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domingo, 14 de agosto de 2011

H.P.Lovecraft-O Chamado de Cthulhu



                                                                 “O Chamado de Cthulhu” – H.P. Lovecraft

                                                        Fonte: “O Horror em Red Hook”. Ed. Iluminuras.
                                            Adquira o livro completo em http://www.iluminuras.com.br
                                             ∗Notas de transcrição não constam nos originais da editora.

                                         O CHAMADO DE CTHULHU
                 (Encontrado entre os papéis do falecido Francis Wayland Thurston, de Boston)

 “De tais seres ou potestades superiores pode ser concebida uma sobrevivência... uma sobrevivência de um
período fantasticamente remoto onde... a consciência se m anifestava, talvez, em vultos e formas desde então
repelidos pela maré montante da humanidade... formas das quais apenas a poesia e a lenda captaram uma
memória fugaz e as chamaram deuses, monstros, seres míticos de todos os tipos e espécies...”
                                                                                                Algernon Blackwood1

     I. O horror de argila

        coisa    mais   misericordiosa      do   mundo,     acho   eu,    é  a  incapacidade      da   mente    humana
Acorrelacionar tudo que ela contém. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a mares
tenebrosos      de  infinidade,    e  não  estávamos     destinados    a  chegar    longe.   As   ciências,   cada   uma
puxando para seu próprio lado, nos causaram poucos danos até agora, mas algum dia a junção das
peças do conhecimento disperso descortinará visões tão terríveis da realidade e de nossa pavorosa
posição dentro dela que só nos restará enlouquecer com a revelação ou fugir da iluminação mortal
para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas.
         Os teosofistas imaginaram o admirável esplendor do ciclo cósmico no qual o nosso mundo e
a raça humana são incidentes transitórios. Eles sugeriram estranhos remanescentes com termos que
congelariam o sangue se não fossem mascarados por um suave otimismo. Mas não foi deles que me
chegou      o  especial   vislumbre     de   eras  ancestrais    proibidas    que   me   arrepia   ao   lembrar    e  me
enlouquece nos sonhos. Esse vislumbre, como todos os pavorosos vislumbres da verdade, revelou-
se de uma hora para outra com a junção acidental de peças separadas, nesse caso, uma velha notícia
de jornal e as anotações de um professor já falecido. Espero que ninguém mais junte essas peças. Se
eu viver, jamais ajuntarei, deliberadamente, um elo a tão odiosa cadeia, com certeza. Imagino que o
professor   também   pretendia   guardar   silêncio   sobre   a   parte   que   sabia,   e   que   teria   destruído   suas
anotações se a morte súbita não o tivesse colhido.
         Meu contato com o assunto começou no inverno de 1926-27 com a morte de meu tio-avô
George      Gammell      Angell,    Professor     Emérito    de   Línguas     Semíticas     na  Universidade      Brow,
Providence, Rhode Island. O professor Angell era muitíssimo conhecido como uma autoridade em
inscrições antigas e costumava ser consultado por curadores de museus importantes, de forma que
muitos   se   lembrarão   de   seu   falecimento,   aos   noventa   e   dois   anos   de   idade.   No   meio   local,   o
interesse   foi   intensificado   pela  obscuridade   da   causa   da   morte.  O   professor   fora   atingido   quando
voltava     do  barco    de  Newport,     caindo    de  repente,   segundo     testemunhas,     depois   de   receber   o
encontrão   de   um   negro   com   ar   de   marinheiro   que  saiu   de   uma   das   vielas tenebrosas   da   ladeira
íngreme   que   servia   de   atalho   do   cais   até   a   casa  do   falecido   na   Williams   Street.   Os   médicos   não
conseguiram detectar nenhuma doença visível e concluíram, depois  de um debate confuso, que o
fim se devera a alguma obscura lesão cardíaca provocada pela subida apressada de uma ladeira tão
íngreme   por   um   homem   tão   idoso.   Na   ocasião,   não   tive   por   que   discordar   dessa   conclusão,   mas
ultimamente me sinto inclinado a estranhar... e mais do que estranhar.

1 Blackwood, Algernon Henry (1869-1951), famoso escritor inglês do gênero horror e muito admirado por Lovecraft.

(Nota de Transcrição)

                                                            1

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         Na qualidade de herdeiro e executor testamentário de meu tio-avô, pois ele morreu viúvo e
sem filhos, teria de examinar seus papéis com certa meticulosidade, e para esse fim transferi todas
as    suas   pastas    e  arquivos     para   minha     moradia     em    Boston.     Boa    parte   do   material    que    eu
correlacionei   será   no   futuro   publicada   pela   Sociedade   Arqueológica   Americana,   mas   havia   uma
caixa que me intrigou sobremaneira e não quis expô-la a outras vistas. Ela estava trancada e não
consegui   encontrar   a   chave   até   que  me   ocorreu   olhar   a   argola   de   chaves   que   o   professor   trazia
sempre   no   bolso.   Consegui   então   abri-la,   mas   ao  fazê-lo   deparei-me   com   um   obstáculo   maior   e
ainda mais protegido, pois qual poderia ser o significado do estranho baixo-relevo de argila e os
apontamentos, divagações e recortes de jornais desconexos que encontrei? Teria meu tio, em seus
últimos anos, se transformado num crédulo das mais levianas imposturas? Resolvi então procurar o
excêntrico escultor responsável por aquela aparente perturbação da paz de espírito de um velho.
          O baixo-relevo era um retângulo tosco com menos de uma polegada de espessura e cerca de
cinco por seis polegadas de área, de origem ao que tudo indica moderna. A atmosfera e as sugestões
de   seus   motivos   estava   longe  de   ser   modernas,   porém,   pois   não  obstante   as   excentricidades   de
cubismo e futurismo serem muitas e alucinadas, elas não reproduzem amiúde aquela regularidade
críptcia   que   emerge   de   documentos   pré-históricos.   E   o   grosso   daqueles   desenhos   com   certeza
parecia ser algum tipo de escrita, conquanto minha memória, embora familiarizada com os papéis e
as   coleções   de   meu   tio,   não   conseguiu   de   maneira   alguma   identificar   aquele   tipo   particular,   ou
mesmo inferir suas filiações remotas.
          Ao    alto   desses    aparentes     hieróglifos    havia    uma    figura    com    finalidade    evidentemente
decorativa, embora seu estilo impressionista prejudicasse a formação de uma idéia muito precisa da
natureza. Parecia uma espécie de monstro, ou símbolo   representando   um  monstro,   cuja   forma   só
poderia   ter   sido   concebida   por   uma   fantasia   mórbida.   Se   digo   que   minha   imaginação   um   tanto
extravagante forjou imagens simultâneas de um polvo, um dragão e uma caricatura humana, não
estarei   sendo   infiel   ao   espírito   da   coisa.  Uma   cabeça   carnuda   e   tentaculada   coroava   um   corpo
grotesco, coberto de escamas, com asas rudimentares, mas era o contorno geral do conjunto que o
tornava mais aterrorizante. Por trás da figura havia a vaga sugestão de uma paisagem arquitetônica
ciclópica.
          Exceto     por    uma    pilha   de   recortes    da   imprensa,      os   textos   que    acompanhavam          essa
extravagância eram obra recente da mão do Professor Angell, sem a menor pretensão a um estilo
literário.   O   que   parecia   ser   o   documento   principal   se   intitulava   “CULTO   DE   CTHULHU”2                em

caracteres cuidadosamente grafados para evitar a leitura incorreta de uma palavra tão invulgar. O
manuscrito estava dividido em duas seções, a primeira intitulada “1925 – Sonho e Obra do Sonho
de H.A. Wilcox, Thomas Street, 7, Providence, R.I.”, e o segundo, “Narrativa do Inspetor John R.
Lesgrasse,     Bieville Street, 121, Nova Orleans, La., em 1908 A.A.S. Mtg. – Notas sobre o Mesmo,
&   Prof.   Webb´s   Acct”.   Os   outros   papéis   manuscritos   eram   todos   anotações   breves,   alguns   deles
relatos    de   sonhos    bizarros    de  diversas    pessoas,    outros    citações   de   livros  e   revistas   teosóficos
(especialmente de Atlantis and the Lost Lemuria de W. Scott-Elliot), e o resto comentários sobre
antigas sociedades secretas e cultos proibidos, com indicações de passagens de livros de referência
de antropologia e mitologia como  Golden Bought3 de Frazer e  Witch-Cult in Western Europe da

2  O   termo   "Cthulhu"   é   pronunciado   comumente   como   "kuh-THOO-loo"   (em   português  soa   algo   como:   “Katuuluu”,

pronunciado rapidamente), por causa da pronuncia indicada na caixa do famoso RPG de nome "Call of Cthulhu" da
Chaosium.   Entretanto,   existem   vários   estudantes   sérios   de   Lovecraft   que   preferem   a   pronúncia   como   “Cloo-loo”,
justificando suas teses em referências dos contos do autor. Fora isto a discussão se estende e encontramos ainda uma
série de pronuncias diferentes, mas que na prática nada, ou muito pouco, acrescentam ao termo. O próprio Lovecraft
brincava com seus amigos escritores pronunciando hora de uma forma ora de outra. (Nota de Transcrição)
3  Traduzido   no   Brasil   da   versão   inglesa   resumida   e   ilustrada  The   Ilustrated   Golden   Bough, da   monumental   obra   de

antropologia   da   religião  The   Golden   Bough  de   Sir   James   George   Frazer,   como  O   Ramo   de   Ouro,  Ed.   Guanabara
Koogan, 1982.

                                                               2

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                4
Srta. Murray . A maior parte dos recortes aludia a doenças mentais excêntricas e surtos de loucura
ou mania coletiva na primavera de 1925.
         A   primeira   metade   do   manuscrito   principal   relatava   uma   história   muito   estranha.   Ao   que
parece, em 1º de março de 1925, um jovem magro e soturno, de aspecto neurótico e exaltado, tinha
procurado   o   Professor   Angell,   levando   um   curioso  baixo-relevo   de   argila   ainda   muito   fresco   e
úmido. Seu cartão trazia o nome de Henry Anthony Wilcox, e meu tio o identificara como o filho
mais jovem de uma excelente família que ele conhecia de longe. O jovem era estudante de escultura
na    Escola    de   Desenho      de   Rhode     Island    e  morava      no   edifício   Fleur-de-Lys       perto   daquela
instituição5. Wilcox era um jovem precoce, de gênio conhecido, mas grande excentricidade, e desde

