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domingo, 7 de agosto de 2011

Robert Louis Stevenson-O Ladrão de Corpos-Conto Fantasmagórico

  O LADRÃO DE CORPOS

                                                              Por:  Robert Louis Stevenson


     

Robert Louis (originalmente Lewis) Balfour Stevenson nasceu em Edimburgo, capital da Escócia. Filho de engenheiro civil, era pressionado pelo pai a seguir mesma carreira, mas a saúde debilitada e a fraca inclinação para a área fizeram com que decidisse por uma carreira alternativa. Em 1866 entrou para a faculdade de Engenharia de Edimburgo. Lá, escreveu durante 1871 e 1872 para o jornal universitário, o Edimburgh University Magazine, revelando seu gosto e talento para a arte e literatura. No ano de 1873, após concluir a faculdade, Robert muda-se para a cidade de Londres, Inglaterra, pois sentia-se deslocado no ambiente familiar, marcado por um clima coercitivo e pela inexorável moral e religiosidade puritanas. Em sua curta estada na cidade, passa a frequentar os salões literários para, algum tempo depois, partir em uma longa viagem pela Europa continental. O ano de 1876 é importante na sua vida particular, pois, nesse ano, conhece uma mulher norte-americana dez anos mais velha, Fanny Vandergrift Osbourne, com a qual se casa em 1880, em São Francisco, Estados Unidos. Volta à Inglaterra e traz consigo esposa e um enteado, chamado Samuel Lloyd Osbourne. No ano seguinte é internado na cidade de Davos, Suíça, para tratar sua tuberculose, que há anos o vinha acompanhando. A carreira de engenheiro, jamais exercida, é preterida pela de escritor, que, a partir de 1882, é marcada por uma acentuada proficuidade. Conhece a notoriedade artística ao escrever, em 1886, The Strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro), um de seus maiores sucessos literários. Com a morte do pai, em 1887, Stevenson retorna aos Estados Unidos, onde volta a tratar de sua tuberculose. No ano seguinte aventura-se num veleiro em diversos arquipélagos do Pacífico-Sul, junto com a esposa e o enteado. Apaixonado pela paisagem paradisíaca, se estabelece definitivamente em Apia, nas Ilhas Samoa, em 1889. Morre prematuramente, em 3 de dezembro de 1894, aos 44 anos, enquanto escrevia sua obra-prima inacabada, Weir of Hermiston, vítima da tuberculose.
O ano todo, todas as noites, nós quatro nos sentávamos na pequena
sala do George em Debenham — o agente funerário, o proprietário, Fettes e
eu.   Às   vezes  havia   outros   mais;  mas   ventasse   muito   ou   pouco,   chovesse,
nevasse ou geasse, cada um de nós quatro estaria plantado em sua devida
poltrona. Fettes era um velho escocês bêbado, um homem visivelmente ins-
truído e possuidor de alguns bens, uma vez que vivia no ócio. Ele viera para
Debenham anos antes, ainda jovem, e, pela simples continuidade de sua e-
xistência,   tornara-se   um   concidadão  adotado.   Sua   capa   de   chamalote   azul
constituía uma antigüidade local, como a agulha da torre da igreja. Seu lugar
na sala do George, sua ausência na igreja, seus velhos, ignominiosos vícios de
embriaguez eram todos coisas sabidas em Debenham. Ele possuía algumas
opiniões vagamente radicais e algumas infidelidades passageiras, as quais vez
por outra expressava e enfatizava com pancadas titubeantes na mesa. Bebia
rum — cinco copos regularmente toda noite; e durante a maior parte da sua
visita noturna ao George sentava-se com seu copo na mão direita, em um es-
tado   de   melancólica   saturação   alcoólica.   Nós   o   chamávamos   de  Doutor,
pois ele supostamente possuía algum conhecimento especial de medicina e
sabia-se que, sob pressão, poderia consertar uma fratura ou um deslocamen-
to; mas,   além   desses   pequenos   casos,   não   tínhamos   conhecimento   de seu
caráter nem de seus antecedentes.
      Numa noite escura de inverno — soara as nove um pouco antes de vir
juntar-se a   nós   o  proprietário —,   havia   um   homem   doente no  George, um

                                      
ilustre proprietário  das vizinhanças subitamente tomado de apoplexia a ca-
minho do Parlamento, e chamara-se por telegrama ao ilustríssimo doutor do
ilustre proprietário. Era a primeira vez que tal coisa acontecera em Debe-
nham, pois a estrada de ferro fora inaugurada havia pouco tempo, e nossa
curiosidade pelo acontecimento aumentou na mesma proporção.
      “Ele   chegou”,   disse  o senhorio,  após   ter   enchido  e   acendido seu   ca-
chimbo.
      “Ele?”, disse eu. “Quem, o doutor?”
      “Ele mesmo”, respondeu nosso anfitrião.
      “Como ele se chama?”
      “Doutor Macfarlane”, disse o senhorio.
      Fettes já estava bem adiantado em seu terceiro tombo, totalmente em-
briagado ora cabeceando de sono, ora olhando a sua volta em estupor; mas
àquela última palavra pareceu acordar e repetiu o nome  “Macfarlane” duas
vezes, em voz baixa na primeira, mas com súbita emoção na segunda.
      “Sim”, disse o senhorio, “é esse seu nome, Doutor Wolfe Macfarlane.”
      Fettes ficou imediatamente sóbrio: seus olhos brilharam, sua voz tor-
nou-se clara, alta e firme, sua articulação, enérgica e determinada. Ficamos
todos surpresos diante da transformação, como se alguém tivesse retornado
do mundo dos mortos.
      “Perdoem-me”, disse ele, “acho que não estava prestando muita aten-
ção a sua conversa. Quem é esse Wolfe Macfarlane?”. E então, quando ou-
viu   o   senhorio  dizê-lo:  “Não   pode  ser,   não  pode  ser”,   acrescentou;  “mas
mesmo assim gostaria muito de encontrá-lo cara a cara”.
      “Você o conhece, Doutor?”, perguntou o agente funerário, boquiaber-
to.
      “Deus me livre, não!”, foi a resposta. “E, no entanto, o nome é estra-
nho; dificilmente imaginaríamos dois. Diga-me, senhorio, ele é velho?”
      “Bem”, disse o anfitrião, “não é jovem, com certeza, e seus cabelos es-
tão brancos; mas ele parece mais jovem do que você”.
      “No entanto, ele é mais velho; anos mais velho. Mas”, com um tapa na
mesa,  “é o rum que você vê em meu rosto —  rum e pecado. Talvez esse

