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domingo, 7 de agosto de 2011

Charles Dickens-O Sinaleiro-Conto Fantasmagórico

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    O SINALEIRO

Charles John Huffam Dickens, FRSA (Portsmouth, 7 de Fevereiro de 1812 — 9 de Junho de 1870), que também adoptou o pseudónimo Boz no início da sua atividade literária, foi o mais popular dos romancistas ingleses da era vitoriana. A fama dos seus romances e contos, tanto durante a sua vida como depois, até aos dias de hoje, só aumentou. Apesar de os seus romances não serem considerados, pelos parâmetros actuais, muito realistas, Dickens contribuiu em grande parte para a introdução da crítica social na literatura de ficção inglesa.

Entre os seus maiores clássicos podemos destacar "Copperfield"e "Oliver Twist"
                                                                     Por:   Charles Dickens

                                            I

      “Olá! Você, aí embaixo!”
      Quando ele ouviu uma voz chamando-o, estava à porta de sua cabine,
com uma bandeira na mão, enrolada na sua vareta curta. Considerando-se a
natureza da área, imaginar-se-ia que ele não pudesse duvidar de onde vinha
a voz; mas em vez de olhar para cima, onde eu me postara no alto do pata-
mar praticamente por sobre a sua cabeça, ele virou-se e olhou para a Linha
abaixo. Havia algo de estranho na sua maneira de fazê-lo, mas eu não, abso-
lutamente não, poderia dizer o quê. Mas sei que era estranho o bastante para
atrair   minha   atenção,   embora   sua   silhueta  estivesse   parcialmente   oculta   e
ensombrecida na passagem de nível abaixo, e a minha, bem acima dele, tão
imersa   no   brilho   incandescente   de   um   crepúsculo  rubro   que   eu   tivera   de
proteger meus olhos com a mão antes de o ver.
      “Olá! Aí embaixo!”
      Depois de olhar para a Linha abaixo, ele voltou-se novamente e, levan-
tando os olhos, viu minha silhueta no alto.
      “Existe um caminho pelo qual eu possa descer e falar com você?”
      Olhou para   mim sem  responder  e  olhei para   ele, sem pressioná-lo i-
mediatamente com uma repetição de minha pergunta ociosa. Foi então que
houve   uma   vaga  vibração   no   chão   e   na   atmosfera,   rapidamente   transfor-
mando-se em uma violenta pulsação e progressiva agitação que me fez recu-

                                       

ar, como se ela tivesse força para arrastar-me para baixo. Quando uma nu-
vem   de   vapor   do   trem   veloz   havia   passado  por   mim,   olhei   novamente   o
nível inferior e o vi enrolando novamente a bandeira  que ele desfraldara à
passagem do trem.
      Repeti   minha   pergunta.   Após   uma   pausa,   durante   a   qual   ele   pareceu
me olhar com uma atenção concentrada, acenou com sua bandeira enrolada
em direção a um ponto em meu patamar, distante umas duas ou três cente-
nas de jardas.
      Respondi-lhe  “Está bem!” e desci àquele ponto. Lá, à força de olhar
atentamente ao meu redor, encontrei um caminho escavado e irregular des-
cendo em ziguezague, que segui.
      O entalho era extremamente profundo e anormalmente abrupto. Era
feito em pedra úmida, que se tornava mais gotejante   e molhada à medida
que eu descia. Por isso, o percurso foi lento o bastante para me dar tempo
de   recordar   um  ar   singular   de   relutância   ou   obrigação   com o   qual   ele me
apontara o caminho.
      Após descer o ziguezague o suficiente para vê-lo novamente, vi que ele
se postara entre os trilhos pelos quais o trem passara recentemente, como se
estivesse esperando que eu aparecesse. Tinha a mão esquerda no queixo e o
cotovelo esquerdo pousava na mão direita, cruzada sobre o peito. Sua pos-
tura era de tal expectativa e cautela que me detive por um instante, surpreso.
      Retomei minha descida e, caminhando cautelosamente até o nível dos
trilhos e aproximando-me dele, vi que era um homem moreno e aparência
doentia, com uma barba escura e sobrancelhas um tanto cerradas. Seu posto
ficava no lugar mais solitário e lúgubre que eu jamais vira. De ambos os la-
dos,   um   gotejante  muro   de   pedras   irregularmente   recortadas,   que   a   tudo
ocultava,   exceto   uma   faixa  de   céu;   o   panorama   numa   direção   apresentava
apenas um prolongamento torto desse grande calabouço; na outra direção,
mais proximamente, avistava-se uma luz vermelha sombria e a entrada ainda
mais sombria de um túnel negro, em cuja  arquitetura maciça havia apenas
um   ar   terrivelmente   opressivo   e   irrespirável.   Esse lugar   recebia   tão   pouca
luz do sol que exalava um cheiro de terra insuportável; e atravessava-o um