a infância ele chamava a atenção pelas histórias bizarras e sonhos curiosos  que tinha o hábito de
relatar. Ele se considerava “psiquicamente hipersensível”, mas para o povo pacato da antiga cidade
comercial ele não passava de um “esquisitão”. Sem nunca se misturar muito com sua própria gente,
ele foi perdendo aos poucos a visibilidade social e agora só era conhecido de um pequeno grupo de
estetas de outras cidades. Mesmo o Clube das Artes de Providence, zeloso de seu conservadorismo,
o considerava um caso sem esperança.
         Por ocasião da visita, dizia o manuscrito do professor, o escultor, de repente, pediu a ajuda
dos conhecimentos arqueológicos de seu anfitrião para identificar os hieróglifos dos baixo-relevo.
Ele falava de maneira calma, sonhadora, sugerindo uma simpatia afetada e distante, e meu tio foi
um tanto ríspido na resposta, pois a condição claramente recente da tabuleta indicava afinidade com
qualquer coisa, menos com arqueologia. A réplica do jovem Wilcox que impressionou meu tio o
bastante para ele recordar-se dela e registrá-la tal qual, teve um feitio poético que deve ter marcado
toda a conversa, e que mais tarde descobri tratar-se de uma forte característica sua. Ele disse, “É
novo, de fato, visto que o fiz na noite passada em meio a um sonho com cidades estranhas, e os
sonhos   são   mais   antigos   do   que   a   fervilhante   Tiro,   ou   a   contemplativa   Esfinge,   ou   a   ajardinada
Babilônia.”
         Foi    aí  que    ele  começou       aquele    relato   confuso    que,   de   repente,   espicaçou       memórias
adormecidas e conquistou o interesse febricitante  de meu tio. Tinha havido um rápido tremor de
terra na noite anterior, o mais forte sentido na Nova Inglaterra em muitos anos, e a imaginação de
Wilcox fora fortemente abalada. Recolhendo-se ao leito, ele teve um sonho sem precedentes com
grandes cidades ciclópicas, construídas com blocos titânicos e monolitos projetados para o céu, tudo
exsudando   um   limo   verde   e   sinistro   de   horror   latente.   As   paredes   e   pilares   estavam   cobertos   de
hieróglifos,     e  de  algum     ponto    indeterminado      abaixo    chegava     uma    voz   que   não   era   voz,  uma
sensação caótica que somente a fantasia poderia transformar em som, mas que ele tentara transmitir
com o amontoado de letras quase impronunciável  “Cthulhu fhtagn”.
         Essa   mixórdia   verbal   foi   a   chave   para   a   recordação   que   exaltou   e   perturbou   o   Professor
Angell.   Ele   interrogou   o   escultor   com   meticulosidade   científica   e   estudou   com   atenção   quase
fanática, o baixo-relevo em que o jovem se vira trabalhando, enregelado e vestido apenas com as
roupas de dormir, até a vigília insinuar-se em seu torpor. Meu tio culpou a sua velhice, disse Wilcox
mais tarde, pela lentidão com que identificou os hieróglifos e a imagem. Muitas de suas perguntas
pareceram   deslocadas   para   o   visitante,   em   especial   as   que   tentavam   relacioná-lo   com   cultos   ou
sociedades estranhos, e Wilcox não pôde compreender as repetidas promessas de silêncio que lhe
foram feitas em troca de ser aceito em alguma ordem religiosa mística ou pagã. Quando o Professor
Angell   se   convenceu   de   que   o   escultor   ignorava   mesmo   qualquer   culto   ou  sistema   de   sabedoria
críptica,   assediou   o   visitante   com   pedidos   para   que  ele   lhe   relatasse   sonhos   futuros.   Isso   rendeu
frutos   regulares.   Depois   da   primeira   entrevista,   o   manuscrito   registra  visitas   diárias   do   jovem
durante as quais ele relatava fragmentos surpreendentes de imaginação noturna cujo tema constante
era   alguma   vista   ciclópica   terrível   de   pedra  escura   e   gotejante,   com   uma   voz   ou   inteligência

4 Margaret A. Murray publicou em 1921 o livro citado, onde defende a tese de que o culto às bruxas, tanto na Europa

como   na   América,   tem   origem   numa   raça   pré-ariana   que   foi   impelida   para   um   mundo   subterrâneo,   mas   continua   à
espreita em cantos escondidos da terra.
5  Esta   casa-estúdio   foi   criada   pelo   artista   de   Providence,   R.I.,   Sydney   Richmond   Burleigh   e   de   fato   existe   na   Rua

Thomas nº 77 nesta mesma cidade. Foi utilizada como inspiração para esta história. (Nota de Transcrição)

                                                              3

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subterrânea   gritando   monotonamente  através   de   enigmáticos   impactos   sensoriais   só   possíveis   de
descrever com palavras sem sentido. Os dois sons repetidos com maior freqüência são os expressos
pelas letras  “Cthulhu” e  “R’lyeh”.
         No dia 23 de março, prosseguia o manuscrito, Wilcox não apareceu, e indagações feitas em
sua moradia revelaram que, atacado por um tipo desconhecido de febre, ele fora levado para a casa
de sua família na Waterman Street. Ele havia gritado durante a noite, despertando outros artistas do
prédio,   e   havia   manifestado,   a   partir   daquele   momento,   condições        alternadas   de   consciência   e
delírio. Meu tio telefonou incontinente para a família e dali em diante passou a acompanhar o caso
de perto, telefonando muitas vezes para o consultório do Dr. Tobey na Thayer Street, o médico que
estava   acompanhado   o   caso.   A   mente   febril   do   jovem,   ao   que   parecia,   estava   retida   em   coisas
estranhas,   e   o   médico   chegava   a   estremecer   quando        as  mencionava.      Estas   incluíam   não    só  a
repetição do que ele tinha sonhado antes, mas envolviam também algo gigantesco “com milhas de
altura” que andava ou se arrastava de um lado para outro. Em nenhum momento ele descreveu essa
coisa,    mas    expressões     alucinadas     ocasionais,     reproduzidas     pelo    Dr.   Tobey,    convenceram       o
professor de que ela devia ser idêntica à monstruosidade inominável que ele tentara representar em
sua escultura do sonho. A referência a essa coisa, acrescentou o doutor, preludiava sempre a recaída
do jovem na letargia. Sua temperatura, por estranho que pareça não subia muito acima do normal,
mas seu estado geral sugeria antes uma febre genuína do que uma perturbação mental.
         No   dia   2   de   abril,   por   volta   das   três   da   tarde,   todos   os   sintomas   da   doença   de   Wilcox
desapareceram de uma hora para outra. Ele sentou-se na cama, espantado por estar em casa e sem a
menor   noção   do   que   tinha   acontecido   em   sonho   ou  realidade   desde   a   noite   de   22   de   março.
Recebendo alta do médico, voltou a seus aposentos  em três dias, mas deixou de prestar qualquer
ajuda ao Professor Angell. Todos os vestígios de sonhos estranhos tinham sumido de sua memória,
e meu tio não guardou nenhum registro de seus pensamentos noturnos depois de uma semana de
relatos insossos e irrelevantes sobre visões perfeitamente normais.
         Aqui     terminava     a  primeira    parte   do  manuscrito,     mas    referências    a  algumas     anotações
espalhadas      deram-me      muito    em   que   pensar,   tanto,  de   fato,  que   só  o  arraigado    ceticismo    que
marcava   então   a   minha   filosofia   pode   explicar   a   persistente   aversão   que   senti   pelo   artista.   As
anotações em questão descreviam os sonhos de várias pessoas no mesmo período em que o jovem
Wilcox sofrera suas estranhas provações. Meu tio, ao que parece, criou às pressas uma vasta rede de
pesquisa      envolvendo      quase    todos   os   amigos    a   quem     poderia    fazer   perguntas     sem    parecer
impertinente,      pedindo-lhes     que   relatassem     seus  sonhos     noturnos    e  as  datas   de  qualquer    visão
extraordinária no passado recente. A receptividade a seu pedido parece Ter sido irregular, mas ele
deve   ter   recebido,   no   mínimo,   mais   respostas   do   que   uma   pessoa   normal   poderia   lidar   sem   uma
secretária.   Essa   correspondência  original   não   foi   preservada,   mas   suas   anotações   formaram   um
resumo completo e realmente significativo. As pessoas comuns da sociedade e do meio comercial
—   o   “sal   da   terra”   da   Nova   Inglaterra   tradicional  —   deram   um   retorno   quase   negativo,   embora
casos   esparsos   de   impressões   noturnas   perturbadoras   mas   informes   apareçam   aqui   e   ali,   sempre
entre 23 de março e 2 de abril, o tempo do delírio do jovem Wilcox. Os homens de ciência foram
afetados um pouco mais, embora quatro casos de descrição vaga sugiram vislumbres fugidios de
paisagens exóticas, e, em um caso, seja mencionado o pavor de alguma coisa anormal.
         Foi dos artistas e poetas que vieram as respostas pertinentes, e tenho clareza de que o pânico
se alastraria se eles tivessem podido comparar as anotações. Tal como aconteceu, na falta das cartas
originais, suspeitei que o compilador tinha feito perguntas indutivas ou editado a correspondência
para corroborar o que ele estava potencialmente inclinado a ver. Isso reforçou minha idéia de que
Wilcox, de alguma forma conhecedor dos dados antigos que meu tio possuía, vinha se insinuando
junto ao veterano cientista. As respostas daqueles estetas contavam uma história perturbadora. De
28    de   fevereiro   a  2  de   abril,  uma    grande    parte   deles  havia    tido  sonhos    extraordinários     e  a
intensidade dos sonhos havia sido muito maior durante o período do delírio do escultor. Mais de um
quarto   dos   que   relataram   algo,   registravam   cenas  e   sons   vagos   parecidos  com   os   descritos   por
Wilcox, e alguns sonhadores confessaram ter sentido um intenso pavor da gigantesca e indescritível
criatura avistada quase no fim. Um caso, que a anotação descreve com ênfase foi muito triste. O

                                                             4

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indivíduo, um arquiteto muito conhecido, com propensões para a teosofia e o ocultismo, tornou-se
um louco furioso na data do acesso do jovem Wilcox e expirou alguns meses mais tarde depois de
gritar   incessantemente   para   ser   salvo   de   algum   invasor   fugido   do   inferno.   Se   meu   tio   tivesse
organizado   esses   casos   por   nome   em   vez   de   números,   eu   poderia  tentar   confirmá-los   e   fazer
algumas investigações pessoais, mas do jeito como as coisas se deram, só consegui localizar alguns.
Desses, porém, confirmei as anotações por completo. Muitas vezes me perguntei se todos os objetos
das inquisições do professor ficaram tão perplexos quanto esses poucos. É bom que não lhes chegue
nenhuma explicação.
         Os recortes da imprensa, como sugeri, abordavam casos de pânico, mania e excentricidades
durante o período em questão. O Professor Angell deve ter-se valido de um serviço especial, pois
era imenso o número de recortes de fontes espalhadas por todo o Globo. Aqui, um suicídio noturno
em   Londres;   alguém   que   dormia   sozinho   havia   saltado   pela   janela   depois  de   lançar   um   grito
assustador. Ali, uma carta delirante ao editor de um jornal da América do Sul, onde um fanático
deduz um futuro tétrico de visões que tivera. Um despacho da Califórnia descreve uma colônia de
teosofistas distribuindo mantos brancos em massa par algum “acontecimento glorioso” que nunca
chega,   enquanto   notícias   da   Índia   falam   com   reservas   de   sérias   rebeliões   de   nativos   no   final   de
março. Orgias de vodu multiplicam-se no Haiti e postos avançados na África registram murmúrios
ominosos. Funcionários americanos nas Filipinas sentem que algumas tribos estão inquietas naquele
período, e policiais de Nova York são atacados por levantinos histéricos na noite de 22 para 23 de
março. Na região oeste da Irlanda, também, correm abundantes rumores e lendas fabulosos, e um
pintor de temas fantásticos, Ardois-Bonnot, expõe uma blasfema “Paisagem Onírica” no salão de
primavera de Paris de 1926. E são tão numerosos os distúrbios registrados em asilos de loucos que
só um milagre poderia Ter impedido a comunidade médica de observar os estranhos paralelismos e
tirar   conclusões    enganosas.     No  todo,    um   espantoso     maço    de  recortes    e  até  hoje  mal   consigo
entender o calejado racionalismo que me fez deixá-los de lado. Mas eu estava convencido então de
que o jovem Wilcox tinha conhecimentos dos assuntos mais antigos mencionados pelo professor.