                                    

homem       tenha  uma     consciência    tranqüila   e  um   bom   aparelho     digestivo.
Consciência!   Ouçam. Vocês   não   imaginariam   que   fui   um   bom,  velho,  de-
cente cristão, não é? Mas não, eu não; eu jamais choraminguei. Voltaire po-
deria ter choramingado, se estivesse em meu lugar; mas o cérebro” — com
um piparote em sua careca — “os miolos estavam limpos e ativos, e eu não
vi nem fiz deduções”.
      “Se você conhece esse doutor”, aventurei-me a observar, após alguns
minutos de certa estupefação, “imagino que não partilhe da mesma boa  o-
pinião do senhorio”.
      Fettes não me deu atenção.
      “Sim”, ele disse, com uma determinação súbita, “preciso olhá-lo cara a
cara.”
      Houve mais uma pausa e então se ouviu fechar uma porta com estrépi-
to no primeiro andar, e depois um passo na escada.
      “É o doutor”, exclamou o senhorio. “Fique atento, e você poderá al-
cançá-lo.”
      Eram apenas dois passos da pequena sala à porta da velha taverna Ge-
orge; a ampla escadaria de carvalho descia até quase a rua; havia espaço para
um tapete turco e nada mais entre a soleira e o último lance da escada; mas
esse   pequeno  espaço   ficava   toda   noite   fortemente   iluminado,   não   apenas
pela luz sobre a escada  e pela grande lanterna abaixo do letreiro, mas tam-
bém pela radiância acolhedora da janela do bar. Assim anunciava-se o George
radiantemente aos passantes da rua fria. Fettes caminhou resolutamente pa-
ra   aquele   ponto   e   nós,   que   ficamos   atrás,  inclinados,   observamos   os   dois
homens se encontrarem, nas palavras de um deles, cara a cara. O Dr. Mac-
farlane era ágil e vigoroso. Seus cabelos brancos destacavam sua fisionomia
pálida e plácida, embora enérgica. Estava ricamente vestido com a mais fina
das casimiras e o mais branco dos linhos, com uma grande corrente de ouro
de   relógio   e   abotoaduras   e   óculos   do   mesmo   metal   precioso.   Usava   uma
gravata larga em grande laço, branca, salpicada de lilás, e carregava no braço
uma confortável capa de viagem de pele. Ele indubitavelmente abrira cami-
nho ao longo dos anos imerso — e nela respirava — na riqueza e respeitabi-

                                      

lidade; e era um contraste  surpreendente ver nosso companheiro beberrão
—  careca, sujo, espinhento e  envolto em sua velha capa de chamalote —
defrontar-se com ele ao pé da escadaria.
      “Macfarlane!”, disse ele em voz um pouco alta, mais à maneira de um
arauto do que a de um amigo.
      O ilustre doutor deteve-se abruptamente no quarto degrau, como se a
informalidade do tom surpreendesse e chocasse de algum modo sua digni-
dade.
      “Toddy Macfarlane!”, repetiu Fettes.
      O londrino quase vacilou. Encarou por uma fração de segundo o ho-
mem  diante   de   si,   olhou   para   trás   como   que   temeroso,   e   então,   com   um
sussurro assustado, “Fettes!”, disse ele, “você!”.
      “Sim”,  disse  o  outro,  “eu!   Pensou   que   eu   também   estivesse   morto?
Não nos livramos tão facilmente de nossos conhecidos”.
      “Fale baixo, fale baixo!”, exclamou o doutor.  “Fale baixo, fale baixo!
Este encontro é tão inesperado... Vejo que você está abatido. De início, mal
o reconheci, confesso; mas estou muito feliz... muito feliz em ter esta opor-
tunidade. No momento, não há tempo senão para um breve cumprimento,
pois minha carruagem de aluguel está esperando e não posso perder o trem;
mas você pode — deixe-me ver — sim, você pode me dar seu endereço e
esteja certo de que lhe mandarei notícias. Devemos fazer algo por você, Fet-
tes. Parece que você está mal de vida; mas veremos o que é possível fazer,
em nome dos velhos tempos, como cantávamos nas ceias.”
      “Dinheiro!”, exclamou Fettes; “Dinheiro de você! O dinheiro que me
deu está aonde o atirei, na lama”.
      O Dr. Macfarlane expressara-se com alguma superioridade e confiança,
mas a energia incomum dessa recusa lançou-o novamente na sua confusão
anterior.
      Um olhar horrível, feio, emergiu e se apagou de sua fisionomia quase
venerável. “Meu caro”, disse ele, “faça como quiser; a última coisa que dese-
jo é ofendê-lo. Não é de meu feitio intrometer-me na vida de ninguém. Dei-
xo-lhe meu endereço, mesmo assim...”


      “Não o quero. Não quero saber que teto o abriga”, interrompeu-o o
outro. “Ouvi seu nome; temia que fosse você; queria saber se, afinal, existe
um Deus; sei agora que não existe nenhum. Vá embora!”
      Ele ainda permaneceu no meio do tapete, entre a escada e a soleira; e o
grande médico londrino, para fugir, teria de dar um passo para o lado. Era
visível sua hesitação diante da idéia dessa humilhação. Não obstante sua pa-
lidez, havia um certo brilho perigoso em seus óculos; mas, enquanto ainda
imóvel, hesitante, apercebeu-se de que o cocheiro de sua carruagem obser-
vava atentamente da rua aquela cena inusitada e ao mesmo tempo, num re-
lance, do nosso pequeno grupo  na sala, amontoado no canto do balaústre.
A   presença   de   tantas   testemunhas  convenceu-o   imediatamente   a   escapar.
Ele encolheu-se, encostando-se no lambril, e deu um salto, como uma ser-
pente, arremetendo-se para a porta. Mas sua tribulação ainda não chegara a
termo,   pois   exatamente   quando   ele   passava   Fettes  agarrou-o   pelo braço   e
disse estas palavras num sussurro, porém dolorosamente claras, “Você o viu
novamente?”
      O ilustre doutor londrino deu um grito agudo, sufocado; empurrou seu
oponente   para   o   espaço   livre   e,   com   as   mãos na   cabeça,   voou   pela   porta
como   um ladrão   pego   em   flagrante.   Antes   que   a   algum   de   nós   ocorresse
fazer um movimento, a carruagem já sacolejava em direção à estação. A ce-
na passou como um sonho, mas o sonho deixara provas e vestígios de sua
passagem. No dia seguinte, o criado encontrou os óculos de ouro quebrados
na soleira e naquela mesma noite nos postamos, a respiração em suspenso,
ao lado da janela do bar, Fettes ao nosso lado, sóbrio, pálido e com um o-
lhar decidido.
      “Deus nos guarde, sr. Fettes!”, disse o senhorio, o primeiro a recobrar
seu juízo normal. “O que, por todos os santos, foi aquilo? Aquelas coisas
estranhas que você disse?”
      Fettes   virou-se   para   nós;   olhou sucessivamente   para   o   rosto   de   cada
um de nós. “Cuidado com a língua”, disse ele. “Aquele homem, Macfarlane,
é perigoso contrariá-lo; aqueles que já o fizeram arrependeram-se tarde de-
mais.”