                                       

vento tão frio que fiquei gelado, como se houvesse me distanciado do mun-
do real.
      Antes que ele se movesse, eu fiquei tão próximo que poderia tocá-lo.
Sem tirar os olhos de mim nem mesmo então, ele recuou um passo e levan-
tou a mão.
      Esse   posto   era   solitário   (disse   eu)   e   havia   chamado   minha   atenção
quando de lá de cima olhara para baixo. Raramente aparecia um visitante, eu
supunha; mas  essa seria uma raridade indesejável? Talvez em mim ele pu-
desse   ver   um   homem  que   igualmente   fora   encerrado   em   limites   estreitos
durante toda a vida mas que, finalmente livre, fora recentemente despertado
para essas grandes obras. Assim dirigi-me a ele; mas não estou certo de que
foram essas as palavras usadas, pois, além de eu não ser bom em entabular
uma conversa, havia algo no homem que me intimidava.
      Ele lançou um olhar muito estranho para a luz vermelha perto da boca
do túnel e perscrutou-a, como se algo estivesse faltando ali e depois olhou
para mim.
      “Aquela luz fazia parte de sua ocupação? Não é?”
      Respondeu numa voz baixa: “Você sabe que sim”.
      Um   pensamento   terrível   me  veio  à mente   enquanto   examinava  aten-
tamente os olhos fixos e o rosto saturnino, que se tratava não de um  ho-
mem, mas de um espectro. Desde então tenho me perguntado se seu espíri-
to não estava contaminado.
      Quanto a mim, recuei. Mas, ao fazê-lo, detectei em seus olhos algum
medo latente de mim. Isso pôs a correr o pensamento terrível.
      “Você olha para mim”, falei, forçando um sorriso, “como se me rece-
asse.”
      “Eu não tinha certeza”, respondeu ele, “se o vira antes.”
      “Onde?”
      Ele apontou para a luz vermelha para onde olhara.
      “Lá?”, disse eu.
      Com um olhar atento e cauteloso, ele respondeu (mas com voz inaudí-
vel) que sim.


      “Meu bom amigo, o que eu estaria fazendo lá? Mas, de qualquer forma,
eu nunca estive lá, pode estar certo disso.”
      “Acho que posso”, repetiu ele. “Sim, acho que posso.”
      Seu rosto se desanuviou, assim como o meu. Respondeu às minhas in-
dagações com solicitude e palavras precisas. Ele tinha muito que fazer ali?
Sim, diria que sim, tinha muitas coisas sob sua responsabilidade, mas o que
se exigia dele eram pontualidade e atenção, não um trabalho real — manual.
Para mudar aquele sinal, ajustar aquelas luzes e girar essa maçaneta de ferro
de quando e quando era tudo que tinha a fazer. Com relação àquelas muitas
horas longas e solitárias que me chamavam tanto a atenção, ele podia apenas
dizer que a rotina de sua vida assim se acomodara e que a ela se habituara.
Ele   aprendera   lá   uma   linguagem  —  se   conhecê-la   apenas   pela   visão   e   ter
formado suas próprias idéias toscas de sua pronúncia pudesse ser chamado
de   aprendizado.   Ele   também   trabalhava   com  frações   e   decimais   e   tentara
um pouco de álgebra; mas tinha dificuldade, desde  criança, com números.
Era-lhe necessário, quando em serviço, permanecer sempre naquela corren-
te de ar úmido e não podia nunca subir para a luz do sol, por entre aqueles
altos muros de pedra? Ora, isso dependia da hora e das circunstâncias. Sob
certas   circunstâncias,   havia   menos   trabalho   no   Ramal   do   que   nos   outros,
independente de horas diurnas ou noturnas. Quando o  tempo estava bom,
ele às vezes saía um pouco daquelas sombras inferiores; mas, como estava
sempre sujeito a chamadas de sua campainha elétrica, e nessas ocasiões pre-
cisava ficar atento a ela com ansiedade redobrada, o alívio era menor do que
eu poderia supor.
      Ele me levou ao seu cubículo, onde havia uma lareira, uma escrivani-
nha para um livro oficial no qual ele devia registrar certas entradas, um apa-
relho telegráfico com seu dispositivo de discagem, mostrador e agulhas e o
pequeno sino de que falara. Quando expressei minha certeza de que ele per-
doaria minha observação quanto ao fato de que era um homem instruído e
(sem ofensa, esperava eu) talvez acima daquele cargo, ele observou que era
extremamente   raro   encontrarem-se exemplos   de   ligeira   discordância   desse
tipo   entre   uma   grande   quantidade   de   pessoas; que   ouvira   casos   assim nas

