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domingo, 7 de agosto de 2011

Edith Wharton -Depois-Conto Fantasmagórico



                                      DEPOIS 
Por. Edith Wharton
Edith Wharton (nascida Edith Newbold Jones; Nova York, 24 de janeiro de 1862 – Saint-Brice-sous-Forêt, 11 de agosto de 1937) foi uma escritora americana. Venceu o prémio Pulitzer, em 1921, pelo romance The Age of Innocence (A Idade da Inocência).

                                                   
                                            I

      “Ah!, existe um, é claro, mas você jamais o saberá.”
      A   afirmação,   lançada   risonha   e   repentinamente   seis   meses   antes,   em
um jardim iluminado pelo sol de junho, retornou a Mary Boyne com uma
sensação   clara   de  sua   importância   latente   enquanto   ela,   no   lusco-fusco de
dezembro, aguardava que trouxessem candeeiros à biblioteca.
      As palavras haviam sido ditas por sua amiga Alida Stair, ao tomarem
chá, sentadas no gramado em Pangbourne, em referência à mesma casa da
qual a biblioteca em questão era o centro, o “lugar principal” em torno do
qual tudo girava. Mary Boyne e seu marido, em busca de uma casa de cam-
po em uma das regiões ao sul ou ao sudoeste, tinham, em sua chegada à In-
glaterra, levado seu problema diretamente a Alida Stair, que o solucionara a
contento;   mas   não  antes  que,   após eles   terem   rejeitado,   de   maneira   quase
caprichosa, muitas sugestões práticas e sensatas, ela sugerisse:  “Bem, existe
Lyng, em Dorsetshire. Pertence a uns primos de Hugo, e vocês podem con-
seguida por uma pechincha”.
      Os motivos que ela deu para essa facilidade — sua grande distância de
uma estação de trem, a ausência de luz elétrica, de água quente e outras ne-
cessidades  vulgares  —  eram   exatamente   os   que   contavam   a   seu   favor   na
opinião de dois americanos românticos, obstinadamente em busca dos des-

                                        

contos que geralmente acompanhavam, em sua tradição, conveniências ar-
quitetônicas fora do comum.
      “Eu nunca acreditaria estar vivendo numa casa antiga a menos que es-
tivesse  absolutamente desconfortável”, insistira jocosamente Ned Boyne, o
mais extravagante dos dois: “a menor sugestão de conforto me levaria pen-
sar que ela fora comprada em uma exposição, com as peças numeradas, e
montada   novamente”. E   eles  passaram   a   enumerar,   com   exatidão   cômica,
suas muitas desconfianças e  exigências, recusando-se a crer   que a casa re-
comendada por sua prima fosse realmente Tudor, até serem informados de
que ela não possuía sistema de aquecimento, ou que a igreja da aldeia estava
literalmente dentro do terreno da propriedade, até que ela os convenceu da
lastimável incerteza quanto ao suprimento de água.
      “É desconfortável demais para ser verdade!” continuara Edward Boyle
a exultar à medida que o reconhecimento de cada desvantagem era sucessi-
vamente arrancado dela; mas ele interrompera suas demonstrações de entu-
siasmo para perguntar, com uma súbita recaída de desconfiança: “E o fan-
tasma? Você está escondendo de nós o fato de que não há fantasma!”
      Mary, naquele momento, rira com ele; porém, quase instantaneamente,
ainda  rindo,   tomada   de   várias   séries   de   percepções   independentes,   notara
uma súbita queda de tom da hilaridade na reação de Alida.
      “Ah!, Dorsetshire está cheio de fantasmas, como sabem.”
      “Sim, sim; mas isso não basta. Não quero ter de viajar dez milhas para
ver o fantasma de outra pessoa. Quero um meu, em minha propriedade. Há
um fantasma em Lyng?”
      Sua resposta fizera Alida rir novamente, e foi então que ela replicara,
provocante: “Ah!, existe um, é claro, mas vocês nunca saberão”.
      “Nunca  saberemos?”,  Boyne  interrompeu-a.  “Mas   o   que   faz   de   um
fantasma um fantasma senão o fato de ser visto por alguém?”
      “Não sei. Mas essa é a história.”
      “Que há um fantasma, mas ninguém sabe que é um fantasma?”
      “Bem... somente depois, de qualquer forma.”
      “Somente depois?”


      “Somente muito, muito tempo depois.”
      “Mas se ele foi identificado uma vez como um visitante sobrenatural,
por que sua descrição não foi passada adiante na família? Como ele conse-
guiu manter-se incógnito?”
      Alida apenas balançou a cabeça. “Não me pergunte por quê. Mas ele
conseguiu.”
      “E então, subitamente...”, Mary deixou escapar, como que das profun-
dezas cavernosas do pressentimento — “subitamente, muito tempo depois,
a pessoa diz para si mesma, „Era ele?‟ ”
      Ela ficou estranhamente chocada com o som sepulcral com o qual sua
pergunta abateu-se sobre o gracejo dos outros dois e viu a sombra da mes-
ma surpresa perpassar as pupilas claras de Alida. “Suponho que sim. É pre-
ciso apenas esperar.”
      “Qual   nada!”,   interrompeu   Ned.  “A   vida   é   curta   demais   para   que   se
possa  desfrutar   de   um   fantasma   apenas   em   retrospecto.   Não   se   consegue
algo melhor do que isso, Mary?”
      Mas, afinal, verificou-se que isso é que lhes estava reservado, pois três
meses  depois   de   sua   conversa   com   a   sra.   Stair   eles   se   estabeleceram   em
Lyng, e a vida que haviam almejado, a ponto de tê-la planejado com todas as
minúcias cotidianas, havia realmente começado para eles.
      Era sentar-se, na densa penumbra de dezembro, ao lado de uma gran-
de lareira exatamente como aquela,   sob  vigas de carvalho escuro como  a-
quelas, com a sensação de que, para além das vidraças emolduradas de ma-
deira,   as   colinas  cobertas   de   relva   se   ensombreciam,   envolvendo-as   numa
solidão mais profunda: era pelo prazer absoluto de tais sensações que Mary
Boyne suportara   durante  quase   catorze   anos   a feiúra   deprimente   do   Meio
Oeste e que Boyne se aferrara obstinadamente a seu ofício de engenheiro,
até que, com uma rapidez que ainda a fazia pestanejar, a sorte inesperada e
prodigiosa   da   Mina   Estrela Azul   dera-lhes  da   noite   para   o   dia   a   posse   da
vida e o ócio para saboreá-la. Nem por um instante  sua intenção fora des-
frutar de sua nova condição em completa inatividade; mas pretendiam dedi-
car-se apenas a atividades harmoniosas. Ela imaginara ocupar-se da pintura

                                       

e da jardinagem (tendo ao fundo paredes cinzentas), ele sonhava em escre-
ver seu livro há muito tempo planejado sobre “As bases econômicas da cul-
tura”; e com esses trabalhos tão absorventes à frente, nenhuma existência
poderia   ser  demasiado   isolada;   nenhuma   distância   do   mundo   poderia   ser
suficientemente grande ou sua vida suficientemente mergulhada no passado.
      Dorsetshire atraíra-os desde o início por uma aparência de isolamento
totalmente   desproporcional   à   sua   posição   geográfica.   Mas   para   os   Boynes
uma das inacreditáveis e sempre presentes maravilhas da ilha tão inacredita-
velmente  comprimida — um ninho de condados, como diziam — era que
os   efeitos   de uma   determinada   qualidade   necessitavam   de   tão   pouco   para
ser tão grandes: que tão poucas milhas se tornassem uma grande distância, e
que tão pouca distância fizesse diferença.
      “É isso”, Ned explicara entusiasmado uma vez, “que dá a seus efeitos
uma tal profundidade, um tal relevo a seus mínimos contrastes. Eles conse-
guiram cobrir seus bocados com uma camada tão espessa de manteiga.”
      A camada de manteiga sem dúvida era bem espessa em Lyng: a velha
casa cinzenta, oculta por uma saliência das colinas verdejantes, possuía qua-
se   todas   as marcas   mais sutis   de  comunicação   com   um   longo passado. O
simples   fato   de   não  ser   nem   grande   nem   excepcional   tornava-a,   para   aos
Boynes, mais rica ainda de seu caráter especial — o de ter sido durante sécu-
los um profundo, vago receptáculo de vida. A vida provavelmente não tive-
ra   uma   natureza   muito   intensa:   durante  longos   períodos,   sem   dúvida,   ela
descaíra tão silenciosamente no passado quanto a silenciosa garoa de outo-
no,   por horas   a  fio, sobre  o  tanque   de  peixes   verdes  entre  os   teixos;   mas
essas águas passadas da existência por vezes geravam, em suas profundezas
preguiçosas, estranhas e sutis emoções, e Mary Boyne sentira desde o início
o roçar ocasional de uma memória mais vivida.
      O sentimento nunca fora mais forte do que quando, na tarde de de-
zembro, enquanto aguardava na biblioteca que trouxessem, por fim, os can-
deeiros levantou-se de sua cadeira e postou-se ao lado da lareira. Seu marido
saíra, após o almoço, para uma de suas longas caminhadas pelas colinas. Ela
observara que ultimamente ele preferia ficar sozinho nessas ocasiões; e, com