                                    

      E então, terminando quando muito seu terceiro copo, e sequer espe-
rando   os  outros   dois,   despediu-se   de   nós   e   mergulhou,   sob   a   lanterna   do
hotel, na noite escura.
      Nós três voltamos para nossos lugares na sala, com a grande lareira a-
cesa e quatro candeeiros acesos; e, à medida que recapitulávamos o ocorrido,
o fogo de nosso espanto, arrefecido pelo balde d‟água fria, logo reavivou-se,
incandescente,  em curiosidade. Ficamos até tarde; foi a sessão mais longa,
segundo   sei,   no   velho  George. Cada   um,   antes   de   nos   despedirmos,   tinha
uma   teoria   e   estava   determinado  a   prová-la;   e   nenhum   de   nós   tinha   nada
mais urgente a fazer neste mundo do que  seguir os rastros do passado de
nosso companheiro silenciado e descobrir o segredo que ele partilhava com
o ilustre doutor londrino. Não é uma grande glória, mas  acredito que mi-
nhas   chances   em   desenterrar   uma   história   eram   melhores   do   que        as   de
quaisquer outros de meus companheiros do George; e talvez não reste agora
mais   ninguém   vivo   para   lhes narrar   os  eventos   sórdidos   e   extraordinários
que se seguem.
      Em sua juventude, Fettes estudara medicina nas escolas de Edimburgo.
Possuía um talento medíocre, o talento que apanha rapidamente o que ouve
e prontamente o costura a seu próprio modo. Trabalhava pouco em casa;
mas,   era  educado,   atento,   e   inteligente   na   presença   de   seus   mestres.   Eles
logo o distinguiram como um rapaz que ouvia atentamente e tinha uma boa
memória; mais do que isso, estranho que me parecesse quando o ouvi pela
primeira vez, naqueles dias ele se beneficiava de uma aparência muito agra-
dável. Havia, àquela época, um certo professor extramuros de anatomia, que
aqui   denominarei   pela   letra   K.   Seu nome  tornou-se   posteriormente   muito
conhecido.   O   homem   que   o   portava   transitou  sob   disfarce pelas   ruas   de
Edimburgo   enquanto   a   turba   que   aplaudia   a   execução  de   Burke   clamava
ruidosamente pelo sangue de seu empregador. Mas o sr. K. estava então no
auge   de   sua   fama;   desfrutava   de   uma   popularidade   devida   em  parte   a   seu
próprio talento e habilidade, em parte devido à inépcia de seu rival, o pro-
fessor da universidade. Os estudantes, pelo menos, o admiravam, e Fettes
acreditava —  assim como os outros —  que assentaria as bases do sucesso


quando angariasse o favor desse homem de fama meteórica. O sr. K. era um
bon vivant tanto quanto um professor talentoso; não tinha menos apreço por
uma   insinuação  astuta   do   que   por  um   raciocínio   rigoroso.  Tanto   por   esta
como por aquela habilidade Fettes desfrutava de sua atenção — e a merecia
—, e por volta do segundo ano de seu curso ocupava a posição semi-oficial
de segundo demonstrador ou sub-assistente em suas aulas.
      A esse título, o encargo do auditório e sala de conferências recaía par-
ticularmente sobre seus ombros. Era responsável pela limpeza dos recintos
e  pela   conduta   dos   outros   estudantes,   e   constituía   parte   de   seus   deveres
providenciar, receber e distribuir os vários cadáveres. Em virtude desta úl-
tima   obrigação  —  aquela   época   muito   delicada  —,   o   sr.   K.   o   alojara   no
mesmo beco e, por fim, no próprio edifício das salas de dissecção. Ali, após
uma noite de prazeres turbulentos, a mão ainda vacilante, a visão ainda ene-
voada e confusa, ele seria tirado da cama nas horas sombrias antes da autora
invernal pelos sujos e brutais intrusos que supriam a mesa. Ele abriria a por-
ta a esses homens, desde então mal-afamados em toda a região. Ele os aju-
daria com sua trágica carga, pagar-lhes-ia seu sórdido preço e ficaria a sós,
após sua partida, com os repugnantes restos da humanidade. De tal cenário
ele   retornaria   para   roubar   uma   hora   ou   duas   de   cochilo,   recuperar-se dos
abusos da noitada e preparar-se para os labores do dia.
      Poucos   rapazes   poderiam   ter   sido   mais   insensíveis   às   impressões   de
uma vida assim, passada entre as insígnias da mortalidade. Seu espírito esta-
va fechado a todas as considerações gerais. Era incapaz de ter interesse no
destino e nos percalços de outrem, escravo de seus próprios desejos e ambi-
ções ignominiosas. Frio despreocupado e egoísta até o último grau, ele pos-
suía aquela pequena parcela de prudência, alcunhada de moralidade, que a-
fasta um homem da embriaguez inconveniente ou do roubo passível de pu-
nição.   Além   disso,   ele   ambicionava   um  certo   respeito   de   seus   mestres   e
condiscípulos e não tinha nenhum desejo de fracassar de modo conspícuo
nos aspectos exteriores da vida. Desse modo, encontrou prazer em adquirir
alguma distinção em seus estudos e dia após dia prestava irrepreensíveis ser-
viços visíveis a seu empregador, o sr. K. Por seu dia de trabalho, ele recom-