                                     

oficinas, na polícia, até mesmo naquele último recurso desesperado, o exér-
cito; e que ele sabia ser assim, mais ou menos, em qualquer equipe de uma
grande   companhia   de   estradas-de-ferro.   Fora,   quando  jovem   (se   me   fosse
possível crer, sentado naquela cabina; até mesmo a ele era  difícil crer), um
estudante de filosofia natural e freqüentara cursos; mas havia se comportado
mal, perdido suas oportunidades, decaído, e nunca mais se recuperara. Não
se queixava disso. Fizera sua cama e deitara-se nela. Era tarde demais para
fazer outra.
      Tudo isso —  que eu resumi aqui —  ele o disse de jeito calmo, com
seus olhares sérios divididos entre mim e o fogo. Ele intercalava a palavra
“Senhor”  de  tempos   em   tempos   e   especialmente   quando   se   referia   a   sua
juventude: como se me pedisse para compreender que ele não pretendia ser
senão o que eu nele via. Diversas vezes ele foi interrompido pelo sininho e
precisou ler mensagens e enviar respostas. Uma das vezes, teve de postar-se
além da porta e agitar uma bandeira enquanto um trem passava e trocar al-
gumas palavras com o foguista. Observei  que, no desempenho de seus de-
veres,   ele   era   notavelmente   pontual   e   atento, interrompendo   seu   discurso
numa sílaba e permanecendo em silêncio até terminar o que tinha a fazer.
      Em   suma,   eu   daria   as   melhores   recomendações   a   respeito   desse   ho-
mem   para  esse   emprego,   salvo pela   circunstância   de   que,   enquanto   falava
comigo,   interrompeu-se  duas   vezes,   empalideceu,   virou   seu   rosto   para  o
sininho que não estava tocando, abriu a porta da cabina (que ficava fechada
para impedir a umidade insalubre) e  olhou para a luz vermelha próxima à
boca do túnel. Em ambas as ocasiões voltou para o fogo com o ar inexpli-
cável que eu observara, mas não fora capaz de definir, quando ainda está-
vamos muito distantes um do outro.
      Eu disse, quando me levantei para despedir-me:  “Você quase me fez
pensar  que  encontrei  um  homem  feliz”.   (Mas   devo   confessar   que   o   disse
para animá-lo).
      “Creio que era”, replicou ele, na voz baixa com que falara pela primeira
vez, “mas estou perturbado, senhor, estou perturbado.”

                                     