                                     

a   segurança   adquirida   na  convivência,   fora   levada   à   conclusão   de   que   ele
estava preocupado com seu livro e precisava das tardes para revolver na so-
lidão os problemas surgidos do trabalho matinal. Com certeza o livro não
estava caminhando tão facilmente quanto ela imaginara, e as linhas de per-
plexidade entre seus olhos nunca se haviam mostrado  durante seus dias de
engenheiro. Ele demonstrara então muitas vezes uma exaustão que beirava a
enfermidade, mas o demônio natural da “preocupação” jamais marcara sua
fronte. Todavia, as poucas páginas que ele até esse momento lera para ela —
a introdução e um resumo do primeiro  capítulo —  davam mostras de um
domínio firme de seu tema e uma confiança profunda em sua capacidade.
      O   fato   lançou-a   numa   perplexidade   ainda   mais   profunda,   por   saber
que, agora já desligado dos “negócios” e de suas contingências aborrecidas,
o único possível elemento restante de ansiedade estava eliminado. E se fosse
sua saúde?    Mas ele estava fisicamente melhor desde que haviam chegado a
Dorsetshire, mais robusto, mais vigoroso e com um olhar mais vivido. Fazia
apenas   uma   semana   que  sentira   nele   a   mudança indefinível   que   a   tornava
inquieta durante sua ausência e muito mais contida em sua presença, como
se fosse ela a guardar algum segredo!
      O pensamento de que havia um segredo em algum lugar entre eles a-
tingiu-a com uma súbita e violenta sensação de surpresa; e ela percorreu os
olhos à volta de si, na penumbra da grande sala.
      “Seria a casa?”, cismou ela.
      A própria sala poderia ter sido cheia de segredos. Eles pareciam estar-
se empilhando, à medida que a noite caía, como camadas após camadas de
sombra aveludada a cair do teto baixo, as paredes empoeiradas de livros, a
escultura manchada de fumaça da grande lareira.
      “Ora, é claro — a casa é assombrada!”, lembrou ela.
      O fantasma —  o fantasma imperceptível de Alida —, depois de fre-
qüentar assiduamente seus gracejos nos primeiros meses em Lyng, fora gra-
dualmente descartado como demasiado irreal para tal uso. Mary, na verdade,
quando   se  tornara   habitante   de   uma   casa   assombrada,   fizera   as   habituais
investigações entre seus poucos vizinhos rurais, mas, além de um vago “As-

                                       

sim dizem, senhora”, os aldeões nada tinham para contar. O espectro ardi-
loso   aparentemente   nunca  possuíra   uma   identidade   bastante   para   que   sua
lenda se cristalizasse, e após algum tempo os Boynes haviam risonhamente
registrado a questão em sua conta de lucros e perdas, concordando em que
Lyng era uma das poucas casas boas o bastante  em si mesmas para dispen-
sar acréscimos sobrenaturais.
      “E eu suponho, pobre, incompetente demônio, que é por esse motivo
que bate suas belas asas em vão no vácuo”, concluíra risonhamente Mary.
      “Ou melhor”, retrucou Ned, na mesma veia, “por que ele, dentre tan-
tas coisas fantasmagóricas, nunca consegue confirmar sua existência separa-
da   como  fantasma.”  E   depois   disso   seu   inquilino   invisível   finalmente   foi
eliminado de suas referências, que eram numerosas o bastante para torná-los
instantaneamente alheios à perda.
      Agora, ao lado da lareira, o objeto de sua curiosidade passada nela res-
surgiu com uma nova percepção de seu significado — uma percepção gra-
dualmente adquirida pelo contacto estreito e diário com o cenário do misté-
rio oculto. Era a própria casa, é claro, que possuía a faculdade de ver fan-
tasmas, que comungava visual, mas secretamente, com seu próprio passado;
e,   se   alguém   conseguisse   se  comunicar   com   a   casa   poderia   descobrir  seu
segredo e adquirir a capacidade de ver o fantasma. Talvez, em suas longas
horas solitárias   nesta   mesma  sala,   que   ela  nunca   violava   antes   que   a  tarde
chegasse, seu marido já a houvesse adquirido e estava silenciosamente a car-
regar o terrível fardo de algo que se lhe fora revelado. Mary era versada o
bastante no código do mundo espectral para ignorar que   uma pessoa não
podia falar dos fantasmas que vira: fazê-lo constituía uma violação das  re-
gras   de   educação   quase   tão   grande   quanto   mencionar   uma   senhora  num
clube. Mas essa explicação não a satisfez verdadeiramente. “Por que, afinal,
exceto pelo gozo da excitação”, ponderou ela, “ele realmente se importaria
com quaisquer de seus velhos fantasmas?” E isso a fez voltar uma vez mais
ao dilema principal: o fato de que uma maior ou menor susceptibilidade de
uma pessoa a influências espectrais não se aplicava a esse caso em particular,

 

uma vez que, quando se via um fantasma em Lyng, não se tinha consciência
disso.
      “Não até muito tempo depois”, dissera Alida Stair. Bem, e se Ned vira
um quando de sua primeira visita e o tivesse sabido somente na última se-
mana o que lhe acontecera? Sob o fascínio crescente da hora, ela voltou seus
pensamentos inquisitivos   aos   seus   primeiros   dias   na   propriedade,   mas   de
início   apenas  para  recordar   a   alegre   confusão   de   desencaixotar,   organizar,
distribuir os livros e chamar um ao outro de cantos remotos da casa à medi-
da que tesouros de sua morada se lhes revelavam. Foi por essa associação
em especial que ela agora recordava uma certa tarde amena do outubro an-
terior,   quando,   passando   da   agitação   extasiante  inicial   da   exploração   para
uma inspeção detalhada da velha casa, ela pressionara  (como uma heroína
de romance) uma porta, que abrira ao seu toque para um lance estreito de
escadas que conduzia a uma inesperada borda plana do telhado — o telhado
que, de baixo, parecia inclinar-se para todos os lados tão abruptamente que
apenas pés experientes poderiam escalar.
      Desse canto oculto, a vista era fascinante, e ela voara escada abaixo pa-
ra arrancar Ned de seus papéis e lhe oferecer o privilégio de sua descoberta.
Ela ainda se lembrava de como, em pé sobre borda estreita, ele passara os
braços a sua volta enquanto os olhos de ambos percorriam o espaço até a
longa,   ondulante   linha   do  horizonte   das  colinas   e   então   retornavam   para
contornar o arabesco das sebes de teixos em volta do tanque de peixes e à
sombra do cedro no gramado.
      “E agora o outro lado”, ele dissera, virando-a suavemente em seus bra-
ços; e com o corpo bem junto ao dele ela absorvera, como um longo e pra-
zeroso  suspiro,  a   imagem   do pátio cercado   de   paredes   cinzentas,  os   leões
agachados nos portões e a alameda de tílias que avançava até a estrada pró-
xima às colinas.
      Foi   justamente   nesse   instante,   ainda   em   contemplação   e   abraçados,
que ela sentira seu braço soltar-se e ouviu um brusco “Olá!” que a fez girar
e olhar para ele.


      Claramente — sim, ela agora recordava ter visto, de relance, uma som-
bra de ansiedade, ou melhor, de perplexidade toldar seu rosto; e, seguindo
seus olhos, notara a figura de um homem — um homem com roupas folga-
das e cinzentas, pareceu-lhe — que caminhava pela alameda até o pátio com
passos hesitantes de um estranho à procura de seu rumo. Seus olhos míopes
lhe haviam proporcionado apenas uma impressão indistinta de delgadeza e
de acinzentado, com algo de  estrangeiro ou pelo menos não característico
da região, no talhe da figura ou em seu traje; mas seu marido aparentemente
vira mais — o suficiente para fazê-lo empurrá-la para o lado com um brusco
“Espere!” e precipitar-se pelas escadas em caracol, sem parar para lhe ofere-
cer a mão à descida.
      Uma leve tendência à vertigem obrigou-a, depois de agarrar-se à cha-
miné contra a qual eles se haviam encostado, a segui-lo com maior cuidado;
e, quando atingiu a plataforma do sótão, ela parou novamente por um moti-
vo menos claro, apoiando-se no balaústre de carvalho para forçar seus olhos
através do silêncio das profundezas castanhas, salpicadas da luz do sol, logo
abaixo.   Ela   demorou-se   lá  até   que,   de   algum   lugar   daquelas   profundezas,
ouviu   a   porta   fechar-se;   então,  num   impulso   mecânico,   desceu   os   lances
rasos da escada até alcançar o vestíbulo mais abaixo.
      A porta da frente abria-se para a suave luz do sol no pátio, e não havia
ninguém no vestíbulo nem no pátio. A porta da biblioteca também estava
aberta, e após tentar em vão ouvir algum som de vozes lá dentro, ela rapi-
damente cruzou   a soleira  e encontrou seu marido sozinho, manuseando a
esmo os papéis em sua escrivaninha.
      Ele levantou os olhos, como que surpreso diante de sua entrada súbita,
mas a sombra de ansiedade desaparecera-lhe do rosto, deixando-o até mes-
mo, julgara ela, um pouco mais iluminado e mais despreocupado do que de
costume.
       “O que foi? Quem era?”, perguntou ela.
      “Quem?”, ele repetiu, ainda com a vantagem da surpresa.
      “O homem que vimos andando em direção à casa.”

                                      

      Ele  pareceu  sinceramente  refletir.  “O   homem?   Ora,   pensei   ter   visto
Peters; corri para lhe falar sobre os escoadouros da estrebaria, mas ele havia
desaparecido antes que eu acabasse de descer.”
      “Desapareceu? Ora, ele parecia estar caminhando muito devagar quan-
do o vimos.”
      Boyne encolheu os ombros. “Assim pensei; mas ele deve ter apressado
o passo nesse ínterim. O que você me diz de tentarmos escalar Meldon Ste-
ep antes do pôr-do-sol?”
      Foi tudo. A época, o acontecimento fora insignificante e, de fato, ime-
diatamente   ofuscado   pela   magia   de sua   primeira   vista   de   cima   de   Meldon
Steep, uma colina que eles haviam sonhado em escalar desde que viram pela
primeira vez sua espinha nua a içar-se acima do telhado baixo de Lyng. Sem
dúvida   foi   o   mero   fato   de   ter   o   outro   incidente   ocorrido   exatamente   no
mesmo dia de sua subida a Meldon Steep que o depositara na dobra incons-
ciente de associação da qual agora emergira; pois em si mesmo ele não trazia
a marca do prodigioso. Naquele momento nada poderia ter sido mais natu-
ral   do   que   Ned  precipitar-se   do   telhado   em   perseguição   do   lento   artesão.
Era o período em que  eles estavam sempre à espreita de um ou de outro
dos   especialistas   que   trabalhavam  nas   vizinhanças;   sempre   a   sua   espera  e
correndo para eles com perguntas, censuras ou lembranças. E, com certeza,
à distância a figura cinzenta assemelhara-se à de Peters.
      Agora, contudo, à medida que ela revia a rápida cena, sentiu que a ex-
plicação de seu marido fora invalidada pelo olhar de ansiedade em seu rosto.
Por que a aparição familiar de Peters o tornara ansioso? Por que, acima de
tudo, se era de  fundamental importância consultar aquele entendido a res-
peito dos escoadouros da estrebaria, não o encontrar produzira uma tal ex-
pressão de alívio? Mary não sabia se qualquer dessas considerações lhe ocor-
rera na época; não obstante, pela rapidez com que agora se apresentavam às
suas intimações, ela experimentou uma sensação súbita de que todas deviam
estar lá, aguardando sua hora.

