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domingo, 7 de agosto de 2011

Charles Dickens-Para Ser Lido com Reservas-Conto Fantasmagórico

Photobucket

PARA SER LIDO COM RESERVAS

                                                                          Por:Charles Dickens


Charles John Huffam Dickens, FRSA (Portsmouth, 7 de Fevereiro de 1812 — 9 de Junho de 1870), que também adoptou o pseudónimo Boz no início da sua atividade literária, foi o mais popular dos romancistas ingleses da era vitoriana. A fama dos seus romances e contos, tanto durante a sua vida como depois, até aos dias de hoje, só aumentou. Apesar de os seus romances não serem considerados, pelos parâmetros actuais, muito realistas, Dickens contribuiu em grande parte para a introdução da crítica social na literatura de ficção inglesa.

Entre os seus maiores clássicos podemos destacar "Copperfield"e "Oliver Twist"

      Observei sempre uma geral falta de coragem, até mesmo entre pessoas
de  inteligência   e   cultura   superiores,   em   revelar   suas   próprias   experiências
psicológicas quando estas são de uma natureza estranha. Quase todos recei-
am que relatos desse tipo poderiam não encontrar experiências semelhantes
ou receptividade na vida interior de um ouvinte e ser vistos com reservas ou
como dignos de chacota. Um viajante veraz que houvesse visto uma criatura
extraordinária semelhante a uma serpente do mar não temeria mencioná-lo;
mas   o   mesmo   viajante,   caso   tivesse  tido   algum   pressentimento,   impulso,
pensamento fantasioso (a assim chamada) visão, sonho ou outra impressão
mediúnica extraordinária, hesitaria muito antes de confessá-lo. A essas reti-
cências atribuo muito da obscuridade na qual tais assuntos estão envolvidos.
Não   comunicamos   habitualmente   nossas   experiências   desses  fatos   subjeti-
vos da mesma forma que nossas experiências da criação objetiva. A  conse-
qüência é que o conhecimento público dessas experiências parece ser inco-
mum, e realmente é, em virtude de ser lamentavelmente incompleto.
      Com o que estou prestes a relatar não tenho nenhuma intenção de a-
vançar,  opor   ou  sustentar   qualquer   teoria   que   seja.   Conheço  a história   do
livreiro de Berlim, estudei o caso da esposa de um falecido astrônomo real
tal como me foi relatado por Sir David Brewster e acompanhei, até os mí-
nimos detalhes, um caso muito mais notável de ilusão espectral ocorrido em
meu círculo de amizades. Talvez seja necessário declarar quanto a este últi-
mo   que   a   pessoa   em   questão   (uma   senhora)   não   era   absolutamente   em


qualquer grau, mesmo distante, relacionada a mim. Uma suposição equivo-
cada sobre esse fato poderia sugerir uma explicação de parte de minha his-
tória — mas somente de parte — totalmente sem fundamento. Ela não de-
ve ser atribuída a minha herança de qualquer peculiaridade desenvolvida; eu
também jamais tive qualquer experiência semelhante desde então.
      Há anos — não importa se há muitos ou poucos —  foi cometido na
Inglaterra  um   certo     homicídio    que   atraiu   grande   atenção.   Comentam-se
mais do que se deveria notícias sobre assassinos, as quais, avolumadas pro-
porcionalmente   à   sua  atrocidade,   assaltam   nossos   ouvidos,   e   meu   desejo
seria, se pudesse, enterrar a lembrança desse vilão em particular, tal como
seu corpo o foi, na prisão de Newgate. Abstenho-me intencionalmente de
dar qualquer pista direta da identidade do criminoso.
      Quando o assassinato foi descoberto, nenhuma suspeita recaiu —  ou
antes diria, pois não posso apresentar os fatos exatos, nenhuma suspeita foi
publicada —  sobre o homem que posteriormente foi levado a julgamento.
Como nenhuma referência a ele se fez àquela ocasião nos jornais, é obvia-
mente impossível que qualquer descrição sua àquela época tenha sido dada
nos jornais. É fundamental que se tenha esse fato na lembrança.
      Ao   abrir   meu   jornal   matutino   durante   o  desjejum,   o   relato   daquela
primeira descoberta chamou minha atenção e o li com vivo interesse. Eu o
li duas vezes, talvez três. Ela fora feita em um quarto de dormir e, quando
baixei o jornal, tive consciência de um clarão de luz — agitação, fluxo, não
sei como designado, não consigo encontrar nenhuma palavra para descrevê-
lo satisfatoriamente — no qual eu parecera ver aquele quarto atravessando
minha sala, como um quadro absurdamente pintado sobre as águas corren-
tes de um rio. Não obstante quase instantâneo em sua aparição, ele era per-
feitamente visível; tão visível que eu, com uma sensação de alívio, observei
distintamente a ausência do corpo morto na cama.
      Não foi em um lugar romântico que tive essa sensação curiosa, e sim
em aposentos na Picadilly, bem próximos a Saint James Street. Nunca me
ocorrera  algo   parecido.   Estava   em   minha   poltrona   naquele   momento,   e   a
sensação   foi  acompanhada   de   um   estremecimento   singular   que   moveu   a