      Ele teria retirado as palavras, se pudesse. Mas dissera-as, contudo, e eu
rapidamente agarrei a deixa.
      “Com o quê? O que o perturba?”
      “É muito difícil explicá-lo, senhor. É algo  sobre o que é muito difícil
falar. Se algum dia o senhor me fizer uma outra visita, tentarei contar-lhe.”
      “Mas eu tenho realmente a intenção de fazer-lhe uma outra visita. Di-
ga-me, quando poderei fazê-lo?”
      “Saio de manhã cedo e volto novamente amanhã às dez da noite, se-
nhor.”
      “Virei às onze.”
      Mostrou-se agradecido e foi até a porta comigo. “Acenderei minha luz
branca, senhor”, disse ele, naquele seu tom de voz baixa que lhe era peculiar,
“até o senhor encontrar seu caminho para cima. Quando chegar lá, não gri-
te! E quando estiver no topo, não grite!”
      Sua   atitude   parecia   fazer   o   lugar   me   parecer   mais   frio,   mas   eu   nada
mais disse senão “Está bem”.
      “E quando descer amanhã à noite, não grite! Permita-me fazer-lhe uma
última pergunta. O que o fez gritar „Alô! Alô, aí embaixo‟ esta noite?”
      “Sabe-se lá”, disse eu. “Gritei algo assim...”
      “Não assim, senhor. As palavras foram exatamente essas. Conheço-as
bem.”
      “Admito que foram essas as palavras. Eu as disse, sem dúvida, porque
eu o vi embaixo.”
      “Por nenhum outro motivo?”
      “Por que outro? Que outro motivo poderia haver?”
      “Não teve nenhuma sensação de que lhe eram comunicadas de algum
modo sobrenatural?”
      “Não.”
      Ele me desejou boa noite e levantou sua lanterna. Andei pelo lado da
linha de trilhos abaixo (com uma sensação muito desagradável de um trem
vindo atrás de mim), até encontrar o lugar de subida. Era mais fácil subir do
que descer, e eu voltei para meu hotel sem quaisquer incidentes.


                                           II

      Pontualmente, coloquei meu pé no primeiro entalhe do ziguezague na
noite seguinte quando os relógios ao longe estavam batendo as onze horas.
Ele estava a minha espera no fundo, com sua luz branca acesa. “Não gritei”,
disse eu, quando nos aproximamos;  “posso falar agora?”. “Claro que sim,
senhor.”  “Boa   noite,   então,  e   aqui   está   minha   mão.”  “Boa   noite,   senhor;
aqui está a minha.” Com isso, caminhamos lado a lado até sua cabina, en-
tramos, fechamos a porta e sentamo-nos ao lado do fogo.
      “Decidi,  senhor”,   começou   ele,   inclinando-se   para   frente   assim   que
nos  sentamos e falando num tom pouco acima de um sussurro,  “que não
precisará perguntar   duas   vezes   sobre   o  que   me  perturba.   Tomei   o  senhor
por outra pessoa ontem à noite. O que me perturba.”
      “Esse engano?”
      “Não. A outra pessoa.”
      “Quem é ela?”
      “Não sei.”
      “Parecida comigo?”
      “Não sei. Nunca vi o rosto. O braço esquerdo está na frente do rosto,
e o braço direito está acenando. Acenando com violência. Assim.”
      Segui seu gesto com meus olhos e era o de um braço a agitar-se com
extrema comoção e veemência. “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
      “Numa  noite  enluarada”,   disse   o   homem,        “eu  estava  sentado  aqui 
quando  ouvi   uma   voz   gritar:   Alô!   Aí   embaixo!'   Fiz   um   movimento,   olhei
daquela porta e vi essa pessoa de pé, ao lado da luz vermelha perto do túnel,
acenando exatamente como lhe mostrei agora. A voz parecia rouca de tanto
gritar e gritava: „Cuidado! Cuidado!‟. E depois novamente: „Alô! Aí embaixo!
Cuidado!‟. Peguei minha lanterna, acendi a luz vermelha e corri em direção à
figura, dizendo: „O que há de errado? O que aconteceu? Onde?‟. Eu estava
perto da escuridão do túnel. Avancei para bem perto dele, pois estranhei o