                                    

pensava-se com noites de prazer ruidoso e vil; e quando esse equilíbrio era
atingido, o órgão que ele chamava de sua consciência declarava-se satisfeito.
      O suprimento de cadáveres constituía um problema constante para ele,
assim como para seu mestre. Naquela sala de aula grande e buliçosa, a maté-
ria-prima dos anatomistas estava sempre em falta; e o trabalho assim reque-
rido   não   era   de  todo   desagradável   em   si,   mas   ameaçava   acarretar   conse-
qüências perigosas para todos os envolvidos. O sr. K. adotava a política de
nunca lhe fazer perguntas sobre seus procedimentos naquele negócio. “Eles
trazem o traste e nós pagamos o preço”, costumava dizer, demorando-se na
aliteração — quid pro quo. E, novamente e de uma forma um tanto profana,
“Não faça perguntas”, dizia a seus assistentes, “a bem da consciência”. Não
se cogitava que os cadáveres fossem fornecidos pelo crime de assassinato.
Houvesse essa idéia sido aventada explicitamente a ele, teria se encolhido de
horror; mas a leveza de seu discurso sobre uma questão tão grave era, em si,
uma ofensa às boas maneiras e uma tentação para os homens com os quais
lidava. Fettes, por exemplo, muitas vezes observava secretamente o singular
frescor dos cadáveres. Repetidas vezes haviam-lhe causado forte impressão
os rostos abjetos, abomináveis, dos rufiões que lhe chegavam antes do ama-
nhecer;   e   ele, ponderando   tudo   muito   bem   intimamente,   talvez   atribuísse
um   significado  demasiado   imoral   e   categórico   às   opiniões   levianas   de   seu
mestre.   Em   suma,   dividia  seu   dever  em   três   partes:   receber   o   que   lhe  era
trazido, pagar seu preço e fazer vista grossa a quaisquer indícios de crime.
      Numa manhã de novembro, essa política do silêncio foi decididamente
posta à prova. Ele ficara acordado a noite toda, com uma torturante dor-de-
dente —  andando em seu quarto como uma fera enjaulada ou atirando-se
furioso em sua cama — e caíra por fim naquele profundo, irrequieto estado
de   dormência   que  muito   freqüentemente   se   segue   a   uma  noite   de   dor,
quando foi acordado pela terceira ou quarta repetição enraivecida do sinal
combinado. A luz do luar era tênue, mas clara; fazia um frio cortante, ven-
tava e geava; a cidade ainda não acordara, mas uma vaga agitação já prenun-
ciava os ruídos e a azáfama do dia. As figuras infames haviam chegado mais
tarde do que o costume e pareciam mais ansiosas por partir do que habitu-

                                      

almente. Fettes, zonzo de sono, iluminou seu caminho  até a sala superior.
Ouviu seus resmungos irlandeses como que através de um sonho; e, quando
despejaram   do   saco   sua   deplorável   mercadoria,   ele   se   inclinou  sonolenta-
mente,   o   ombro   apoiado   na   parede;   precisou   sacudir-se   para   encontrar  o
dinheiro e pagar-lhes. Quando o fez, seus olhos pousaram no rosto inerte.
Assustou-se; deu dois passos mais perto, com o candeeiro levantado.
      “Deus Todo-Poderoso!”, gritou. “É Jane Galbraith!”
      Os homens nada responderam, mas esgueiraram-se para mais perto da
porta.
      “Eu a conheço, estou dizendo”, continuou, “estava viva e bem dispos-
ta   ontem.  É   impossível   que   esteja   morta;   é   impossível   que   vocês   tenham
conseguido esse corpo de forma honesta”.
      “Garanto, senhor, que está completamente errado”, disse um dos ho-
mens.
      Mas o outro olhou sombriamente Fettes nos olhos e exigiu o dinheiro
imediatamente.
      Era impossível ignorar a ameaça ou exagerar o perigo. O ânimo do ra-
paz  cedeu.   Balbuciou   algumas   desculpas,   contou   o   dinheiro   e   olhou   seus
odiosos visitantes partirem. Tão logo o fizeram ele correu a confirmar suas
dúvidas.   Por  uma   dezena   de   marcas   inquestionáveis   identificou   a   moça   a
quem dirigira gracejos no dia anterior. Viu, horrorizado, marcas em seu cor-
po que poderiam muito bem ser produto de violência. Em pânico, refugiou-
se em seu quarto. Lá, refletiu longamente sobre a descoberta; ponderou so-
briamente o teor das instruções do  sr. K. e o perigo que correria ao intro-
meter-se em um negócio assim tão sério e, por fim, perplexo e aflito, deci-
diu aguardar a opinião de seu superior imediato, o assistente de classe.
      Este era um jovem doutor, Wolfe Macfarlane, um predileto dentre to-
dos os irrequietos estudantes, extremamente esperto, corrupto e inescrupu-
loso. Havia viajado e estudado no exterior. Seus modos eram agradáveis e
um   tanto   petulantes.  Era   entendido   em   teatro,   habilidoso   no   gelo   ou   no
gramado com patins ou bastão de criquete; vestia-se com elegante ousadia e,
como o toque final a coroar sua glória, possuía um trole e um vigoroso ca-

                                      

valo trotador. Entre ele e Fettes havia uma relação de intimidade; na verda-
de, suas posições correspondentes exigiam algum companheirismo, e quan-
do os cadáveres escasseavam o par se dirigia até bem longe no campo, no
trole de Macfarlane, visitava e violava algum cemitério afastado e retornava
antes do pôr-do-sol com seu butim à porta da sala de dissecção.
      Naquela manhã em particular, Macfarlane chegou um pouco mais cedo
do que de costume. Fettes ouviu-o e foi ao seu encontro na escadaria, con-
tou-lhe sua história e mostrou-lhe o motivo de seu alarme. Macfarlane exa-
minou as marcas do corpo.
      “Sim”, disse ele com um aceno, “parece suspeito.”
      “Então, o que devo fazer?”, perguntou Fettes.
      “Fazer?”, perguntou o outro. “Você quer fazer alguma coisa? Todo si-
lêncio é pouco, diria eu.”
      “Alguém mais poderia reconhecê-la”, objetou Fettes. “Ela era bem co-
nhecida.”
      “Vamos torcer para que isso não aconteça”, disse Macfarlane, “e se is-
so acontecer — bem, você não viu, não é? E pronto. O fato é que isso foi
longe   demais.   Revolva  a   lama   e   porá   K.   em   um   problema   danado;   você
mesmo vai se ver em meio a um escândalo. E eu também, se isso lhe acon-
tecer. Eu gostaria de saber como ficaríamos cada um de nós, ou o que iría-
mos   dizer   em nossa   defesa   em   qualquer   banco   de  testemunha.   De   minha
parte, você sabe que tenho só uma certeza: que virtualmente todos os nos-
sos cadáveres foram assassinados.”
      “Macfarlane!”, exclamou Fettes.
      “Ora, vamos!”, disse com desprezo o outro. “Como se você já não ti-
vesse suspeitado disso!”
      “Suspeitar é uma coisa...”
      “E provar é outra. Sim, eu sei; e estou tão consternado quanto você
por isso ter acontecido aqui”, cutucando o corpo com sua bengala. “A me-
lhor coisa a fazer é não reconhecê-lo; e”, acrescentou friamente, “eu não o
reconheço. Se você quiser,  faça-o; e, posso acrescentar, imagino que é isso
que K. esperaria de nossa parte. A pergunta é: por que ele nos escolheu para