                                  

cadeira. (Mas devo dizer que os pés em rodízio facilitavam o movimento.)
Dirigi-me a uma das janelas  (havia   duas no aposento, e este ficava no se-
gundo andar) para revigorar meus  olhos na agitação de Picadilly. Era uma
manhã clara de outono, e a rua estava  cheia de vida e alegria. O vento so-
prava forte. Quando olhei para fora, ele trazia do parque grande quantidade
de folhas caídas, que uma rajada apanhou e girou em uma coluna espiralada.
À medida que a espiral caía e as folhas se dispersavam, vi dois homens no
lado oposto do caminho, caminhando do oeste para o leste. Um  seguia o
outro. O que estava à frente olhava constantemente sobre os ombros, para
o que vinha atrás. O segundo o seguia, a uma distância de cerca de trinta
passos, com sua mão direita levantada, num gesto ameaçador. A estranheza
e constância de seu gesto ameaçador em um lugar tão público atraíram mi-
nha  atenção, em primeiro lugar; e em segundo, a circunstância ainda mais
extraordinária de ninguém atentar para ele. Ambos os homens abriam cami-
nho por entre os outros transeuntes, com uma facilidade muito pouco com-
patível com a ação de andar sobre uma calçada, e ninguém, que eu pudesse
ver, lhes abria caminho, tocava-os ou olhava para eles. Ao passarem diante
de minhas janelas, ambos me fitaram. Vi distintamente seus rostos e soube
que poderia reconhecê-los em qualquer lugar. Não que eu registrasse cons-
cientemente   qualquer   traço   notável   em   seus  rostos,   exceto   que   o   homem
que ia à frente tinha uma aparência inusitadamente sombria e que a face do
homem que o seguia era da cor de cera suja.
      Sou solteiro, e meu criado e sua esposa constituem toda a minha cria-
dagem. Trabalho em um certo Branch Bank e gostaria que minhas obriga-
ções como chefe de uma seção fossem tão leves quanto se julga. Elas me
prenderam na cidade naquele outono, quando necessitava de uma mudança.
Não estava doente, mas não me sentia bem. Meu leitor deve levar em conta,
tanto   quanto   for   razoável,  meu   estado   de   exaustão,   sob   a   pressão   de   um
desânimo diante de uma vida monótona e num estado “ligeiramente dispép-
tico”. Meu médico, de grande reputação, assegurou-me que meu estado de
saúde real àquela época não justifica uma descrição mais severa, e cito suas
próprias palavras, na resposta por escrito às minhas indagações.

                                      

      À  medida que as circunstâncias do assassinato, gradualmente esclare-
cendo-se, captavam com força cada vez maior a atenção do público, eu as
afastava da minha, delas sabendo tão pouco quanto possível em meio à agi-
tação geral. Mas eu sabia que o réu fora confinado em Newgate e aguardava
seu julgamento por homicídio doloso. Eu também sabia que esse julgamen-
to fora adiado numa sessão do Tribunal Penal Central,1  sob alegação de pré-