         II. A narrativa do Inspetor Legrasse

         Os   assuntos   antigos   que   tornavam  o   sonho   e   o baixo-relevo   do   escultor   tão   significativos
para meu tio constituíam o tema da segunda metade de seu extenso manuscrito. Ao que parece, o
professor Angell já tinha visto a silhueta infernal da monstruosidade sem nome, já se tinha intrigado
com   os   misteriosos   hieróglifos  e   ouvido   as   sílabas   aziagas   que  só   podem   ser   representadas   por
 “Cthulhu”, e isso tudo associado de maneira tão excitante e terrível que não causa espanto que ele
tenha o jovem Wilcox com perguntas e solicitações de dados.
         A experiência anterior tinha ocorrido em  1908,   dezessete   anos   antes,   quando   a   Sociedade
Antropológica Americana realizara seu encontro anual em Saint Louis. O professor Angell, como
convinha   a   alguém   com   sua   autoridade   e   suas   realizações,   teve   um   papel   destacado   em   todas   as
deliberações,      e  foi  um   dos   primeiros    a  ser  abordado     por  diversos    leigos   que   aproveitaram     a
convocação   para   formular   perguntas   querendo   respostas   corretas   e   problemas   para   uma   solução
especializada.
         O principal desses leigos, e, dentro em pouco, o centro de interesse de todos os participantes,
era   um   homem   de   meia   idade   e   aparência   comum   que   tinha   vindo   de   Nova   Orleans   atrás   de
informações especiais impossíveis de obter junto a alguma fonte local. Chamava-se John Raymon
Legrasse   e   era,   de   profissão,   inspetor   de   polícia.   Trouxera   consigo   o   motivo   de   sua   visita,   uma
estatueta    de   pedra,   grotesca,    repulsiva    e  ao que    tudo    indica   muito   antiga,   cuja   origem    não
conseguira   determinar.   Não   se   deve   supor   que   o   Inspetor   Legrasse  tivesse   o   menor   interesse   em
arqueologia. Ao contrário, seu desejo de esclarecimento era movido por considerações estritamente
profissionais. A estatueta, ídolo, fetiche, ou seja lá o que fosse, fora capturada alguns meses antes
nos pântanos arborizados ao sul de Nova Orleans, durante uma batida a uma suposta reunião vodu,
e os ritos a ela associados       eram tão extraordinários e repulsivos que a polícia não pôde deixar de
concluir que tinha topado com um culto demoníaco totalmente desconhecido e muito mais diabólico

                                                            5

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do   que   os   mais   tenebrosos   círculos   de   vodu   africanos.   Sobre   a   sua   origem,   afora   as   histórias
desencontradas   e   inacreditáveis   extraídas   dos   praticantes   capturados,   não   se   haveria   de   descobrir
absolutamente nada, o que explicava a ansiedade da polícia por qualquer sabedoria arcaica que a
ajudasse a situar o pavoroso símbolo e, através dele, a reconstituir a origem do culto.
         O Inspetor Legrasse não estava preparado para a sensação que seu oferecimento provocou.
Bastou uma vista ao objeto para colocar os homens de ciência em estado de tensa excitação, e sem
demora eles de aglomeraram ao seu redor para examinar a diminuta figura cuja absoluta estranheza
e   aparência     de  antigüidade     abissal   sugeriam     poderosamente       panoramas      arcaicos    e  fechados.
Nenhuma       escola    de  escultura    identificável    havia   inspirado    o  terrível   objeto,   mas,   entretanto,
centenas,   milhares   de   anos,   talvez,   pareciam   gravados   na   superfície   turva   e   esverdeada   da   pedra
inclassificável.
         A    estatueta,   que   foi  sendo   passada    com    vagar   de   mão   em    mão   para   um    estudo   mais
cuidadoso, tinha sete a oito polegadas de altura e um acabamento artístico raro. Representava um
monstro de perfil meio antropóide, mas com uma cabeça de polvo com um amontoado de tentáculos
por   face   e   um   corpo   coberto   de   escamas   aparentemente   elástico,   garras   prodigiosas   nas   patas
dianteiras   e   traseiras,   e   asas  longas   e   estreitas   nas   costas.   A   coisa,   que   parecia   animada   de   uma
malignidade terrível e apavorante, tinha o corpo um tanto estufado e estava acocorada num pedestal,
ou bloco retangular, com inscrições indecifráveis. As pontas das asas tocavam na borda escura do
bloco, o traseiro ocupava o centro, enquanto as garras longas e curvas das patas traseiras dobradas
agarravam a borda frontal e se prolongavam até um quarto da distância até a base do pedestal. A
cabeça cefalópode estava curvada para a frente de tal forma que as pontas dos tentáculos faciais
raspavam       nos    dorsos    das  patas   dianteiras    que   se  apoiavam      nos  joelhos    erguidos    da   figura
acocorada. Ela dava uma impressão geral de estar viva, e era ainda mais assustadora por sua origem
ser tão absolutamente desconhecida. Sua antigüidade imensa, espantosa e incalculável era inegável,
embora ela não revelasse qualquer ligação com algum tipo de arte da aurora da civilização — ou,
mesmo, de alguma outra era. Em contrapartida, o próprio material de que era feita constituía um
mistério, pois a pedra lisa preto-esverdeada com suas listras ou estrias douradas ou iridescentes não
se assemelhava a nada que a geologia ou a mineralogia conhecessem. As inscrições ao longo da
base   eram   também   intrigantes   e   nenhum   dos   presentes,   apesar   de   ali   se   encontrar   a   metade   do
conhecimento especializado do mundo nesse campo, conseguiu formar a menor idéia nem mesmo
de sua mais remota filiação lingüística. Assim como a figura e o material, elas pertenciam a algo
terrivelmente antigo e distinto da humanidade tal como a conhecemos, algo que sugeria com pavor
ciclos de vida remotos e profanos, alheios a nosso mundo e a nossas concepções.
         Contudo,   enquanto   os   membros   abanavam   com   seriedade   as   cabeças   e   confessavam   sua
derrota em face do problema apresentado pelo inspetor, uma pessoa naquela reunião presumiu um
traço de estranha familiaridade na forma monstruosa e na inscrição e contou, com certa modéstia,
uma     curiosidade    de   seu  conhecimento.       Tratava-se    do   hoje   falecido   William    Channing      Webb,
professor de antropologia da Universidade de Princeton e conhecido explorador.                      O professor Webb
participara, quarenta e oito anos antes, de uma  expedição à Groenlândia e à Islândia em busca de
certas inscrições rúnicas que não conseguiu descobrir, e na costa da Groenlândia Ocidental havia
encontrado uma tribo ou culto singular de esquimós degenerados cuja religião, uma curiosa forma
de   adoração   ao   diabo,   o   havia   estarrecido   por   seu   caráter   deliberado   cruel   e   repulsivo.   A   fé   era
pouco conhecida dos outros esquimós e eles só  a mencionavam entre arrepios, dizendo que tinha
surgido     em    épocas    terrivelmente     primitivas,    antes  mesmo      do   mundo     existir.  Além     de  ritos
indescritíveis e sacrifícios humanos, ela incluía certos rituais hereditários  fantásticos devotados a
um demônio ancestral supremo ou tornasuk, e o professor Webb havia conseguido uma cuidadosa
transcrição     fonética   deste   de   um   velho   mago-sacerdote       ou  angekok,     expressando      os  sons   em
caracteres   romanos   da   melhor   maneira   que   pôde.   Mas   no   momento,   tinha   um   significado   todo
especial o fetiche que esse culto adorava e ao redor do qual os praticantes dançavam enquanto a
aurora boreal luzia por cima dos penhascos de gelo. Era, pontificou o professor, um baixo-relevo
em pedra muito tosco exibindo uma figura repulsiva e algumas inscrições misteriosas. Até onde ele

                                                            6

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saberia   dizer, tratava-se de um similar tosco, em todos os traços, em todos os traços essenciais, do
objeto bestial pousado, naquele momento, diante daquela assembléia.
         Essas    informações,      recebidas    com    espanto    e  admiração      pelos   membros      ali  reunidos,
mostraram-se empolgantes em dobro para o inspetor Legrasse, e ele na hora assediou o informante
de perguntas. Tendo anotado e transcrito um ritual oral dos adoradores do pântano que seus homens
haviam detido, pediu ao professor que se lembrasse o melhor possível das sílabas anotadas entre os
esquimós satanistas. Seguiu-se uma exaustiva comparação de detalhes e um momento de respeitoso
silêncio   quando   ambos,   investigador   e   cientista, concordaram   sobre   a   identidade   virtual   da   frase
comum aos dois rituais satânicos separados por mundos de distância. O que, em essência, tanto os
feiticeiros    esquimós     como     os  sacerdotes    do   pântano    da   Louisiana     tinham    entoado    para   sus
venerados ídolos era algo assim — sendo a divisão  de palavras inferidas das quebras normais da
frase quando entoada em voz alta:

         “Ph’nglui mglw’ nafh Cthulhu R’yleh wgah’nagl fhtagn.”

         Legrasse   estava   um   passo   à   frente   do   professor   Webb,   pois   vários   de   seus   prisioneiros
mestiços   tinham   repetido   pare   ele   o   que   os   celebrantes   mais   velhos   lhes   tinham   dito   sobre   o
significado das palavras. Esse texto dizia algo assim:

         “Em sua morada em R’yleh omorto Cthulhu espera sonhando.”