                                        

                                            II

      Esgotada por seus pensamentos, caminhou em direção à janela. A bi-
blioteca estava agora completamente às escutas, e ela ficou surpresa em ver
como o mundo exterior ainda estava envolvido numa luz tênue.
      Enquanto o perscrutava, para além do pátio, uma figura delineou-se na
perspectiva   cônica   de   linhas   nuas:   parecia   um   mero   borrão   de   cinza   mais
escuro no acinzentado, e por um instante, à medida que ela se movia em sua
direção, seu coração disparou ao pensamento: “É o fantasma!”
      Ela   teve   tempo,   naquele   longo   instante,   de   sentir   subitamente   que   o
homem  de   quem,   dois   meses   antes,   ela   tivera   uma   breve   e   distante   visão
desde o telhado, estava agora, nesta hora pressaga, prestes a revelar-se outro
que não Peters; e seu espírito abateu-se sob o temor iminente da revelação.
Mas, quase no átimo que separa dois movimentos do ponteiro do relógio, a
figura ambígua, ganhando  substância e personalidade, mostrou-se até mes-
mo à sua vista fraca como a de seu marido; e ela voltou-se para recebê-lo,
enquanto ele entrava, com a confissão de sua tolice.
      “É realmente um absurdo”, ela riu e parou na soleira, “mas nunca con-
sigo lembrar-me!”
      “Lembrar-se de quê?”, perguntou Boyne enquanto se aproximavam.
      “De que quando vemos o fantasma de Lyng nunca se sabe disso.”
      Sua mão estava na manga dele, e ele manteve-a lá, mas sem nenhuma
reação por gesto ou pelas linhas de seu rosto exausto, preocupado.
      “Você acha que o viu?”, perguntou ele, após um tempo considerável.
      “Ora, tomei você por ele, meu querido, em minha louca determinação
em localizá-lo!”
      “Por mim, agora?” Seu braço caiu e ele afastou-se dela com um fraco
eco de sua risada. “Realmente, querida, é melhor você desistir, se isso é o
melhor que você consegue.”
      “Sim, desistir... Eu desisto. Você desistiu?”, perguntou ela, afastando-
se dele bruscamente.


      A arrumadeira entrara com cartas e um candeeiro, e a luz iluminou o
rosto de Boyne quando ele se inclinou para a bandeja que ela lhe estendia.
      “Você desistiu?”, Mary obstinadamente insistiu, quando a criada desa-
parecera para cumprir sua incumbência de iluminação.
      "Desisti   do   quê?",   replicou   ele   distraidamente,   com   a   luz   a   revelar   a
expressão   marcada   de   preocupação   entre   suas   sobrancelhas,   enquanto   re-
volvia as cartas.
      “Desistiu de tentar ver o fantasma.” Seu coração bateu um pouco mais
forte com o experimento que ela estava fazendo.
      Seu marido, pondo de lado as cartas, moveu-se para a sombra da larei-
ra.
      “Eu nunca tentei”, disse ele, rasgando o invólucro de um jornal.
      “Bem, é claro”, persistiu Mary, “o exasperante é que não adianta tentar,
uma vez que não se pode ter certeza senão muito tempo depois.”
      Ele estava desdobrando o jornal como se mal pudesse ouvi-la; mas a-
pós uma pausa, durante a qual as folhas farfalharam espasmodicamente en-
tre suas mãos, levantou a cabeça para dizer abruptamente: “Você sabe de-
pois de quanto tempo?”
      Mary afundara numa poltrona de espaldar baixo ao lado da lareira. De
seu assento, ela olhou para cima, espantada, para o perfil de seu marido, que,
escuro, projetava-se contra o círculo da luz do candeeiro.
      “Não; não mesmo. Você desistiu?”, retorquiu ela, repetindo sua frase
anterior com um tom de veemência.
      Boyne juntou o jornal num maço e então, sem nenhuma razão aparen-
te, virou-se com ele para o candeeiro.
      “Por Deus, não! Apenas quis dizer”, explicou ele, com um leve tom de
impaciência, “há alguma lenda, alguma tradição quanto a isso?”
      “Não que eu saiba”, respondeu ela; mas o impulso de acrescentar “por
que pergunta?” foi refreado pelo reaparecimento da arrumadeira com o chá
e um segundo candeeiro.
      Com a dissipação das sombras e a repetição da rotina doméstica diária,
Mary Boyne sentiu-se menos oprimida por aquele sentimento de algo surda-

                                        

mente iminente que ensombrecera sua tarde solitária. Por alguns momentos,
ela entregou-se silenciosamente aos pormenores de sua tarefa, e quando le-
vantou os olhos ficou chocada, espantada mesmo, pela mudança no rosto
de seu marido. Ele sentara-se perto do candeeiro mais distante e estava ab-
sorto na leitura de suas cartas; mas fora algo que ele encontrara nelas ou a-
penas   a   mudança   da   própria   perspectiva  dela   que   devolvera   às   feições   de
Boyne   seu   aspecto   normal?   Quanto   mais   ela  olhava,   mais   claramente   se
confirmava a mudança. As linhas de dolorosa tensão haviam desaparecido, e
os traços remanescentes de fadiga eram do tipo facilmente explicáveis por
um esforço mental contínuo. Ele olhou para cima, como que atraído pelo
olhar dela, e lhe dirigiu um sorriso.
      “Estou louco por meu chá, como você sabe; e aqui está uma carta para
você”, disse.
      Ela pegou a carta que ele segurava em troca da xícara que lhe estendia
e, retornando à sua poltrona, rompeu o selo com o gesto lânguido do leitor
cujos interesses estão totalmente envolvidos por uma presença amada.
      Seu movimento consciente em seguida foi pôr-se em pé subitamente, a
carta caiu enquanto ela se levantava e estendia a seu marido um longo recor-
te de jornal.
      “Ned! O que é isto? O que significa?”
      Ele levantara-se no mesmo instante, quase como se ouvisse a exclama-
ção de Mary antes que ela o proferisse; e por um espaço de tempo perceptí-
vel   ele   e   ela  entreolharam-se   atentamente,   como   adversários   à   espreita   de
uma vantagem, através do espaço entre a poltrona dela e a escrivaninha dele.
      “O   que   é   o   quê?   Você   me   assustou   mesmo!”,  disse  Boyne  por  fim, 
caminhando em direção a ela com uma risada súbita e meio irritada. A som-
bra  de   apreensão  estava   novamente   em   seu   rosto,   não   mais   um   olhar   de
permanente presságio, mas de uma cautela astuciosa nos lábios e nos olhos,
que deu a ela a sensação de ele sentir-se invisivelmente cercado.
      A mão dela tremia tanto que ela mal conseguiu estender-lhe o recorte
de jornal.

                                         ]

      “Este artigo... do Sentinela de Waukesha... que um homem chamado El-
well abriu processo contra você... que houve alguma coisa de errado com a
Mina Estrela Azul. Só consigo entender a metade.”
      Eles continuaram a se encarar enquanto ela falava e, para espanto dela,
viu que suas palavras tiveram o efeito quase imediato de dissipar a expressão
de cautela no rosto dele.
      “Ah!, isso!” Ele baixou os olhos para a tira impressa e então dobrou-a
com o gesto de quem manuseia algo inofensivo e familiar. “O que há com 
você esta tarde, Mary? Pensei que tivera más notícias.”
      Ela permanecia diante dele com seu terror indefinível a subsistir sob o
traço de certeza na aparência tranqüila de Boyne.
      “Você sabia disso, então... Está tudo bem?”
      “Certamente que eu sabia; e está tudo bem.”
      “Mas o que foi? Não compreendo. De que esse homem o acusa?”
      “Ah!, de quase todos os crimes das listas de processos.” Boyne deixara
cair o recorte de jornal e lançara-se confortavelmente numa poltrona perto
da lareira. “Você quer ouvir a história? Não é especialmente interessante —
apenas uma disputa sobre o controle da Estrela Azul.”
      “Mas quem é esse Elwell? Não conheço o nome.”
      “Ah!,   é   um   sujeito   que   introduzi   nela  —  dei-lhe   uma   ajuda.   Eu   lhe
contei sobre ele na época.”
      “Talvez. Devo ter esquecido.” Em vão ela procurou em sua memória.
“Mas se você o ajudou, por que ele lhe dá isso em troca?”
      “Ah!, provavelmente algum rábula o agarrou e convenceu. É tudo mui-
to técnico e complicado. Pensei que esse tipo de coisa a aborrecesse.”
      Sua esposa sentiu uma pontada de remorso. Em teoria, ela desaprova-
va vivamente o desinteresse das esposas americanas com relação aos assun-
tos profissionais de seus maridos, mas na prática ela sempre julgara difícil
ouvir atentamente os relatos de Boyne sobre os negócios nos quais seus vá-
rios interesses o envolviam. Além disso, ela sentira desde o início que, numa
comunidade   em  que   as   amenidades   da   vida   podiam   ser  obtidas   apenas   a
custa de esforços tão árduos quanto as tarefas profissionais de seu marido,