julgamento   e   tempo   insuficiente   para   a  preparação   da   defesa.   É   possível
também que eu tenha obtido informações — mas acredito que não — sobre
o dia, ou data aproximada, do julgamento.
      Minha sala de estar, dormitório e quarto de vestir  [closet]  ficam todos
no mesmo andar. Nenhuma comunicação  com este último existe, senão a-
través do dormitório. É verdade que nele existe uma porta, que se comuni-
cava com a escadaria; mas uma parte dos encanamentos de meu banheiro
foi — desde há alguns anos — fixada nela. Na mesma época, e como parte
da mesma reforma, a porta foi pregada e pintada.
      Estava   em   pé   em   meu   quarto   uma   noite,   bem   tarde,   dando   algumas
instruções a meu criado antes de ele recolher-se. Encontrava-me de frente
para a única porta de comunicação com o quarto de vestir, a qual estava fe-
chada. Meu criado achava-se de costas para essa porta. Enquanto falava, eu
a   vi   abrir-se   e   aparecer   um   homem,  olhando   para   dentro   do   quarto,   um
homem a acenar para mim com gestos graves  e misteriosos. Esse homem
era o mesmo que seguira o outro em Picadilly e cuja face tinha uma cor de
cera suja.
      Após acenar, a figura recuou e fechou a porta. Num espaço de tempo
não  maior do que o necessário para  atravessar o quarto de dormir,   abri a
porta do quarto de vestir e olhei para dentro. Eu já tinha na mão uma vela
acesa. Intimamente não esperava ver a figura no quarto de vestir e, de fato,
não a vi.

  1
   Tribunal Penal de Old Bailey, Londres (London Central Criminal Court), a mais importante e
famosa corte criminal da Inglaterra, em funcionamento desde 1539 (N.E.).


      Consciente do espanto de meu criado virei-me para ele e disse: “Der-
rick, você acreditaria que vi, com meus próprios olhos, um...” Neste instante,
pus minha mão em seu peito e ele, com um súbito e violento tremor, disse:
“Sim, senhor, sim! Um morto acenando!”
      Ora, não creio que esse John Derrick, meu fiel e dedicado criado du-
rante mais de vinte anos, tivera qualquer impressão de ver tal figura antes de
eu o tocar. A mudança nele foi tão espantosa quando eu o toquei que acre-
dito   piamente   que  essa   impressão,   de   alguma   forma   oculta,   comunicou-se
de mim para ele naquele instante.
      Roguei a John Derrick que me trouxesse um pouco de conhaque e lhe
servi um gole, antes de tomar um pouco também eu. Do que antecedera ao
fenômeno naquela noite não lhe disse uma só palavra. Refletindo sobre isso,
convenci-me   de  que   absolutamente   jamais   vira   aquele   rosto   antes,   exceto
naquela ocasião em Picadilly. A comparação de sua expressão quando ace-
nara   na   porta,   com   sua   expressão   quando  me   fitara   à   janela,   levou-me   à
conclusão de que na primeira ocasião ele procurara imprimir-se em minha
memória e de que na segunda certificara-se de ser imediatamente lembrado.
      Fiquei um pouco inquieto naquela noite, embora sentisse uma certeza,
difícil de explicar, de que a figura não retornaria. À luz do dia, caí em um
sono pesado, do qual fui acordado pela presença de John Derrick ao pé de
minha cama, com um papel na mão.
      Esse papel, ao que parece, fora objeto de uma discussão à porta, entre
seu portador   e   meu   criado.   Era   uma   convocação   para   fazer   parte   de   um
corpo de jurados na próxima sessão do Tribunal Criminal Central em Old
Bailey.   Eu   jamais  fora   convocado   antes   para   um   júri,   como   John   Derrick
bem sabia. Ele acreditava — e não estou certo agora se com ou sem razão
—  que aquele corpo de jurados era normalmente escolhido entre homens
de classe inferior à minha, e ele de início recusara-se a receber a convocação.
O   homem   que   a   entregava   permanecera  impassível.   Disse   que   o   cumpri-
mento não lhe dizia respeito; ali estava a convocação; e que a mim cabia re-
solver a questão, por minha conta e risco, não a ele.

                                      

      Durante um dia ou dois fiquei indeciso quanto a obedecer ao chamado
ou ignorá-lo. Não me passou pela cabeça coisa alguma relacionada a aspec-
tos misteriosos, influência ou atração, fossem quais fossem. Disso estou ab-
solutamente certo, assim como de qualquer outra afirmação que aqui faço.
Por fim, decidi, como uma maneira de quebrar a monotonia de minha vida,
que iria.
      A manhã marcada era uma manhã fria e úmida do mês de novembro.
Picadilly  estava   coberta   de   uma   névoa   parda,   que   se  tornou  simplesmente
negra e extremamente opressiva a leste de Temple Bar.2  Encontrei as passa-