fato de manter a manga diante de seus olhos. Corri para ele e, quando es-
tendi minha mão para puxar a manga, ele desapareceu”.
      “Dentro do túnel?”, indaguei.
      “Não.   Corri   para   dentro   do   túnel,   quinhentas   jardas.   Parei   e   levantei
minha lanterna acima da cabeça e vi as figuras de uma certa distância e as
gotas de umidade descendo pelas paredes e escorrendo pelo arco. Corri para
fora   novamente, mais   rápido   do   que   correra   para   dentro   dele   (pois   tenho
um pavor mortal do lugar) e olhei tudo em volta da luz vermelha com a mi-
nha própria luz vermelha e subi a escada de ferro até a galeria acima e desci
novamente,   correndo   de   volta  para   cá.   Telegrafei   para   ambos   os   lados:
„Houve  um   alerta.  Alguma  coisa  errada?‟ A   resposta   de   ambos   foi:  „Tudo 
certo?‟.”
      Afastando o lento toque de um dedo gelado a subir pela minha espi-
nha, expliquei-lhe que aquela imagem devia ser uma ilusão de óptica e que
se sabia que essas imagens, originadas por doença dos nervos delicados que
comandam   as  funções   dos   olhos,   muitas   vezes   perturbavam   os   pacientes,
alguns   dos   quais   haviam  reconhecido   a   natureza   de   sua   ansiedade   e   até
mesmo comprovado-a por experiências consigo mesmos. “Quanto ao grito
imaginário”, expliquei, “ouça apenas por um momento o vento nesse vale
artificial enquanto falamos com vozes tão baixas e como ele faz dos fios do
telégrafo uma harpa extremamente sonora!”
      Tudo isso estava muito certo, respondeu ele, depois que já estávamos
sentados por bons minutos, e já deveria ter pensado no vento e nos fios, ele
que tantas vezes passara longas noites de inverno ali, sozinho e em vigília.
Mas rogou-me atentar para o fato de que ainda não terminara.
      Pedi   desculpas,   e   ele   lentamente   acrescentou   estas   palavras,  tocando
em meu braço:
      “Seis horas após a Aparição, aconteceu o famoso acidente desta Linha
e durante dez horas os mortos e feridos foram trazidos de dentro do túnel,
sobre o ponto em que estivera a imagem”.
      Um calafrio desagradável subiu-me pelo corpo, mas fiz o possível para
ignorá-lo. Era inegável, repliquei, que se tratava de uma coincidência notável


e na medida certa para impressioná-lo. Mas era inquestionável que coinci-
dências notáveis ocorriam sempre e que elas devem ser levadas em conta ao
lidar   com  assuntos  desse   tipo.   Embora   eu   certamente   devesse   admitir,  a-
crescentei (pois julgava prever que ele iria contra-argumentar) que homens
de   bom senso  geralmente   não   incluem  coincidências   nas previsões  dos  a-
contecimentos cotidianos.
      Ele novamente rogou-me que atentasse para o fato de que não termi-
nara.
      Novamente pedi desculpas por tê-lo interrompido.
      “Isso”, disse ele, pondo a mão em meu braço de novo e olhando por
sobre o ombro com olhos vazios, “aconteceu exatamente um ano atrás. Seis
ou   sete   meses  se   passaram,   e   eu   me   recobrara   da   surpresa   e   do   choque
quando   uma   manhã,   ao  amanhecer,   de   pé   naquela   porta,   olhei   para   a   luz
vermelha e vi o espectro  novamente”. Ele parou, com um olhar fixo para
mim.
      “Ele gritou?”
      “Não. Ficou em silêncio.”
      “Ele acenou?”
      “Não. Encostou-se ao poste da lanterna, com as duas mãos diante do
rosto. Assim.”
      Mais uma vez, segui seu gesto com os olhos. Era um gesto de luto. Já
vi essa postura em figuras de pedra sobre túmulos.
      “Você foi até ele?”
      “Entrei e sentei-me, em parte para recobrar o domínio de meus pensa-
mentos,  em parte porque me sentia a ponto de desmaiar. Quando fui no-
vamente até a porta, a luz do dia brilhava e o fantasma desaparecera.”
      “Mas nada mais aconteceu? Foi tudo?”
      Ele me tocou o braço com seu dedo indicador duas ou três vezes,  a-
companhando cada um desses gestos com uma inclinação da cabeça, aterro-
rizado.
      “Naquele mesmo dia, quando um trem saiu do túnel, notei, numa jane-
la do vagão para o meu lado, o que parecia uma confusão de mãos e de ca-