                                    

tais ócios breves como os  seus poderiam ser usados como uma libertação
das preocupações imediatas, uma fuga para a vida que eles haviam sempre
sonhado viver. Uma vez ou duas, agora que sua vida havia realmente traça-
do seu círculo mágico em torno deles, ela se perguntara se agira do modo
certo; mas até então tais conjecturas não haviam sido mais do que excursões
retrospectivas de uma imaginação vivida. Agora, pela primeira vez, causou-
lhe um certo espanto descobrir quão pouco sabia das bases materiais sobre
as quais se construíra sua felicidade.
      Ela relanceou-o novamente e foi tranqüilizada pela serenidade de seu
rosto; todavia, ela sentiu necessidade de motivos mais claros para sua pró-
pria tranqüilidade.
      “Mas esse processo não o preocupa? Por que você nunca me falou dis-
so?”
      Ele respondeu a ambas as perguntas ao mesmo tempo. “Eu não lhe fa-
lei  disso, no  início, porque   ele   me  preocupava —  ou   antes,  me   aborrecia.
Mas agora tudo isso é passado. Seu correspondente deve ter conseguido um
número atrasado do Sentinela.”
      Ela sentiu uma intensa vibração de alívio. “Você quer dizer que aca-
bou? Ele perdeu a causa?”
      Houve uma demora apenas perceptível na resposta de Boyne. “O pro-
cesso foi retirado — foi tudo.”
      Mas ela insistiu, como se para eximir-se da acusação interior de ser tão
facilmente convencida. “Retirado porque ele viu que não tinha possibilidade
de ganhar?”
      “Ora, ele não tinha possibilidade alguma”, respondeu Boyne.
      Ela ainda estava lutando com uma perplexidade vagamente sentida, lá
no fundo de seus pensamentos.
      “Há quanto tempo ela foi retirada?”
      Ele   fez  uma pausa,   como   se sua   anterior   incerteza   retornasse   ligeira-
mente. “Eu acabei de receber a notícia agora; mas já estava esperando-a.”
      “Agora, exatamente... em uma de suas cartas?”
      “Sim; em uma de minhas cartas.”

                                     
      Ela não fez nenhuma observação e estava consciente apenas, após um
pequeno intervalo de espera, de que ele havia se levantado e, andando a es-
mo pela sala, colocara-se no sofá ao seu lado. Ela sentiu-o, quando ele o fez,
passar um braço a sua volta, sentiu sua mão procurar a sua e apertá-la e, vi-
rando-se lentamente, atraída pelo calor da face dele, viu a sinceridade sorri-
dente de seus olhos.
      “Tudo bem... tudo está bem?”, ela indagou, por entre o fluxo de suas
dúvidas   evanescentes;  e  “Dou-lhe    minha   palavra  que  nunca   esteve  tão
bem!”, ele riu, olhando para ela, abraçando-a.

                                      III

     Uma das coisas mais estranhas que Mary recordaria no dia seguinte era
a súbita e completa recuperação de sua sensação de segurança.
      Estava presente no acordar de Mary em seu quarto escuro, de teto bai-
xo, essa segurança acompanhou-a lá embaixo, à mesa de desjejum, reverbe-
rou desde o fogo e reduplicou-se ao reluzir nos lados da urna e do canelado
bem marcado do bule de chá. Era como se, de algum modo indireto, todas
as suas apreensões difusas do dia anterior, com seu momento de concentra-
ção cerrada no artigo de jornal — como se a vaga indagação sobre o futuro
e o retorno alarmado ao passado — houvesse liquidado entre eles as dívidas
de alguma obrigação moral aterradora. Se ela de fato descuidara dos negó-
cios de seu marido, era porque —  seu novo estado pareciam prová-lo —
sua fé nele instintivamente justificava tal descuido; e o direito dele a tal fé
havia sido confirmado, de forma inquestionável, exatamente diante da ame-
aça e da suspeita. Ela nunca o vira tão despreocupado, tão natural e incons-
ciente no domínio de suas faculdades quanto após a inquirição à qual ela o
submetera: era quase como se ele estivera consciente das dúvidas que nela
espreitavam e tivesse desejado, tanto quanto ela, que o céu desanuviasse.



      Ele desanuviara — graças a Deus! — tanto quanto a luz brilhante exte-
rior que inesperadamente se lhe apresentou com um toque de verão, quan-
do ela saiu da casa para sua ronda diária pelos jardins. Deixara Boyne em
sua escrivaninha e gratificara-se, ao passar pela porta da biblioteca, com uma
última espiada em seu rosto tranqüilo, onde ele se inclinava,  cachimbo na
boca, sobre seus papéis; e agora ela deveria desempenhar sua própria tarefa
matinal. A tarefa envolvia, em dias de inverno tão encantadores como aque-
le, caminhar deliciosamente a esmo pelos cantos de seus domínios, como se
a primavera já estivesse em curso nos arbustos e nas bordaduras. Havia ain-
da   tantas   possibilidades   inexauríveis   diante  de   si,   tantas   oportunidades   de
fazer com que florescessem as graças latentes daquele lugar antigo, sem um
único toque irreverente de alteração, que os meses de inverno  eram breves
demais para planejar o que a primavera e o outono executavam. E sua reco-
brada sensação de segurança deu, nesta manhã em especial, um vigor singu-
lar à sua caminhada pela herdade tranqüila. Ela foi primeiramente ao pomar,
onde   o  renque   de   pereiras     desenhava   formas   complexas   nas   paredes,   e
pombos voejavam e se alisavam em volta do telhado de ardósia prateada de
seu   redil.   Havia   algo   de  errado   com  a   tubulação   da   estufa,   e   ela   estava  a-
guardando um entendido de Dorchester, que deveria vir nos intervalos dos
trens para fazer um diagnóstico da caldeira. Mas quando mergulhou no ca-
lor úmido da estufa, entre os odores picantes e os rosas e vermelhos lisos de
plantas raras e antiquadas — até mesmo a flora de Lyng estava exuberante!
— ela soube que o grande homem não chegara, e como o dia era excelente
demais para desperdiçar numa atmosfera artificial, saiu novamente  e cami-
nhou  lentamente   pela   turfa   flexível   do   gramado   para   jogos   até   os   jardins
atrás da casa. Nos seus limites mais distantes erguia-se uma plataforma gra-
mada, que proporcionava, acima do tanque de peixes e das sebes de teixos,
uma vista da comprida fachada da casa, com seu grupo de chaminés entrela-
çadas e as sombras azuis de seus ângulos do telhado, todos embebidos da
umidade dourada do ar.
      Vista assim, por entre a escultura dos teixos, sob a luz difusa, suave, ela
lhe enviava, de suas janelas abertas e chaminés a emanar uma fumaça hospi-
taleira,   a  aparência   de   uma   cálida   presença   humana,   de   um   espírito   lenta-
mente amadurecido num muro ensolarado de experiência. Ela jamais tivera
antes uma percepção tão profunda de intimidade com a casa, uma tal con-
vicção de que seus segredos eram  todos benévolos, que guardavam, como
se dizia às crianças, “para nosso bem”, uma confiança tão absoluta em seu
poder de entrelaçar sua vida e a de Ned num desenho da longuíssima histó-
ria que ela tecia, assim sentada, ao sol.
      Ouviu passos atrás de si e virou-se, na expectativa de ver o jardineiro,
acompanhado do engenheiro de Dorchester. Mas somente uma figura mos-
trou-se, a de um homem bastante jovem, de talhe delgado, que, por razões
que ela não poderia no momento estabelecer, nem remotamente correspon-
dia à sua idéia preconcebida de um entendido em caldeiras de estufa. O re-
cém-chegado, ao vê-la, ergueu seu chapéu e deteve-se, com o ar de um cava-
lheiro —  talvez um viajante —  desejoso de dar a entender imediatamente
que sua intrusão era involuntária. A fama local de Lyng vez por outra atraía
os excursionistas mais inteligentes, e Mary tinha como quase certo ver o es-
tranho ocultar uma  câmera, ou mostrá-la para justificar sua presença. Mas
ele não fez nenhum gesto de qualquer tipo, e após um momento ela pergun-
tou, num tom de reação à reprovação cortês de sua atitude: “O senhor dese-
ja ver alguém?”
      “Vim encontrar o senhor Boyne”, respondeu ele. Sua entonação, mais
do que  seu sotaque, era levemente americana, e Mary, ao som familiar,  o-
lhou para ele mais atentamente. A aba de seu chapéu de feltro flexível lan-
çava uma sombra sobre seu rosto, o qual, assim obscurecido, mostrava aos
olhos míopes de Mary um ar de seriedade, como o de uma pessoa “a negó-
cios” e cortês, mas firmemente consciente de seus direitos.
      A   experiência   tornara   Mary   igualmente   sensível   a   tais   reivindicações;
mas   ela,  ciosa   das   horas   matinais   de   seu   marido,   duvidava   que   ele   tivesse
dado a qualquer pessoa o direito de interrompê-las.
      “O senhor tem um encontro marcado com o sr. Boyne?”, perguntou
ela.
      Ele hesitou, como se despreparado para a pergunta.