gens e escadarias da corte tomadas pela luz resplandecente dos lampiões de
gás,   e   o   próprio   tribunal  igualmente   iluminado. Acho  que,   até   o   momento
em que fui conduzido por oficiais ao recinto e o vi ocupado por uma multi-
dão, não sabia que o assassino deveria ser julgado naquele dia. Acho que, até
ser   levado   com   muita   dificuldade   ao   recinto   do  tribunal,   não   sabia   a   qual
dos dois recintos da corte minha convocação me levaria. Mas isso não deve
ser tomado como uma afirmação cabal, pois não estou totalmente conven-
cido quanto a nenhum desses fatos.
      Sentei-me no lugar destinado aos jurados e passei meus olhos pelo re-
cinto tanto quanto me permitiu a densidade da névoa e de hálito úmido que
nele pairavam pesadamente. Observei o negro vapor que pendia como uma
cortina  escura   fora   de   grandes   janelas   e   chamaram-me   a   atenção   o   som
compacto de rodas  sobre a palha ou cascas de árvore que cobriam a rua e
também o murmúrio das pessoas ali reunidas, que um zunido agudo, ou um
refrão ou saudação mais altos do que os outros sons vez por outra atraves-
savam.   Logo   em   seguida,   os  juízes —  eram   dois —  entraram   e   tomaram
seus lugares. O burburinho no tribunal foi veementemente silenciado. Or-
denou-se que o criminoso fosse trazido ao cancelo. Ele ali se apresentou. E
no mesmo instante reconheci nele o primeiro dos dois homens que haviam
caminhado por Picadilly.

  2  Temple Bar. A  mais importante “barreira” que marca o perímetro Leste da City de Londres

(N.E.).

                                       

      Se   meu   nome   fosse   então   chamado,   duvido   que   tivesse   conseguido
responder  com voz audível. Mas ele foi pronunciado cerca de seis ou oito
vezes na lista de  jurados e então fui capaz de dizer “Presente”. Pois bem,
observem. Quando subi ao tablado, o prisioneiro, que até então tudo olhava
atentamente, mas sem qualquer sinal de preocupação, tomou-se de violenta
agitação e acenou para seu advogado. O desejo do prisioneiro a me opor era
de tal forma manifesto que provocou uma pausa, durante a qual o advogado,
com a mão no banco dos réus, sussurrou com seu cliente e balançou a cabe-
ça. Eu soube posteriormente, por aquele senhor, que as primeiras palavras
amedrontadas do prisioneiro a ele foram  “Recuse, a todo custo, aquele homem! ”
Mas, como ele não quis dar o motivo para tal e   admitiu que  sequer sabia
meu   nome   antes   de   ele   ser   pronunciado   e   eu   me   apresentar,   isso   não  foi
feito.
      Tanto pelos motivos já expostos — pois não é meu desejo trazer no-
vamente à baila a memória nefasta daquele assassino —  e também porque
um relato detalhado desse longo julgamento não é absolutamente indispen-
sável à minha história, limitar-me-ei exclusivamente aos incidentes, nos dez
dias e noites durante os quais nós, os jurados, fomos mantidos juntos, pois
dizem respeito somente a minha estranha experiência pessoal. É para isso, e
não para o assassino, que desejo chamar a atenção de meu leitor. É para isso,
e não para uma página dos registros de Newgate, que lhe rogo o obséquio
de sua atenção.
      Fui escolhido para ser o primeiro jurado. Na segunda manhã do julga-
mento, depois que as provas haviam sido apresentadas durante duas horas
(ouvi   o   relógio da   igreja  soar   duas   vezes),   ocorreu-me   percorrer   os   olhos
pelos meus companheiros jurados e encontrei uma dificuldade inexplicável
em contá-los. Contei-os diversas vezes, e no entanto sempre com a mesma
dificuldade. Em suma, percebi que seu número excedia o normal.
      Toquei   o   jurado  próximo  a  mim  e  lhe  sussurrei:  “Por   favor,   conte
quantos somos”. Ele olhou surpreso diante do pedido, mas voltou sua ca-
beça e contou. “Ora”, disse ele subitamente, “somos trez...; mas não, não é
possível. Não, somos doze”.