         Então, atendendo a um pedido geral e insistente, o inspetor Legrasse contou, da forma mais
completa   possível,   sua   experiência   com   os   adoradores   do   pântano,   contado   uma   história   a   que,
como   pude   observar,   meu   tio   atribuiu   um   significado   profundo.   Ela   sugeria   os   mais   alucinados
sonhos dos criadores de mitos e teosofistas, e revelava um espantoso grau de imaginação cósmica
em mestiços e párias.
         Em 1º de novembro de 1907, a polícia de Nova Orleans recebera um chamado frenético da
região lacustre e pantanosa ao sul. Os posseiros da região, em sua maioria descendentes primitivos
mas de boa índole dos homens de Lafitte6, estavam tomados de mais absoluto pavor por uma coisa

desconhecida que se aproximara furtivamente deles durante a noite. Parecia vodu, mas vodu de um
tipo mais terrível do que todos que conheciam, e algumas mulheres e crianças tinham desaparecido
desde que o tantã maléfico começara seu batimento incessante no coração dos bosques escuros e
assombrados       onde    ninguém     se  aventura.   Havia   gritos    insanos   e  uivos   angustiados,     cantos   de
arrepiar a alma e chamas diabólicas dançantes, e, prosseguiu o assustado mensageiro, as pessoas na
podiam mais suportar.
         Assim,   um   corpo   de   vinte   policiais   que   lotava   dois   veículos   e   um   automóvel   partiu   ao
entardecer, levando o trêmulo posseiro como guia. No final da estrada transitável eles apearam e
chapinharam       muitas    milhas    em   silêncio   pelos  terríveis   bosques     de  ciprestes   onde    o  dia  não
penetrava.    Raízes pavorosas e festões pendentes e malignos de musgo espanhol os cercavam e, de
vez   em   quando,   um   amontoado   de   pedras   úmidas  ou   fragmentos   de   alguma   parede   apodrecida
intensificavam, com sua sugestão de moradia mórbida, o sentimento de depressão que cada árvore
retorcida e cada ilhota musgosa se combinavam para produzir. Finalmente despontou o povoado de
posseiros,     um    amontoado      de   casebres    miseráveis,     e  moradores      histéricos    vieram    correndo
aglomerar-se em volta do grupo de lanternas balouçantes. A batida surda dos tambores era agora
pouco audível ao longe, muito ao longe, e um uivo horripilante chegava em intervalos irregulares
quando o vento mudava. Um clarão avermelhado parecia filtrar através da pálida vegetação rasteira
além das intermináveis avenidas de escuridão florestal. Mesmo relutando em se deixados mais uma
vez   a   sós,   os   amedrontados   posseiros   recusaram-se   a   avançar   uma   polegada   na   direção   do   culto
profano, e o inspetor Legrasse e seus dezenove colegas tiveram que seguir em frente sem guia pelas
negras arcadas de horror que nenhum deles jamais percorrera.

6 La Fayette, Marquês de (1757-1834), líder militar e político francês, lutou no bando dos rebeldes das colônias durante

a guerra da Independência Americana. (Nota de Transcrição)

                                                            7

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         A   região   invadida   pela   polícia   tinha   má  reputação   e   era   geralmente   desconhecida   e   não
freqüentada por homens brancos. Corriam lendas de um lago oculto, jamais vislumbrado por olhos
mortais, habitado por uma coisa poliposa branca  e informe, com olhos luminosos, e os posseiros
sussurravam que demônios com asas de morcego saíam voando de cavernas nas entranhas da terra
para adorá-la à meia-noite Eles diziam que a criatura já estava ali antes de D’Iberville7, antes de La
Salle8,   antes   dos   índios,   e   antes   mesmo   dos   animais   e   pássaros   são   dos bosques.   Era   o   próprio

pesadelo   e   vê-la   significava   a   morte,   mas   ela   fazia   os   homens   sonharem   e   assim   eles   sabiam   o
bastante   para   se   manter   à   distância.   A   orgia   de   vodu   acontecia,   de   fato,   na   fímbria   só   da   zona
abominável, mas aquele local era ruim o bastante, daí, porque, talvez o próprio local da adoração
aterrorizasse os posseiros mais do que os pavorosos sons e incidentes.
          Somente a poesia ou a loucura poderiam fazer justiça aos barulhos escutados pelos homens
de Legrasse enquanto abriam cainho  pelo pântano tenebroso na  direção do clarão vermelho e do
tantã abafado. Há características vocais típicas dos homens, e características vocais típicas das feras,
e   é   terrível   ouvir   uma   quando   a   fonte   devia   indicar   a   outra.   A   fúria   animal   e   a   libertinagem
orgiástica     atingiram      ali  alturas   demoníacas       com     uivos   e   guinchos     extáticos     que   cortavam,
reverberando o bosque sombrio como tempestades pestilenciais das profundas do inferno. De vez
em quando, a gritaria desordenada cessava, destacando-se o que parecia um coro bem ensaiado de
vozes roucas entoando compasssadamente aquela frase ou ritual hediondo:

          “Ph’nglui mglw’ nafh Cthulhu R’yleh wgah’nagl fhtagn.”

         Atingindo um ponto onde o arvoredo era menos denso, os homens toparam de repente com a
visão do próprio espetáculo. Quatro deles cambalearam, um desmaiou e dois foram sacudidos por
um pranto convulsivo que a furiosa cacofonia do festim felizmente abafou. Legrassse aspergiu água
do pântano no rosto do desmaiado e todos ficaram paralisados, tremendo, quase hipnotizados pelo
horror.
         Numa clareira natural do pântano havia uma   ilha   relvada   e   sem   árvores,   com   um   acre   de
extensão,      talvez,   e  em    certa   medida     seca.   Sobre    ela  saltitava    e  se  contorcia     uma    horda    de
anormalidade        humana      tão   indescritível     que   só   um    Sime    ou   Angarola9      poderiam      descrever.

Desprovida de roupas, aquela prole híbrida zurrava, urrava e se contorcia em volta de um anel de
fogo   cujo   centro,   revelado   por   aberturas   ocasionais   da   cortina   de   chamas,   era   ocupado   por   um
grande      monolito     branco    com     quase    oito   pés   de   altura,   sobre   o   qual   repousava,      parecendo
incongruente       por   sua   pequena     dimensão,      a  pérfida   estatueta    cinzelada.    De    um   amplo     círculo
formado   por   dez   patíbulos   dispostos   em   intervalos   regulares,   tendo   monólito   branco   rodeado   de
chamas   como   centro,   pendiam,   de   cabeça   para   baixo,   os   corpos   terrivelmente   desfigurados   dos
infortunados posseiros desaparecidos. Era no interior desse círculo que a roda de adoradores saltava
e rugia, movendo-se da esquerda para a direita num Bacanal interminável entre o anel de corpo e o
anel de fogo.
         Pode ter sido apenas imaginação e podem ter sido apenas os ecos a induzir um dos homens,
um   espanhol   impressionável,   a   imaginar   ter   ouvido   reposta   antifônicas   ao   ritual   de   algum   ponto
distante   e   escuro   das   profundezas   do   bosque   de   antiga   lenda   e   horror.   Esses   homem,   Joseph   D.
Galvez,      eu  encontrei     e  interroguei    mais    tarde,  e   ele  se  mostrou     espantosamente        imaginativo,
chegando   a   sugerir   um   tênue   bater   de   grandes   asas   e   o   vislumbre   de   olhos   brilhantes   e   de   um
enorme   vulto   branco   além   das   árvores   mais  distantes   —   mas   imagino   que   tenha   ouvido   muitas
superstições nativas.

7 Iberville, sieur d' (Pierre Le Moyne) (1661-1706), explorador famoso e um dos fundadores da Louisiana. (Nota de

Transcrição)
8 La Salle, René-Robert Cavelier (1643-1687), explorador francês famoso pela descoberta de um vale, o qual viria a ser

a atual Louisiana, em homenagem ao rei Luís XIV. (Nota de Transcrição)
9 Sidney Herbert Sime (1867-1945), ilustrador admirado por Lovecraft; Anthony Angarola (1893-1929), ilustrador norte

americano de livros.

                                                               8

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         A paralisia de pavor dos homens, na verdade, durou pouco. O dever logo se impôs e mesmo
havendo por ali perto uma centena de mestiços celebrantes, a polícia confiou em suas armas e caiu,
com   determinação,   em   cima   da   turba   repugnante.  Durante   cinco   minutos,   o   alvoroço   e   o   caos
resultantes foram indescritíveis. Golpes terríveis, tiros e fugas, mas no final Legrasse pôde contar
cerca   de   quarenta   e   sete   prisioneiros   sombrios  que   foram   obrigados   a   se  vestir   às   pressas   e   se
alinhar entre duas filas de policiais. Cinco adoradores estavam mortos, e dois gravemente feridos
foram levados em macas improvisadas por seus colegas presos. A estatueta sobre o monólito foi
retirada com cuidado, é claro, e trazida por Legrasse.
         Inquiridos na delegacia depois de uma jornada de tensão e cansaço intensos, os prisioneiros
revelaram-se   todos   homens   de   um   tipo   de   mestiçagem   muito   inferior   e   mentalmente   aberrante.
Eram marinheiros, em sua maioria, e um punhado de negros e mulatos, sobretudos caribenhos ou
portugueses de Brava nas ilhas de Cabo Verde, dava um toque de voduísmo ao culto heterogêneo.
Mas não foi preciso muita inquisição para ficar evidente que havia algo muito mais profundo e mais
antigo d que o fetichismo negro. Degradadas e ignorantes como eram, as criaturas defendiam, com
surpreendente consistência, a idéia central de sua abominável fé.
         Eles   adoravam,   assim   disseram,   os   Grandes  Antigos   que   viveram   muitas   eras   antes   de
existirem   os   homens,   e   que   tinha   vindo   do   céu  para   o   mundo   jovem.   Esses   Antigos   já   tinham
partido, para o interior da Terra e o fundo do mar, mas seus corpos mortos tinham revelado seus
segredos   em   sonhos   aos   primeiros   homens,   que   criaram   um   culto   que   jamais   deixara   de   existir.
Aquilo   que   praticavam   era   esse   culto,   e   segundo  os   prisioneiros   ele   sempre   existira   e   sempre
existiria, escondido em desertos remotos e lugares sombrios espalhados pelo mundo até o dia em
que o grande sacerdote Cthulhu, saindo de sua tétrica morada na imponente cidade submarina de
R’yleh, emergeria e colocaria a Terra novamente sob seu jugo. Algum dia ele conclamaria, quando
as estrelas estivessem preparadas, e o culto secreto estaria pronto para libertá-lo.
         Até lá, nada mais deveria ser dito. Havia um segredo que nem a tortura poderia extrair. A
humanidade não era de modo algum a única das coisas conscientes da Terra, pois emergiam vulto
da escuridão para visitar os poucos fiéis. Mas esses não eram os Grandes Antigos. Nenhum homem
jamais vira os Antigos. O ídolo  cinzelado era o grande Cthulhu, mas ninguém saberia dizer se os
outros era exatamente iguais a ele. Ninguém conseguira ler a antiga inscrição, mas as coisas eram
transmitidas de boca em boca. O ritual entoado não era o segredo — esse jamais era dito em voz
alta,   apenas   sussurrado.   O   canto   significava   apenas   isto:   “Em   sua   morada   em   R’yleh,   o   morto
Cthulhu espera sonhando.”
         Somente dois dos prisioneiros foram considerados sãos o bastante para a forca e o resto foi
confiado a várias instituições. Todos negaram que a matança tinha sido feita pelos Alados Negros
que tinha vindo até eles de seu imemorial ponto de encontro no bosque assombrado. Mas daqueles
aliados    misteriosos,    não   se  pôde    jamais   obter  um   relato    coerente.   O   grosso   do   que   a  polícia
conseguiu extrair veio de um mestizo muito velho chamado Castro, que alegava ter navegado em
portos estranhos e conversado com líderes imortais do culto nas montanhas da China.
         O     velho   Castro    recordou     fragmentos      da  odiosa     lenda    que   fizeram    empalidecer      as
especulações   dos   teosofistas   e   faziam   o   homem   e   o   mundo   parecerem   recentes   e   transitórios.
Durante      muitas   eras,   outras   Criaturas   governaram      a  Terra,   e  Elas   tinham    construído    grandes
cidades. Restos Delas, segundo lhe disseram os chineses imortais, ainda poderiam ser encontrados
como pedras ciclópicas em ilhas do Pacífico. Elas todas tinham desaparecido vastas eras antes dos
homens   chegarem,   mas   certas   artes   poderiam   revivê-las   quando   as   estrelas   girassem   novamente
para as posições certas no ciclo da eternidade. Elas próprias, na verdade, tinham vindo das estrelas,
e trazido Suas imagens Consigo.
         Os   Grandes   Antigos,   prosseguiu   Castro,   não  eram   totalmente   de   carne   e   sangue.   Tinham
forma   —   pois   não   o   prova   essa   estatueta   estrelada?  —   mas   essa   forma   não   era   feita   de   matéria.
Quando as estrelas estivessem posicionadas, Eles podiam saltar de mundo para mundo céu afora,
mas quando as estrelas estavam na posição errada, não podiam viver. Mas embora não vivessem
mais, Eles jamais podiam realmente morrer. Jaziam em casas de pedra em Sua grande cidade de
R’yleh, preservados pelos feitiços do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreição quando as