      “Não exatamente um encontro marcado”, respondeu.
       “Nesse caso, receio que ele não possa recebê-lo agora, pois ele traba-
lha de manhã. O senhor poderia deixar um recado, ou voltar mais tarde?”
      O   visitante,   novamente   erguendo   o   chapéu,   respondeu   brevemente
que voltaria mais tarde e afastou-se, como se retomasse o caminho para a
frente da casa. Enquanto sua figura desaparecia pela trilha entre as sebes de
teixos,   Mary  viu-o   deter-se   e   erguer   os   olhos   um instante   para   a   fachada
tranqüila   banhada  numa   fraca   luz   de   sol   hibernal;   e   veio-lhe   de   súbito   à
mente, com um toque tardio de remorso, que teria sido mais cordial pergun-
tar-lhe se ele viera de longe e  oferecer-se, nesse caso, para verificar se seu
marido poderia recebê-lo. Mas enquanto o pensamento lhe ocorria, ele de-
sapareceu atrás de um teixo em forma de pirâmide, e ao mesmo tempo a
atenção dela foi distraída pela aproximação do jardineiro, acompanhado da
figura barbada e trajada do tecido mesclado do artesão de caldeira de Dor-
chester.
      O encontro com esse técnico levou a questões de tão alta importância
que ele resolveu desistir de seu trem e convenceu Mary a passar o resto da
manhã numa  confabulação absorvente entre as estufas. Ela ficou surpresa
ao descobrir, quando o colóquio chegou ao fim, que era quase hora do al-
moço, e tinha quase certeza, enquanto corria de volta para casa, ver seu ma-
rido vindo ao seu encontro. Mas ela não encontrou ninguém no pátio, salvo
um ajudante de jardineiro varrendo o pedregulho com o ancinho, e o saguão,
quando entrou, estava tão silencioso que ela supôs estar Boyne ainda traba-
lhando atrás da porta fechada da biblioteca.
      Não desejando perturbá-lo, ela voltou para a sala de estar e lá, à sua es-
crivaninha, perdeu-se em novos cálculos da despesa envolvida na entrevista
matinal. Saber que ela podia permitir-se tais loucuras ainda não perdera sua
novidade; e de algum modo, em contraste com as vagas apreensões dos dias
anteriores, ela agora parecia parte de sua recobrada segurança, da sensação
de   que,  como   dissera   Ned,   as   coisas  em  geral  nunca  haviam  estado  “tão 
bem”.

                                         ~

      Ela   ainda   estava   deleitando-se   numa   profusão   de  cifras   quando   a  ar-
rumadeira,  da   soleira,   despertou-a   com   uma   pergunta   vagamente   expressa
quanto à conveniência de servir o almoço. Uma de suas brincadeiras era que
Trimmle  anunciava   o   almoço  com se   estivesse   divulgando  um segredo de
Estado, e Mary, concentrada em seus papéis, apenas murmurou uma apro-
vação distraída.
      Sentiu Trimmle agitando-se expressivamente na soleira, como a censu-
rar tal aquiescência sem cerimônia e ouviu seus passos em retirada a soarem
no corredor. Empurrou em seguida seus papéis, cruzou o saguão e dirigiu-se
à porta da biblioteca. A porta ainda estava fechada, e ela fez um movimento
de hesitação, indesejosa de perturbar seu marido, e contudo preocupada em
que ele não excedesse sua medida normal de trabalho. Enquanto estava lá,
ponderando seus impulsos, a esotérica Trimmle retornou com o anúncio do
almoço; assim pressionada, Mary abriu a porta e entrou na biblioteca.
      Boyne não estava à escrivaninha, e ela perscrutou a sua volta, esperan-
do descobri-lo ao lado das estantes, em algum lugar ao longo da sala; mas
seu chamado não obteve resposta, e gradualmente convenceu-se de que ele
não estava na biblioteca.
      Ela se voltou para a arrumadeira.
      “O sr. Boyne deve estar lá em cima. Por favor, diga-lhe que o almoço
está pronto.”
      A arrumadeira pareceu hesitar entre o dever óbvio de obedecer a or-
dens e uma igualmente óbvia convicção da tolice da determinação que se lhe
fizera. A luta resultou que ela disse, dubiamente, “com sua licença, senhora,
o sr. Boyne não está lá em cima.”
      “Não está em seu quarto? Você tem certeza?”
      “Tenho, senhora.”
      Mary olhou para o relógio. “Onde está ele?”
      “Ele saiu”, declarou Trimmle, com o ar superior de alguém que respei-
tosamente esperou pela pergunta que uma mente lúcida teria feito logo de
início.

                                        

      A   conjectura   anterior   de   Mary   estava   certa.   Boyne   devia   ter   ido   aos
jardins para encontrá-la e, uma vez que ela não o vira, estava claro que ele
tomara o caminho mais curto pela porta ao sul, em vez de rodear o pátio.
Ela cruzou o saguão até a porta de vidro, que dava diretamente para o jar-
dim de teixos, mas a arrumadeira, após um outro momento de conflito inte-
rior, decidiu revelar inquietamente, “com licença, senhora, o sr. Boyne não
foi naquela direção.”
      Mary voltou-se. “Aonde ele foi? E quando?”
      “Ele    saiu   pela  porta   da   frente,  estrada   acima,    senhora.”   Era    para
Trimmle uma questão de princípio nunca responder mais de uma pergunta
por vez.
      “Estrada acima? A esta hora?” Mary dirigiu-se à porta e olhou rapida-
mente por entre o longo túnel de tílias desfolhadas. Mas não enxergou nin-
guém, de onde estava.
      “O sr. Boyne não deixou nenhum recado?”, perguntou.
      Trimmle pareceu render-se a uma última luta contra as forças do caos.
      “Não, senhora. Ele apenas saiu com o cavalheiro.”
      “O   cavalheiro?   Que   cavalheiro?”  Mary  girou   nos   calcanhares,   como
para enfrentar esse novo fato.
      “O cavalheiro que veio, senhora”, disse Trimmle resignadamente.
      “Quando veio um cavalheiro? Por favor, explique-se, Trimmle!”
      Apenas   o   fato   de   que   Mary   estava   com  muita   fome   e   de   que   queria
consultar o marido sobre as estufas a teriam feito dar uma ordem tão inco-
mum a sua criada; e até mesmo agora ela estava calma o suficiente para no-
tar   nos   olhos   de   Trimmle  a   rebeldia   nascente   do   subordinado   respeitoso
que foi pressionado demais.
      “Não sei exatamente a hora, senhora,  porque eu não mandei o cava-
lheiro entrar”, respondeu, com o ar de quem ignora magnanimamente a ir-
regularidade do comportamento de sua patroa.
      “Você não o mandou entrar?”
      “Não,   senhora.   Quando   o   sino   tocou   eu   estava   me   vestindo,   e   Ag-
nes...”

                                         

      “Vá e pergunte a Agnes”, interrompeu Mary. Trimmle ainda apresen-
tava o olhar de paciente magnanimidade. “Agnes não sabe, senhora, pois ela
infelizmente tinha queimado a mão ao tentar acender o pavio do novo can-
deeiro que veio da cidade...” — Trimmle, percebeu Mary, sempre se opuse-
ra ao novo candeeiro —  “e por isso a sra. Dockett mandou a ajudante de
cozinheira em seu lugar.”
      Mary olhou novamente o relógio. “Já passa das duas! Vá e pergunte à
ajudante de cozinheira se o sr. Boyne deixou algum recado.”
      Ela foi almoçar sem esperar, e Trimmle logo lhe trouxe a afirmação da
ajudante de cozinheira de que o cavalheiro chegara por volta da uma hora,
que o sr. Boyne saíra com ele sem deixar nenhum recado. A ajudante de co-
zinheira nem mesmo sabia o nome do visitante, pois ele o havia escrito nu-
ma tira de papel, que dobrara e lhe dera, com a ordem de entregado imedia-
tamente ao sr. Boyne.
      Mary terminou seu almoço, ainda curiosa, e quando terminou e Trim-
mle trouxera o café à sala de estar sua curiosidade aumentou, tomada, pela
primeira vez, de um leve matiz de desassossego. Não era do feitio de Boyne
ausentar-se  sem   explicação   em   uma   hora   tão   inusitada,   e   a   dificuldade   de
identificar   o   visitante  a   cujas   ordens   ele   aparentemente   obedecera   tornou
seu desaparecimento ainda mais inexplicável. A experiência de Mary Boyne
como esposa de um engenheiro ocupado, sujeito a súbitas chamadas e obri-
gado a manter horários irregulares, treinara-a para a aceitação filosófica de
surpresas; mas Boyne, desde que se retirara dos negócios, adotara uma roti-
na monacal de vida. Como para compensar os anos  dissipados e agitados,
com seus almoços “em pé” e jantares apressados, sujeitos às sacudidelas de
um vagão-restaurante, ele cultivava   os refinamentos máximos da pontuali-
dade e da monotonia, desestimulando a imaginação da esposa pelo inespe-
rado — e declarando que a um gosto delicado havia infinitas gradações de
prazer nas repetições fixas do hábito.
      Ainda assim, uma vez que nenhum ser vivo pode precaver-se comple-
tamente do imprevisto, era evidente que todas as precauções de Boyne cedo
ou tarde se verificariam ineficazes, e Mary concluiu que ele havia abreviado

                                      

uma visita cansativa, acompanhando seu visitante até a estação, ou pelo me-
nos o acompanhando até parte do caminho.
      Essa   conclusão   aliviou-a   de   preocupações   maiores,   e   ela   foi   retomar
sua conversa com o jardineiro. De lá, dirigiu-se à agência do correio na al-
deia, a pouco mais de uma milha de distância; e quando ela retornou a casa,
já caía a tarde.
      Ela tomara uma trilha por entre as  colinas, e como Boyne, no entre-
tempo, provavelmente retornara da   estação pela  estrada, havia pouca pro-
babilidade de que se encontrassem pelo caminho. Ela estava certa, no entan-
to, de que ele tinha chegado a casa antes dela; tão certa que, quando entrou,
sem mesmo deter-se para perguntar a Trimmle, dirigiu-se imediatamente à
biblioteca. Mas não havia ninguém na biblioteca, e com uma inusitada preci-
são   de   memória   visual   ela   imediatamente  observou   que   os   papéis   sobre   a
escrivaninha   de   seu   marido   estavam   exatamente  como   antes,   quando   ela
fora chamá-lo para o almoço.
      Foi   então   subitamente   tomada   de   um   vago   temor   do   desconhecido.
Ela fechara a porta atrás de si ao entrar e sozinha, na grande, silenciosa, pe-
numbrosa sala, seu temor pareceu adquirir forma e som, estar lá respirando,
à espreita por entre as  sombras. Seus olhos míopes esforçaram-se por ver
através delas e vislumbraram uma presença real, algo alheio, que observava e
sabia; impelida pela repugnância causada por aquela proximidade intangível,
de   um   salto   apoderou-se   do   cordão da   campainha   e   deu-lhe   um   violento
puxão.
      Os chamamentos longos, vibrantes, trouxeram uma Trimmle apressa-
da,   com  um   candeeiro;   Mary  respirou   novamente   diante   desse   reapareci-
mento tranqüilizador do habitual.
      “Você pode trazer o chá, se o sr. Boyne chegou”, disse ela, para justifi-
car a chamada.
      “Está bem, senhora. Mas o sr. Boyne ainda não chegou”, disse Trim-
mle, depondo o candeeiro.
      “Ainda não chegou? Você quer dizer que ele voltou e saiu novamen-
te?”