                                        

      Segundo   minha   contagem   naquele   dia,   nosso   número   estava   sempre
certo no pormenor, mas no todo sempre superior. Não havia nada aparen-
temente —  nenhum  número —  que   o  explicasse; mas   eu   tinha   agora   um
pressentimento do número que certamente surgiria.
      O   júri   foi   hospedado   na   London   Tavern.   Dormíamos   todos   em   um
quarto grande, em camas separadas e ficávamos continuamente sob as or-
dens e a vigilância de um oficial encarregado, sob juramento, de nossa segu-
rança.   Não   vejo   motivos  para   omitir   o   nome   real   daquele   oficial.   Ele   era
inteligente, extremamente polido e prestativo e (fiquei feliz em saber) muito
respeitado.   Tinha   uma   aparência  agradável,   olhos   benevolentes,   invejáveis
costeletas negras e uma voz bela e sonora. Seu nome era sr. Harker.
      Quando voltamos para nossas doze camas à noite, a cama do Sr. Har-
ker foi colocada em frente à porta. Na noite do segundo dia, como eu não
estivesse inclinado a me deitar e visse o sr. Harker sentado em sua cama, fui
sentar-me a seu lado e lhe ofereci uma pitada de rapé. Quando a mão do sr.
Harker tocou a minha ao pegá-lo de minha caixa, ele foi tomado de um es-
tremecimento singular e disse: “Quem é esse!”
      Seguindo o olhar do sr. Harker e olhando para o quarto, vi novamente
a figura que eu esperava: o segundo dos dois homens que haviam atravessa-
do Picadilly. Levantei-me e dei alguns passos; então parei e olhei novamente
para o sr. Harker. Ele estava bem despreocupado, riu e disse de um modo
amável, “por um instante  pensei ter visto um décimo-terceiro jurado, sem
uma cama. Mas vejo que é o luar”.
      Nada revelando ao sr. Harker, mas convidando-o a dar uma volta co-
migo até  o fim do aposento, observei o que fazia a figura. Permaneci por
uns   momentos   ao  lado   de   cada   um   de   meus   onze   companheiros   jurados,
junto ao travesseiro. Ela se movia sempre do lado direito da cama e sempre
passava para o pé da cama seguinte. Pareceu-me, pelo movimento da cabeça,
apenas olhar para baixo pensativamente, para cada uma das figuras deitadas.
Não tomou conhecimento de mim, nem de minha cama, que era próxima à
do sr. Harker. Pareceu sair por onde entrava a luz do luar, através de uma
janela alta, como por uma escada etérea.


      Na manhã seguinte, ao desjejum, pareceu que todos os presentes havi-
am sonhado naquela noite com o homem assassinado, exceto eu próprio e o
sr. Harker.
      Eu estava agora convencido de que o segundo homem que atravessara
Picadilly era o assassinado (por assim dizer), como se esse fato fosse gerado
em minha consciência por seu testemunho direto. Mas até mesmo isso  o-
correu de uma forma para a qual eu não estava absolutamente preparado.
      No quinto dia do julgamento, quando as provas da promotoria chega-
vam a seu termo, foi apresentado um retrato em miniatura do homem assas-
sinado, que desaparecera de seu quarto de dormir à época da descoberta do
fato e depois encontrada no esconderijo que o assassino fora visto a cavar.
Identificado pela testemunha interrogada, foi levado ao banco e entregue à
inspeção   dos   jurados.  Quando   um   oficial,   em   um   manto   negro,   dirigia-se
com ele até mim, a figura do segundo homem que atravessara Picadilly im-
petuosamente saiu da multidão, tomou a miniatura do oficial e deu-a para
mim com suas próprias mãos, dizendo ao mesmo tempo em uma voz baixa
e cava, antes que eu visse a miniatura, que estava em um medalhão: “Eu era
jovem e meu rosto ainda não estava exangue.” Ele também se postou entre
mim e o jurado próximo, a quem eu deveria passar a miniatura e entre ele e
o jurado ao qual aquele deveria entregá-lo, assim procedendo até que a pas-
sasse a todos os jurados e em seguida devolvendo-a a mim. Nenhum deles,
contudo, apercebeu-se disso.
      À mesa, e geralmente quando estávamos enclausurados sob a custódia
do sr. Harker, desde o início nossas conversas sempre se dirigiam aos deta-
lhes   das  ocorrências   do   dia.   Naquele   quinto   dia,   concluídas   as   provas   da
promotoria e estabelecido por nós o quadro dessa questão, nossa discussão
tornou-se   mais animada   e   séria.   Entre   nós   encontrava-se   um   membro   do
conselho paroquial — o maior idiota que eu jamais encontrara —, que obje-
tou da maneira mais ridícula as provas mais evidentes e que foi secundado
por dois parasitas paroquiais balofos — todos os três recrutados de um dis-
trito   tão   entregue   à   exaltação   que   deveriam  ser   eles  próprios   julgados   por
centenas de assassinatos. Quando esses estúpidos nefastos estavam no auge