                                                            9

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estrelas   e   a   Terra   estivessem   mais   uma   vez   prontas   para   Eles.   Mas   a   essa   altura,   alguma   força
exterior    teria   de  agir   para   libertar  Seus    corpos.   Os   encantamentos        que   Os   mantinham   intatos
também Os impediam de dar o passo inicial, e Eles só podiam ficar deitados, despertos, no escuro, e
pensar,     enquanto     incontáveis     milhões     de  anos    transcorriam.     Sabiam     tudo    que   se  passava     no
universo, mas se comunicavam por transmissão de pensamentos. Mesmo agora Eles conversavam
em     Seus   túmulos.     Quando,     depois    de  infinidades    de   caos,   surgiram     os  primeiros     homens,     os
Grandes   Antigos   falaram   aos   mais   sensíveis   deles,   moldando   seus   sonhos,   pois   só   assim   Sua
linguagem conseguia atingir as mentes carnais dos mamíferos.
         Então, sussurrou Castro, aqueles primeiros homens criaram o culto em torno de pequenos
ídolos que os Grandes lhes mostraram, ídolos trazidos de estrelas escuras para zonas sombrias. Esse
culto   não   morreria   jamais   até   que  as   estrelas   estivessem   de   novo   em   posição   e   os   sacerdotes
secretos   tirassem  o   grande   Cthulhu   de   Sua   sepultura  para   reanimar   Seus   súditos   e   recuperar   Seu
domínio sobre a Terra. O momento seria fácil reconhecer pois a humanidade se teria tornado então
como      os   Grandes     Antigos,     livre,  selvagem,      e além     do   bem     e  do   mal,   com     as  leis   e  os
comportamentos   morais   deixados   de   lado,   e   todos   os   homens,   em   júbilo,   gritando   matando   e
festejando. Os Antigos libertadores lhes ensinariam então novas maneiras de gritar, matar, festejar,
se divertir, e toda a Terra arderia num holocausto de êxtase e liberdade. Até lá, o culto, através de
ritos    apropriados,     devia    manter     viva   a   memória      daqueles     costumes      ancestrais    e   transmitir
secretamente a profecia de sua volta.
         Outrora, nos tempos idos, homens escolhidos tinham conversado com os sepultados Antigos
em   sonhos,   mas   alguma   coisa   acontecera   então.   A   grande   cidade   de   pedra   de   R’yleh,   com   seus
monólitos e sepulcros, tinha afundado debaixo das ondas e as águas profundas, cheias do mistério
primordial   no   qual   nem  mesmo   o   pensamento   pode   penetrar,   tinham  interrompido   o   intercâmbio
espectral.   Mas   a   memória   nunca   morria,   e   sumos   sacerdotes   diziam   que   a   cidade   se   ergueria   de
novo quando as estrelas se posicionassem. Depois sairiam do chão, mofados e tétricos, os espíritos
negros     da   Terra,    e  cercados     de  rumores      sombrios     ocuparam      cavernas     por   baixo    dos   leitos
esquecidos dos mares. Mas o velho Castro não ousou falar muito deles. Calou-se bruscamente e não
houve persuasão ou sutilezas que pudessem elucidar mais nessa direção. O  tamanho dos Antigos,
também, o que é curioso, ele não quis mencionar. Sobre o culto, disse que seu núcleo devia estar no
centro   dos   desertos   intransitáveis   da   Arábia,   onde   Irem,   a   Cidade   dos   Pilares,   sonha   oculta   e
intocada.   Ele   não   tinha   qualquer   relação   com   o   culto   das   bruxas   europeu,   e   era   virtualmente
desconhecido entre seus membros. Nenhum livro jamais se referira de fato a ele, embora, segundo
os   imortais   chineses,   houvesse   um   duplo   significado   no  Necronomicon10do   árabe   louco   Abdul

Alhazred      que   os   iniciados    poderiam     ler  quando    quisessem,      especialmente       no  muito    discutido
dístico:

          “Pois não há morto que fique em repouso eterno,
         E com imensa idade, poderá finar-se a morte.”

         Legrasse, muitíssimo impressionado e não menos perplexo, tinha interrogado em vão sobre
as   filiações   históricas    do   culto.  Castro,    ao   que  parece,    falara   a  verdade    ao   dizer   que   ele  era
absolutamente   secreto.   As   autoridades   da   Universidade   de   Tulane   não   puderam   lançar   luz   nem
sobre o culto, nem sobre a imagem, e o investigador tinha procurado as mais altas autoridades do
país, obtendo apenas a história da Groenlândia do professor Webb.
         O interesse febril provocado pelo relato de Legrasse ao encontro, corroborado como era pela
estatueta,     repetiu-se    na   correspondência        subseqüente      dos   participantes,     embora     só   apareçam

10 Livro místico imaginário criado por Lovecraft. Neste grimório desconhecido estariam guardados segredos sobre os

Antigos e práticas mágicas. Em     “A História do Necronomicon”, o autor nos fala, inclusive com mais detalhes, sobre
cidade dos pilares de Irem, citada anteriormente e de cópias secretas do livro preservadas até hoje. É importante dizer
que este livro nunca existiu, e Lovecraft apenas se referia a ele nunca criando uma versão do livro, inclusive versões do
livro é que não faltam na Internet algumas até ridículas associando Lovecraft ao famoso ocultista A. Crowley e outras
besteiras mais. (Nota de Transcrição)

                                                              10

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menções esparsas a ele nas publicações formais da sociedade. A cautela é o primeiro cuidado dos
que   se   acostumam  a   enfrentar   o   charlatanismo   e a   impostura.   Legrasse   emprestou   a   imagem  por
algum tempo ao professor Webb, mas quando este morreu, ela lhe foi devolvida e permanece em
sua    posse,    onde    eu   a   vi  não    faz   muito    tempo.   É,    de   fato,   uma    coisa    terrível,   e  está
inconfundivelmente relacionada com a escultura de sonho do jovem Wilcox.
         Não me espanta que meu tio ficasse excitado com a história do escultor, pois o que poderia
pensar ao saber, conhecendo o que Legrasse havia apurado sobre o culto, de um jovem sensível que
tinha sonhado não só com a figura e os hieróglifos exatos da imagem encontrada no pântano e da
tabuleta   diabólica   da   Groenlândia,   mas   chegara  em   seus   sonhos   a   pelo   menos   três   das   palavras
exatas     da  fórmula     pronunciada      por  satanistas   esquimós      e  mestiços     da   Louisiana?     O   pronto
empreendimento de uma investigação de extrema eficácia pelo professor Angell era perfeitamente
natural, embora eu suspeitasse que o jovem Wilcox tinha tomado conhecimento do culto por algum
canal indireto, e tinha inventado uma seqüência de sonhos para aumentar e prolongar o mistério às
custas   do   meu   tio.   As   narrativas   de   sonhos   e   os   recortes   colecionados   pelo   professor   eram,   por
certo,   uma   prova   poderosa,   mas   minha   vocação   racionalista   e   a   extravagância   do   assunto   todo
levaram-me       a  adotar   o   que  considerei    as  conclusões   mais   sensatas.   Assim,   depois   de   estudar
cuidadosamente o manuscrito de novo e comparar as anotações teosóficas e antropológicas com a
narrativa   sobre   o   culto   de   Legrasse,   fiz   uma   viagem   à   Providence   para   encontrar   o   escultor   e
censurá-lo, como achava que merecia, por se impor de maneira tão atrevida a um homem culto e
idoso.
         Wilcox   ainda   morava   sozinho   no   Edifício   Fleur-de-Lys   da   Thomas   Street,   uma   pavorosa
imitação vitoriana da arquitetura Breton do século XVII que pavoneia sua fachada de estuque em
meio às adoráveis casas coloniais da antiga colina e à sombra do mais belo campanário da América.
Encontrei.   Encontrei-o   a   trabalhar   em   seus   aposentos,   e   deduzi,   imediatamente,   pelos   modelos
espalhados por ali, que seu gênio era mesmo profundo e autêntico. Algum dia, acredito, ele será
conhecido como um grande decadentista, pois conseguiu cristalizar em argila a algum dia espelhará
em  mármore   aqueles   pesadelos e fantasias que Arthur Machen11 evoca em prosa e Clark Ashton
Smith12 exibe em versos e pinturas.

         Frágil, soturno e um tanto desleixado, virou-se languidamente à minha batida perguntou-me,
sem se levantar, o que eu queria. Quando lhe contei quem eu era, mostrou algum interesse, pis meu
tio havia excitado sua curiosidade ao investigar seus sonhos bizarros, mesmo sem nunca explicar as
razões de seu estudo. Eu não ampliei seus conhecimentos a esse respeito, mas tentei, com alguma
sutileza, interessá-lo. Em pouco tempo, convenci-me de sua absoluta sinceridade, pois ele falou dos
sonhos de uma maneira que não deixava dúvidas. Os sonhos e seu resíduo subconsciente tiveram
profunda      influência   em    sua  arte,  e  ele   me   mostrou     uma   estátua    cujos   contornos    me    fizeram
estremecer com a perversidade que sugeria. Não se lembrava de ter visto o original da coisa exceto
no baixo-relevo sonhado, mas as linhas foram insensivelmente tomando forma em suas mãos. Era,
sem dúvida, a forma gigante que ele tinha expressado em seu delírio. Logo ficou claro que ele não
sabia nada sobre o culto secreto afora o que a sabatina implacável de meu tio deixara escapar, e
mais   uma   vez   tentei   imaginar   alguma   maneira  pela   qual   ele   pudesse   ter   recebido   as   pavorosas
impressões.
         Ele    falou   de  seus   sonhos    de  uma    maneira   curiosamente       poética,   fazendo-me      ver,   com
terrível    nitidez,  a  úmida     cidade   ciclópica    de   pedras   verdes    escorregadias     —    cuja  geometria,
comentou casualmente, era toda errada — e ouvir, em suspensa expectativa, o incessante e quase
mental   chamado   das   profundezas:        “Cthulhu   fhtagn”,     “Cthulhu   fhtagn”.  Essas   palavras   eram   em
parte do terrível ritual que falava da vigília em sonho do falecido Cthulhu em sua cripta de pedra em
R’yleh,   e   fiquei   profundamente   comovido   a   despeito   de   minhas   crenças   racionais.   Wilcox,   com
certeza, ouvira falar do culto de maneira casual e logo se esquecera dele em meio à profusão de

11 Machen, Arthur (1863-1947), escritor inglês de renome que abordava temas sobrenaturais, admirado por Lovecraft.

(Nota de Transcrição)
12 Smith, Clark Ashton (1893-1961), escritor e artista plástico que além de amigo de Lovecraft era admirado por ele.