                                    
seus assistentes? Respondo: porque ele não queria velhas comadres faladei-
ras.”
      Foi esse tom, dentre todos os outros, que abalou o espírito de um ra-
paz como Fettes. Ele concordou em imitar Macfarlane. O corpo da infeliz
jovem foi devidamente dissecado e ninguém disse ou pareceu reconhecê-la.
      Uma tarde, quando as horas de trabalho haviam se encerrado, Fettes
passou por uma taverna popular e encontrou Macfarlane sentado com um
estranho. Era um homem pequeno, muito pálido e moreno, com olhos de
azeviche.   O  talhe   de   suas   feições   prometia   inteligência   e   refinamento,   os
quais pouco se cumpriam em suas maneiras, pois, a uma proximidade maior,
Fettes verificou ser ele rude, vulgar e tolo. Ele exercia, todavia, um controle
extraordinário sobre Macfarlane; dava-lhe ordens como o Grande Samurai;
exaltava-se à mais insignificante discussão ou atraso e comentava grosseira-
mente a servilidade  com a qual era obedecido. Essa pessoa extremamente
repulsiva tomou-se imediatamente de simpatia por Fettes, saturou-o de be-
bidas e distinguiu-o com confidencias singulares sobre sua carreira passada.
Se uma décima parte do que confessava fosse verdade, tratava-se de um ve-
lhaco   extremamente  repugnante,   e   a   vaidade   do   rapaz   foi   deliciosamente
lisonjeada pela atenção de um homem tão experiente.
      “Eu sou um mau sujeito, mesmo”, observava o estranho, “mas Mac-
farlane é o tal — Toddy Macfarlane é como o chamo. Toddy, peça um ou-
tro copo para seu amigo”. Ou então, “Toddy, vá já fechar a porta”. “Toddy
me odeia”, dizia ele novamente. “Oh!, sim, Toddy, você me odeia!”
      “Não me chame de novo por esse maldito nome”, resmungava Mac-
farlane.
      “Ouça-o! Você já viu os jovens brincarem com facas? Ele gostaria de
fazer aquilo no meu corpo todo”, observava o estranho.
      “Nós, médicos, fazemos melhor do que isso”, dizia Fettes.  “Quando
não gostamos de um de nossos amigos mortos, nós o dissecamos.”
      Macfarlane   levantou   os   olhos,   repentinamente,   como   se   esse   gracejo
lhe fosse estranho.


      A tarde escoou-se. Gray, pois esse era o nome do estranho, convidou
Fettes para acompanhá-los ao jantar, pediu um banquete tão suntuoso que
provocou espanto na taverna e quando tudo terminou ordenou a Macfarla-
ne que pagasse a conta. Era tarde quando se separaram; Gray estava total-
mente bêbado. Macfarlane, a quem a fúria tornara sóbrio, ruminava a soma
de dinheiro que fora forçado a desperdiçar e o desprezo que fora obrigado a
engolir. Fettes, com os muitos tragos  cantando na cabeça   retornou a   casa
com passos vacilantes e um espírito totalmente em suspenso. No dia seguin-
te, Macfarlane não compareceu à aula, e Fettes sorriu intimamente, imagi-
nando que ainda estivesse escoltando o intolerável Gray de taverna a taver-
na. Logo que soou a hora da liberdade, ele saiu à procura dos seus compa-
nheiros da noite anterior. Não os encontrou, todavia, em lugar algum; e en-
tão retornou cedo a seus aposentos, recolheu-se cedo e dormiu o sono dos
justos.
      Às quatro da madrugada, ele foi despertado pelo bem conhecido sinal.
Ao  descer até a porta, encheu-se de espanto ao encontrar Macfarlane com
sua  carruagem   de   aluguel   e   nesta   um   daqueles   grandes   e   terríveis   pacotes
que ele conhecia tão bem.
      “O quê?”, exclamou. “Você saiu sozinho? Como conseguiu?”
      Mas Macfarlane ordenou-lhe rudemente que se calasse e se pusesse a
trabalhar. Depois de terem carregado o corpo para cima e colocado-o sobre
a mesa, Macfarlane fez um movimento como se estivesse indo embora. En-
tão se deteve e pareceu hesitar; e em seguida disse: “É melhor você dar uma
olhada no rosto”, num tom algo constrangido. “É melhor”, repetiu, enquan-
to Fettes o encarava espantado.
      “Mas onde, como e quando você o conseguiu?”, exclamou o outro.
      “Olhe o rosto”, foi a única resposta.
      As pernas de Fettes bambearam; estranhas dúvidas o assaltaram. Seus
olhos foram do jovem doutor para o corpo e novamente para o doutor. Por
fim, num impulso fez como o ordenado. O que viu não foi de todo inespe-
rado, e contudo o choque foi tremendo. Ver, imóvel na rigidez da morte e
despido naquele leito grosseiro de pano de saco o homem que ele deixara

                                    

bem vestido e cheio de comida e de pecado à porta de uma taverna desper-
tou, até mesmo no estouvado Fettes, alguns dos acicates da consciência. Era
um  cras tibi que ressoou em sua alma, que dois dos que ele conhecera aca-
bassem deitados sobre aquelas mesas geladas. No entanto, esses pensamen-
tos   eram   apenas   secundários.   Sua   principal   preocupação  era   com   Wolfe.
Despreparado para um desafio de tal monta, ele não sabia como encarar seu
companheiro. Não ousava olhar em seus olhos, nem controlava suas  pala-
vras ou sua voz.
      Foi   o   próprio   Macfarlane   quem   fez   o   primeiro   movimento.   Aproxi-
mou-se silenciosamente de suas costas e colocou a mão —  suave, mas fir-
memente — no ombro do outro.
      “Richardson”, disse ele, “pode ficar com a cabeça.”
      Ora, Richardson era um estudante que ansiara longamente por dissecar
aquela parte do cadáver humano. Não houve resposta, e o assassino prosse-
guiu: “A propósito de negócios, você deve me pagar; suas contas, como sa-
be, devem ser exatas”.
      Fettes recompôs-se e disse, com uma voz que era apenas uma sombra
da sua: “Pagar-lhe!”, exclamou. “Pagar-lhe pelo quê?”
      “Ora, é claro que você precisa fazê-lo. É claro, em toda prestação de
contas é necessário”, replicou o outro. “Não ouso dá-lo em troca de nada,
você não ousaria recebê-lo em troca de nada; seria comprometedor para nós
dois. Este caso é como o de Jane Galbraith. Quanto mais erradas as coisas,
mais devemos agir como se  estivesse tudo certo. Onde o velho K. guarda
seu dinheiro?”
      “Lá”, respondeu Fettes asperamente, apontando para um guarda-louça
no canto.
      “Dê-me a chave, então”, disse o outro, calmamente, estendendo a mão.
Houve um instante de hesitação, e a sorte foi lançada. Macfarlane não pôde
reprimir um repelão nervoso, a marca infinitesimal de um enorme alívio, ao
sentir a chave entre os dedos. Abriu o guarda-louça, tirou pena e tinta e um
caderno que ficava em um compartimento e separou das reservas em uma
gaveta uma soma adequada à transação.