                                      

de sua exaltação, o que ocorreu por volta da meia-noite, quando alguns de
nós já se preparavam para ir para a cama, vi novamente o homem assassina-
do. Ele postou-se solenemente atrás deles, acenando para mim. Quando me
dirigi a eles e intervim na conversa, ele imediatamente retirou-se. Essa foi a
primeira de uma série de aparições isoladas, circunscritas àquele grande apo-
sento a que nós nos encontrávamos circunscritos. Toda vez que um grupo
de meus  colegas jurados aproximava suas cabeças, eu via a cabeça do ho-
mem assassinado entre elas. Toda vez que sua comparação de notas lhe era
desfavorável, ele solene e resolutamente acenava para mim.
      Deve-se ter em mente que, até a apresentação do resumo no quinto dia
do julgamento, eu nunca vira a aparição no tribunal. Três mudanças ocorre-
ram  quando   se   iniciou   a   apresentação   da   defesa.   Duas   delas   mencionarei
juntas, em primeiro lugar. O fantasma estava sempre no tribunal, e ele nun-
ca lá se dirigia a mim, mas sempre à pessoa que estava falando no momento.
Por exemplo, a garganta do homem assassinado havia sido cortada em linha
reta. No discurso de abertura da defesa, sugeriu-se que o morto poderia ter
cortado   sua   própria   garganta.  Naquele   mesmo   instante,   a   figura,   com   sua
garganta   nessa   condição  terrível   a   que  se   referiu   (ela havia  escondido   isso
anteriormente), se postou ao lado do falante, movendo ora sua mão esquer-
da, ora sua mão direita pela sua traquéia, dando a entender com veemência
ao próprio falante a impossibilidade de que tal ferida  tivesse sido infligida
por qualquer uma das mãos. Outro exemplo: uma mulher testemunhou em
favor do caráter do prisioneiro, dizendo ser ele o mais amável dos seres. O
fantasma, naquele instante, postou-se à sua frente, encarando-a e apontando
para a expressão malévola do prisioneiro com um braço estendido e o dedo
em riste.
      A terceira mudança a ser agora acrescentada causou-me forte impres-
são, por ser a mais eloqüente e extraordinária de todas. Não avanço nenhu-
ma   hipótese  sobre  ela;   descrevo-a   com   exatidão,   simplesmente.   Embora   a
aparição  não   fosse  em   si percebida   por   aqueles   a   quem   ela   se   dirigia,   sua
aproximação era invariavelmente acompanhada de um tremor ou perturba-
ção por parte dessas pessoas. Parecia-me que alguma lei a mim inacessível o


