não me reconhe-
ceu.”
      “E os olhos?”, perguntei, após uma outra pausa, que o silêncio de Fre-
nham tornou opressiva.
      Culwin,   alisando   o   queixo,   piscou   para   mim   pensativamente   através
das  sombras. “Nunca os vi depois de minha última conversa com Gilbert.
Tire suas conclusões, se puder. De minha parte, não encontrei a ligação.”
      Ele levantou-se tenso, as mãos nos bolsos, e caminhou até a mesa, so-
bre a qual bebidas restauradoras haviam sido postas.
      “Você deve estar desidratado depois dessa história exaustiva. Aqui está,
sirva-se, meu caro. Tome, Phil...” Ele virou-se para a lareira.
      Frenham ainda estava sentado em sua cadeira de espaldar baixo, sem
dar sinais de reação aos convites hospitaleiros de seu anfitrião. Mas quando
Culwin avançou em sua direção seus olhos encontraram-se num olhar de-
morado; em seguida, para minha surpresa, o jovem, virando-se subitamente
em seu assento, atirou seus braços sobre a mesa e pendeu o rosto sobre eles.

                                     

      Culwin, diante do gesto inesperado, deteve-se, o rosto tomado de um
rubor intenso.
      “Phil... que diabos? Ora, os olhos o amedrontaram? Meu caro rapaz...
meu querido amigo... eu nunca recebi tal homenagem a minhas habilidades
literárias, nunca!”
      O pensamento provocou-lhe uma gargalhada, e ele deteve-se sobre o
tapete diante da lareira, as mãos ainda nos bolsos, os olhos abaixados, fixos
num   olhar   de  franca   perplexidade   para   a   jovem   cabeça   inclinada.   Então,
como Frenham ainda não respondesse, deu uns dois passos em sua direção.
      “Vamos lá, meu caro Phil! Já se passaram anos desde que os vi — ao
que parece, não fiz nada de mau o bastante ultimamente para invocá-los do
caos. A menos que esse meu depoimento tenha feito com que você os veja;
o que seria um golpe ainda pior da parte deles!”
      Seu apelo provocador terminou numa risada trêmula e inquieta, e ele
aproximou-se ainda mais, inclinando-se para Frenham e pondo suas mãos
gotosas sobre os ombros do rapaz.
      “Phil, meu querido menino, ora essa... o que foi? Por que não respon-
de? Você viu os olhos?”
      O   rosto   de   Frenham   ainda   estava   apertado   contra   seus   braços,   e   de
onde eu estava, atrás de Culwin, vi este, como que repelido por essa atitude
inexplicável, afastar-se lentamente de seu amigo. Ao fazê-lo, a luz da lâmpa-
da sobre a mesa incidiu totalmente sobre seu rosto congestionado e perple-
xo, e captei seu súbito reflexo no espelho atrás da cabeça de Frenham.
      Culwin também viu o reflexo. Ele deteve-se, o rosto à altura do espe-
lho, como se mal reconhecesse como sua a fisionomia refletida. Mas, à me-
dida que olhava, sua expressão gradualmente alterou-se e, por um espaço de
tempo considerável, ele e sua imagem no vidro enfrentaram-se com um o-
lhar fixo no  qual lentamente aflorou o ódio. Então Culwin soltou os om-
bros de Frenham e recuou um passo, cobrindo os olhos com as mãos...
      Frenham, o rosto ainda oculto, não fez um movimento.

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