(Nota de Transcrição)

                                                            11

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leituras    e  fantasias   também     excêntricas.    Mais   tarde,   sendo   muito    impressionável,      aquilo   tinha
encontrado expressão subconsciente em sonhos, no baixo-relevo e na terrível estátua que eu agora
tinha diante de mim, de forma que sua imposição sobre meu tio tinha sido muito inocente. O jovem
era de um tipo um tanto afetado e um tanto rude ao mesmo tempo, de que eu jamais poderia gostar,
mas eu já me sentia inclinado a admitir seu gênio e sua honestidade. Despedi-me amistosamente,
desejando-lhe todo o sucesso que seu talento promete.
         A   questão   do   culto   continuava   a  me   fascinar,   e   às   vezes   eu  tinha   vislumbres   de   glória
pessoal com as pesquisas sobre sua origem e suas conexões. Visitei Nova Orleans, conversei com
Legrasse   e   outros   participantes   daquela   antiga   batida   policial,   vi   o   ídolo  assustador   e   cheguei   a
inquirir   os   prisioneiros   mestiços   sobreviventes.  O   velho   Castro,   infelizmente,   morrera   há   alguns
anos. O que ouvi de forma tão vívida de primeira mão, conquanto apenas confirmasse em detalhes o
que meu tio tinha escrito, animou-me de novo, pois me parecia estar na pista de uma religião muito
real, muito secreta e muito antiga cuja descoberta faria de um antropólogo ilustre. Minha atitude
ainda     era   toda   materialista,   tomara      ainda    fosse,   e  desconsiderei      com    perversidade      quase
inexplicável a coincidência entre as anotações dos sonhos e os curiosos recortes colecionados pelo
professor Angell.
         Uma coisa de que comecei a suspeitar, e que agora temo saber, é que a morte de meu tio não
fora   natural.   Ele   caíra   numa   rua   enladeirada   e   estreita   que   levava   a   um   antigo   cais   coalhado   de
mestiços     estrangeiros,    depois    do   esbarrão    involuntário    de   um   marinheiro      negro.   Eu   não   me
esquecera do sangue misto e das atividades marinhas dos membros do culto em Louisiana, e não me
surpreendia      ficar  sabendo     de  métodos     secretos   e  agulhas    envenenadas       tão  implacáveis     e  tão
ancestralmente   conhecidas   quando   os   ritos   e   crenças   eram   secretos.   Legrasse   e   seus   homens,   é
verdade, não tinham sido afetados, mas na Noruega, um certo marinheiro que vira cosas está morto.
As investigações mais profundas de meu tio depois de obter os dados do escultor não poderiam ter
chegado a ouvidos sinistros? Creio que o professor Angell morreu porque sabia demais, ou porque,
provavelmente,   viria   a   saber   demais.   Resta   saber   se   irei   como   ele   se   foi,   pois   também  sei   muito
agora.

         III. A loucura vinda do mar

         Se o céu algum dia quisesse conceder-me uma benção, esta seria apagar de todo os efeitos
do acaso que fez meus olhos se fixarem num pedaço de papel que forrava uma prateleira. Não era
algo com que eu me teria deparado naturalmente em minhas ocupações diárias, pois se tratava de
um  número   velho   de   um  jornal   australiano,   o  Sydney   Bulletin,   de   18   de   abril   de   1925.   Ele   tinha
escapado      inclusive   à  firma   de   distribuição    de  recortes   que,   por  ocasião    de  sua   edição,   vinha
coletando material para a pesquisa de meu tio.
         Minhas      investigações    sobre    o  que  o   professor   Angell    chamava     de   “Culto   de   Cthulhu”
estavam quase paradas e eu estava de visita a um amigo erudito em Paterson, Nova Jersey, curador
de   um   museu   local   e   mineralogista   de   renome.  Examinando,   certo   dia,   o   espécimes   de   reserva
espalhados nas prateleiras de uma sala de fundo do museu, meu olhar foi atraído por uma curiosa
ilustração num dos velhos jornais estendidos embaixo das pedras. Tratava-se do Sydney Bulletin
que mencionei, pois meu amigo tinha amplas relações no exterior, e a ilustração era uma autotipia
recortada   de   uma   repulsiva   imagem   de   pedra   quase   idêntica   à   que   Legrasse   tinha   encontrado   o
pântano.
         Retirei,    impaciente,      as   peças    preciosas     de   cima    da    folha   de   jornal    e   examinei
minuciosamente a matéria, despontando-me com o pouco que dizia. O que ela sugeria, porém, teve
profundas      repercussões     em   minha    busca    periclitante   e  recordei   com    todo   cuidado    para   tomar
medidas imediatas. Ela dizia o seguinte:

                           MISTERIOSO NAVIO PERDIDO ENCONTRADO NO MAR
                         Vigilant chega rebocando iate neozelandês armado e abandonado.
                                  Encontrados um sobrevivente e um morto a bordo.

                                                            12

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                                   História de batalha desesperada e mortes no mar.
                        Marinheiro resgatado omite detalhes sobre a estranha experiência.
                        Encontrado ídolo estranho em sua posse. Investigações prosseguem .

         O cargueiro  Vigilant da Morrison Co., com destino a Valparaíso, chegou esta manhã a sua
doca no Porto de Darling, rebocando o iate a vapor Alert,  combatido e inutilizado mas fortemente
armado, de Dunedin, Nova Zelândia, que foi avistado no dia 12 de abril em 34º 21’ de Latitude S. e
152º 17’ de Longitude O. com um homem vivo e um morto a bordo.
         O  Vigilant deixou Valparaíso em 25 de março, e no dia 2 de abril foi impelido muito ao sul
de   sua   rota   por   tempestades   excepcionalmente   violentas   e   ondas   monstruosas.   Em   12   de   abril,   o
navio abandonado foi visto, e embora parecesse estar deserto, depois de abordado verificou-se que
abrigava   um   sobrevivente   em   condições   quase  delirantes   e   um   homem   que,   com   certeza,   estava
morto havia mais de uma semana. O vivo estava agarrado a um horrível ídolo de pedra de origem
desconhecida,       com    cerca   de  trinta   centímetros    de  altura,   sobre    cuja  natureza    autoridades     da
Universidade       de  Sydney,     da  Royal    Society    e  do  Museu      da  College    Street   professaram     total
perplexidade,   e   que   o   sobrevivente   fiz   ter   encontrado   na   cabine   do   iate,   num   pequeno   escrínio
cinzelado de tipo comum.
         Esse homem, depois de recobrar os sentidos, contou uma história muito estranha de pirataria
e   chacina.    Trata-se   de   Gustaf   Johansen,     um  norueguês      de   alguma    inteligência,    e  que   fora  o
contramestre da escuna Emma, de Auckland, que zarpou para Callao com uma tripulação de onze
homens em 20 de fevereiro. A Emma, dizia ele, foi retardada e empurrada com toda força para o sul
de sua rota pela grande tormenta de 1º de março, e em 22 de março, estando em 49º 51’ de Latitude
S.   e   128º   34’   de   Longitude   O.   encontrou Alert,   manejado   por   uma   tripulação   estranha   e   mal-
encarada de canacas e mestiços. Ordenado peremptoriamente a voltar, o capitão Collins se recusou,
diante do que a estranha tripulação começou a atirar com selvageria e sem aviso na escuna com a
bateria pesada de canhões de bronze que equipava o iate. Os homens da Emma travaram luta, conta
o   sobrevivente,   e   embora   a   escuna   começasse   a  afundar   com   os   tiros   recebidos   abaixo   da   linha
d’água, eles conseguiram emparelhar o barco com o inimigo e abordá-lo, enfrentando a tripulação
selvagem no convés do iate, e sendo forçados a matar todos, cujo número era um pouco superior,
devido   ao   modo   particularmente   abominável   e   desesperado,   ainda   que   canhestro,   com   que   eles
lutavam.
         Três homens da Emma, inclusive o capitão Collins e o imediato Green, foram mortos, e os
oito   restantes,   comandados   pelo   contramestre   Johansen   trataram   de   manobrar   o   iate   capturado,
seguindo   em   seu   curso   original   para   ver   se   existia   alguma   razão   para   a   ordem  de   voltar.   No   dia
seguinte, ao que parece, eles desembarcaram numa pequena ilha, embora não soubesse da existência
de nenhuma ilha naquela parte do oceano, e seis dos homens morreram, de alguma forma, em terra,
embora Johansen seja curiosamente reticente sobre essa parte de sua história e fale apenas de eles
terem caído numa fenda da rocha. Mais tarde, ao que parece, ele e um companheiro subiram a bordo
do   iate   e   tentaram   manobrá-lo,   mas   foram   fustigados   pela   tempestade   de   2   de   abril.   Daquele
momento até seu resgate no dia 12, o homem pouco se recorda, e nem mesmo se lembra de quando
William Briden, seu companheiro, morreu. Não há evidências visíveis da causa da morte de Briden,
e é provável que se tenha dado à perturbação mental ou à desproteção. Informações telegráficas de
Dunedin relatam que o Alert era bem conhecido ali como um barco mercante na ilha, e possuía uma
péssima   reputação   em   todo   o   cais.   Pertencia   a  um   estranho   grupo   de   mestiços   cujas   reuniões
freqüentes   e   incursões   noturnas   aos   bosques   atraíam   grande   curiosidade,   e   tinha   zarpado   com
grande     pressa   pouco    depois    da   tempestade     e  dos   tremores    de  terra   de  1º   de  março.    Nosso
correspondente       de   Auckland     confere    uma    excelente    reputação    à  Emma     e  a  sua   tripulação,   e
Johansen é descrito como homem sóbrio e valoroso. O almirantado vai abrir um inquérito sobre o
assunto todo a partir de amanhã, e todos os esforços serão enviados para induzir Johansen a falar
mais fracamente do que tem feito até agora.