beças, e algo  acenava. Eu o vi,  a tempo de fazer um sinal para o foguista
parar. Ele desligou e freou, mas o trem arrastou-se outras cento e cinqüenta
jardas ou mais. Corri para ele e, enquanto o acompanhava, ouvi gritos agu-
dos e choros terríveis. Uma bela e jovem senhora morrera instantaneamente
em um dos compartimentos e foi trazida para cá; deitaram-na neste chão,
aqui, entre nós dois.”
      Involuntariamente,   recuei   minha   cadeira,   enquanto   meu   olhar   ia   das
tábuas para as quais ele apontava para ele próprio.
      “Verdade, senhor. Verdade. Foi exatamente assim que aconteceu, es-
tou lhe dizendo.”
      Eu   não   conseguia   pensar   em   nada   para   dizer,   nada   que   conviesse,   e
minha boca estava muito seca. O vento e os fios receberam a história com
um longo gemido de lamento.
      Ele   recomeçou.  “Agora,   senhor,   ouça   bem   e   avalie   a   perturbação   de
meu espírito. O espectro voltou, uma semana atrás. Desde então, ele está lá,
de quando em quando, intermitentemente.”
      “Ao lado da lanterna?”
      “Ao lado da lanterna de alerta.”
      “O que ele parece estar fazendo?”
      Ele repetiu, se possível com uma emoção e veemência maior, a gesti-
culação anterior de “Pelo amor de Deus, saia do caminho!”
      Depois continuou: “Não tenho paz ou tranqüilidade por causa disso.
Ele   me  chama,   durante   minutos   seguidos,   de   uma   forma   angustiada,  „Aí
embaixo!  Cuidado!  Cuidado!‟  Ele   fica   acenando   para   mim.   Ele   toca   meu
sininho...”
      Nesse momento, eu o interrompi. “Ele tocou seu sino ontem à noite,
quando eu estava aqui e você foi até a porta?”
      Duas vezes.
      “Ora, veja”, disse eu, “como sua imaginação o engana. Meus olhos es-
tavam no sino, e meus ouvidos atentos, e se estou vivo, ele NÃO tocou en-
tão. Não, nenhuma vez, exceto do modo natural das coisas físicas, quando a
estação comunicou-se com você.”

                                       

      Ele balançou a cabeça. “Eu nunca me enganei, senhor. Nunca confun-
di a badalada do espectro com a humana. O badalar do fantasma é uma vi-
bração  estranha no sino que não provém de nada mais, e não afirmei que
não se vê o sino balançar. Não surpreende que o senhor não o tenha ouvido.
Mas eu ouvi.”
      “E o espectro pareceu estar lá, quando você olhou para fora?”
      “Ele estava lá.”
      “Ambas as vezes?”
      Repetiu com firmeza: “Ambas as vezes.”
      “Você poderia ir até a porta comigo e procurá-lo agora?”
      Ele mordeu o lábio inferior como se relutasse um pouco, mas levan-
tou-se. Abri a porta e fiquei no degrau, enquanto ele se deteve na soleira. Ali
estavam as altas paredes de pedras molhadas do entalho. Ali estavam as es-
trelas bem acima delas.
      “Você o vê?”, perguntei-lhe, observando atentamente seu rosto. Seus
olhos estavam arregalados e fatigados; mas não muito mais do que haviam
estado os meus quando os dirigira atentamente para o mesmo ponto.
      “Não”, respondeu ele. “Ele não está lá.”
      “Exatamente”, disse eu.
      Entramos      novamente,   fechamos   a   porta   e   sentamo-nos.   Eu   estava
pensando em como aproveitar essa vantagem, se é que podemos chamá-la
assim, quando ele retomou a conversa de um modo tão direto, admitindo
que não poderíamos discordar seriamente diante do fato, que senti estar em
uma posição muito desfavorável.
      “A esta altura o senhor compreenderá perfeitamente”, disse ele, “que o
que me perturba de modo tão terrível é a pergunta: o que quer dizer o es-
pectro?”
      Eu não tinha certeza, disse-lhe eu, de tê-lo compreendido perfeitamen-
te.
      “Ele está me avisando do quê?”, disse ele, ruminando, os olhos no fo-
go   e  apenas   de  vez  em  quando  os voltando   para   mim.  “Qual   é o perigo?
Onde está o perigo? Há um perigo à espreita, em algum lugar na linha. Al-