                                        

      “Não, senhora. Ele ainda não voltou.”
      O medo novamente despertou, e Mary sentiu que agora ele a invadia.
      “Não voltou, desde que saiu com... o cavalheiro?”
      “Não voltou, desde que saiu com o cavalheiro.”
      “Mas quem era o cavalheiro?”, falou Mary, ofegante, com a voz aguda
de alguém que tenta ser ouvido em meio a uma confusão de ruídos sem sen-
tido.
      “Isso eu não sei, senhora.” Trimmle, em pé ao lado do candeeiro, pa-
recia  subitamente   ficar   menos   redonda   e   rosada,   como   que   eclipsada   pela
mesma sombra rastejante de apreensão.
      “Mas a ajudante da cozinheira sabe... não foi a ajudante da cozinheira
que o fez entrar?”
      “Ela também não sabe, senhora, porque ele escreveu seu nome num
papel dobrado.”
      Mary, em meio a sua agitação, estava consciente de que estavam ambas
designando   o   visitante   desconhecido   por   um   pronome   vago,   em   vez   da
fórmula convencional que, até então, mantivera suas alusões dentro dos li-
mites do comportamento habitual. E no mesmo momento sua mente agar-
rou-se à menção do papel dobrado.
      “Mas ele deve ter um nome! Onde está o papel?”
      Ela foi até a escrivaninha e começou a revirar os documentos espalha-
dos que a atulhavam. O primeiro que atraiu sua atenção foi uma carta ina-
cabada com a caligrafia de seu marido, com sua pena deitada sobre ela, co-
mo se deixada ali enquanto ele atendia a um chamado.
      “Meu caro Parvis” — quem era Parvis? —, “acabei de receber sua car-
ta com a notícia da morte de Elwell, e não obstante eu imagine não haver
agora outros riscos de problema, poderia ser mais seguro...”
      Ela empurrou para o lado a folha de papel e continuou sua busca; mas
não conseguiu encontrar nenhum papel dobrado entre os papéis e páginas
de manuscrito, que haviam sido arrebanhados ao acaso, como que na pressa
ou por um gesto assustado.


      “Mas a ajudante de cozinheira viu-o. Chame-a aqui”, ela ordenou, ad-
mirada de sua tolice de não ter pensado antes em uma solução tão simples.
      Ao comando, Trimmle desapareceu num relâmpago, como se agrade-
cida por sair da sala, e quando reapareceu, trazendo a agitada serviçal, Mary
re-cobrara o autodomínio e tinha as perguntas apropriadas.
      O cavalheiro era um estranho, sim — isso ela havia entendido. Mas o
que dissera? E, acima de tudo, qual a sua aparência? A primeira pergunta era
muito  fácil de responder, pois o motivo desconcertante de que ele dissera
tão pouco — apenas perguntara pelo sr. Boyne e, rabiscando algo num pe-
daço de papel, solicitara que fosse imediatamente levado até ele.
      “Então você não sabe o que ele escreveu? Você não tem certeza se era
seu nome?” 
      A criada de cozinha não tinha certeza, mas supunha que era, já que ele
o havia escrito em resposta a sua pergunta de a quem deveria anunciar.
      “E quando você levou o papel para o sr. Boyne, o que ele disse?”
      A ajudante da cozinheira achava que o sr. Boyne não dissera nada, mas
não tinha certeza, pois justamente quando lhe estendera o papel e ele o abria
ela percebeu que o visitante a seguira até a biblioteca e ela retirou-se em si-
lêncio, deixando os dois cavalheiros juntos.
      “Mas, se você os deixou na biblioteca, como sabe que eles saíram da
casa?”
      Essa pergunta mergulhou a testemunha no silêncio por um momento,
do qual ela foi salva por Trimmle, que, mediante circunlóquios engenhosos,
trouxe à tona a afirmação de que, antes que ela cruzasse o saguão em dire-
ção ao corredor de trás, ouvira o cavalheiro atrás de si e vira-os saírem jun-
tos pela porta da frente.
      “Se você viu duas vezes o cavalheiro, deve ser capaz de me descrevê-
lo.”
      Mas, com esse desafio final à sua capacidade  de expressão, tornou-se
claro ter chegado ao limite a paciência da ajudante da cozinheira. A obriga-
ção de ir até a porta da frente para “mandar entrar” um visitante era em si
tão   subversiva   da  ordem   elementar   das   coisas,   que   suas   faculdades   foram


lançadas em uma desordem irrecuperável, e ela conseguia somente tartamu-
dear, depois de vários esforços ofegantes em recordar, “Seu chapéu, dona,
era de um tipo diferente, como...”
      “Diferente? Como assim?”, Mary interrompeu-a subitamente, seu pró-
prio pensamento retornou de um salto para uma imagem lá impressa naque-
la manhã, mas temporariamente perdida entre camadas de impressões sub-
seqüentes.
      “Seu chapéu tinha uma aba larga, é isso? E seu rosto era pálido — um
rosto jovem?” Mary pressionou-a, com tal intensidade na pergunta que lhe
embranqueceu os lábios. Mas se a ajudante de cozinha conseguiu encontrar
qualquer resposta adequada a esse desafio, isso se perdeu, pois sua ouvinte
estava sendo levada pela correnteza violenta de suas próprias convicções. O
estranho... o estranho no jardim! Por que Mary não pensara nele antes? Ela
não precisava que ninguém agora lhe dissesse que fora ele a buscar seu ma-
rido e a ir embora com ele. Mas quem era ele, e por que Boyne obedecera a
seu chamado?

                                          IV

      Acudiu-lhe   à   mente,   de   súbito,  como   um   arreganho   a   sobressair   das
trevas, que eles muitas vezes haviam chamado a Inglaterra de muito peque-
na — “um lugar onde é danado de difícil perder-se.”
      Um lugar onde é danado de difícil perder-se! Tinha sido essa a expres-
são de seu marido. E agora, com toda a parafernália da investigação oficial a
varrer com seus holofotes a região de costa a costa e todos os canais; agora,
com o nome de Boyne estampado nos muros de cada cidade e cada aldeia,
seu retrato (como isso a torturara!) exposto em todos os cantos do país co-
mo a imagem de um criminoso caçado; agora a pequena, compacta, populo-
sa ilha, tão policiada, vistoriada e administrada, revelava-se uma esfinge, um

                                  

guardião de mistérios abismais, a devolver o olhar angustiado de sua esposa,
como se na vil alegria de saber algo que eles nunca saberiam!
      Nas   duas   semanas   desde   o   desaparecimento   de   Boyne,   não   houvera
nenhuma mensagem dele, nenhum vestígio de seus movimentos. Até mes-
mo   os   habituais  relatos   que   levantam   expectativas   em   corações   opressos
haviam sido poucos e passageiros. Ninguém, salvo a desnorteada ajudante
de cozinha o vira sair de casa, e ninguém mais vira “o cavalheiro” que o a-
companhava. Nenhuma das investigações nas vizinhanças conseguiu trazer
à tona a lembrança da presença de um estranho naquele dia nas cercanias de
Lyng.   E   ninguém   viu   Boyne   quer   sozinho,   quer  acompanhado,   em   quais-
quer das aldeias vizinhas, quer na estrada por entre as colinas, quer nas esta-
ções locais de trem. O ensolarado meio-dia inglês engolira-o por completo,
como se ele tivesse desaparecido numa noite ciméria.
      Mary, enquanto todos os meios externos de investigação estavam em
seu auge,   revistara   os   papéis   de   seu   marido   em   busca   de   alguma   pista   de
complicações anteriores, de obstáculos ou de obrigações que ela desconhe-
cesse e que poderiam iluminar de algum modo, fracamente que fosse, a es-
curidão. Mas se algo desse tipo existira nos recessos da vida de Boyne, ele
desaparecera tão completamente quanto a tira de papel na qual o visitante
escrevera seu nome. Não restara nenhum fio que levasse a ela, exceto — se
é que havia realmente essa exceção — a carta que Boyne aparentemente es-
tivera a escrever quando recebeu seu chamado misterioso. Essa carta, lida e
relida por sua esposa e entregue por ela à polícia, constituía uma base muito
precária para conjecturas.
      “Acabei de receber notícias sobre a morte de Elwell e, não obstante eu
imagine não haver agora outros riscos de problema, poderia ser mais segu-
ro...” E era tudo. O “risco de problema” era facilmente explicável pelo re-
corte de jornal que informara Mary sobre o processo contra seu marido por
um de seus sócios na empresa Estrela Azul. A única informação nova pre-
sente na carta era o fato de mostrar que Boyne, quando a escrevera, ainda
estava apreensivo quanto às conseqüências do processo, não obstante hou-
vesse garantido a sua esposa que ele havia sido retirado  e embora a própria