                                                            13

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         Isso    era  tudo,   além    da   imagem     da   estatueta   infernal,   mas    que   associação     de   idéias
desencadeou       em   minha     mente!    Ali  estavam    novas    e  preciosas    informações     sobre    o  Culto   de
Cthulhu, e evidências de que ele guardava estranhas relações com o mar, assim com a terra. O que
teria   levado   a   tripulação   mestiça   a   ordenar   que   a Emma   retornasse   enquanto   seguiram  em   frente
com   seu   hediondo   ídolo?   O   que   seria   a   ilha   desconhecida   onde   seis   homens   da  Emma   tinham
morrido,   e   sobre   a   qual   o   imediato   Johansen   era   tão   reticente?   O   que   a   investigação   do   vice-
almirantado teria apurado e o que se saberia do abominável culto em Dunedin? E o mais admirável,
que   relação   profunda   e   sobrenatural   de   datas   era   aquela   que   emprestava   um   significado   maligno
agora inegável às diversas viravoltas dos acontecimentos tão cuidadosamente anotadas por meu tio?
         Em 1º de março — nosso 28 de fevereiro segundo a linha internacional da data — vieram o
terremoto e a tempestade. De Dunedin, o Alert e sua deletéria tripulação tinha partido a toda pressa
como   se   fossem   imperiosamente   convocados,   e   no  outro   lado   da   Terra,   poetas   e   artistas   tinham
começado a sonhar com uma estranha cidade ciclópica e úmida, enquanto o jovem escultor tinha
modelado, durante o sono, a forma do temível  Cthulhu.   Em   23   de   março,   a   tripulação   da Emma
desembarcou numa ilha desconhecida onde deixou seis mortos; e naquela mesma data, os sonhos de
homens   sensíveis   assumiram   uma   vivacidade   acentuada,   obscureceram   de   pavor   da   perseguição
maligna de um monstro gigantesco, enquanto um arquiteto enlouquecia e um escultor mergulhava
no delírio! E quanto a essa tempestade de 2 de abril — a data em que todos os sonhos com a cidade
úmida cessaram e Wilcox escapou ileso do jugo de estranha febre? O que pensar disso tudo — e das
sugestões do velho Castro sobre os Antigos de origem estelar submersos e o advento de seu reinado,
seu   culto   religioso   e seu   domínio   sobre   os   sonhos?   Estaria   eu   cambaleando   à   beira   de   horrores
cósmicos que a capacidade humana seria incapaz de suportar? Se assim fosse, deviam ser apenas
horrores mentais, pois, de algum modo, o dois de abril dra um fim à qualquer ameaça monstruosa
que tivesse começado seu assédio à alma da humanidade.
         Naquela noite, depois de um dia de arranjos e telegramas apressados, despedi-me de meu
hospedeiro   e   tomei   um   trem   para   San   Francisco.  Em   menos   de   um   mês,   eu   estava   em   Dunedin,
onde descobri, porém, que pouco se sabia dos estranhos membros do culto que tinham perambulado
pelas velhas tavernas do cais. A escória das docas era comum demais para merecer alguma menção
especial, embora corressem vagos rumores sobre uma viagem ao interior feita por aqueles mestiços
durante     a  qual  se   notaram    um   longínquo     rufar   de   tambores    e  chamas    vermelhas     nos   morros
distantes.    Em    Auckland,      fiquei  sabendo     que   Johansen     tinha   voltado   com     os  cabelos    louros
embranquecidos depois de uma inquisição perfunctória  e inconclusiva em Sydney, e depois disso
vendera sua casinha na West Street e navegara com a mulher para sua velha casa em Oslo. Sobre a
sua   estarrecedora   experiência,   ele   não   diria   aos   amigos   mais   do   que   dissera  aos   funcionários   do
almirantado, e tudo que eles puderam fazer foi dar-me seu endereço em Oslo.
         Depois   disso,   fui   a   Sydney   e   conversei   com marinheiros   e   membros   do   tribunal   do   vice-
almirantado, mas foi em vão. Vi o Alert,  agora vendido e em uso comercial, no Cais Circular em
Sydney Cove, mas de nada me serviu sua aparência vulgar. A estatueta agachada com sua cabeça de
choco, corpo de dragão, asas escamadas e pedestal hieróglifo, estava guardada no Museu do Parque
Hyde.     Eu   a  estudei   atentamente,     achando-a     de  um    artesanato   muito   raro,   contendo     o  mesmo
absoluto   mistério,   terrível   antiguidade   e   sinistra   estranheza   de   material   que   eu   tinha   notado   no
exemplar menor de Lagrasse. Os geólogos, contou-me o curador, a tinha considerado um grande
mistério, pois juravam que não havia no mundo uma pedra daquele tipo. Estremecendo, pensei no
que o velho Castro tinha dito a Lagrasse sobre os Grandes primitivos: “Eles vieram das estrelas e
trouxeram Suas imagens consigo.”
         Abalado por uma revolução mental como jamais conhecera, resolvi visitar o contramestre
Johansen em Oslo. Navegando até Londres, tornei a embarcar em seguida para a capital da Noruega
onde desembarquei, num certo dia de outono, nas docas bem cuidadas à sombra de Egeberg13. O

endereço de Johansen, conforme verifiquei, ficava na Cidade Velha do Rei Harold Haardrada, que
mantivera      vivo   o  nome    de  Oslo    durante   os   séculos   em   que   a  cidade    maior   se  disfarçara    de

13 Bergen, cidade marítima e portuária do sudoeste da Noruega. (Nota de Transcrição)

                                                            14

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“Christiana.”14 Fiz o breve percurso de táxi com o coração palpitando, na porta de um velho e bem

cuidado   edifício   com   a   frente   rebocada.   Uma   mulher   de   rosto   melancólico,   de   preto,   atendeu,
causando-me profunda frustração ao me contar, num inglês vacilante, que Gustaf Johansen já não
existia.
         Não   sobrevivera   a   seu   retorno,   contou-me   a   esposa,   pois   os   acontecimentos   ao   mar,   em
 1925,   tinham   acabado   com   ele.   Ele   não   tinha   contado   à   esposa   nada   além   do   que   dissera   em
público, mas tinha deixado um longo manuscrito — sobre “assuntos técnicos” como dizia — escrito
em   inglês,   evidentemente   para   protegê-la   do   risco   de   uma   leitura   casual.   Caminhando   por   uma
estreita viela perto do cais de Gotemburgo, fora atingido e derrubado por um fardo de papel caído
de   uma   janela   de   sótão.   Dois   marinheiros   indianos   ajudaram-no   prontamente   a   se   levantar,   mas
antes que a ambulância chegasse, ele estava morto. Os médicos não encontraram nenhuma causa
apropriada para o seu falecimento e atribuíram a problemas cardíacos e à constituição debilitada.
         Sentia agora corroer-me as entranhas aquele terror hediondo que jamais me abandonará até
que eu também fique em repouso, “por acidente” ou de alguma outra forma. Persuadindo a viúva de
que    minha     conexão    com    os   “assuntos    técnicos”   de    seu  marido     me   intitulava   a  ficar  com    o
manuscrito,      levei   o  documento      e  comecei     sua  leitura   no  navio    para   Londres.    Era   uma    coisa
simplória,     desconexa      —   o   esforço   de   um   marinheiro     ingênuo     num    diário  a   posteriori   —    e
procurava   recordar,   dia   a   dia,   aquela   última   e   terrível   viagem.   Não   posso   tentar   transcrevê-lo
literalmente em toda sua nebulosidade e redundância, mas reproduzirei o bastante de seu conteúdo
para mostrar por que o som da água contra os costados do navio se tornou de tal forma insuportável
para mim que tapei os ouvidos com algodão.
          Johansen,   graças   a   Deus,   não   sabia   tudo,   apesar   de   ter   visto   a   cidade   e   a   Coisa,   mas   eu
jamais     dormirei    tranqüilo   enquanto     pensar    nos  horrores    que   espreitam     sem   parar   por   trás  da
existência no tempo e no espaço, e naquelas blasfêmias                profanas de estrelas primitivas que sonham
no fundo do mar, conhecidas e veneradas por um culto de pesadelo pronto e ávido para soltá-las no
mundo sempre que algum terremoto suspender sua monstruosa cidade de pedra novamente até o sol
e o ar.
         A viagem de Johansen tinha começado tal como ele contou ao vice-almirantado. A Emma,
navegando com lastro, fizera-se ao mar em Auckland, em 20 de fevereiro, e tinha sido atingida em
cheio por aquela tempestade provocada pelo terremoto que devia ter desprendido, do fundo do mar,
os horrores que povoam os sonhos humanos. De novo sob controle, a embarcação avançava em boa
marcha   quando   foi   atacada   pelo  Alert,   em   22   de   março,   e   pude   sentir   o   desgosto   do   imediato
enquanto descrevia seu bombardeio e afundamento. Aos fanáticos mestiços do Alert, ele se refere
com perceptível horror. Eles tinham alguma coisa especialmente abominável que parecia quase um
dever destruí-los, e Johansen manifesta um espanto ingênuo com a acusação de impiedade feita a
seu grupo durante o inquérito judicial. Depois, impelidos pela curiosidade, seguiram em frente no
iate capturado sob o comando de Johansen e avistaram uma grande coluna de pedra se projetando
para cima da superfície do mar, e em 47º 9’ de Latitude S. e 126º 43’ de Longitude O. chegaram a
um litoral combinando lodo, limo e construções de alvenaria ciclópica coberta de ervas daninhas
que outra coisa não poderia ser senão a substância tangível do supremo horror sobre a Terra — a
pavorosa      cidade-defunta     de   R’yleh,   construída     em   eras   imemoriais   anteriores     à   História  pelas
formas imensas e malignas que se infiltraram das estrelas sombrias. Ali jaziam o poderoso Cthulhu
e   suas   hordas,    ocultos   em    criptas   verdes,   enlameadas,      e  expedindo,     enfim,   depois    de   ciclos
temporais incalculáveis, os pensamentos que espalhavam o terror nos sonhos de pessoas sensíveis e
convocavam   imperiosamente   os   fiéis   a   uma   romaria   de   libertação   e   restauração.   Disso   tudo   não
suspeitava Johansen, mas Deus sabe que ele logo veria o suficiente.
         Imagino que um único topo de montanha, a hedionda cidadela encimada por monólito sobre
a qual o grande Cthulhu estava enterrado, emergiu mesmo das águas. Quando penso na extensão de
tudo que pode estar germinando naquele lugar, tenho vontade de me matar. Johansen e seus homens

14 Oslo foi fundada por Harold III da Noruega por volta de 1050. Destruída em 1624 por um incêndio, Christian IV a

reconstruiu batizando-a de Cristiania em sua homenagem. Assim foi até 1925, quando recuperou seu nome histórico.
(Nota de Transcrição)