                                       

guma   terrível   desgraça  está   para   acontecer.   Quanto   a   isso   não   há   dúvida,
nesta terceira vez, depois do que aconteceu antes. Mas com certeza isso me
atormenta. O que posso fazer?!”
      Ele tirou seu lenço e enxugou as gotas de suor de sua testa febril.
      “Se eu telegrafar: Perigo, para um dos lados ou para ambos, não posso
alegar nenhum motivo para tanto”, continuou ele, enxugando as palmas das
mãos. “Eu iria me arrumar problemas e não adiantaria nada. Eles pensariam
que   estou   louco.   O  que  sucederia  seria  isto:  Mensagem  „Perigo!   Cuidado!‟ 
Resposta:  „Que   Perigo?  Onde?‟  Mensagem:  „Não   sei.   Mas,   pelo   amor   de
Deus, cuidado!‟ Eles me demitiriam. O que mais poderia fazer?”
      Seu sofrimento causava grande pena. Era a tortura mental de um ho-
mem  consciencioso,   oprimido   intoleravelmente   por   uma   responsabilidade
ininteligível que envolvia vidas.
      “Quando ele ficou pela primeira vez sob a luz de perigo”, continuou,
afastando da testa seus cabelos escuros e esfregando as mãos pelas têmporas,
num gesto de  desespero febril, “por que não me dizer onde esse acidente
devia acontecer —  se ele devia acontecer? Por que não me dizer como ele
poderia ter sido evitado —  se ele pudesse ser evitado? Quando de sua se-
gunda aparição, ele escondeu o rosto; por que, em vez disso, não me disse,
„Ela vai morrer. Diga-lhes para mantê-la em casa?‟ Se ele viesse, nessas duas
ocasiões, apenas para me mostrar que seus avisos  eram verdadeiros e por-
tanto para preparar-me para o terceiro, por que simplesmente não me avisar
agora? E eu, Deus me ajude, um simples e pobre sinaleiro neste lugar solitá-
rio! Por que não ir até alguém com credibilidade e poder para agir?!”
      Quando   o   vi   nesse  estado,   compreendi   que,   em   favor   do   pobre   ho-
mem,   assim  como   para   a   segurança   do   público,   o   que   me   cabia   fazer   no
momento era acalmá-lo. Conseqüentemente, deixando de lado toda discus-
são entre nós sobre o que era real e o que não era, argumentei com ele que
quem quer que exercesse tão conscienciosamente sua função fazia-o bem, e
que   ao   menos   para   seu   consolo   ele  compreendia   seu   dever,   embora   não
compreendesse essas aparições malditas. Nesse esforço eu me saí muito me-
lhor   do   que   na   tentativa   de   convencê-lo   de   que   estava  errado.   Ele   ficou

                                        

calmo; as ocupações inerentes a seu posto, à medida que a noite avançava,
começaram a requisitar cada vez mais sua atenção, e eu o deixei às duas da
manhã.   Eu   me  ofereci   para   ficar   a noite   toda,   mas   ele  absolutamente   não
quis.
      Que eu mais de uma vez olhei para trás, para a luz vermelha, enquanto
subia pelo caminho, que eu não gostava da luz vermelha e que teria dormido
muito mal  se minha cama estivesse sob ela são fatos que não vejo motivo
para esconder. Nem gostei das duas seqüências do acidente e da moça mor-
ta. Não vejo motivo para esconder isso também.
      Mas o que mais me ocupava o pensamento era a reflexão sobre como
deveria agir, agora que me fora feita uma tal revelação. Eu verificara que o
homem era inteligente, atento, escrupuloso e pontual; mas por quanto tem-
po   ele   continuaria  assim,   nesse   estado   de   espírito?   Apesar   de   sua   posição
subordinada, ele tinha uma responsabilidade da maior importância. Gostaria
eu   (por   exemplo)   de   apostar minha própria   vida   nas   possibilidades   de  ele
continuar a executá-la com perfeição?
      Incapaz de superar uma sensação de cometer de certa forma uma trai-
ção se comunicasse aos seus superiores na Companhia o que ele me dissera,
sem primeiro ter uma conversa franca e propor uma solução intermediária
para ele, resolvi por fim oferecer-me para acompanhá-lo (e também guardar
segredo   por   uns   tempos)  ao   melhor   médico   especialista   que   pudéssemos
consultar na região e pedir sua opinião. Uma mudança no seu turno de ser-
viço ocorreria na noite seguinte, segundo ele me informara; ele estaria livre
uma   hora   ou   duas   após   o   amanhecer   e   voltaria  logo   depois   do   anoitecer.
Tínhamos marcado nosso encontro conforme esse esquema.
      A noite seguinte estava agradável, e eu saí cedo de casa, a fim de des-
frutá-la. O sol ainda não se pusera quando atravessei a calçada próxima do
topo do entalhe profundo. Eu estenderia minha caminhada por uma hora,
disse comigo, meia hora para ir e meia hora para voltar, e então já seria hora
de ir à cabina do meu sinaleiro.
      Antes de prosseguir meu  passeio, pisei na borda e mecanicamente  o-
lhei para baixo, no lugar de onde o vira pela primeira vez. Não consigo des-