                                     

      “Agora,   olhe   aqui”,   disse  ele,  “este  é   o   pagamento   feito —  primeira
prova de sua boa-fé: primeiro passo para sua segurança. Você deve segurá-
lo por um instante. Registre o pagamento em seu livro e então, no que lhe
diz respeito, pode desafiar o diabo.”
      Os poucos segundos que se seguiram foram para Fettes uma agonia;
mas ao ponderar seus terrores, venceram os mais imediatos. Qualquer difi-
culdade   futura parecia   quase   bem-vinda   se   pudesse   evitar   uma   briga   atual
com Macfarlane. Ele pousou a vela que estivera carregando todo o tempo e,
com mão firme, deu entrada da data, natureza e montante da transação.
      “E agora”, disse Macfarlane, “é muito justo que você embolse o lucro.
Eu já embolsei minha quota. A propósito, quando um homem experiente dá
de cara com uma pouco de sorte, alguns shillings extras entram em seu bolso
— constrange-me falar disso, mas há uma regra de conduta para esse caso.
Não mencioná-lo, não comprar livros de estudo caros, não pagar velhas dí-
vidas; tomar emprestado, não emprestar”.
      “Macfarlane”,   começou   Fettes,   ainda   com  certa   aspereza,  “pus   uma
corda em meu pescoço para lhe fazer um favor”.
      “Para me fazer um favor?”, gritou Wolfe. “Ora, vamos! Você fez, no
máximo, a meu ver, o que claramente tinha de fazer em defesa própria. Su-
ponha-se que eu tivesse me metido em encrenca, como você ficaria? Este
segundo pequeno detalhe decorre claramente do primeiro. O sr. Gray é a
continuação da senhorita Galbraith. Você não pode começar e depois parar.
Se você começa, deve continuar a começar; essa é a verdade. Não há des-
canso para os maus.”
      Uma horrível sensação de negrume e de traição do destino tomou con-
ta da alma do infeliz estudante.
      “Meu Deus!”, gritou ele, “mas o que foi que fiz? E quando comecei?
Tornar-me um assistente de classe — em nome da razão, o que há de erra-
do nisso? A posição demandava o serviço; o serviço poderia tê-lo demanda-
do. Teria ele estado onde eu estou agora?”
      “Meu caro amigo”, disse Macfarlane, “que infantil você é! Que mal lhe
aconteceu? Que mal pode  lhe acontecer se mantiver a boca fechada? Ora, ho-

                                     

mem, você sabe como é a vida? Há dois grupos de pessoas — os leões e as
ovelhas. Se você é uma ovelha, será deitado numa destas mesas, como Gray
ou Jane Galbraith; se for um leão, viverá e terá um cavalo, como eu, como o
sr. K, como todos que possuem algum talento ou coragem. Você vacilou no
primeiro. Mas olhe para K.! Meu caro, você é esperto, tem peito. Gosto de
você, e K. gosta de você. Você nasceu para liderar a matilha; e vou lhe dizer,
pela minha honra e minha experiência de vida, daqui a três dias você vai rir
de todos esses espantalhos como um colegial de uma farsa”.
      E   com  isso  Macfarlane   se   despediu e   sumiu   em seu   trole   pelo beco,
encoberto pela escuridão, antes do raiar do dia. Fettes ficou então sozinho
com   seus   remorsos.  Ele   deu-se   conta   da   desgraça   a   que   se   expusera.   Ele
deu-se conta, com indizível desalento, que não havia limites para suas fra-
quezas   e   que,   de   concessão   em  concessão,   acabara   árbitro   do   destino   de
Macfarlane a seu cúmplice pago e desarmado. Ele teria dado o mundo para
ter sido um pouco mais corajoso na hora, mas não lhe ocorreu que poderia
ainda ser corajoso. O segredo de Jane Galbraith e o maldito registro no diá-
rio fechava sua boca.
      Passaram-se as horas; os estudantes começaram a chegar; os membros
do infeliz Gray foram distribuídos para um e outro e recebidos sem comen-
tários.  Richardson   ficou   feliz   com   a   cabeça;   e   antes   que   soasse   a   hora   de
libertação   Fettes  tremia   de   exaltação   ao   perceber   quanto   já   haviam   cami-
nhado em direção à segurança.
      Durante   dois   dias   ele   continuou   a observar,   com   alegria   crescente,   o
terrível processo de dissimulação.
      No terceiro dia, Macfarlane apareceu. Havia estado doente, disse; mas
compensou o tempo perdido pela energia com a qual instruiu os estudantes.
A  Richardson em particular, ele ofereceu grande assistência  e conselhos, e
esse estudante, estimulado pelos elogios do demonstrador, ardeu em espe-
ranças ambiciosas e viu a medalha já a seu alcance.
      Antes   que   a   semana   terminasse,   a   profecia   de   Macfarlane   havia   se
cumprido. Fettes superara seus temores e esquecera sua vileza. Começou a
gabar-se de sua coragem e em sua mente costurara sua história de tal modo