                                                            15

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ficaram     admirados      diante   da   majestade     cósmica     daquela     Babilônia    gotejante    de   demônios
ancestrais, e devem ter imaginado, sem orientação, que aquilo não pertencia a este nem a qualquer
outro    planeta    são.  A   admiração     com    o  tamanho     descomunal      da   cidade    de  blocos    de  pedra
esverdeados,       com    altura   estonteante    do   grande    monólito     cinzelado     e  com    a   estarrecedora
semelhança entre as colossais estátuas e baixos-relevos e a imagem bizarra encontrada num escrínio
do Alert, é dolorosamente visível em cada linha da apavorada descrição do contramestre.
         Sem conhecer o futurismo, Johansen chegou muito perto dele ao falar da cidade, pois, em
vez de descrever alguma estrutura ou edifício definido, ele se atém a impressões gerais sobre os
imensos ângulos e superfícies de pedra — superfícies grande demais para pertencerem a qualquer
coisa normal ou própria desta Terra, corrompidas por imagens e hieróglifos terríveis. Menciono sua
referência a ângulos porque sugere algo que Wilcox me disse sobre seus pavorosos sonhos. Ele dise
que   a  geometria    do   lugar   que   via   em   sonhos   era   anormal,   não   euclidiana,   sugerindo   locais   e
dimensões repulsivos, diferentes dos nossos. Agora, um marinheiro iletrado sentia a mesma coisa
observando a terrível realidade.
         Johansen e seus homens desembarcaram num banco de lama inclinado daquela monstruosa
Acrópole,   e   escalaram   aos   escorregões   os   titânicos   blocos   enlameados   que   não   poderiam   ser   a
escada     de  nenhum     mortal.    O  próprio    sol  no  firmamento      parecia   distorcido    visto  através    dos
miasmas      polarizantes    que   exalavam     daquela    perversão     encharcada,     e  um   misto   de   ameaça    e
expectativa,   às   escondidas,   daqueles   ângulos   loucamente   enganosos   de   rocha   entalhada   onde   se
revelava côncavo a um segundo olhar o que se mostrara convexo a um primeiro.
         Algo   muito   parecido   com   pavor   tomara   conta   de   todos   os   exploradores   antes   mesmo   de
avistarem qualquer coisa mais definida do que rocha, limo e mato. Cada um deles teria fugido não
fosse por medo da zombaria dos outros, e foi sem muito entusiasmo que eles procuraram — em
vão, com se provou — alguma lembrança que pudessem carregar.
         Foi Rodriguez, o português, quem escalou a base do monólito e gritou, informando o que
tinha encontrado. Os outros seguiram e olharam, cheios de curiosidade, a imensa porta entalhada
com o já familiar baixo-relevo em forma de dragão com cabeça de lula. Parecia, segundo Johansen,
uma grande porta de celeiro, e todos sentiram que era uma porta devido à verga, umbral e batentes
ornamentados   que   a   cercavam,   embora   não   conseguissem   ter   claro   se   era   horizontal   como   um
alçapão ou inclinada como a porta externa de um porão. Como Wilcox teria dito, a geometria do
lugar era toda errada. Não se podia ter certeza se o mar e o chão eram horizontais e, por isso, a
posição relativa de tudo o mais parecia irrealmente variável.
         Briden tentou forçar a porta em vários pontos, sem resultado. Depois Donovan tateou-a sua
borda   deliberadamente,   pressionando   um   ponto   de   cada   vez.   Ele   subiu   pela   grotesca   moldura   de
pedra — isto é, podia-se chamar aquilo de subir já que não era mesmo horizontal — e os homens se
perguntavam como alguma porta  no universo podia ser tão imensa. Então, lenta e suavemente, o
imenso   painel   começou   a   ceder   para   dentro   na parte   superior,   e   eles   puderam   notar   que   ele   era
articulado. Donovan escorregou, ou algo assim, para baixo ou ao longo do batente, juntando-se aos
companheiros,       e  todos    ficaram   observando      o  estranho    recuo   daquele    portal   com    os  entalhes
monstruosos. Naquela ilusão de distorção prismática, ele se movia de forma anormal, em diagonal,
parecendo contrariar todas as regras da matéria e da perspectiva.
         A abertura era negra, de uma escuridão quase matéria. Aquelas trevas eram, na verdade, uma
qualidade   positiva,   pois   escureciam   as   partes   das   paredes internas   que   deveriam  ser   reveladas,   e
exalava para fora como fumaça de sua prisão multimilenar, obscurecendo a olhos vistos o sol, ao
escoar para o céu inchado e convexo num adejar de asas membranosas. O cheiro que exalava das
profundezas   recém-abertas   era   intolerável,   até  que   Hawkins,   que   tinha   ouvidos   muito   aguçados,
pensou ter ouvido um chapinhar repulsivo no interior. Os homens ficaram atentos e ainda tentaram
ouvir quando a Coisa se arrastou, babando, à vista de todos, espremendo Sua imensidade verde e
gelatinosa pela passagem escura para o ar exterior infecto daquela venenosa cidade de loucura.
         A   caligrafia   do   pobre   Johansen   quase   estancou   neste   ponto.   Dos   seis   homens   que   jamais
retornaram   ao   navio,   ele   acha   que   dois   sucumbiram   de   puro   pavor   naquele   maldito   instante.   A
Coisa não pode ser descrita — não há linguagem para abismos tão imemoriais de pavor e demência,

                                                           16

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contradições   tão   grandes   de   matéria,   força   e  ordem   cósmica.   Uma   montanha   caminhado   ou   se
arrastando. Deus! Não espanta que, por toda a Terra, um grande arquiteto enlouquecesse e o pobre
Wilcox delirasse de febre naquele instante telepático! A Coisa dos ídolos, a cria verde e gosmenta
vinda das estrelas, tinha despertado para reclamar o que era seu. As estrelas estavam posicionadas
uma   vez   mais   e   o   que   um   culto   ancestral   não  tinha   conseguido   deliberadamente,   um   grupo   de
inocentes marinheiros tinha obtido por acidente. Após eras incontáveis, o poderoso Cthulhu estava
livre outra vez, e ávido de prazer.
         Três    homens     foram    varridos    pelas   patas   balofas   antes   de   alguém    poder    virar-se.   Que
desçansem em paz, se algum repouso existir no universo. Era eles Donovan, Guerrera e Cngstrom
Parker.    Parker    escorregou     enquanto     os  outros   três  mergulhavam        freneticamente      em   paisagens
intermináveis de rocha incrustada de verde para o barco, e Johansen jura que ele foi engolido por
um ângulo de parede que não deveria estar ali, um ângulo que era agudo mas se comportava com se
fosse obtuso. Assim, só Briden e Johansen conseguiram alcançar o barco e remaram desesperados
para o Alert  enquanto a monstruosidade montanhosa se deixava cair pesadamente sobre as rochas
escorregadias, até parar, hesitante, à beira do mar.
         O   vapor   do   navio   não   estava   totalmente   extinto,   apesar   da   ida   de   todos   os   braços   para   a
praia, e alguns minutos de correria febril de um lado para outro entre a roda do leme e as máquinas
foi o que bastou para colocar o Alert  em movimento. Devagar, em meio aos horrores distorcidos
daquela paisagem indescritível, ele começou a agitar as águas letais, enquanto sobre a estrutura de
pedra     daquela    praia   espectral   que   não    era  da   Terra,   a  Coisa    titânica  das   estrelas   babava    e
resmungava como Polifemo maldizendo o navio em fuga de Ulisses15. Em seguida, mais audacioso

do   que   os   célebres   Ciclopes,   o   poderoso   Cthulhu   deslizou   viscosamente   para   a   água   e   saiu   em
perseguição do navio com braçadas de uma potência cósmica e tão imensas que chegavam a fomar
ondas   na   superfície   do  mar.   Briden   olhou   para trás   e   enlouqueceu,   rindo   histericamente,   e   assim
seguiu rindo, com intervalos, até que a morte o encontrou, certa noite, na cabine, enquanto Johansen
perambulava delirante pelo navio.
         Mas Johansen ainda não tinha desistido. Sabendo que a Coisa certamente alcançaria o Alert
antes que o navio navegasse a pleno vapor, resolveu fazer uma tentativa desesperada e ajustando a
máquina para plena velocidade, correu como um raio para o convés e inverteu o leme. Formou-se
um   portentoso   turbilhão   de   espuma   no   abominável   oceano,   e   enquanto   a   pressão   do   vapor   ia
aumentando,       e  aumentando,       o  bravo   norueguês     dirigia   a  proa   da  embarcação      para   o  caçador
gelatinoso que se erguia acima da espuma imunda com a proa de um galeão infernal. A pavorosa
cabeça de lula com tentáculos retorcidos já estava quase alcançando o gurupés do robusto iate, mas
implacável, Johansen avançava. Houve um ruído de bexiga estourando, uma sujeira gosmenta de
peixe-lula   rasgado,   um   fedor   como   se   um   milhar   de   sepulturas   fossem   abertas   e   um   som   que   o
cronista não conseguiu pôr no papel. Por um instante, o navio ficou coberto por uma nuvem verde,
acre   e   cegante,   e   depois   restou   apenas   um   fervilhar   venenoso   a   ré,   onde   —   Deus!   —   a   massa
plástica dispersa daquela inominável criatura celeste ia vagamente  recompondo  sua odiosa forma
original, enquanto se alargava a distância que a separava, a cada segundo, do Alert   que ganhava
ímpeto com a pressão crescente do vapor.
         Isso   foi   tudo.   Em  seguida,   Johansen   apenas   meditou   sobre   o   ídolo   na   cabine   e   cuidou   da
comida para si e para o maníaco risonho ao seu lado. Ele não tentou navegar depois da primeira e
corajosa fuga, pois o contra-ataque tinha extraído algo de sua energia. Depois veio a tormenta de 2
de abril e sua consciência se anuviou. Há uma sensação de vertigem espectral por abismos líquidos
do   infinito,   de   corridas   alucinadas   por   universos  instáveis   montado   numa   cauda   de   cometa,   e   de
saltos histéricos do poço à lua e da lua novamente ao poço, tudo animado por um coro cachinante

15 Ulisses, nome latino de Odisseu, na mitologia grega, governador da ilha de Ítaca e um dos chefes do exército grego

durante a guerra de Tróia. (Nota de Transcrição)

                                                            17

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dos corrompidos, hilários deuses antigos e dos zombeteiros duendes verdes com asas de morcego
do Tártaro.16

         Fora daquele sonho, veio a salvação — o Vigilant, o tribunal do vice-almirantado, as ruas de
Dunedin e a longa viagem de volta para a velha casa à sombra de Egeberg. Ele não poderia contar
—   eles   o   achariam   louco.   Escreveria   tudo   que   sabia   antes   da   morte   chegar,   mas   sua   esposa   não
devia suspeitar. A morte seria uma bênção se ao menos pudesse apagar as lembranças.
         Esse foi o documento que li e coloquei agora na caixa de estanho ao lado do baixo-relevo e
dos papéis do professor Angell. Com ele irá esse meu registro — esse teste de minha própria atitude
mental, em que se reconstituiu aquele que eu espero que jamais se reconstitua de novo. Considerei
tudo de que o universo dispõe para conter o horror, e mesmo os céus de primavera e as flores de
verão serão, para sempre, veneno para mim. Mas não creio que minha vida dure muito. Assim como
meu tio se foi, como o pobre Johansen se foi, eu irei. Sei demais, e o culto ainda vive.
         Cthulhu ainda vive, também, imagino, naquele abismo de pedra que o abrigou desde que o
sol era jovem. Sua maldita cidade está novamente submersa, pois o  Vigilant navegou até o local
depois da tormenta de abril, mas seus agentes em terra ainda urram, cabriolam e matam em torno de
monólitos   coroado   por   ídolos   em   locais   desertos.   Ele   dever   ter   sido   apanhado   pelo   afundamento
enquanto   estava   dentro   de   seu   abismo   negro,   senão   o   mundo   estaria   agora   gritando   de   pavor   e
loucura. Quem conhecerá o fim? Aquilo que emergiu pode afundar, e o que afundou pode emergir.
A repugnância espera e sonha nas profundezas, e a podridão se espalha sobre as precárias cidades
dos homens. Chegará um momento... mas não devo e não posso pensar! Deixem-me rezar para que,
se não sobreviver a este manuscrito, meus executores testamentários coloquem a cautela a frente da
audácia e cuidem que ele não chegue a outros olhos.

16 Tártaro, na mitologia grega, a região mais baixa dos infernos. Segundo Hesíodo e Virgílio, o Tártaro é fechado por

portas   de   ferro   e   está   tão   abaixo   do   mundo   subterrâneo   de   Hades   quanto   a   terra   está   em   relação   ao   céu.   (Nota   de
Transcrição)

                                                            18
Fontes: www.sitelovecraft.com                                                                       de3103@yahoo.com.br

 Fonte: “O Horror em Red Hook”. Ed. Iluminuras.
            Adquira o livro completo em http://www.iluminuras.com.br
            ∗Notas de transcrição não constam nos originais da editora.

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