impedia de se revelar aos  outros e, todavia, como se ele pudesse, invisível,
silenciosa e sombriamente toldar seus espíritos. Quando o principal advoga-
do de defesa aventou a hipótese de  suicídio e o fantasma postou-se junto
àquele cavalheiro erudito, serrando aterradoramente sua garganta, o advoga-
do inequivocamente vacilou em seu discurso, perdeu por alguns instantes o
fio de seu discurso engenhoso, enxugou sua testa com um lenço e ficou ex-
tremamente pálido. Quando a testemunha em favor do caráter foi desafiada
pela aparição, seus olhos visivelmente seguiram a direção do dedo em riste e
pousaram com grande hesitação e perturbação no rosto do prisioneiro. Dois
exemplos adicionais bastarão. No oitavo dia do julgamento, depois da pausa
que se fazia diariamente no início da tarde para um descanso de alguns mi-
nutos e uma refeição ligeira, voltei para o tribunal com os  demais jurados,
um pouco antes do retorno dos juízes. De pé no tablado e olhando a minha
volta, julguei que o fantasma não estava lá, até que, levantando por acaso
meus olhos para a galeria, vi-o inclinando-se para a frente e encostando-se
em urna mulher muito distinta, como se para verificar se os  juízes haviam
retomado ou não seus lugares. Imediatamente depois, aquela mulher gritou,
desmaiou e foi carregada para fora. O mesmo ocorreu com o venerável, sa-
gaz e paciente juiz que presidia ao julgamento. Quando a defesa terminou e
ele reuniu os documentos para a súmula, o homem assassinado entrou pela
porta dos  juízes, avançou para a mesa de Sua Excelência e olhou ansiosa-
mente por sobre seu ombro para as páginas de suas anotações, que ele esta-
va   virando.   Sua   fisionomia   se   transformou;   sua   mão  deteve-se;   o   singular
tremor   que   eu   tão   bem   conhecia   atravessou-o;   ele   vacilou,  “Perdoem-me,
cavalheiros, por alguns instantes. Creio que o ar viciado me afetou”, e não
se recobrou antes de tomar um copo d‟água.
      Durante      toda  a  monotonia      daqueles    dez  dias   intermináveis   —    os
mesmos juízes  e os demais em seus lugares, o mesmo assassino no banco
dos réus, as mesmas entoações de perguntas e respostas a ressoar pela sala
do tribunal, o mesmo ranger da pena do juiz, os mesmos oficiais entrando e
saindo, as mesmas luzes acesas à mesma hora, não obstante a luz natural do
dia, a mesma cortina de fumaça fora das grandes janelas quando havia névoa,

                                       

a mesma chuva tamborilando e gotejando quando chovia, as mesmas pisa-
das do carcereiro e do prisioneiro dia após dia na mesma serragem, as mes-
mas   chaves  a   fechar   e   abrir   as   mesmas   portas   pesadas  —  durante   toda   a
cansativa monotonia que me fez sentir como se fora o primeiro jurado du-
rante um enorme período do tempo e Picadilly tivesse vicejado contempo-
raneamente   à   Babilônia,   o  homem  assassinado   nunca  perdeu   um   traço   de
sua visibilidade em meus olhos, e tampouco em momento algum se fez me-
nos nítido do que qualquer outra pessoa. Na verdade, não devo omitir que
sequer uma vez vi a aparição que designo por homem assassinado olhar pa-
ra o assassino. Repetidas vezes perguntei-me por que não o fazia. Mas ele
não o fazia.
      Ele tampouco olhou para mim, após a apresentação da miniatura, até
os  últimos   minutos   de   conclusão   do   julgamento.   Nós   nos   retiramos   para
deliberar às sete para as dez da noite. O apalermado membro de conselho
paroquial e seus dois parasitas paroquiais nos deram tanto trabalho que por
duas vezes retornamos ao tribunal para requerer a leitura de certos extratos
das anotações dos juízes. Para nove de nós não havia qualquer dúvida quan-
to a essas passagens, tampouco, creio eu, para qualquer outra pessoa no tri-
bunal; o triunvirato de patetas, contudo, não desejando senão a obstrução,
justamente por isso objetava a elas. Por fim vencemos  e finalmente o júri
retornou ao tribunal à meia-noite e dez.
      O homem assassinado colocou-se no lugar oposto ao banco dos jura-
dos, no outro lado do Tribunal. Quando tomei meu lugar, seus olhos pousa-
ram   em   mim,  com   grande   atenção;   ele   parecia   satisfeito   e   vagarosamente
agitou um grande véu cinza, que carregava em seu braço, pela primeira vez
sobre a cabeça. No momento em que declarei nosso veredicto de “Culpa-
do”, o véu caiu e tudo desapareceu, deixando vazio seu lugar.
      Quando o juiz, segundo o costume, perguntou-lhe se desejava declarar
algo antes que lhe fosse dada a sentença de morte, o assassino murmurou
indistintamente algo que foi descrito pelos principais jornais do dia seguinte
como “umas poucas divagações incoerentes e palavras semi-inaudíveis, pe-
las quais deu a entender que não tivera um julgamento justo porque o pri-

                                      

meiro  jurado  se  colocara  contra  ele”. A   extraordinária   declaração   que   ele
realmente fizera é a seguinte: “Meu senhor, eu soube que estava condenado
quando o primeiro jurado de meu julgamento subiu ao banco. Meu senhor,
eu soube que ele nunca me libertaria, porque, antes que eu fosse preso, ele
pôs-se ao lado de minha cama à noite, não sei como, acordou-me e pôs uma
corda em volta de meu pescoço.”

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