que podia recordar esses eventos com um orgulho malsão. Seu cúmplice, ele
pouco o via. Encontravam-se, é claro, nas atividades da aula; recebiam jun-
tos as ordens de K. Às vezes trocavam algumas palavras em particular, e a
atitude de Macfarlane foi sempre particularmente gentil e jovial. Mas estava
claro que evitava qualquer referência ao seu segredo comum: e até mesmo
quando Fettes lhe sussurrava que partilhava da sorte dos leões e repudiava
as ovelhas, ele, com um sorriso, apenas fazia um gesto para silenciá-lo.
      Por fim, surgiu uma ocasião que uniu mais uma vez o par. O sr. K. es-
tava  novamente   precisando   de   cadáveres;   os   alunos   estavam   inquietos   e
constituía parte das pretensões desse professor estar sempre bem abastecido.
Nesse momento  chegaram notícias de um enterro no cemitério rústico de
Glencorse. O tempo poucas transformações trouxe a esse lugar. Ele ficava
então,   como   agora,   em   uma  encruzilhada,   longe   de   habitações humanas   e
mergulhado na densa folhagem de  seis cedros. Os balidos das ovelhas nas
colinas   adjacentes,   os   riachos   em   ambos   os  lados,   um   deles   murmurando
entre seixos, o outro gotejando furtivamente de poça em poça, o assobiar
do vento nos imensos carvalhos floridos e, uma vez a cada sete dias, o soar
do sino e os velhos cânticos do chantre eram os únicos sons a perturbar o
silêncio em volta da igreja rural. O Homem da Ressurreição — esse o nome
na época — não seria impedido pelos sentimentos da piedade consuetudi-
nária. Constituía parte de seu negócio desprezar e profanar os pergaminhos
e trombetas de velhas tumbas, os caminhos batidos pelos pés de devotos e
pranteadores, e as oferendas e as inscrições de desolados afetos. Para as cer-
canias rústicas, onde o amor é extraordinariamente tenaz e onde alguns la-
ços de sangue ou companheirismo unem toda a sociedade de uma paróquia,
o ladrão de corpos, longe de ser repelido por um respeito natural, era atraí-
do pela facilidade de segurança na tarefa. Ao corpo que havia sido deitado
na   terra,   em   feliz   expectativa  de   um   despertar   muito   diferente,   sobreveio
aquela ressurreição apressada, à luz  de velas, envolta em terror da pá e da
enxada. O caixão foi aberto, as mortalhas rasgadas e os restos melancólicos,
envoltos em pano de aniagem, depois de sacudidos  durante horas em ata-

                                   
lhos   escuros,   foram   por   fim  expostos   às   mais   indizíveis   injúrias  diante de
uma classe de meninos boquiabertos.
      Um pouco como dois abutres caem sobre uma ovelha moribunda, Fet-
tes e Macfarlane caíram sobre um túmulo naquele lugar de descanso verde-
jante e tranqüilo. A esposa de um fazendeiro, uma mulher que vivera duran-
te   sessenta  anos   e   fora   conhecida   somente   por   sua   boa   manteiga   e   uma
conversa cristã, foi arrancada de sua tumba à meia-noite e carregada, morta
e desnuda, para aquela cidade distante que ela sempre honrara com suas ves-
tes domingueiras; seu lugar entre a família foi esvaziado até a dissolução de
todas as coisas no dia do Juízo Final; seus membros inocentes e quase vene-
ráveis foram expostos àquela curiosidade extrema do anatomista.
      Numa   tarde   já   avançada,   o   par   se   pôs,   bem   encobertos   por   capas   e
providos  de uma enorme garrafa. Chovia ininterruptamente — uma chuva
fria, densa, abundante. Vez por outra soprava uma rajada de vento, mas os
aguaceiros a detinham. Apesar da garrafa, foi triste e  silencioso o percurso
de carruagem até Penicuik, onde eles deveriam chegar à noite. Pararam uma
vez, para esconder suas ferramentas em uma moita densa, não distante do
cemitério, e uma vez no Fisher‟s Tryst, para fazer um brinde diante da larei-
ra   da   cozinha   e   alternar   seus   goles   de  uísque   com   um   copo   de   cerveja.
Quando chegaram ao fim de sua jornada, o trole foi abrigado, o cavalo ali-
mentado e cuidado, e os dois doutores, em uma saleta retirada, sentaram-se
para fazer seu lauto jantar, regado do melhor vinho que a casa podia forne-
cer. As luzes, o fogo, a chuva a bater na janela, o frio, o absurdo trabalho
que   os   esperava,   acrescentaram   sabor   à   fruição   da   refeição.   A   cada   copo
crescia sua cordialidade. Logo Macfarlane passou uma pequena pilha de ou-
ro a seu companheiro.
      “Uma homenagem”, disse ele. “Entre amigos, esses pequenos adianta-
mentos de m... deveriam fluir como fogo de cachimbo.”
      Fettes embolsou o dinheiro e aplaudiu entusiasticamente o pensamen-
to. “Você é um filósofo”, exclamou. “Eu era um asno até conhecê-lo. Você
e K., entre vocês, Aleluia! Mas vocês farão de mim um homem.”


      “É claro que o faremos”, aplaudiu Macfarlane. “Um homem? C‟os di-
abos,   foi preciso   um homem   para me   dar   cobertura   outro   dia.   Há  alguns
covardões barulhentos, quarentões, que teriam vomitado diante da maldita
coisa; mas você não: você manteve a cabeça fria. Eu o observei.”
      “Bem, e por que não?”, Fettes assim se vangloriou. “Não era da minha
conta. Nada havia a ganhar por um lado, senão perturbação, e, por outro, eu
poderia contar com sua gratidão, não é mesmo?” E bateu em seu bolso, fa-
zendo tilintar as peças de ouro.
      Macfarlane, por algum motivo, sentiu um certo alarme a essas palavras
desagradáveis. É possível que tenha lamentado ter ensinado tão bem a esse
jovem companheiro, mas não houve tempo para retrucar, pois o outro rui-
dosamente continuou em sua veia jactanciosa:
      “O segredo é não ter medo. Agora, cá entre nós, não quero ser enfor-
cado —  isso   é   claro;   mas,   por   toda  hipocrisia,   Macfarlane,   nasci   com   um
menosprezo.  Inferno,   Deus,   Diabo,   certo,   errado,   pecado,   crime   e   toda   a
galeria de curiosidades — tudo isso pode aterrorizar meninos, mas homens
do mundo, como você e eu, têm por eles apenas desprezo. A memória de
Gray!”
      A essa altura, a hora já ia adiantada. O trole, segundo as instruções, foi
trazido à porta com ambas as lanternas a reluzir, e os dois jovens tiveram de
pagar sua  conta e pôr-se à estrada. Eles comunicaram que seu destino era
Peebles e se dirigiram para aqueles lados, até deixar para trás as últimas ca-
sas da cidade; então, apagando as lanternas, retornaram em seu caminho e
tomaram um atalho em direção a Glencorse. O silêncio só era quebrado por
sua própria passagem e o ruído incessante do aguaceiro. Estava escuro co-
mo breu; aqui e ali uma cancela ou pedra brancas no muro guiavam-nos pe-
lo   caminho   estreito   através   da   noite;  mas   na   maior   parte   do   tempo   era   a
passos lentos e quase às apalpadelas que  abriam caminho em meio àquelas
ressonantes trevas até seu destino soturno e ermo. Nas densas florestas que
atravessam   as   cercanias   do   cemitério,   desapareceram  as   últimas   réstias   de
luz e foi preciso acender um fósforo e iluminar novamente uma das lanter-