carta revelasse que o demandante estava morto. Somente várias semanas de
exaustiva troca de cabogramas para identificar com precisão a identidade do
“Parvis” a quem se dirigia a comunicação fragmentada, mas até mesmo após
essas   investigações   terem   revelado   ser   ele   um   advogado   de   Waukesha ne-
nhum fato novo com relação ao processo de Elwell foi trazido à tona. Ele
parecia não ter uma ligação direta com o caso, exceto por ter conhecimento
dos fatos, em virtude de ser um conhecido e possível intermediário; e decla-
rou-se incapaz de adivinhar com que objetivo Boyne buscara seu auxílio.
      Essa informação negativa, único fruto das primeiras duas semanas de
busca  febril,   não   recebeu   o   mínimo   acréscimo   durante   as   lentas   semanas
que se seguiram. Mary sabia que as investigações ainda estavam em curso,
mas tinha uma sensação indefinível de que ficavam gradualmente mais len-
tas, à medida que também se tornava mais lenta a passagem do tempo. Era
como se os dias, em fuga aterrorizada da imagem amortalhada daquele dia
inextricável, adquirissem confiança à medida que a distância aumentava, até
que, por fim, retornaram ao seu ritmo normal. O  mesmo ocorreu com as
elucubrações     humanas      provocadas     pelo  acontecimento     obscuro.     Segura-
mente ele ainda as ocupava, mas a cada semana, a cada hora tornava-se me-
nos absorvente, ocupava menos espaço, era lenta, mas inevitavelmente afas-
tado do primeiro plano da consciência pelos novos problemas que infinda-
velmente exalavam do borbulhante caldeirão da vida humana.
      Até mesmo a consciência de Mary Boyne gradualmente sofreu a mes-
ma diminuição de velocidade. Ela ainda flutuava com as incessantes oscila-
ções da conjectura; mas elas eram mais vagarosas, seu ritmo era mais regular.
Havia momentos de lassidão opressiva quando, como a vítima de um vene-
no que mantém o cérebro lúcido, mas imobiliza o corpo, ela via-se mais ín-
tima do Horror, receptiva a sua presença permanente como uma das condi-
ções fixas da vida.
      Esses momentos estenderam-se a horas e dias, até que ela passou para
uma  fase de aceitação apática. Observava a rotina familiar da vida com os
olhos indiferentes de um selvagem, sobre o qual os processos sem sentido
da civilização  não tivessem uma impressão senão muito leve. Acabara por


ver-se como parte da rotina, como uma trave da roda, a girar com seu mo-
vimento; sentia-se quase como a mobília da sala onde se sentava, um objeto
inanimado que devia ser desempoeirado e empurrado com as cadeiras e me-
sas. E essa apatia intensificada prendeu-a a Lyng, a despeito das solicitações
veementes   de   amigos   e   da   habitual  recomendação   médica   de  “mudança”.
Os amigos supunham que sua recusa em mudar-se era inspirada pela crença
de que seu marido retornaria um dia ao lugar do qual desaparecera, e uma
bela lenda nasceu em torno desse estado imaginário de espera. Mas na reali-
dade ela não possuía nenhuma crença: as profundezas da angústia que a en-
volvia não mais se iluminavam com clarões de esperança. Ela  tinha certeza
de que Boyne jamais retornaria, que ele desaparecera completamente de sua
vida, como se a própria Morte tivesse surgido à soleira da porta naquele dia.
Ela até mesmo renunciara, uma a uma, às várias teorias quanto ao seu desa-
parecimento que haviam sido cogitadas pela imprensa, pela polícia e por sua
própria imaginação torturada. Em absoluta lassidão, seu espírito afastava-se
dessas alternativas de horror e mergulhavam de volta no fato puro e simples
de que ele se fora.
      Não, ela nunca saberia o que acontecera a ele — ninguém jamais sabe-
ria. Mas a casa sabia; a biblioteca onde ela passara suas noites longas, solitá-
rias, sabia. Pois fora lá que o último ato fora encenado, fora lá que o estra-
nho   entrara   e   dissera  a   palavra   que   fizera   Boyne   levantar-se   e   segui-lo.   O
soalho que ela pisava sentira  seu passo; os livros nas estantes haviam visto
seu rosto; e havia momentos em que a consciência viva das velhas e ensom-
brecidas paredes pareciam prestes a   irromper  em alguma revelação de seu
segredo.   Mas   a   revelação   nunca   ocorreu,  e   ela   sabia  que   nunca   ocorreria.
Lyng não era uma dessas velhas casas loquazes que traem os  segredos que
lhes foram confiados. É real a lenda de que existe em algum lugar um parti-
cipante que se recusa a falar, o incorruptível guarda dos mistérios pode sur-
preender. E Mary Boyne, sentada face a face com seu silêncio pressago, sen-
tiu a futilidade de tentar rompê-lo por qualquer artifício humano.


                                           V

      “Não digo que não fosse correto, mas também não digo que o fosse.
Eram negócios.”
      Mary,   a   estas   palavras,   levantou   sua   cabeça   surpresa   e   olhou   atenta-
mente para quem as proferia.
      Quando, meia hora antes, um cartão com a inscrição “Senhor Parvis” 
lhe fora trazido, ela imediatamente reconhecera que o nome fizera parte de
sua consciência desde que o lera no cabeçalho da carta inacabada de Boyne.
Na biblioteca, encontrou a sua espera um homenzinho de cor neutra, careca
e  com  óculos   de  armação   de   ouro, e   sentiu   um  estranho  tremor   ao  saber
que  essa   era   a pessoa   a   quem os   últimos   pensamentos   conhecidos   de  seu
marido haviam se dirigido.
      Parvis, educadamente mas sem qualquer preâmbulo inútil — à maneira
de um homem que tem sempre um relógio à mão — declarara o propósito
de sua visita. Ele “estava de passagem” pela Inglaterra a negócios e, encon-
trando-se nas vizinhanças de Dorchester, não desejava partir sem apresentar
seus   cumprimentos  à   sra.   Boyne,   perguntar-lhe,   caso   a   oportunidade   lhe
fosse oferecida, o que ela pretendia fazer a respeito da família de Bob Elwell.
      As palavras tocaram a mola de um obscuro temor no peito de Mary.
Saberia seu visitante, afinal, o que Boyne quisera dizer com sua frase inaca-
bada?   Ela   pediu  um   esclarecimento   sobre   a   questão   e   observou   imediata-
mente que ele pareceu surpreso diante do seu prolongado desconhecimento
do assunto. Seria possível que ela realmente soubesse tão pouco quanto di-
zia?
      “Nada sei... o senhor precisa me contar”, ela balbuciou; e o visitante
imediatamente passou a expor o caso. Ele lançou, até mesmo para suas per-
cepções confusas e compreensão pouco clara, um clarão lúgubre sobre todo
o episódio da Mina Estrela Azul. Seu marido ganhara dinheiro naquela bri-
lhante especulação à custa de “passar para trás” alguém menos pronto para

                               

agarrar a oportunidade; a vítima de sua astúcia era o jovem Robert Elwell,
que o “introduzira” no projeto da Estrela Azul.
      Parvis, à primeira exclamação de espanto de Mary, lançara-lhe um  o-
lhar tranqüilizador através de seus óculos impassíveis.
      “Bob Elwell não era muito inteligente, só isso; se ele fosse, poderia ter
dado o troco a Boyne. É o tipo de coisa que acontece todos os dias nos ne-
gócios. Imagino que seja aquilo que os cientistas chamam de sobrevivência
do mais apto”, disse o sr. Parvis, visivelmente satisfeito com a propriedade
de sua analogia.
      Mary sentiu uma aversão física diante da pergunta seguinte que tentava
formular; era como se as palavras em seus lábios tivessem um gosto nause-
ante.
      “Mas então... o senhor acusa meu marido de ter feito algo desonesto?”
      O sr. Parvis avaliou a pergunta com frieza. “Ah, não. Não acuso. Nem
mesmo digo que ele não foi correto.” Ele percorreu de um lado para outro
as longas linhas de livros, como se um deles pudesse fornecer-lhe a defini-
ção que ele buscava.  “Não digo que não foi correto, e, contudo não digo
que o foi. Eram negócios.” Afinal, nenhuma definição nessa categoria pode-
ria ser mais abrangente do que essa.
      Mary estava sentada, a encará-lo com um olhar de terror. Ele lhe pare-
cia o emissário indiferente, implacável, de alguma potência negra, informe.
      “Mas os advogados do sr. Elwell aparentemente não compartilhavam
dessa sua opinião, pois imagino que o processo foi retirado pela recomen-
dação deles.”
      “Ah!, sim, eles sabiam que, tecnicamente, ele não tinha uma base sólida.
Foi quando o aconselharam a retirar o caso que ele se desesperou. A senho-
ra sabe, ele havia pedido emprestado a maior parte do dinheiro que perdeu
na Estrela Azul e estava em dificuldades. Foi por isso que deu um tiro em si
mesmo quando eles lhe disseram que ele não tinha chance.”
      O horror estava fluindo sobre Mary em grandes, ensurdecedoras ondas.
      “Ele atirou em si mesmo? Ele se suicidou por causa disso?”