                                      

crever o calafrio que me percorreu quando, junto à boca do túnel, vi o vulto
de um homem, com sua manga esquerda sobre os olhos, acenando veemen-
temente com o braço direito.
      O indizível horror que me sufocava passou num minuto, pois logo vi
que esse vulto era de fato um homem e que havia um pequeno grupo de
outros homens em pé a uma pouca distância dali, para quem ele parecia es-
tar encenando o gesto  que fizera.   A luz de perigo ainda não estava acesa.
Junto ao poste, estava uma  pequena tenda baixa, que nunca vira antes, com
suportes de madeira e lona. Não parecia maior do que uma cama.
      Com uma sensação inelutável de que havia algo errado — com um sú-
bito medo do sentimento de culpa pelo erro fatal de ter deixado o homem
ali e não ter feito com que enviasse alguém para supervisioná-lo ou corrigir
o que ele fazia — desci o caminho chanfrado o mais depressa que pude.
      “O que aconteceu?”, perguntei aos homens.
      “O sinaleiro foi morto esta manhã, senhor.”
      “Não é o homem daquela cabina, é?”
      “É sim, senhor.”
      “O homem que conheço?”
      “O senhor o reconhecerá, se o conhecia”, disse o homem que era um
porta-voz,  descobrindo solenemente sua própria cabeça e levantando uma
ponta da lona, “pois seu rosto não se alterou”.
      “Meu Deus! Como isso aconteceu, como isso aconteceu?”, perguntei,
virando para um e para outro, enquanto a cabina era novamente fechada.
      “Ele   foi   morto   por   uma   locomotiva,   senhor.   Ninguém   na   Inglaterra
conhecia melhor seu trabalho do que ele. Mas, não se sabe por quê, ele não
saiu do trilho externo. Foi em pleno dia. Ele havia acendido a luz e tinha na
mão a lanterna. Quando a locomotiva saiu do túnel, ele estava de costas pa-
ra   ela   e   foi   atingido.  Aquele   homem   ali   estava   no   comando   e   mostrando
como aconteceu. Mostre a este cavalheiro, Tom.”
      O homem, que usava uma capa tosca e escura, recuou para o lugar on-
de estivera antes, junto à boca do túnel.

                                    

      “Depois da curva do túnel, senhor”, disse ele, “eu o vi no fim, como
que numa luneta. Não deu tempo de diminuir a velocidade, e eu sabia que
ele era muito cuidadoso. Como ele pareceu não ouvir o apito, eu desliguei a
máquina quando estávamos próximos dele e chamei-o o mais alto que pu-
de.”
      “O que você disse?”
      “Eu disse: Alô, aí embaixo! Cuidado! Cuidado! Pelo amor de Deus, saia
do caminho!”
      Levei um choque.
      “Ah!,   foi   horrível,   senhor.   Eu   não   parei  de   gritar   para   ele.   Pus   meu
braço   na  frente   dos   olhos,   para   não   ver,   e   acenei   este   outro   até   o   último
momento; mas de nada adiantou.”
      Para não prolongar a narrativa com detalhes acerca de algumas das es-
tranhas circunstâncias mais do que de outras, posso, ao encerrá-la, sublinhar
a coincidência de que o alerta do maquinista da locomotiva incluía não ape-
nas as palavras que o infeliz sinaleiro repetira para mim e que dizia persegui-
lo, mas também as palavras que não ele, mas eu próprio associara — e ape-
nas mentalmente — ao gesto que ele imitara.

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