                                      

nas do trole. Assim, sob as árvores gotejantes e envoltos em grandes  e se-
moventes sombras, chegaram ao palco de seus iníquos labores.
      Eles eram bastante experientes nessas questões e vigorosos no manejo
da   enxada;  e   mal   haviam   se   passado   vinte   minutos   em   sua   tarefa   quando
foram   recompensados  por   surdo   ranger   na   tampa   do   caixão.   No  mesmo
instante,   Macfarlane,   machucando  a   mão   numa   pedra,   lançou-a   descuida-
damente sobre sua cabeça. A tumba, na qual eles agora estavam afundados
quase até os ombros, ficava perto da beirada do plano do cemitério; e a lan-
terna   do   trole,   para   melhor   iluminar   seus   trabalhos,  fora   escorada   contra
uma árvore e à borda da margem íngreme que descia até o riacho. O acaso
mirara certeiro com a pedra. Ouviu-se então um ruído de vidro quebrado; a
noite caiu sobre eles; sons alternadamente surdos e estridentes anunciaram o
ricochetear da lanterna ladeira abaixo e sua aleatória colisão com as árvores.
Uma ou duas pedras, que haviam sido deslocadas pela primeira na descida,
pipocaram atrás dela até as profundezas do vale; e então o silêncio, como a
noite, retomou seu domínio; e eles podiam aguçar seus ouvidos ao máximo
que absolutamente nada se ouvia exceto a chuva, ora na direção do vento,
ora caindo imperturbavelmente sobre milhas de campo aberto.
      Eles   estavam   tão   perto  do  fim  de  sua   entediante   tarefa   que   julgaram
ser   melhor  completá-la   na   escuridão.   O   caixão   foi   exumado   e   forçado;   o
corpo enfiado no saco gotejante e carregado entre eles até o trole; um subiu
para colocá-lo no lugar e outro, tomando o cavalo pela boca, arrastou-se ao
longo do muro e da moita até que alcançassem a estrada mais larga pelo Fi-
sher‟s Tryst. Ali havia um brilho difuso que eles aclamaram como a luz do
dia; em direção a ela empurraram o cavalo a bom passo e começaram a ran-
ger alegremente em direção à cidade.
      Ambos haviam se ensopado até os ossos  durante o cumprimento de
sua   tarefa  e   agora,   com   o   trole   sacolejando   entre   os   sulcos   profundos   da
trilha, a coisa que fora escorada entre eles caía ora sobre um, ora sobre ou-
tro. A cada repetição do horrendo contacto cada um deles instintivamente o
repelia com maior rapidez; e, por natural que fosse, isso começou a dar nos
nervos   dos   companheiros.   Macfarlane  fez   alguns   comentários   desairosos

                                      

sobre a esposa do fazendeiro, mas eles soavam insinceros e foram recebidos
em silêncio. Sem embargo, sua carga abominável pulava de um lado para o
outro; e ora a cabeça caía, como que a confidenciar, sobre seus ombros, ora
o saco encharcado batia geladamente em seus rostos. Um  frio enregelante
começou a tomar conta da alma de Fettes. Ele observou atentamente o far-
do e ele parecia um tanto maior do que de início. Em todo o campo e em
todas as distâncias, os cães de fazendas acompanhavam sua passagem com
lamentações lúgubres; e seu espírito foi tomado de uma sensação crescente
de   que  algum   milagre   extraordinário   se   realizara,   de   que   alguma   mudança
inominável se operara no corpo inerte e que era por medo de seu fardo ter-
rível que os cães estavam uivando.
      “Pelo amor de Deus”, disse ele, fazendo um grande esforço para con-
seguir falar, “pelo amor de Deus, vamos acender uma vela!”
      Aparentemente Macfarlane tivera a mesma sensação; pois, embora não
respondesse, deteve o cavalo, passou as rédeas a seu companheiro, desceu e
acendeu a lanterna que restara. A essa altura, eles não tinham alcançado se-
não a encruzilhada para Auchendinny. A chuva ainda precipitava-se, como
se o dilúvio retornasse, e não foi fácil acender a luz nesse mundo de água e
escuridão. Quando por fim a última chama azul vacilante fora transferida ao
pavio e começou a se expandir e iluminar e lançou um amplo círculo de bri-
lho enevoado em volta do trole, tornou-se possível aos dois jovens ver um
ao outro e à coisa que traziam consigo. A chuva moldara o embrulho gros-
seiro,   revelando   os   contornos   do  corpo   envolto;   a   cabeça  estava separada
do tronco de ombros largamente modelados; algo ao mesmo tempo espec-
tral e humano emanava do terrível companheiro de sua viagem.
      Durante algum tempo Macfarlane ficou imóvel, segurando a lâmpada.
Um pavor inominável o dominava, como um lençol branco, ao contemplar
o corpo e fez com que a pele do rosto de Fettes se esticasse, esbranquiçada;
e   um   medo  que  era   quase   sem  causa,   um   horror   do  que   não  poderia   ser,
assomou a seu cérebro Após uns instantes ele tentou falar. Mas seu compa-
nheiro se adiantou.
      “Não é uma mulher”, disse Macfarlane, com voz surda.


      “Era uma mulher quando a colocamos dentro daí”, sussurrou Fettes.
      “Levante essa lâmpada,” disse o outro. “Preciso ver seu rosto.”
      E   enquanto   Fettes   pegava   a   lâmpada   seu   companheiro   desatou   as  a-
marrações  do saco e puxou para baixo o envoltório da cabeça. A lanterna
iluminou com luz clara as feições enegrecidas, bem moldadas e bochechas
bem barbeadas de uma fisionomia muito familiar, freqüentemente contem-
pladas nos sonhos daqueles  dois jovens. Um grito descontrolado rasgou a
noite; cada um deles deu um salto  de seu lado na estrada; a lâmpada caiu,
quebrou e apagou-se; e o cavalo, aterrorizado por essa agitação incomum,
deu um salto e partiu em galope em direção a Edimburgo, levando consigo,
como   único   ocupante   do   trole,   o   corpo   do   morto   e   há   muito  dissecado
Gray.

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