                                  

      “Bem, ele não se suicidou, exatamente. Arrastou-se por uns dois meses
antes de morrer.” Parvis emitiu a afirmação tão impassivelmente quanto um
gramofone a ranger seu “disco”.
      “O senhor quer dizer que ele tentou matar-se e falhou? E tentou nova-
mente?”
      “Ah, ele não precisou tentar novamente”, disse Parvis austeramente.
      Eles estavam sentados de frente um para o outro, em silêncio, ele a ba-
lançar  seus   óculos   pensativamente   em   seus   dedos;   ela,   imóvel,   os  braços
esticados sobre os joelhos, numa atitude de extrema tensão.
      “Mas se o senhor sabia de tudo isso”, começou ela por fim, quase in-
capaz de levantar sua voz acima de um sussurro,  “por que, quando eu lhe
escrevi à época do desaparecimento de meu marido, disse que não compre-
endia a carta?”
      Parvis   recebeu   estas   palavras   sem   qualquer   desconforto   perceptível.
“Ora, eu não a compreendia — no sentido exato da palavra. E não era hora
de   falar   sobre isso,   ainda   que   eu   tivesse   compreendido.   A   questão   Elwell
estava   encerrada   quando  a   petição   foi   retirada.   Nada   do   que   eu   pudesse
contar-lhe teria ajudado a encontrar seu marido.”
      Mary continuou a interrogá-lo. “Então por que o senhor o está con-
tando agora?”
      Ainda assim Parvis não hesitou. “Bem, para começar, supus que a se-
nhora  soubesse mais do que me parece agora —  quero dizer, sobre as cir-
cunstâncias da morte de Elwell. Além disso, as pessoas estão falando disso
agora; a questão toda tem sido revolvida novamente. E julguei que, se a se-
nhora não soubesse, deveria.”
      Ela permaneceu em silêncio, e ele continuou: “É que somente nos úl-
timos tempos se soube do alcance das dificuldades em que se encontravam
os negócios de Elwell. Sua mulher é orgulhosa e lutou tanto quanto pôde,
arranjando um emprego e costurando para fora, mas ficou muito doente —
algo ligado   ao coração,  creio eu. Mas ela tinha de cuidar de sua mãe, que
estava acamada, além das crianças, e sucumbiu. Finalmente, precisou pedir
socorro. Isso atraiu a atenção para o caso, e os jornais intervieram, iniciou-

                                      

se uma subscrição. Todo mundo lá gostava de Bob Elwell, e a maior parte
dos   nomes   importantes   na   região   está   na lista,   e   as   pessoas  começaram   a
imaginar por que...”
      Parvis parou para remexer num bolso interno. “Aqui”, continuou, “a-
qui   está uma   explicação   do   caso  todo   impressa   no  Sentinela —  um   pouco
sensacionalista, é claro. Mas acho que a senhora deveria dar uma boa olhada
nela”.
      Ele estendeu um jornal a Mary, que o desdobrou devagar, lembrando-
se, enquanto o fazia, da tarde em que, naquela mesma sala, a leitura atenta
de um recorte do Sentinela havia pela primeira vez revolvido as profundezas
de sua segurança.
      Enquanto abria o jornal, seus olhos, contraindo-se diante das manche-
tes berrantes, “Viúva da vítima de Boyne forçada a pedir ajuda”, percorreu a
coluna do texto até dois retratos lá incluídos. O primeiro era de seu marido,
reproduzido de uma fotografia feita no ano em que eles haviam chegado à
Inglaterra. Era a imagem dele de que ela mais gostava, aquela que ficava na
escrivaninha lá em cima, em seu quarto de dormir. Quando os olhos na fo-
tografia encontraram os seus, ela sentiu que lhe seria impossível ler o que se
dizia dele, e fechou suas pálpebras com uma pontada de dor.
      “Julguei   que   a   senhora   poderia,   se  assim desejasse,  pôr  seu  nome  na
lista...”, ela ouviu Parvis continuar.
      Ela abriu os olhos com um esforço, e eles caíram sobre o outro retrato.
Era   o  de   um   homem   jovem,   de   compleição   delgada,   em   roupas   simples,
com feições um tanto vagas em virtude da sombra da aba proeminente de
um chapéu. Onde ela já vira aquela silhueta? Ela a encarou perplexa, o cora-
ção   a   pulsar   violentamente  na   garganta   e   nos   ouvidos.   Então   ela   deu   um
grito.
      “É esse o homem... o homem que veio buscar meu marido!”
      Ela ouviu Parvis levantar-se de um pulo e teve uma vaga sensação de
cair de  costas no canto do sofá e de que ele estava inclinando-se para ela
alarmado. Com um grande esforço, ela endireitou-se e estendeu a mão para
o jornal, que deixara cair.

                                     

       “É o homem! Eu o reconheceria em qualquer lugar!”, gritou ela numa
voz que soava a seus próprios ouvidos como um guincho.
      A voz de Parvis parecia vir de muito longe, das sinuosidades infindá-
veis, embaçadas pelas brumas.
       “Sra.   Boyne,   a   senhora   não   está   bem.   Devo   chamar   alguém?   Deseja
um copo d‟água?”
       “Não, não, não!” Ela se atirou para ele, sua mão freneticamente fecha-
da em torno do jornal. “Estou lhe dizendo, é o homem! Eu o conheço! Ele
falou comigo no jardim!”
      Parvis tomou dela o jornal, dirigindo seus óculos para o retrato. “Não
pode ser, sra. Boyne. É Robert Elwell.”
       “Robert Elwell?” O olhar vazio que ela lhe dirigiu parecia atravessar o
espaço. “Então foi Robert Elwell quem veio buscá-lo.”
       “Veio buscar Boyne? No dia em que ele foi embora?” A voz de Parvis
baixou  enquanto   a   dela   subiu.   Ele   se   inclinou,   pondo   uma   mão   amigável
sobre ela, como se para convencê-la a sentar-se. “Ora, Elwell estava morto!
Não se lembra?”
      Mary sentou-se, os olhos fixos no retrato, sem consciência do que ele
estava dizendo.
       “Não se lembra da carta inacabada de Boyne para mim... a que a se-
nhora  encontrou   em   sua   escrivaninha   naquele   dia?   Ela   fora   escrita   exata-
mente após ele ter sabido da morte de Elwell.” Ela notou um estranho tre-
mor   na voz  impassível  de  Parvis.  “Com   certeza   lembra-se   disso!”,   insistiu
ele.
       Sim, ela se lembrava: e isso era o mais terrível. Elwell morrera no dia
anterior ao desaparecimento de seu marido; e este era o retrato de Elwell; e
era o retrato do homem que falara com ela no jardim. Ela levantou a cabeça
e   passou  os   olhos lentamente   pela biblioteca.   A   biblioteca   poderia   prestar
testemunho de que ele era também o retrato do homem que viera naquele
dia   para   interromper   Boyne,  que   escrevia   a   carta.   Através   das   ondulações
indistintas   de   seu   cérebro,   ela   ouviu  um   fraco   estrondo   de   palavras   semi-
esquecidas  —  palavras   ditas   por   Alida   Stair  no   gramado  em   Pangbourne

                                         

antes que Boyne e sua mulher vissem a casa em Lyng pela primeira vez, ou
imaginassem que poderiam um dia viver lá.
      “Foi esse o homem que falou comigo”, ela repetiu.
      Ela   olhou   novamente   para   Parvis.   Ele   estava   tentando   esconder   sua
perturbação  sob   o  que   imaginava   ser   uma   expressão   de   compaixão   indul-
gente;   mas   os   cantos  de   seus   lábios   estavam   azuis.  “Ele   pensa   que   estou
louca; mas eu não estou louca”, ponderou ela; e subitamente lhe veio à men-
te um modo de justificar sua estranha afirmação.
      Ela sentou-se quieta, controlando o tremor de seus lábios e esperando
até que pudesse confiar em que sua voz mantivesse sua altura habitual; en-
tão disse, olhando diretamente para Parvis: “O senhor pode me responder a
uma pergunta, por favor? Quando foi que esse Robert Elwell tentou suici-
dar-se?”
      “Quando... quando?”, gaguejou Parvis.
      “Sim, a data. Por favor, tente lembrar-se.”
      Ela   percebeu   que   o   medo   que   ele   sentia   dela   aumentava   ainda   mais.
“Eu tenho um motivo”, insistiu suavemente.
      “Sim, sim. Mas não consigo me lembrar. Cerca de dois meses antes, di-
ria.”
      “Quero a data”, repetiu ela.
      Parvis pegou o jornal. “Podemos ver aqui”, disse ele, ainda animando-
a. Correu os olhos pela página. “Aqui está. Em outubro último... em...”
      Ela interrompeu-o.  “No dia 20, não foi?” Com um olhar penetrante,
ele verificou. “Sim, no dia 20. Então a senhora sabia?”
      “Sei agora.” Seu olhar vazio continuava a atravessá-lo. “Domingo, dia
20... foi esse o dia em que ele veio pela primeira vez.”
      A voz de Parvis estava quase inaudível. “Veio aqui pela primeira vez?”
      “Sim.”
      “A senhora viu-o duas vezes, então?”
      “Sim, duas vezes.” Ela sussurrou para ele com olhos arregalados. “Ele
veio pela primeira vez em 20 de outubro. Lembro-me da data, porque foi o
dia em que subimos Meldon Steep pela primeira vez.” Ela sentiu uma con-


tração interna, quase um soluço, ao pensamento de que, não fosse por isso,
ela poderia ter-se esquecido completamente do episódio.
      Parvis continuou a perscrutá-la, como que tentando interceptar seu o-
lhar fixo.
      “Nós o vimos do telhado”, ela continuou. “Ele desceu a alameda das
tílias   em  direção   à   casa.   Estava   vestido   exatamente   como   naquele   retrato.
Meu marido viu-o primeiro. Ele ficou amedrontado e desceu correndo em
minha frente; mas não havia ninguém lá. Havia desaparecido.”
      “Elwell havia desaparecido?”, balbuciou Parvis.
      “Sim.”  Seus   dois   sussurros  pareciam   tentar   encontrar-se.  “Não   pude
conceber o que acontecera. Vejo agora. Ele tentou vir naquela época; mas
não estava suficientemente morto... não podia alcançar-nos. Precisou espe-
rar dois meses; e então voltou... e Ned foi com ele.”
      Ela acenou para Parvis com o olhar de triunfo de uma criança que re-
solveu com êxito um quebra-cabeça difícil. Mas subitamente ela ergueu as
mãos com um gesto desesperado, pressionando com elas as têmporas a ex-
plodirem.
      “Ah!, meu Deus! Eu o enviei a Ned — eu lhe disse aonde ir! Eu o en-
viei a esta sala!”, ela gritou.
      Ela sentiu que as paredes da sala avançavam em sua direção, como ruí-
nas a implodir; e ouviu Parvis, muito distante, como se através das ruínas,
gritando para ela e tentando aproximar-se dela. Mas ela estava insensível a
seu toque, não sabia o que ele estava dizendo. Por entre o tumulto, ela ou-
viu   apenas   uma   nota   clara,   a   voz   de   Alida   Stair,   falando   no   gramado   em
Pangbourne.
      “Não se sabe até muito tempo depois”, dizia. “Não se sabe até muito,
muito tempo depois.”

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